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40 Anos do Piquenique de Tarkovsky

Andrei Tarkovsky é facilmente um dos maiores nomes do cinema russo. Seu olhar para uma direção de arte impecável e a sensibilidade para debater temas complexos e existenciais é um diferencial que ele carrega como poucos. Na área da ficção científica ele tem no seu currículo duas grandes obras: Solaris (1971) e Stalker (1979). A primeira, adaptada do livro homônimo de Stanisław Lem, é grandiosa e muitas vezes comparada, com razão, ao maior feito de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Já Stalker, bem menor em escala mas igualmente impactante, é uma adaptação de Piquenique Na Estrada, a obra mais aclamada dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski. Recentemente, li a última edição traduzida para o português da obra, lançada no país pela Editora Aleph em 2017.

Em Piquenique na Estrada temos um clássico sci-fi de primeiro contato, mas com uma particularidade na premissa, desta vez os alienígenas vão embora sem que nós ao menos tenhamos a chance de descobrir o que está acontecendo. A cidade de Harmont é um dos pontos abandonados pelos visitantes, mas o curioso aqui está no que eles deixaram para trás. Chamados de “zonas”, os territórios habitados pelos invasores continuam um mistério para muitos que acreditam que qualquer tipo de coisa perigosa e bizarra pode acontecer. Por isso, poucos tem coragem de entrar nestas zonas. Um deles é Redrick Schuhart, um stalker, o tipo de pessoa que conhece o lugar e invade os pontos abandonados para coletar e tentar vender objetos de outro mundo.

O livro sofreu bastante na mão da censura. Lançado originalmente em 1971 na União Soviética, Piquenique na Estrada foi uma obra que refletiu seu tempo, trazendo momentos de alusão à Guerra Fria em seu texto. A edição brasileira além de ser traduzida diretamente do russo, estar em sua versão definitiva e ainda ter um prefácio pela incrível Ursula K. Le Guin, apresenta um posfácio escrito por um dos autores originais, Bóris, onde ele comenta o processo criativo da dupla e o contexto político que envolvia a obra — é nesta altura que o autor lista algumas das “razões” para o texto original ter sido atacado à ponto de perder sua essência. Trechos como “… eu gostaria de beber algo forte, mal conseguia me aguentar.”- p. 62, ou “… estava coberto de lama, como se fosse um porco.”- p. 113, são apenas alguns exemplos que a censura da época carimbou por “comportamento amoral” ou “expressões chulas”.

Arkádi & Boris Strugátski

Por já ter assistido o filme, ficou difícil ler a obra dos Strugátski sem fazer algumas comparações, é claro. A versão literária é muito mais objetiva na apresentação de seus personagens e em seus temas. O enredo tem uma proposta instigante e é cheio de elementos peculiares, mas devo confessar que a narrativa pode ser um pouco enfadonha. Em compensação, os diálogos são um dos pontos altos do livro, isso evita que você desanime de algumas partes. Piquenique na Estrada é uma obra única que merece atenção de qualquer fã de ficção científica pela maneira inovadora que executa um subgênero tão provocante. E acredite, a versão cinematográfica é para alguns (me inclua nessa) ainda mais surpreendente.

Assim como o livro, a adaptação de Tarkovsky possui um ritmo mais lento, mas sempre justificado. Sua câmera toma tempo, faz longas tomadas do ambiente e entrega a atmosfera onírica necessária para contar essa ficção científica com divagações filosóficas.

Os visuais de Tarkosvky são um espetáculo. O filme foi gravado em locais que exibiam a estética que o diretor considerava a mais próxima do que a zona deveria ser: decrépita, manchada e cheia de tralhas. Um dos locais da produção foi em uma usina abandonada na Estónia, o que já era praticamente um local pronto para a equipe de filmagem. Um outro elemento importante que permeia a obra é a presença da água, um tema recorrente do diretor. Ela está em quase todas as cenas de alguma maneira.

Ainda que o livro exija um exercício de imaginação e tenha chances de ser mais “interpretativo”, a versão cinematográfica tem a vantagem de inserir imagens impactantes e memoráveis. O cinema é uma mídia visual e quando uma ideia é representada com tamanha força como em Stalker, você entende a importância de capturar a pintura perfeita. Aqui Tarkovsky faz isso várias vezes. Um dos exemplos disso é a representação visual que o diretor decidiu utilizar para criar certo suspense, como a passagem do trem próximo à casa do protagonista — o resultado é uma das conclusões mais incríveis do cinema.

Piquenique de Tarkovsky

Outra comparação — já que entrei nessa e não deixei de lado — envolve os personagens. Para Tarkovsky é importante apresentar de forma clara as intenções e crenças de cada um dos viajantes que acompanha Redrick Schuhart (Aleksandr Kaydanovskiy), o stalker. Se no trabalho dos Strugátski há uma diversidade e “rotatividade” maior nos acompanhantes do protagonista, a película foca na dupla composta por um escritor (Anatoliy Solonitsyn) e um professor (Nikolay Grinko), ambos interessados em visitar a zona. Na versão cinematográfica, eles procuram uma sala que supostamente entrega uma revelação. No livro, o maior objeto de interesse é uma esfera que -mais uma vez, supostamente- concede desejos. O que dá ainda mais força ao enredo é a forma como a jornada se desenvolve.

Tarkovsky é um dos poucos diretores que sabe como trabalhar com a beleza e a captura da forma mais pura. Seus filmes são alguns dos mais desafiadores que já assisti, com visuais extraordinários e uma noção de tom que poucos tem.

Stalker Piquenique na Estrada são obras igualmente carregadas de debate filosófico, trazendo reflexões sobre ciência, religião, política e o nosso papel no mundo. Faça um favor a si mesmo e assista o filme e leia o livro. O primeiro pode ser assistido (com legendas) de graça no canal do Youtube da própria produtora do filme, a Mosfilmpor enquanto. Ela tem liberado vários filmes clássicos de seu catálogo em boa qualidade para todos. E aproveite, porque tem mais coisa do Tarkosvky por lá.

Já o segundo teve sua última edição lançada pela editora Aleph, com ótimo acabamento, tradução do idioma original e material extra imperdível.

Capa do Piquenique de Tarkovsky

Piquenique na Estrada (Roadside Picnic)
de Arkádi e Boris Strugátski

Editora Aleph, 2017

320 páginas, capa dura

Tradução de Tatiana Larkina

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Literatura

As Sereias de Titã | Atravessando o infundíbulo cronossinclástico

É a minha primeira vez lendo Kurt Vonnegut. Eu não estava preparado. 
As Sereias de Titã possui uma premissa absurda que consegue ficar ainda mais fantástica do que se imagina. Mas calma lá, não quero estragar a experiência, então tentarei ser o mais breve possível nessa parte — mesmo que considere praticamente inútil tentar omitir informações do enredo já que nem mesmo com contexto essa é uma história comum.

Winston Niles Rumfoord é um homem poderoso (com isso quero dizer abastado). Tão poderoso que conseguiu ir ao espaço em sua própria nave, acompanhado apenas por seu cão, Kazak. Mas ele não esperava que fosse passar por um fenômeno que resultaria em uma mudança completa na forma que percebe o tempo e o espaço. Depois disso, consegue fazer breves materializações na Terra para sua esposa, o que acaba causando uma comoção pública. O mais curioso nessa história toda, como se já não fosse misteriosa o suficiente, é que Rumfoord está mais interessado em entrar em contato com Malachi Constant, um ator Hollywoodiano considerado o americano mais rico do mundo, para que ele realize uma missão que está praticamente definida do início ao fim, envolvendo viagens espaciais (com paradas em Marte, Mercúrio e Titã), espécies alienígenas e até ter um filho com a esposa do próprio Rumfoord. É claro que a ideia parece estúpida e sem sentido algum, mas Malachi talvez não tenha muita escolha sabendo que a missão foi dada por alguém que viu o futuro.

E isso é tudo que você precisa saber da trama por enquanto.

Para tirar logo isso do caminho, é notável e inevitável a comparação que alguns fazem do trabalho de Vonnegut com o de outro grande autor da ficção científica: Douglas Adams, o criador da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. Ambos utilizam uma abordagem mais cômica e absurda em suas obras, o que é algo mais do que bem-vindo em um gênero constituído de conceitos surpreendentes e formas diferentes de debater temas importantes. Mas se Adams utiliza o humor para enfatizar o absurdo no melhor estilo Monty Python, Vonnegut é mais sutil e não se importa se algumas piadas passarem por você porque, acredite, algumas vão. Mas ele também não se aguenta e coloca algumas situações hilárias que dão aquela sensação de piada que nunca termina mas continua engraçada, como o momento em que descobrimos como o pai de Malachi se tornou um homem rico através da “palavra de Deus” ou basicamente tudo envolvendo o Viajante Espacial.

Kurt Vonnegut gigantesco em arte de prédio.

Vonnegut não é tão criativo em “termos técnicos” quanto Adams, mas ainda assim tem sua contribuição para o departamento de zombarias com a física ficcional do gênero. O que é um “infundíbulo cronossinclástico”? Você provavelmente não terá chance de descobrir tão cedo, mas foi onde Rumfoord foi parar com seu companheiro canino.

Mas Sereias de Titã não é apenas um livro com alguns momentos engraçados e piadas bem elaboradas; há um mar de questões filosóficas que estão constantemente retornando para a história. A própria missão de Malachi seria, por definição, uma forma de abandonar seu livre arbítrio? — se é que este conceito seja relevante de qualquer maneira para nós. Malachi está cumprindo algum tipo de destino? Será que os planos de Rumfoord fazem sentido apenas para ele, e dependendo da resposta, seriam os planos justificados? O livro levanta debates morais em um contexto complexo e aborda temas pesados, como estupro e homicídio.

Vonnegut tem um problema em mãos, na verdade é um que muitos autores do gênero tiveram por anos, que é a falta de uma personagem feminina de destaque (isso quando tem alguma) ou que tenha pelo menos uma individualidade que não seja baseada em estereótipos como, no caso do livro em questão, a de “megera” que serve apenas para cumprir seu “papel de mulher”. É claro que o próprio autor aborda a forma que ela foi usada, mas ainda assim é uma parte que sofreu um pouco com o tempo.

“Eu fui vítima de uma série de acidentes, como todos nós somos”.

Mas saindo um pouco da crítica social —sabemos que é outra época e esse debate deve ser feito com muito mais cuidado e embasamento, então vamos focar na resenha literária — , esse é um livro mais informal do que imagina, mesmo abordando tudo o que já mencionei. A escrita de Vonnegut é limpa e dinâmica, talvez um dos motivos que tenha rendido comparações com Adams (e com isso não o mencionarei mais aqui). Essa é uma obra surpreendentemente humana, principalmente nos seus momentos finais, quando toma um rumo mais sentimental, mas mesmo assim não deixa de brincar com a situação e ir na contramão do que alguns esperam de uma conclusão para uma jornada como essa.

Kurt Vonnegut escreve com a maestria de alguém que não se importa com as regras estabelecidas da narrativa. As Sereias de Titã tem tudo para ser uma das coisas mais mirabolantes e aleatórias que você já leu, e provavelmente é, mas no fim somos nós quem parecemos loucos ao conseguir assimilar tanta loucura.

Capa do Livro As Sereias de Titã

As Sereias de Titã (The Sirens of Titan)
de Kurt Vonnegut

Editora Aleph, 2018

304 páginas

Tradução de Livia Koeppl