Terminamos o episódio anterior com a chegada de Eric Morden, o Mr. Nobody. O vilão não mede esforços para impressionar logo de cara e é responsável por uma sequencia envolvendo um burro flatulento e um buraco que suga uma cidade inteira com toda sua população (hilário como representaram isso através da contagem de habitantes em uma placa), incluindo uma barata histérica. Alan Tudyk mais uma vez prova porque é a escolha certa para qualquer projeto, e aqui ele tem dois trabalhos difíceis: atuar e narrar. E nos dois, ele é ótimo. Durante o episódio, podemos ver o tamanho do seu poder, ou pelo menos o que ele permite que vejamos.
Nobody é intimidador e suas habilidades de moldar “tempo e espaço” impulsionam a narrativa desenvolvendo os membros da Patrulha, ao criar simulações que revelam os maiores medos e frustrações dos personagens. E sobre a narração, esse é um dos aspectos que melhor funciona por conta de toda a atmosfera absurda e o olhar atento do antagonista sobre a trama. É como se Eric soubesse a temporada inteira e esteja revelando os detalhes aos poucos para a própria série (não vou mentir, isso pode ser verdade). Mas vamos falar mais sobre isso daqui a pouco — hora de focar no que foi introduzido no episódio.
Joivan Wade interpreta Victor Stone, o Cyborg. Eu admito geralmente me preocupar com a introdução de personagens mais populares em séries onde a lógica não existe, com medo deles se destacarem de uma maneira estranha, talvez se desvencilhando do tom da produção, mas eu não sei o que acontece com Patrulha do Destino para conseguir realizar com perfeição tudo que tenta, incluindo a apresentação de Victor. Em apenas um episódio tivemos uma jornada por dentro de um burro, uma cidade destruída e uma história de origem (duas se contarmos as revelações sobre Crazy Jane), e ainda assim cada um desses elementos é executado muito bem, principalmente a trama de Cyborg (é a primeira vez que me importo com o personagem desde a animação original de Teen Titans). É um alívio ver algo tão positivamenteridículo e divertido, ainda mais vindo de pessoas que escreveram séries mais genéricas como The Vampire Diaries¯\_(ツ)_/¯.
Neste episódio, a equipe procura pelo Chief, o Dr. Niles Caulder, raptado por Eric. Essa promete ser a trama principal ao longo da temporada, e com a presença de Mr. Nobody, temos uma ameaça constante pairando à cabeça dos heróis. As subtramas continuam fortes, como a evolução da relação de Cliff e Jane, ou o receio de Larry e Rita em participar de toda a loucura. Jane tem o tempo e a história de origem que não recebeu no primeiro episódio, e isso foi uma boa decisão, porque aqui temos a oportunidade de focar em algumas de suas personalidades e na manifestação de seus poderes. As tentativas de Cliff em se aproximar de Jane talvez sejam as cenas mais frustantes quando levamos em conta tudo que aconteceu com ele e o dilema que passa por conta de sua filha. Fraser pode estar emprestando apenas sua voz para o personagem, mas há uma tristeza convincente que me faz apreciar mais o ator.
Também é um episódio sobre arrependimentos, como visto no monólogo de Cyborg sobre uma promessa que fez para sua mãe. Joivan Wade é carismático e um pouco arrogante, mas também prova seu valor moral sem aceitar propostas fáceis e ameaças vazias. Enquanto isso, Rita revive seus dias de glória e Larry pilota mais uma vez. A intenção é ser uma tortura mental da parte de Eric, mas isso não impede os dois de aproveitarem o momento, rendendo boas sequencias cômicas (nada tão histérico quanto uma barata desesperada, claro). Toda a representação visual do interior do burro é outro atestado de como o design de produção da série está de parabéns, e a ideia de materializar as palavras de Jane e transforma-las em armas foi uma das coisas mais quadrinhos que já vi na TV.
Por falar em quadrinhos, Eric chega a mencionar Grant Morrison. Eu geralmente acho referências e menções gratuitas algo desnecessário e sem graça (essa coisa de “ser fã e querer service” não faz sentido algum), mas Mr. Nobody é um dos personagens mais estranhos e intrigantes no qual o roteirista já colocou as mãos, e as marcas registradas de metalinguagem e ridículo levado a sério do autor são traduzidas perfeitamente para a tela. Agora é esperar por mais personagens maravilhosamente estúpidos como Danny, a rua ambulante (será que os eventos desse episódio servem como uma forma de origem para a personagem?) ou a Irmandade do Dadaísmo. Ansioso por mais e preparado para episódios cada vez mais abstratos e Morrisonianos.
Ficha Técnica: Donkey Patrol, S01E02 Direção de Dermott Downs Roteiro de Neil Reynolds e Shoshana Sachi Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brenda Fraser, Timothy Dalton
Baseada na série de livros de James S.A. Corey (pseudônimo usado pela dupla Daniel Abraham e Ty Franch), The Expanse tem sido uma das séries mais interessantes de se seguir nos últimos anos. É uma pena que tenha sido criada pelo canal SYFY, que não tem muito respeito pelas suas produções e decidiu cancelar a série depois da terceira temporada. Felizmente, o Prime Video (serviço de streaming da Amazon) assumiu a tarefa de continuar as histórias da tripulação da Rocinante. Com a adição das temporadas em sua nova casa, decidi falar um pouco sobre elas antes que a nova chegue.
The Expanse nos carrega 200 anos no futuro, para uma sistema solar colonizado. Há tensão entre os povos por conta da exploração de matéria-prima, e protestos acabam piorando a situação. A humanidade está dividida em três polos principais: Terra, Marte e o cinturão de asteroides. Por enquanto não visitamos Marte, mas ela é uma potência militar considerável e a sua presença está nos terráqueos que colonizaram o planeta e servem de grande influência na movimentação espacial. Passamos mais tempo em Ceres, um dos asteroides do cinturão, onde seus habitantes são chamados de Belters (beltpode ser traduzido para cinturão). Eles são os principais descendentes de mecânicos e engenheiros, responsáveis pelas colônias, e tem seu próprio “sindicato” (o que não agrada nem um pouco a Terra ou Marte, que o consideram uma organização terrorista). Por conta da gravidade baixa, acabaram sendo alterados fisicamente ao longo dos anos, e também sofrem com a falta de água. Enquanto isso, na Terra, temos o comando firme das Nações Unidas, que resolve as coisas da maneira que bem entenderem.
A trama começa realmente onde menos se imagina, por conta de uma nave coletora de gelo que habita o espaço aberto, a Canterbury. O maior mistério da temporada envolve a destruição da nave, junto de sua tripulação. Isso faz com que a tensão aumente e uma guerra pode estar mais próxima do que se imagina. O mais intrigante é que um pequeno grupo conseguiu sobreviver a explosão da Canterbury por estarem a bordo de sua nave auxiliar investigando um pedido de socorro: James Holden, o segundo oficial; Naomi Nagata, a engenheira-chefe; Amos Burton, mecânico; Alex Kamal, piloto; e Shed Garvey, médico.
Holden vira uma figura importante no meio de todo o debate sobre quem poderia ter destruído a nave, então ele e sua tripulação decidem resolver o mistério, mesmo que tenham membros de todos os cantos do sistema solar interessados em sua história. Paralelamente, somos apresentados ao detetive Joe Miller, de Ceres, designado em um caso cada vez mais perigoso envolvendo o desaparecimento de Julie Mao, a filha de um dos homens mais influentes da Terra.
Essas duas tramas são o foco principal de uma temporada de manipulação, conspirações e debates sobre as responsabilidades de figuras poderosas. O enredo é construído em cima da animosidade entre os povos, por isso é notável o ótimo trabalho da equipe para manter todos os núcleos consistentes e, ao lado da direção, construir um universo provocativo, com um design de produção que consegue ir da sujeira das ruas durante os protestos no cinturão para a elegância monótona das instalações governamentais da Terra. Isso também se aplica às sequencias espaciais, onde há um excelente trabalho do departamento de efeitos especiais, ainda mais quando consideramos que esta é uma série com orçamento de TV para um canal como o SYFY, que não é um dos mais ricos (eu sei que pareço um pouco como um disco quebrado falando deles, mas foram tantas decepções que ainda não tive tempo para perdoar). Se eu tivesse que escolher um problema da temporada, seria talvez a forma que demore um pouco para realmente nos envolvermos com os personagens, já que os primeiros episódios dão mais importância a apresentação do mundo e a trama principal, mas isso não demora muito, e quando tudo está alinhado perfeitamente temos uma ficção científica política de qualidade em mãos.
Thomas Jane e Shohreh Aghdashloo são os rostos mais conhecidos do elenco. Jane interpreta o detective Miller, com uma atitude que lembra a de um Blade Runner, assim como sua narrativa segue uma linha noir. Já Aghdashloo é uma intimidadora e influente figura das Nações Unidas. Ainda que os dois tenham personagens importantes, o resto do elenco não deixa a desejar. Steven Strait e Dominique Tipper tem uma ótima relação como a dupla Holden e Nagata, e há o contraste entre a atitude confiante de Wes Chatham, como Amos, e a cautela de Cas Anvar, como o piloto Alex. Jared Harris tem uma participação menor, mas é o tipo de ator que “rouba a cena”, então vale a pena mencioná-lo.
Com debates e questionamentos de temas realistas que fazem de The Expanseuma obra original e relevante, essa é uma das indicações mais sólidas que faço por aqui. Não demora para que você se encontre cada vez mais ansioso para saber o que acontece com os tripulantes da Rocinante e como Miller se enrosca em sua missão mais complicada.
Ficha Técnica: The Expanse, S01 Criada por Mark Fergus e Hawk Ostby Direção de Breck Eisner, Jeff Woolnough, Terry McDonough… Roteiro de Hallie Lambert, Georgia Lee, Naren Shankar… Atuações de Thomas Jane, Shohreh Aghdashloo, Steven Strait, Dominique Tipper, Jared Harris.
Eu ainda não assisti a primeira temporada de Titãs. Admito que não estou muito interessado na série, mas fiquei animado quando soube que a Patrulha do Destino foi introduzida por lá. Eu adoro o grupo e é um daqueles que merecia mais atenção do público, então é óbvio que estou feliz pelo spin-off(tecnicamente a versão live action do grupo foi originada em Titãs) ter começado com o pé direito.
E antes que as comparações comecem, vou logo tirar isso do caminho: existem alguns elementos essenciais da premissa que podem ser similares aos do famoso grupo mutante, X-Men: um líder rico e inteligente em cadeira de rodas e um grupo de desajustados tentando trabalhar em equipe; mas a HQ de Patrulha do Destino foi originalmente lançada apenas alguns meses ANTES da primeira revista de X-Men — Ou seja, não sabemos se Stan Lee deu uma passada nos escritórios da DC ou o contrário (acredite, esse tipo de coisa era comum entre as duas editoras), mas pelo menos podemos esclarecer logo isso.
A Patrulha do Destino (ou Doom Patrol, no original) foi criada pelo trio Arnold Drake, Bob Haney e Bruno Premiane, em 1963, na revista My Greatest Adventure. Eles foram tão bem recebidos que a HQ foi renomeada com o título do grupo. A série de TV traz os membros do grupo original, mas tem uma trama mais parecida com a fase escrita por Grant Morrison, que foi uma das mais aclamadas pelos leitores.
Comandados pelo Dr. Niles Caulder, mais conhecido como Chief, um grupo de pessoas com habilidades inacreditáveis lida com a perda de suas vidas passadas. Larry Trainor era um piloto da Nasa; Ritta Farr, uma atriz renomada; Cliff Steele, um campeão em corridas automobilísticas. Todos sofreram acidentes que mudaram suas vidas. Agora são, respectivamente, Homem Negativo, Mulher Elástica e Homem-Robô. Cada um com características distintas e motivos diferentes para permanecer na casa de Niles. Além deles, temos Crazy Jane, uma jovem com múltiplas personalidades, cada uma com um poder diferente.
O elenco da série é notável, com nomes como Matt Bomer (de White Collar) e o misterioso Timothy Dalton, sem contar o retorno de Brendan Fraser, que esteve de volta algumas vezes em séries menores, mas nada com a visibilidade de uma adaptação de quadrinhos da DC. Vale ressaltar que Bomer e Fraser são os únicos personagens que tem seu rosto completamente coberto, e por isso apenas emprestaram suas vozes para os heróis (claro que em cenas de flashback, temos os dois atuando em suas vidas “normais”). É engraçado, mas pelo menos não afeta a experiência. Dalton está charmoso como sempre e April Bowlby tem a elegância necessária para uma personagem como Ritta Farr. A minha adição favorita ao elenco é Alan Tudyk, que geralmente rouba a cena e acaba sendo a melhor parte em qualquer coisa que participa, e aqui seu talento é mais do que necessário, já que interpreta o Sr. Ninguém, talvez o principal antagonista da temporada.
Não se fala muito sobre Crazy Jane no primeiro episódio, mas ela tem um bom tempo de desenvolvimento de personagem durante suas conversas com o Homem-Robô. E por falar nele, o drama principal do episódio envolve as tentativas de Cliff para lembrar o que aconteceu antes de se tornar uma máquina, no acidente que fez com que a única coisa que sobrasse dele fosse seu cérebro. Os flashbacks, assim como a narração (feita por Tudyk, o que achei criativo e espero que seja assim até o fim), foram inseridos pontualmente, sem atrapalhar o que está acontecendo com os personagens no presente. Cliff lembra do acidente constantemente, mas talvez sua mente esteja lhe enganando. A série abre caminho para um arco envolvendo sua filha, e podemos ver logo de cara como ela é importante para ele. Algumas das sequencias mais marcantes do episódio envolvem a luta de Cliff para tentar movimentar seu novo corpo de metal, e essa parte é muito bem executada, com excertos de memórias de sua filha onde o presente invade o passado.
Mesmo que Cliff seja o destaque do episódio, pode-se ver a preocupação em contar a história de cada elemento do grupo. O clímax do episódio envolve um passeio pela cidade, com cada personagem procurando algo diferente para fazer: Ritta decide comer algo em um restaurante com temática clássica e Larry quer apenas pedir uma cerveja. O que vem em seguida é um pouco da demonstração do que eles podem fazer com suas habilidades.
Esse é apenas o episódio piloto, mas é um ótimo começo que estabelece cada personagem e trama muito bem. A direção é competente e não traz muita experimentação, o que não é problema mas seria muito bem vindo em uma série onde uma mulher vira uma gosma nojenta, um homem consegue atravessar os cabos de energia e um jumento surge no meio da estrada para soltar uma mensagem no ar feita com sua própria flatulência. É bizarra, boca suja e bastante ridícula, Patrulha do Destino pode ser uma das melhores séries de herói do momento, mesmo que a própria não aceite isso.
Ficha Técnica: Pilot, S01E01 Direção de Glen Winter Roteiro de Jeremy Carver Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brenda Fraser, Timothy Dalton
Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco (Octavia E. Butler)
Dana está de mudança para um novo apartamento com seu marido, Kevin. Mas não há tempo para descanso depois de carregar todas as caixas, porque começa a sentir o chão desaparecer e antes que perceba, está à beira de uma mata, ajoelhada, próxima de um rio, onde uma criança está se afogando. Ela salva a criança, mas logo nota que encara a ponta de uma espingarda. O susto aparentemente a traz de volta para seu apartamento, e a prova de que tudo não foi um sonho são suas roupas encharcadas. Tudo volta ao normal, mas não demora para que aconteça de novo.
A premissa de Kindred: Laços de Sangue é talvez uma das melhores que eu já li, nos colocando no meio da ação, introduzindo todos os elementos e preparando o terreno para o que está por vir. Octavia E. Butler tem um texto dinâmico e constrói fortes personagens, cada um com características muito bem definidas – tudo que eu procuro em um livro; sem contar o comentário social que Butler aborda de maneira inteligente (afinal, uma das coisas que a ficção científica faz melhor que qualquer gênero é encontrar maneiras originais de estudar a condição humana).
No livro, Dana logo descobre que está sendo mandada constantemente para o século XIX, onde se encontra no pior lugar e época possível para uma jovem negra como ela: uma Maryland pré-Guerra Civil, onde a escravidão durou duzentos anos e as leis eram extremamente rígidas, até mesmo comparadas com outros estados. É nesse ambiente que Dana precisa resistir para poder ajudar Rufus, o garoto que salvou no rio e precisa salvar mais vezes. Mesmo que seja um futuro alcoólatra dono de escravos, ele também será o pai de um dos antepassados de Dana, o que faz a relação deles mais complicada do que deveria.
Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.
Kindred é uma narrativa que se encaixa facilmente no Afrofuturismo, graças ao uso da ficção científica especulativa para criar um debate sobre a história negra e a forma como os eventos repercutem até hoje (e infelizmente parecem querer se repetir na cabeça de alguns). Dana é originalmente de 1976, vivendo em um Estados Unidos que passou por radicais mudanças depois dos movimentos de igualdade racial. Butler foi extremamente pertinente ao lançar uma obra como essa em 1979, aproveitando o momento para continuar tocando na ferida. Hoje esse é um dos melhores exemplos de como a ficção serve para analisar a sociedade e a forma como interpretamos o passado.
Rufus é uma personagem complexa, assim como sua relação com Dana. Ele a conhece ainda garoto e a encontra constantemente, sempre que precisa de ajuda, seja botando fogo nas cortinas de sua casa ou bêbado em uma poça de lama alguns anos depois. Seu comportamento abusivo é insuportável, mas Dana é compreensível e humaniza Rufus, independente de sua família e o que ele pode acabar se tornando. Esse contraste pode passar a impressão de que Dana seria ingênua de aceitar as decisões ruins de Rufus, mas ela se torna uma protagonista mais forte ao tentar conversar e fazer com que o jovem entenda onde errou e como pode se redimir. Os dois vivem trocando farpas e Dana encontra obstáculos cada vez maiores para superar.
Kindred é uma leitura rápida, mas pesada (você vai querer largar o livro por alguns minutos). O que Butler narra não é apenas uma tragédia na vida de uma figura negra, mas um retrato de uma cultura que sofreu mais do que imaginou por conta da ignorância e preconceito. Há um momento em que Dana está em sua casa, em 1976, e lê um livro sobre a Segunda Guerra, apenas para ficar deprimida com toda agressão, doença e tortura. “Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que os americanos praticaram por quase dois séculos”. A autora não se contém e faz questão de lembrar quanto sangue inocente foi derramado para que a história pudesse ser feita, e como continuamos derramando quando o ser humano decide descontar sua raiva em quem é diferente. Esse é um livro importante e cheio de significados, com referências e paralelos que farão você notar que nem tudo é tão ficcional quanto parece, e a importância de jamais esquecer o passado. Jamais.
Kindred: Laços de Sangue (Kindred), de Octavia E. Butler
The OA é um grande mistério para seus fãs, não só pela sua narrativa mas pelo tempo que está demorando para lançar sua segunda temporada. A série foi lançada pela Netflix em 2016 e até o momento de encerramento desse texto, tudo que temos é a promessa de que coisa nova está por vir. Eu fui um dos que deixou a série passar despercebida quando foi lançada, então decidi me atualizar antes que a nova temporada saia, finalmente. Havia uma dúvida sobre escrever sobre a série, mas depois de ler algumas reações negativas pensei em falar um pouco sobre ela, porque achei uma das séries mais intrigantes que já vi.
Antes de tudo, eu vou dar uma recapitulada para quem não lembra (haverão leves spoilers ao longo do texto, mas nada que prejudique a experiência).
A jovem Praire Johnson (Brit Marling) volta para casa depois de desaparecer por quase uma década. O mais chocante não foi ela ter sido encontrada depois de pular de uma ponte, mas sim a revelação de que ela recuperou sua visão de alguma maneira, visão essa que perdeu depois de uma experiência quase-morte na infância. Sua história fica conhecida e a cidade não fala de outra coisa, mesmo que todos os detalhes permaneçam um mistério. Isso pode ser uma boa ideia, já que sua narrativa envolve uma infância na Russia, um cientista obcecado por um experimento peculiar, um grupo mantido em cativeiro, uma entidade mística e um movimento de dança que pode influenciar a maneira que interpretamos o conceito de tempo e espaço. Praire agora se intitula a “OA” e ela está pronta para compartilhar os eventos que mudaram sua vida e podem mudar a de um grupo que, ao contrário de muitos, acredita no milagre da jovem.
Criada por Brit Marling (que estrelou alguns filmes sci-fi de baixo orçamento muito bons, como A Outra Terra, de 2011) e Bat Batmanglij (A Seita Misteriosa, de 2011, estrelado por Marling), essa é a primeira vez que a dupla produz uma série, e não fez um trabalho ruim.
O que me atrai em premissas como a de The OA é a forma como todos os elementos são apresentados, como o narrador não confiável, um artificio bastante utilizado quando uma produção decide criar a sensação de confusão não apenas em seus personagens, mas em quem assiste. A narração é uma parte crucial da série e a maior parte da temporada se passa nas interpretações do que Praire nos conta. Ao lado da “OA” seguem cinco personagens: quatro jovens da mesma escola e, por incrível que pareça (como se já não estivesse estranho), uma das professoras. Todos distintos em personalidade, mas igualmente envolvidos no que Praire tem a dizer. Em questão de elenco, a série tem uma equipe competente mas os verdadeiros destaques são a própria Brit Marling e Jason Isaacs, esse segundo interpretando o Dr. Hunter Aloysius Percy (ou HAP, para ser mais rápido).
Outro ponto alto da série é a direção de arte. Alguns visuais são simplesmente incríveis e contribuem para o mundo de The OA tão bem que acabaram se tornando uma de suas principais características. Há uma atmosfera misteriosa até mesmo na cidade, que costuma ser retratada com longas estradas de curvas intermináveis e uma escuridão quase melancólica que assola as noites — talvez uma ligação com o que a trama aborda nos episódios seguintes. Ao lado disso, aproveito para levantar a importância do departamento musical. Além da composição de violino que embala o primeiro episódio, algumas músicas fizeram a diferença, dando enorme impacto emocional, como Full Circle, da banda HÆLOS, e a depressiva Downtown, da Majical Cloudz, que conclui o quinto episódio.
The OA é uma mescla de gêneros (mesmo que esse conceito seja complexo). A série é uma ficção científica na superfície, com seu caráter especulativo sobre o que entendemos de física, por exemplo. Mas há o elemento fantasioso, a protagonista não deixa de tentar reafirmar a existência de uma entidade mística que a conferiu com uma informação valiosa sobre uma forma de nos comunicarmos com outras dimensões através de “movimentos rítmicos”.
Parece bizarro. E é. Mas faz sentido.
Solidão, abuso e trauma são alguns dos temas principais da série, mas ela também entra em debates conhecidos da ficção científica, o principal deles sendo a interpretação de muitos mundos, um conceito da física quântica que sugere a possibilidade de existirem múltiplos universos paralelos.
Apresentada por Hugh Everett III, a interpretação de muitos mundos parte da premissa que vivemos em um multiverso, onde o tempo está em constante ramificação, o que acaba criando mundos diferentes, cada um com uma versão diferente do que você é. Essa é uma maneira bem simplificada de explicar, mas é basicamente essa a ideia. É um conceito absurdo; nem todos o apoiam, é claro, mas ele poderia contribuir para a resposta de várias questões da física quântica — por exemplo, a interpretação de Copenhague, responsável por afirmar que pode haver mais de um estado para um fenômeno não observado. É como o famoso exemplo de Schrödinger: um gato em uma caixa está vivo e/ou morto ao mesmo tempo, a única confirmação vem através da abertura da caixa. Na interpretação de muitos mundos o gato teria se divido em dois caminhos, um no qual esteja vivo e em outro, morto.
É claro que, como o nome diz, é apenas uma interpretação. Não há (ainda) fatos que comprovem os muitos mundos, e também existe o Paradoxo de Olbers, que utiliza a escuridão do céu para descartar a possibilidade de “muitos mundos”, mas The OA consegue escapar disso utilizando outras dimensões e o argumento de que a passagem de uma linha temporal para outra seria “invisível”.
Na série, a OA recebe movimentos (que acabamos chamando de dança, mas isso seria resumir demais o contexto, então vou chamar de performance, para ser mais preciso) através de visões e experiências com uma entidade chamada Khatun. Estes movimentos são capazes de realizar coisas inacreditáveis, como curar ferimentos e até abrir um caminho para outras dimensões. Khatun assume a forma feminina e é um compilado de várias culturas; desde seu nome, de origem árabe, até a marca no formato braile em seu rosto, em alemão. Ela vive sozinha, aparentemente, em um espaço coberto de estrelas, como se caminhasse por entre as galáxias, e é ela quem dá o título de OA para Praire (que mais tarde descobrimos ser uma abreviação de Original Angel: o anjo original). É um conceito “fantasioso” que bate de frente com o debate científico que personagens como o Dr. Hunter carregam, mas que ainda assim faz total sentido narrativo, principalmente quando lembramos que este é o ponto de vista de Praire, então talvez tudo isso seja apenas uma forma de lidar com o trauma. É só ter em mente que nenhum outro personagem teve contato com Khatun. Mas aí estamos entrando em território onde o spoiler é mais frágil, então vou me conter.
O sexto episódio da primeira temporada é intitulado Forking Paths, oque fortalece ainda mais a relevância das realidades alternativas na história. Esse título é uma referência à “O jardim de caminhos que se bifurcam” (The Garden of Forking Paths, em inglês), o conto literário de Jorge Luis Borges que talvez seja mais importante pra série do que se imagina.
A história segue o Dr. Yu Tsun, um professor que também é um espião correndo contra o tempo para evitar ser capturado por um agente do governo. No meio do caminho encontra o Dr. Stephen Albert, que é fascinado por um ancestral de Tsun, um homem que dedicou sua vida construindo um labirinto e escrevendo um romance absurdo e contraditório onde, entre outras coisas fora do comum, personagens estão mortos em um momento para surgirem vivos em outro. Essa é uma das coisas que The OA também trouxe para sua narrativa, já que é apenas através das experiências de quase morte que descobrimos cada vez mais sobre o mistério dos movimentos.
No conto, Albert diz para Tsun como interpreta a obra de seu ancestral:
“ Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?” Refleti um momento e respondi, “A palavra xadrez”. “Exatamente” disse Albert, “O jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo […] é uma imagem incompleta, mas não falsa […] seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois”. (Baseando na tradução da versão: “ Obras completas Jorge Luis Borges”, de 1998, da editora Globo S.A.)
Albert entende que o labirinto sugere uma bifurcação temporal. Ele explica como na literatura, um personagem pode escolher apenas uma das alternativas que lhe são apresentadas; mas aqui, um personagem escolhe — simultaneamente — todas elas. Aqui ele cria diversos futuros que proliferam e bifurcam também (no cinema ou em séries, costumam explicar esse conceito utilizando um galho de árvore como exemplo, com os ramos crescendo para novos caminhos e criando novas realidades. A série Legion, baseada nos quadrinhos da Marvel,faz isso e também fala bastante sobre a interpretação de muitos mundos, sem contar que é uma ótima série e merece ser assistida).
Em The OA, os movimentos podem ser apenas uma forma de Praire lidar com o trauma de ter sido raptada. A série deixa em aberto a veracidade da história da OA, mas isso não anula como ela afetou o grupo que ouviu sua história. Essa é uma série com vários temas intrigantes e ótimos personagens, então é óbvio que eu estou ansioso para a segunda temporada.
================== ps: Antes que alguém diga algo sobre o desfecho da temporada, que alguns consideraram “ter vindo do nada”, já digo que discordo completamente da afirmação. Houveram vários indícios do que estava por vir, era só prestar atenção nos sonhos de Praire e no que era dito nas rádios. Se quiserem, posso fazer um texto só sobre isso ¯\_(ツ)_/¯
ps²: O título do conto de Borges também pode ser traduzido como “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”, mas trocar “veredas” por “caminho” fez mais sentido dentro da proposta da série.