Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco (Octavia E. Butler)
Dana está de mudança para um novo apartamento com seu marido, Kevin. Mas não há tempo para descanso depois de carregar todas as caixas, porque começa a sentir o chão desaparecer e antes que perceba, está à beira de uma mata, ajoelhada, próxima de um rio, onde uma criança está se afogando. Ela salva a criança, mas logo nota que encara a ponta de uma espingarda. O susto aparentemente a traz de volta para seu apartamento, e a prova de que tudo não foi um sonho são suas roupas encharcadas. Tudo volta ao normal, mas não demora para que aconteça de novo.
A premissa de Kindred: Laços de Sangue é talvez uma das melhores que eu já li, nos colocando no meio da ação, introduzindo todos os elementos e preparando o terreno para o que está por vir. Octavia E. Butler tem um texto dinâmico e constrói fortes personagens, cada um com características muito bem definidas – tudo que eu procuro em um livro; sem contar o comentário social que Butler aborda de maneira inteligente (afinal, uma das coisas que a ficção científica faz melhor que qualquer gênero é encontrar maneiras originais de estudar a condição humana).
No livro, Dana logo descobre que está sendo mandada constantemente para o século XIX, onde se encontra no pior lugar e época possível para uma jovem negra como ela: uma Maryland pré-Guerra Civil, onde a escravidão durou duzentos anos e as leis eram extremamente rígidas, até mesmo comparadas com outros estados. É nesse ambiente que Dana precisa resistir para poder ajudar Rufus, o garoto que salvou no rio e precisa salvar mais vezes. Mesmo que seja um futuro alcoólatra dono de escravos, ele também será o pai de um dos antepassados de Dana, o que faz a relação deles mais complicada do que deveria.
Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.
Kindred é uma narrativa que se encaixa facilmente no Afrofuturismo, graças ao uso da ficção científica especulativa para criar um debate sobre a história negra e a forma como os eventos repercutem até hoje (e infelizmente parecem querer se repetir na cabeça de alguns). Dana é originalmente de 1976, vivendo em um Estados Unidos que passou por radicais mudanças depois dos movimentos de igualdade racial. Butler foi extremamente pertinente ao lançar uma obra como essa em 1979, aproveitando o momento para continuar tocando na ferida. Hoje esse é um dos melhores exemplos de como a ficção serve para analisar a sociedade e a forma como interpretamos o passado.
Rufus é uma personagem complexa, assim como sua relação com Dana. Ele a conhece ainda garoto e a encontra constantemente, sempre que precisa de ajuda, seja botando fogo nas cortinas de sua casa ou bêbado em uma poça de lama alguns anos depois. Seu comportamento abusivo é insuportável, mas Dana é compreensível e humaniza Rufus, independente de sua família e o que ele pode acabar se tornando. Esse contraste pode passar a impressão de que Dana seria ingênua de aceitar as decisões ruins de Rufus, mas ela se torna uma protagonista mais forte ao tentar conversar e fazer com que o jovem entenda onde errou e como pode se redimir. Os dois vivem trocando farpas e Dana encontra obstáculos cada vez maiores para superar.
Kindred é uma leitura rápida, mas pesada (você vai querer largar o livro por alguns minutos). O que Butler narra não é apenas uma tragédia na vida de uma figura negra, mas um retrato de uma cultura que sofreu mais do que imaginou por conta da ignorância e preconceito. Há um momento em que Dana está em sua casa, em 1976, e lê um livro sobre a Segunda Guerra, apenas para ficar deprimida com toda agressão, doença e tortura. “Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que os americanos praticaram por quase dois séculos”. A autora não se contém e faz questão de lembrar quanto sangue inocente foi derramado para que a história pudesse ser feita, e como continuamos derramando quando o ser humano decide descontar sua raiva em quem é diferente. Esse é um livro importante e cheio de significados, com referências e paralelos que farão você notar que nem tudo é tão ficcional quanto parece, e a importância de jamais esquecer o passado. Jamais.
Kindred: Laços de Sangue (Kindred),
de Octavia E. Butler
Editora Morro Branco, 2017
Capa de Mecob
432 páginas
Tradução de Carolina Caires Coelho
Fontes:
*Sobre Maryland e a emancipação tardia de seus escravos (em inglês).