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O impacto de Uhura em Jornada nas Estrelas

“Espaço, a fronteira final… estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, pesquisando novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.

Esta era a chamada na abertura de cada episódio de Jornada nas Estrelas. Situada no século 23, a série traz uma visão otimista do futuro, onde a humanidade consegue viver em harmonia. Os conflitos da série são encontrados nas missões que a frota estelar precisa cumprir durante seus cinco anos de exploração.

Representando a frota estelar e servindo como cenário principal para a série, temos a nave USS Enterprise NCC — 1701, que acomoda a tripulação comandada pelo capitão James T. Kirk, interpretado por William Shatner. Ao seu lado, Gene Roddenberry, o criador da série, fez questão de inserir personagens que representassem a importância dos movimentos por igualdade racial tomando conta dos noticiários da época, indo contra a maioria dos estereótipos da televisão e do cinema até o momento.

Kirk tem ao seu lado companheiros como o escocês Montgomery Scott, o engenheiro chefe interpretado por James Doohan, e o doutor McCoy, interpretado por DeForest Kelley. Isso sem contar o favorito de todos, o oficial de ciências, Spock, imortalizado por Leonard Nimoy.

Ao visitar o período histórico em que Jornada nas Estrelas se encontrou durante sua exibição, em meio à Guerra fria e o agravamento dos conflitos raciais nos Estados Unidos, fica mais fácil compreender a motivação e a decisão de Gene Roddenberry em usar seu produto para gerar um debate político e social.

Nimoy e Nichols

A série original é até hoje conhecida por quebrar várias barreiras culturais. Em uma época em que as mulheres eram representadas na mídia televisiva como personagens unidimensionais e com as características de uma dona de casa ou apenas interesse amoroso de outro personagem, a atriz Nichelle Nichols conseguiu se destacar em um papel onde sua personagem, Uhura, não apenas tinha o cargo de tenente em uma nave estelar, como era negra e serviu para mostrar a importância da representatividade.

Outras etnias tiveram seu espaço, como a personagem do nipo-americano George Takei, o oficial Hikaru Sulu, ou o russo Pavel Chekov, interpretado por Walter Koening. É importante lembrar que escolher um personagem russo no auge da guerra fria foi uma das várias decisões arriscadas de Roddenberry. Com a evolução do programa e sua extensão para spin-offs, ainda mais presenças étnicas foram inseridas no universo da franquia.

Há uma ditado chinês: ´Que você viva em tempos interessantes´. 

Nós tivemos isso na década de sessenta, e temos isto agora também, talvez nunca deixemos de ter. São tempos extremamente caóticos. Foi uma base muito forte para apoiarmos nossas metáforas e dramas. Acho que nossos roteiristas conseguiram capturar isso muito bem. Se sensibilizavam bastante com o que acontecia na época, e tentavam colocar tudo o que conseguiam em um século diferente, que ainda assim lidava com questões que nos acometiam na época”. (NIMOY, 1991)

Os tripulantes da frota estelar representavam um futuro igualitário que servia de comentário para debater um mundo cada vez mais dividido. A série interage com os acontecimentos mais marcantes da década de 60, como a guerra do Vietnã e o avanço dos movimentos feministas e black power (empoderamento negro). Enquanto a segregação racial fazia parte do cotidiano e muitos estabelecimentos chegavam até a não aceitar que negros usassem o mesmo banheiro e restaurante que os brancos, Jornada nas Estrelas teve a coragem de acrescentar Uhura ao elenco.

Doohan e Nichols

Inteligente, independente e talentosa, Uhura mostra que não é só mais uma personagem estereotipada da época. Desde o seu nome, proveniente da palavra suaíli Uhuru, que significa “liberdade”.

Em The Gamesters of Triskelion, da segunda temporada, Uhura chega a travar uma batalha corporal para defender seus companheiros. Com esta cena podemos fazer uma alusão aos movimentos feministas em ascensão na época, que se sentiriam muito mais representados por uma personagem que consegue se defender sozinha sem precisar do apoio de um “homem forte” atuando como herói para uma “donzela em perigo”.

Outro episódio, Plato´s Stepchildren pode ter alguns dos momentos mais ridículos da série, como Kirk e Spock dançando e recitando trechos de Alice Através do Espelho, chegando ao ponto de termos que ver Kirk fingindo ser um cavalo. Tudo isto fazia parte da trama do episódio, onde um grupo de seres super-inteligentes utilizava seus poderes psicocinéticos para controlar as ações da tripulação, criando uma forma de teatro para entretenimento de seu povo. Mas não foi por estas ações que o episódio foi lembrado. Foi nele que tivemos o primeiro beijo inter-racial da televisão norte americana, protagonizado por Kirk e Uhura. E por mais que tenha sido influenciado por controle mental, o beijo continua sendo um grande feito quando lembramos da época em que esta cena aconteceu e como repercutiu, chegando a ser cortado durante a exibição em alguns cantos do sul do país.

A personagem era querida pelos fãs. Nichols recebia várias cartas de reconhecimento e ofertas para atuar em outras produções, incluindo peças na broadway. Mesmo adorada, a série não era um sucesso de público (isso de acordo com a emissora) e a atriz considerou sair da série para fazer algo diferente com a carreira. Roddenberry tentou convencê-la do contrário e pediu para que ela pensasse um pouco mais a respeito disso. A atriz só resolveu aceitar continuar na série depois de encontrar o ativista político Martin Luther King em uma festa beneficente.

Eu estava nesta festa e em algum ponto fui chamada para conversar com um fã […] Procurei por ele no salão, mas no meio do caminho me deparo com este rosto famoso, com um enorme sorriso. Naquele momento, seja quem fosse meu fã, ele teria que esperar. Era o doutor Martin Luther King, meu líder. Então ele diz: “Sim, senhorita Nichols, eu sou seu maior fã”” (NICHOLS, 2010).

Nichols também conta que ao confessar para King a vontade de sair da série, sua primeira reação foi ficar surpreso e inconformado com a possibilidade.

“Ele olha sério para mim e diz: ´Você não pode […] Não entende o que isso significa? Pela primeira vez na televisão nós somos vistos como devemos ser vistos todos os dias. Como inteligentes e belas pessoas que podem cantar, dançar, mas que também podem ir para o espaço, serem advogados, professores. Não víamos isso na TV até agora […] Uma porta foi aberta para que o mundo nos veja. Se você sair, ela pode ser fechada´”.

A representatividade em Jornada nas Estrelas foi forte o suficiente para impactar a decisão da carreira de muitas pessoas ao longo dos anos. A atriz Whoopi Goldberg assistia a série quando criança e ficou tão impressionada que imaginou um dia estar na série. Quando A Nova Geração (1987–1994), o primeiro spin-off de Jornada nas Estrelas chegou, a atriz fez questão de pedir um papel no elenco, o que acabou conseguindo. E a sua personagem, Guinan, era uma convidada recorrente.

Outro exemplo de sucesso inspirado na série é o da primeira astronauta negra da NASA, Mae Jemison. Também fã da série, é interessante como anos depois ela também conseguiu uma participação na Nova Geração, em 1993, no episódio Second Chances.

Mae Jemison e LaVar Burton

Tenente Uhura talvez tenha sido a primeira mulher que nós encontrávamos na televisão toda semana que trabalhava em um campo técnico, isso era animador. Sem contar que ela era afrodescendente, me deu uma sensação de que estava assistindo algo diferente” (JEMISON, 1994)

Não eram apenas as mulheres e os negros com pouco espaço para papéis desempenhados de forma adequada. Uma das práticas mais comuns de muitos programas, principalmente os norte-americanos, envolvia a total descaracterização de outras culturas. E mais uma vez Roddenberry encontrou uma forma de comentar sobre isso ao inserir o personagem interpretado pelo asiático George Takei, o biofísico Sulu.

Assim como fez com Uhura, Roddenberry procurava um nome forte que representasse não só uma parte da ásia, mas todo o continente, então decidiu nomear seu personagem como uma referência ao mar de Sulu, situado entre a Malásia e as Filipinas. De acordo com Takei (2004):

Gene costumava dizer que a nave Enterprise serve como uma metáfora para a nave Terra. Toda a força da nave estava em sua diversidade. Ele queria que esta diversidade refletisse na escolha do elenco […] Sua maior dificuldade foi encontrar um nome para mim, pois todo nome asiático é bastante específico. Tanaka é japonês, Kim é coreano, Wong é chinês […] Ao olhar para o mapa encontrou o mar de Sulu. A água do mar costuma tocar todo o litoral, e foi assim que ele me nomeou

Depois de tudo que os Estados Unidos passaram após a Segura Guerra, principalmente com os ocorridos em Pearl Harbor, o preconceito contra asiáticos era evidente nas produções televisiva e no cinema. Mesmo assim, Sulu acabou se tornando um dos favoritos do público sem precisar apelar para os estereótipos que costumavam tomar conta do cotidiano. O mesmo aconteceu com outro personagem, o alferes Chekov, interpretado por Walter Koening.

Nichols e Koening

Chekov foi acrescentado ao elenco apenas na segunda temporada, mas não demorou muito para conquistar o público. Por ter uma clara descendência soviética, muitos consideram o personagem uma resposta de Roddeberry à Guerra Fria. Além disso, por ser um tripulante mais jovem, serviu para atrair o público da mesma faixa etária.

Com uma tripulação que até hoje é um dos melhores exemplos de diversidade em uma série de televisão, só faltava um bom roteiro, que não só fosse envolvente para o espectador casual ou o fã de ficção científica, mas que tivesse um forte impacto intelectual. Para o criador da série, a arte envolve comentário (RODDENBERRY, 1993), e o de Jornada nas Estrelas continua relevante e deveria ser assistido por todos, não importa qual spin-off ou filme, a franquia sempre terá em sua essência o respeito, a tolerância e a diversidade. Tudo começou com a oficial-chefe de comunicações da Enterprise, Uhura, ajudando todos a ir onde nenhum homem jamais esteve.

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Resolva seus problemas com “Maniac (2018)” | Crítica

Cary Joji Fukunaga impressionou o público e fez seu nome ao dirigir os episódios da primeira temporada da excelente série antológica True Detective(2014 — ). Com todo o crédito que recebeu, decidiu dirigir o longa Beasts of No Nation um ano depois, que foi distribuído pela Netflix. Em Maniac, ele reprisa sua parceria com o serviço de streaming, dessa vez ao lado de Patrick Sommerville (da série The Leftovers), e tem tudo para dar certo com um elenco premiado e grande orçamento.

A premissa não desrespeita o título da série. Uma companhia farmacêutica promete resolver os problemas das pessoas no futuro de uma vez por todas, mas por enquanto ainda precisa realizar alguns testes. Owen Milgrim (Jonah Hill) e Annie Landsberg (Emma Stone) fazem parte de um dos grupos inscritos no experimento. A dupla, que nunca se conheceu antes, agora está mais conectada do que imagina… e isso é o máximo que posso dizer sem entrar em detalhes.

Ao contrário dos protagonistas da série, Hill e Stone já são conhecidos de longa data, desde a comédia de 2007, Superbad: É Hoje, então dá para notar a química entre os dois. Sua relação é um dos pontos altos da série. Owen é um personagem contido, carrega uma tristeza no olhar, e mesmo que não seja a sua melhor performance, Jonah Hill ainda assim convence quando precisa passar a sensação de uma pessoa letárgica e desmotivada (tenho lido comentários sobre ele estar atuando mal e sem “vontade”, mas discordo desse ponto. Acredito que ele entrega exatamente o que seu personagem pede, só não chega a fazer algo excepcional como Stone, que costuma se jogar de cabeça nos seus papéis). Por seu histórico com comédias, as cenas que envolvem quebra de tensão ou apenas um pouco de humor mesmo, são onde ele brilha. Mas é Emma Stone quem realmente rouba a cena com sua atitude insubordinada. Sua personagem, Annie, é mais impulsiva e impaciente, e Stone exibe isso perfeitamente com sua atuação expressiva, quase caricata em alguns momentos, mas de um bom jeito. Explicarei isso mais à frente.

Jonah Hill

Além da dupla, o elenco também é bom e há alguns personagens que acabam se destacando, por bem ou por mal. Sally Field e Justin Theroux são os nomes mais veteranos. Theroux é o clássico estereótipo do cientista louco crente no modelo de que os fins justificam os meios. Field não tem o espaço que merece, mas o pouco que faz já é o suficiente. Os dois se envolvem em um arco que infelizmente não é envolvente. Há uma subtrama que lembra algo saído de uma obra de Douglas Adams, envolvendo um computador depressivo, mas as circunstâncias e a execução não convencem porque a série nunca admite sua faceta cômica, apenas flerta com ela em algumas instâncias.

O enredo de Maniac é instigante, assim como seus temas, mas a série também tem suas conveniências e um problema no estabelecimento de tom, pelo menos nos primeiros episódios. De começo somos apresentados ao mundo da série, uma ambientação charmosa com a estética “futurista” (aspas porque não é exatamente o futuro, é mais como uma versão do presente, mas mais estilizada) de uma década de 1990 alternativa à nossa. Podemos ver pequenos robôs espalhados pelas ruas fazendo o serviço sanitário, um amigo de Annie joga xadrez com um coala de pelúcia (o amigo perde) e um serviço de anúncios ambulante é uma boa saída para ganhar uma grana extra. É claro que estamos lidando com uma série de ficção científica, mas os elementos encontrados aqui são incorporados de forma natural, sem alarde, como se não estivesse chamando atenção para o fato de que esta é uma narrativa do gênero.

Talvez essa timidez em apresentar suas partes mais “bizarras”, deixando mais para frente na temporada, seja o que atrapalhou um pouco o ritmo dos primeiros episódios. Primeiro focamos no drama pessoal dos protagonistas, depois somos apresentados aos cientistas e só depois entramos de verdade na trama principal. Essa montagem linear seria bem recebida se a série soubesse administrar melhor todas as suas subtramas. Temos tantas séries recentes com linhas temporais fragmentadas, como Westworld (2016 — )Legion (2017 — ) ou Twin Peaks: The Return (2017), então já estamos acostumados com o formato, não custa arriscar um pouco.

Jonah Hill e Emma Stone

Apesar desses pequenos deslizes, a experiência de assistir Maniac é original. A direção de arte é belíssima e rica em detalhes e referências divertidas, como a logo da companhia farmacêutica que tem uma fonte parecida com a da empresa de informática IBM. Além disso, a série traz uma alusão ao filme Um Estranho no Ninho (1975) ao criar um termo para um tipo específico de paciente do experimento. Não é nada que chame muita atenção, mas é uma daquelas coisas que mostra como a série se esforça para inserir suas menções em uma maneira que sirva à trama e não apenas para que você aponte para a tela e fique feliz por ter pego uma referência.

Fukunaga surpreende mais uma vez. Sua lente anamórfica ajuda nas cenas exteriores, dando a sensação de espaço e profundidade que contribuem para um visual mais cinematográfico. As mudanças entre a nossa realidade e a mente dos personagens envolvem camadas cada vez menos realistas e mais parecidas com um filme de gênero (daí a atuação caricata que mencionei. Eu disse que ia explicar), então a decisão de Fukunaga apenas ajudou a série. Em um instante ele parece emular a tensão de filmes como A Origem (2010), de Christopher Nolan, mas em outro você é jogado no meio de um plano sequência cheio de ação. Essa última técnica já é quase uma marca registrada de Fukunaga, que orquestrou uma das melhores cenas da televisão da última década em True Detective.

Maniac começa devagar, mas o ritmo e a qualidade sobem gradativamente e você se pega cada vez mais curioso sobre a jornada de Owen e Annie. Nada é perfeito, claro, e a série pode não agradar todos por conta de seu tom inconsistente. Mas se você procura uma experiência quase cinematográfica, com ótimas atuações e uma trama atraente, acho que essa é pra você.

Personagens de Maniac