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The OA: Parte 2 | Maior, melhor e mais absurda

Spoilers da Parte 1.

Mesmo adorando o trabalho de Brit Marling no cinema, demorei para entrar na lista de fãs de The OA. Foi mais uma questão de sempre esquecer que a série estava ali, e agora fico pensando nela o tempo todo. Mas finalmente assisti e fiz um texto sobre a primeira temporada. Felizmente, por ter demorado tanto para fazer isso, não sofri esperando mais de dois anos pelo retorno da série (não sei como os fãs aguentaram tanto tempo), e ainda por cima, apenas algumas semanas depois, é anunciada a data definitiva para a continuação. E aqui estou, sentindo o impacto dos oito episódios lançados na última sexta-feira (22 de março), tentando botar os pensamentos em ordem para escrever algumas linhas, derrubando algumas lágrimas ao lembrar que passei a fazer parte daqueles que vão esperar anos pela terceira temporada.

Passei o primeiro parágrafo falando de “temporadas”, mas a série é tecnicamente dividida em “partes”, então é assim que chamarei daqui pra frente.

The OA retorna depois de deixar algumas coisas importantes em aberto na sua Parte 1. Com um desfecho inesperado e uma cena nos créditos finais que piora a situação de qualquer um com ansiedade, a série tem muito o que cobrir. Agora estamos em outra dimensão, Prairie conseguiu “saltar”, mas ainda precisa lidar com vários obstáculos. Hap arranjou uma maneira de atravessar para o mesmo lugar e aproveita sua posição privilegiada como doutor para tomar conta da OA, obviamente considerada louca por conta de sua história. Ele também consegue capturar todas as suas cobaias, mas percebe que Homer é um caso diferente (mais dele para frente). Paralelamente, a série introduz um segundo protagonista e uma trama que toma conta de quase metade dessa segunda parte: o detetive Karim Washington, empenhado em investigar o desaparecimento de uma jovem. Na dimensão original (chamarei assim para poder diferenciar), os jovens e BBA correm conta o tempo para descobrir novas pistas indicando que a OA pode estar viva.

The OA se posiciona como uma das produções mais originais atualmente, e eu ouso arriscar que é o mais próximo que teremos de algo no nível de Twin Peaks (que saudades de você!). A segunda parte mescla alguns gêneros sem perder seu ritmo. A ficção científica ainda é uma base para a série, mas o misticismo, já presente antes, agora tem um papel ainda maior na jornada. A produção chega a explorar um pouco de suspense também, incluindo uma subtrama que beira os filmes clássicos de casa mal assombrada, com novos conceitos que expandem ainda mais a ideia do jardim bifurcado (primordial para a compreensão de grande parte da série). Como se não fosse suficiente, a missão do detetive Karim tem a atmosfera perfeita para um thriller policial.

Kingsley Ben-Adir e Brit Marling

Transitar entre gêneros é algo que a série faz bem, mas isso não chega perto de descrever toda a loucura que a segunda parte traz para o público. Zal Batmanglij e Brit Marling justificaram a demora para a continuação da história. The OA ficou maior e mais ambiciosa, abrindo as portas para a dupla arriscar mais com o universo que criou, incluindo um episódio inteiro que parece ter saído da cabeça de David Lynch, utilizando tudo que conhecemos sobre séries para destruir a expectativa de quem espera uma narrativa mastigada. Isso não é apenas enredo, estou falando também das decisões visuais usadas para representar o que nossa mente não está treinada para assimilar com facilidade. Para ajudar nisso, Batmanglij emprestou a cadeira de diretor por três episódios para Andrew Haigh e Anna Rose Holmer, responsáveis por ótimos filmes como The Fits e Weekend, respectivamente.

Trazer o abstrato para uma mídia visual é arriscado, e The OA é um dos poucos casos onde há consistência no absurdo e beleza no grotesco, e até mesmo no ridículo. Há sequencias envolvendo um conjunto de robôs que pode soar bobo e fora de lugar, e talvez essa seja uma das poucas partes onde a série poderia se beneficiar abraçando um pouco a ideia de se levar menos à sério, pelo menos em alguns aspectos (algo que Twin Peaks faz com maestria). Mas não é toda vez que isso acontece, principalmente porque você não espera se sentir tão intrigado assistindo um dos momentos mais impensáveis de toda a série (você vai saber exatamente do que estou falando quando chegar nela, mas se tiver dúvida, ela envolve tentáculos), que provavelmente vai afastar uma parte do público, mas conquistar completamente outra, principalmente depois da atuação de Marling, sempre se entregando para as cenas.

Três tramas paralelas podem ser um sinal preocupante para quem assiste, ainda por cima quando elas tem propostas distintas. Seria um desperdício de tempo se toda a apresentação de novos personagens e mundos atrapalhasse o ritmo dos episódios. Felizmente, essa Parte 2 é maior e melhor em muitos aspectos. Karim é a aposta mais perigosa, sendo um novo membro com uma trama própria, mas Kingsley Ben-Adir é mais do que a figura de autoridade que assume uma responsabilidade. O ator revela-se um dos componentes mais atraentes da história, indo de investigador confiante e carismático para um homem com dificuldades na hora de se relacionar com as pessoas mais próximas. É bom ver que, mesmo com todo o destaque para o fantástico, o drama ainda é o que move a série.

O núcleo dos jovens e BBA também está melhor. Depois de passar a maior parte da primeira parte (queria chamar de temporada, mas…) como testemunhas da jornada de Prairie, tomando atitudes apenas nos episódios finais, podemos nos dedicar aos traumas e dilemas de cada um. Com a revelação de que Prairie pode estar viva, o grupo faz uma viagem pela estrada, passando por obstáculos que testam sua amizade. Cada um dos personagens tem seus próprios demônios para lidar, mas devem correr contra o tempo na busca de respostas. Assim como eles, Prairie e seus companheiros estão em uma prisão pior que a anterior, uma que não precisa ser escondida. Para piorar a situação, Homer não parece ter tido sucesso durante o salto, resultando em mais um trabalho para a Oa, que agora precisa trazê-lo de volta. Os dois tem uma bagagem emocional forte, e é outro crédito para a série ter dois atores tão bons dividindo isso. Emory Cohen (que interpreta Homer) e Marling tem a dura tarefa de interpretar mais de um personagem, mesmo que dividam o mesmo corpo. Só posso deixar aqui meus elogios para a forma como os dois conseguiram usar tudo que tinham para criar personalidades opostas ao que estavam acostumados, principalmente Marling, que muda sua linguagem corporal de maneira impressionante para tomar o lugar de Nina Azarova, sua versão que sobreviveu ao acidente de ônibus.

Emory Cohen

Cada linha narrativa é muito bem executada, sem perder o ritmo, aumentando a atenção do público para um desfecho mais impressionante que o anterior. As tramas convergem e culminam em uma grande jornada sobre união e fé, resultando em uma conclusão que se joga de cabeça em algo que promete ser um exercício de metalinguagem como poucos (mas isso só o tempo dirá).

A ambição da série não está apenas na narrativa e no visual, ou no acréscimo de dois diretores talentosos, mas no próprio elenco. Além do retorno de Riz Ahmed, que na época não era tão cotado quanto hoje, temos a presença da atriz Zendaya, em uma atuação contida e mais pontual que não distrai em momento algum. O que surpreendentemente acaba atrapalhando um pouco é a presença de Ahmed. Sua participação é apressada e surge de maneira conveniente, entregando informações que talvez fossem melhor mantidas em segredo para manter a ambiguidade de um dos mistérios da primeira parte. E por falar nisso, é sentida a falta de alguns elementos recorrentes da primeira parte, como as conversas com Khatun, que eram partes importantes para a Oa.

O que transformou The OA em um evento para mim é a forma como abraça cada pedaço da trama, até aqueles que podem soar vergonhosos à principio, mas que logo revelam-se um momento executado com tanta honestidade e vontade de inovar que você passa a admirar com mais força. Ainda que tenha suas subtramas e conclua a jornada da temporada, essa é uma produção que não se apoia apenas em análises e teorias mirabolantes, se dedicando em estimular os sentidos com um mundo incrível.

Vamos torcer por mais séries nesse nível. É questão de fé!

Ficha Técnica:
The OA, S02
Criada por Zal Batmanglij e Brit Marling
Direção de Zal Batmanglij, Andrew Haigh e Anna Rose Holmer
Roteiro de Zal Batmanglij, Brit Marling, Dominic Orlando…
Atuações de Brit Marling, Emory Cohen, Patrick Gibson, Jason Isaacs, Ian Alexander, Phyllis Smith, Kingsley Ben-Adir

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Literatura

Matadouro-Cinco | “É assim mesmo”

“Tudo isso aconteceu, ou quase. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras”

Kurt Vonnegut é um autor que entende a comédia como poucos, com ritmo e sutileza suficiente para fazer cada nova leitura uma experiência com novas sensações. Ainda que seu tratamento siga, geralmente, um ângulo mais descontraído e fácil de digerir pelo público, Vonnegut não evita tecer seus comentários ácidos sobre conceitos como política e filosofia. Isso porque o autor teve um encontro com o pior que a humanidade pode oferecer, tendo sobrevivido ao terror da Segunda Guerra Mundial. Mas não foi só isso.

“Billy Pilgrim ficou solto no tempo”. Assim somos apresentados ao personagem principal, sem rodeios. Pilgrim é um veterano de guerra com bastante história para contar, mesmo que algumas delas possam parecer mais absurdas do que o normal. Ser abduzido por uma raça alienígena e fazer parte de um zoológico humano não chega perto do horror que é sua experiência como soldado durante a Segunda Guerra Mundial. Pilgrim, o coitado, não consegue convencer as pessoas que tem a capacidade de visitar diversos momentos de sua vida instantaneamente e aleatoriamente. Agora ele pode estar sentado em um sofá assistindo as notícias, mas num piscar de olhos se encontra no meio do campo de batalha, sendo arrastado e humilhado por seus companheiros, cansados de sua atitude. Ainda que seja uma obra sobre guerra, Matadouro-Cinco não se importa com representações de grandes batalhas e segue uma premissa que utiliza mais a comédia e a ficção científica para dar seu relato incrivelmente pessoal sobre o que o autor passou. Vamos falar um pouco sobre a relação de Vonnegut com a guerra e as decisões narrativas tomadas com esse livro.

Os Fantasmas de Dresden

Como Billy Pilgrim, Kurt Vonnegut serviu na Segunda Guerra e acabou retido em Dresden, uma pequena cidade barroca na Alemanha, constantemente descrita como um ponto turístico cheio de beleza, comparada ao que o mundo tinha de mais charmoso e artístico, uma “Florença do Elba”. Dresden nunca foi uma cidade militar, sendo até aproveitada como um lugar independente dos conflitos da época. Foi por este motivo que ninguém estava pronto (mesmo em tempos como aqueles) para o que estava por vir: um bombardeio efetuado pelos próprios aliados que lançou toneladas de dispositivos incendiários na capital. O desastre foi uma das maiores atrocidades do período, deixando um número de baixas perturbador, principalmente quando lembramos que dos milhares, a maioria era constituída de civis. “Dresden era uma imensa labareda. A labareda devorava tudo o que fosse orgânico, tudo o que pegasse fogo” (p. 237).

A catástrofe esteve presente nas obras de Vonnegut, mas apenas de forma alegórica, como em Cama de Gato, onde atribui à figura do cientista Felix Hoenikker a responsabilidade por ter desenvolvido a bomba atômica. No caso, o livro dá destaque para o ataque de Hiroshima, o que levanta a questão: por que não abordar Dresden? O motivo é simples, era um tópico doloroso demais para ser revisitado, mas que precisa ser contado. Esse dilema é representado nas primeiras páginas de Matadouro-Cinco, onde o autor se posiciona como narrador do capítulo inicial para fazer uma brincadeira de metalinguagem, confessando suas preocupações em escrever um livro sobre algo tão íntimo.

Matadouro-Cinco | “É assim mesmo”

É um começo inusitado, somos lembrados pelo próprio autor que tudo o que estamos prestes a presenciar é uma história saindo de sua máquina de escrever. Vonnegut arrisca perder uma conexão com o público, mas é neste mesmo instante que ficamos ainda mais intrigados com o rumo da jornada de Billy Pilgrim, seu protagonista, e nosso interesse apenas aumenta em ver como um autor tenta se desligar de sua própria narrativa, principalmente uma que se tornou tão essencial para seu desenvolvimento pessoal. Há um certo alívio em sua decisão, tanto que conclui seu relato mencionando uma tragédia bíblia, a de Sodoma e Gomorra, especificamente quando a esposa de Ló desobedece uma orientação divina e olha para trás, para toda a destruição, fazendo com que a mulher se transforme em uma estátua de sal.

Mas ela olhou. E eu a amo por isso, porque foi um ato muito humano. 
Aí ela virou uma estátua de sal. É assim mesmo. 
As pessoas não devem olhar para trás. Eu garanto que não vou fazer mais isso. Já terminei meu livro sobre a guerra. O próximo […] vai ser divertido. Este é um fracasso, e tinha mesmo de ser, pois foi escrito por uma estátua de sal.

Narrativa e Referências

Além da metalinguagem que atravessa a obra, tendo pequenas menções do autor dizendo onde estava durante o evento (“aquele ali no banco de trás, era eu”), Vonnegut emprega figuras de linguagem o tempo todo, a mais recorrente sendo a repetição de adjetivos para descrever a situação deplorável de algum personagem (“coitado”) ou frases que servem para acentuar o absurdo de alguns acontecimentos, talvez fazendo alusão à “regra não escrita” de como funciona a estrutura de uma piada, podendo ser repetida no máximo três vezes até perder a graça.

Em Matadouro-Cinco temos a frase mais conhecida do autor, repetida em demasia como uma forma de luto por alguém (ou algo) que teve um fim trágico: “É assim mesmo” (no original, “so it goes”). Isso é repetido em todos os capítulos; na verdade, em quase todas as páginas. No começo parece uma maneira leve de abordar as mortes e o caos, mas logo somos tomados pelo sentimento desconfortável de estarmos ficando cada vez mais acostumados com uma frase que representa algo tão deprimente. É o jeito inteligente de utilizar a comédia, como uma ferramenta de auto-crítica. O texto simples e limpo de Vonnegut, ao lado das ilustrações, atesta seu talento para escrever algo impactante com uma abordagem menos carregada nas palavras, deixando esse trabalho para a própria trama.

Deus, me conceda a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as coisas que posso, e sabedoria para sempre reconhecer a diferença.

Há referências, é claro. Vonnegut tem um tipo de universo compartilhado em sua biblioteca. Neste livro encontramos figuras conhecidas de quem está acostumado ao autor, como um membro da família Rumfoord, importantíssima para a trama de Sereias de Titã; temos também o escritor de ficção científica Kilgore Trout, de Café da Manhã dos Campeões (uma obra posterior, mas com o mesmo personagem); e Eliot Rosewater, que empresta seu nome para outro livro de Vonnegut: God Bless You, Mr. Rosewater (ainda sem tradução no Brasil).

“pu-ti-uít?”*

Matadouro-Cinco é um livro denso em seus temas, mas leve na escrita. Considerada por muitos como uma obra-prima da ficção científica cômica (e pessoalmente, a melhor obra do autor que li até o momento), este é um exercício de memória que tenta soar despretensioso, mas não consegue esconder a indignação com tudo que aconteceu. Vonnegut não gosta da guerra, não quer envolvimento com ela, sequer gostaria de ler sobre ela. Mas ele precisa escrever, ele esteve lá.

Nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre (p. 37)

Toda a viagem espacial e a abdução pelos tralmafadorianos (a raça alienígena que Billy diz ter encontrado) abre a mente do protagonista da obra, o ensina sobre a nossa própria concepção de tempo e como lidar com o luto, percebendo que “quando uma pessoa morre […], ela está bem viva no passado. Todos os momentos, passado, presente e futuro, sempre existiram, sempre existirão”. Pode ser apenas a maneira estranha que Billy escolheu para sobreviver tanto tempo com as memórias de guerra, mas ele se sente bem assim. Mais uma vez Vonnegut questiona nossa liberdade, assim como fez em obras anteriores, e nos deixa sozinhos com perguntas que talvez ninguém consiga responder, nem mesmo no fim da humanidade.

É assim mesmo.

*pu-ti-uít?: Som dos pássaros. Os únicos que tem algo para falar sobre a guerra.

Capa Matadouro Cinco

Matadouro-Cinco ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória Com a Morte(Slaughterhouse-Five)
de Kurt Vonnegut

Editora Intrínseca, 2019

Capa de Túlio Cerquize

288 páginas

Tradução de Daniel Pellizzari

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Cinema

AI: Inteligência Artificial | Spielberg, Kubrick e a Fada Azul

Spoilers!!!

Talvez o longa mais polarizante do currículo de Steven Spielberg seja AI: Inteligência Artificial, de 2001. Alguns consideram um ótimo trabalho de um diretor mais que competente que conseguiu unir sua técnica com a de outro realizador de visão única, mas no outro canto do ringue ficamos com quem considera este um trabalho sem imaginação e desnecessário. Eu aposto meu dinheiro no primeiro grupo e vou dizer porquê. Mas antes, contexto:

Assim como muitos diretores, Stanley Kubrick deixou alguns projetos em aberto antes de sua morte, em 1999. Além do roteiro para uma possível megaprodução sobre a vida de Napoleão, foi revelado um novo projeto que o traria de volta para a ficção científica (onde já realizou clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica), sobre a jornada de um robô para tornar-se um garoto de verdade. Mas a ideia não chegou a sair do papel e várias anotações e artes conceituais foram deixadas para trás, até que Steven Spielberg, por mais inesperado que pareça, decidiu continuar a visão de seu amigo.

Os dois possuem uma filmografia completamente diferente, seja em linguagem cinematográfica ou sensibilidade. Como levantou o site AV Club: “Temos o filosófico ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ de Kubrick em um lado, e o emocional ‘Contatos Imediatos do Terceiro Grau’ de Spielberg em outro; ou o cínico ‘Nascido Para Matar’ contra o patriótico ‘O Resgate do Soldado Ryan’. Se tivermos que escolher um, seria uma duvida entre um analista da condição humana e um humanista”. Ainda assim, os diretores eram fãs um do outro, o que não deixa de ser curiosa a decisão de Kubrick em deixar seu projeto final nas mãos de Spielberg. A resposta é mais simples do que se imagina, e está na própria carreira deles. O filme tinha todos os elementos para uma boa ficção científica, mas precisava de um que seria essencial; se você tem uma história onde seu protagonista é um robô que anseia pela humanidade, há uma necessidade por uma carga emocional que o público está acostumado a conseguir em obras como E.T.: O extraterrestre ou Jurassic Park, realizados pela mesma pessoa. Por isso, considero essa a melhor decisão possível.

Baseado no conto de Brian Aldiss, Supertoys Last All Summer Long(“Superbrinquedos Duram o Verão Inteiro”, lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2001), AI: Inteligência Artificial nos apresenta David, uma criança robô criada por uma equipe de cientistas com a promessa de desenvolver a primeira inteligência artificial capaz de “amar” seu administrador. Monica e Henry Swinton decidem “adotar” David ao descobrir que seu filho possui uma doença aparentemente incurável. A família consegue conviver mesmo com o comportamento robótico do mecha, mas as coisas ficam complicadas quando o filho do casal é liberado do hospital e volta para testar e se vingar de David por ter tomado seu lugar.

A primeira decisão certeira de Spielberg foi contratar Haley Joel Osment, provavelmente o ator mirim mais requisitado naquele ano, depois de ter agradado público e crítica ao estrelar longas como O Sexto Sentido (1999) e A Corrente do Bem (2000). Osment era diferente da maioria dos atores de sua idade, se destacando por conseguir executar papéis complexos de maneira convincente, tanto que chegou a ser uma das pessoas mais novas a concorrer ao Oscar. E não é como se o resto do elenco ficasse devendo, já que tinha nomes como Jude Law e William Hurt. Com um diretor comprometido em apresentar narrativas e personagens memoráveis, o maior desafio de Spielberg seria trazer a visão do amigo para a luz, sem perder sua identidade.

Steven Spielberg e Haley Joel Osment revisando o roteiro

AI possui três atos bastante distintos. O primeiro tem foco total no cotidiano familiar, introduzindo David e seu antagonista, o filho biológico dos Swinton, Martin. Aqui fica aparente a fidelidade ao visual e atmosfera de Kubrick que Spielberg tenta manter. A claustrofobia de cenas simples como um jantar em família é sentida mesmo na grande casa. Os corredores estão sempre vazios, o silêncio predomina, e mesmo com a chegada de Teddy, um robô na forma de ursinho de pelúcia, a diferença é pequena.

Neste momento, a composição fotográfica é centralizada — como era comum de Kubrick. Temos ângulos incomuns, porém uma direção de arte limpa e uma câmera mais estática, com poucos movimentos, mas geralmente reveladores, como quando Monica tenta preparar um café e David observa no canto da mesa, ou no reflexo causado por ele atrás de um vidro. O ponto de vista inicial vem de Monica: é ela quem seguimos, e isso serve para termos um pouco de sua perspectiva deste mundo antes que a humanidade torne-se definitivamente apenas espectadores da jornada de David, assim como todos nós assistindo.

Cena AI

Essa abordagem atravessa o filme, mas deixa de ser a regra assim que chegamos no segundo ato, resultado de uma atitude difícil tomada pela mãe, por conta das competições entre David e Martin, que ficam cada vez mais perigosas. É um dos momentos mais dramáticos do filme e o desespero do robô é tão realista que a mãe não consegue segurar o choro.

A estrutura narrativa de AI lembra a de Nascido Para Matar, outro filme de Kubrick com um primeiro ato em poucas localidades, mais fechado, que força uma abertura para o mundo real em sequencia. Aqui saímos da casa sufocante dos Swinton para um mundo de sucata e neon. Deixamos os humanos para trás e é a hora dos mechas tomarem conta da trama.

É neste mundo que David, acompanhado de Teddy, encontra Gigolo Joe, um mecha adulto (interpretado por Jude Law) que trabalha usando suas ferramentas de sedução. Somos apresentados ao personagem de maneira inusitada, quando ele foge da cena de um crime que não cometeu. Isso faz com que os dois parem em um ferro-velho, no meio de outros de sua espécie, abandonados ou escondidos. A partir de agora Spielberg nos entrega alguns dos visuais mais impressionantes do filme, com uma fotografia mais suja e planos abertos, reveladores como os de Kubrick, mas em escala, como o balão que surge no horizonte e ilumina a noite. É curioso como esse balão parece replicar a famosa imagem da lua usada pelo diretor em E.T.- O Extraterrestre, que mais tarde viria a ser a logo da produtora de Spielberg, Amblin.

Cena E.T.

Durante o segundo ato podemos ver uma mudança na abordagem do filme, que expande seu próprio universo, mostrando outros mecha e sua relação — nada boa — com os humanos. Fica claro que a partir de agora estamos lidando com a linguagem de Spielberg, um ritmo mais rápido e orgânico. É claro que a cena de um sintético com a fisionomia e a voz do comediante Chris Rock sendo atirado de um canhão como uma bola não é o que você espera em um momento tão desesperador para David, então eu dou ponto para o time que não gosta do filme por essa parte.

Não demora para visitarmos Rogue City, o centro de luxúria e cobiça, mas também de tecnologia e informação. É a parte mais extravagante do filme não só em questão de espetáculo visual e uso de efeitos especiais. Alguns consideram isso uma forma de Spielberg tomar conta do filme e deixar as coisas mais grandiosas do que o necessário, mas esse é um dos vários casos onde ele apenas seguiu o que Kubrick já tinha planejado. De acordo com o próprio artista conceitual, Chris Baker, que esteve envolvido no projeto desde o início: “Se eu fizesse a cidade hoje, seria um pouco mais sutil. Eu teria evitado que fosse excessivamente feminina. Talvez mesclar tudo para que não fosse tão óbvio”. Não sabemos se Kubrick traria essa sutileza, mas a ideia era dele e tudo que seu amigo fez foi seguir com ela. No fim, tivemos uma direção de arte mais que competente e alguns ambientes incríveis.

Após consultar uma enciclopédia holográfica, David esbarra na fábula de Pinóquio e fica mais empenhado em descobrir como se tornar um garoto de verdade. Até aqui eram notáveis as ligações metafóricas do filme com o conto do brinquedo de madeira, mas é a partir deste instante que Inteligência Artificial assume por completo sua missão de realizar os desejos de David, mesmo que eles não venham da forma que desejou.

Cena Inteligência Artificial

E assim chegamos no polêmico terceiro ato, que afastou tantas pessoas e aparentemente destruiu suas experiências. David e Teddy encontram a fada azul (na verdade, uma estátua sobrevivente das ruínas da civilização), a mesma que concebeu o desejo de Pinóquio e o transformou em uma criança de verdade. David faz seu pedido e espera ao lado de seus companheiros, na esperança de que em algum momento a fada os ouça.

Anos, décadas e séculos se passam e eles não saíram dali. A superfície da água agora é gelo, a humanidade não parece ter sobrevivido, mas os circuitos das personagens continuam funcionais. Os dois são acordados por figuras que conseguem fazer uma leitura de tudo que David presenciou em sua vida. Logo descobrimos estar na presença de um grupo de mechas, em uma versão muito mais avançada (SIM, são mechas! Não são alienígenas, como alguns pensam até hoje). Diante da ânsia do pequeno garoto sintético, eles decidem realizar seu último desejo, de passar mais um dia com sua mãe. É tudo uma simulação, mas David não se importa. Ele pode falar, andar e tocar, e assim passa horas brincando em sua antiga casa, com sua mãe, como se ele fosse um menino de verdade. Assim, ele pode ser desligado tendo uma sensação de paz. E se vai.

Todo o terceiro ato do filme é considerado por alguns como desnecessário e fantasioso demais. O próprio autor do livro original, Brian Aldiss, não estava feliz com a motivação envolvendo Pinóquio. Então, por que Spielberg fez isso? A obra poderia ter terminado assim que David encontra a fada. Este poderia ser um final lógico, mesmo que desolador.
A imagem do mecha no fundo do mar é prevista no primeiro ato, quando David afunda na piscina dos Swinton. Mas a intenção de Spielberg é ser o menos convencional possível, ir além do que se espera. Pode soar óbvio, e é por isso que, de acordo com Spielberg, o próprio Kubrick queria ultrapassar esta barreira e revelar um desfecho satisfatório para David, um que envolvia aproveitar o que nunca conseguiu, abraçando aquela realidade como ninguém. Ficamos com um momento de catarse, e a atuação de Osment ajuda muito nisso. É uma sequencia mais calma, de doçura e alegria, mas que também traz uma sensação conflitante quando percebemos o quão depressivo e desesperador foi para David nunca ter isso e como ele dedicou sua existência procurando por um sentimento que agora está perdido em um futuro congelado.

Spielberg fez o máximo que pôde para manter o visual e a narrativa de Kubrick, isso sem deixar de lado sua própria habilidade para desenvolver personagens e drama realistas, e é uma tarefa ainda mais difícil fazer isso em uma trama com pouco elemento humano. Inteligência Artificial tem seus defeitos, como o ritmo inconsistente e a falta de uma música mais memorável de alguém tão talentoso como John Williams (responsável pela trilha sonora do filme), mas ainda é um longa com vários pontos positivos e um debate intrigante sobre a condição humana através de uma perspectiva incomum. Estou do lado que considera Spielberg a escolha certa para o projeto, e também acredito que ele tenha sido um bom amigo no fim.

Ator AI
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Guerra Sem Fim | Marcado pelo campo de batalha

Uma das características mais representativas da ficção científica é a capacidade do gênero em apresentar uma crítica de maneira única, se beneficiando de metáforas para construir a narrativa. Joe Haldeman decidiu exorcizar seus demônios da Guerra do Vietnã em sua obra The Forever War, traduzida para o Brasil como Guerra Sem Fim. No livro, Haldeman questiona a importância da guerra, suas contradições, a perda e a solidão constante e a maneira como somos condicionados a participar de atos inumanos.

William Mandella (quase um anagrama para Haldeman) é um recruta convocado para a batalha. Ele não se sente confortável com aquilo, mas decide aceitar toda a experiência, já que não há muita opção. Somos situados em 1997, e a humanidade consegue viajar pelo tempo e espaço através do que chamam de salto colapsar, que são como pontos de acesso servindo como portais para buracos de minhoca. Os soldados tem a missão de enfrentar os taurianos (nome que receberam por conta da constelação de Taurus), uma raça alienígena que sequer conhecem, mas através de estímulos mentais introduzidos pelo próprio governo conseguem matar várias criaturas, mesmo que elas não tenham o mesmo poder de fogo para responder. É uma carnificina gratuita, a raça humana mostra a que veio.

A obra é dividida nos quatro momentos mais importantes da carreira de Mandella, passando por todas as suas patentes. Ainda assim, a estrutura narrativa é linear e cada uma dessas partes possui uma abordagem diferente dos problemas enfrentados por muitos veteranos da Guerra Fria. Tudo começa com o treinamento dos recrutas, em um texto de Haldeman totalmente focado na ação. O autor toma como prioridade, assim como um soldado, o reconhecimento de terreno e todos os elementos do ambiente, além de nos ensinar sobre o equipamento e as táticas marine necessárias para “matar um homem de maneira furtiva”. Este segmento do livro tem todos os atributos que fazem dele uma excelente reprodução da sensação de estar no meio do campo de batalha, mesmo que sacrifique um pouco o desenvolvimento dos personagens. Aqui Guerra Sem Fim tem comparações óbvias com outro sci-fimilitar, o clássico de Robert A. Heinlein, Tropas Estelares. Felizmente, Haldeman não cai nas mesmas armadilhas de ter sua obra confundida com propaganda (não me entenda errado, Tropas Estelares é ótimo, mas tem seus defeitos) e logo assume a responsabilidade se espelhando em Mandella, um jovem estudante de física (assim como o autor) indignado com o caminho tomado pela humanidade.

O que teria acontecido se tivéssemos nos sentado e tentado nos comunicar? (p. 111)

Chegando na segunda parte, Haldeman toma seu tempo e foca nas relações do protagonista. Por conta da relatividade na física das viagens interestelares, há uma dilatação temporal que afeta os soldados. Na sua primeira visita de volta para Terra, Mandella nota que uma década se passou durante sua ausência, mesmo que para ele tenha sido menos da metade disso. Ele visita sua mãe e passa mais tempo com Marigay, uma companheira de campo. Para sua infelicidade tudo está diferente: o crime aumentou, a saúde é precária, houve uma “Guerra do Racionamento”, e uma nova forma de controle da natalidade o deixa confuso. É como se Mandella fosse o alienígena em sua própria terra.

Fica evidente como o autor tem uma facilidade para manter uma consistência narrativa, isso sem contar a habilidade para implementar termos técnicos de forma orgânica, muitos baseados em táticas militares. Há uma sequencia gráfica e realista envolvendo uma contagem regressiva, logo na primeira parte da obra, que eu não duvido ter sido influenciada diretamente por algum acontecimento dos tempos de guerra do autor. Cada baixa da equipe é sentida com um peso e uma dolorosa sinceridade. E talvez o mais impressionante seja a coragem de Haldeman, ainda no auge do debate sobre a guerra (o livro saiu em 1974), em criticar o comportamento dos norte-americanos no Vietnã, com toda destruição desenfreada que não se importou com as crianças e as mulheres inocentes. O primeiro encontro com os taurianos é a mais assustadora e realista tradução disso.

Soldado Mandella

A escolha de dedicar uma parte do livro na perspectiva de Mandella tentando compreender a vida na Terra é uma que nem todo autor pensa em inserir, achando que o público está interessado apenas na ação. Mas como o drama não é o forte de Haldeman, há tropeços. O retorno do protagonista tem alguns bons diálogos e construção de personagem, mas é um pouco difícil digerir a forma quase cômica na qual ele mostra o aumento da criminalidade, dando a sensação de termos um saqueador em cada esquina. No entanto, é também nesse ponto do livro que o personagem reflete sobre a morte e a trivialidade com a qual ela é tratada em campo.

No século 20, estabeleceu-se, para satisfação de todos, que “eu estava apenas seguindo ordens” era uma desculpa adequada para condutas desumanas. (p. 111)

Outra coisa que deve ser considerada, provavelmente a maior, seja a abordagem do autor sobre sexo e sexualidade. É claro que o contexto sempre deve ser levado em conta, como a mentalidade da época, então é esperado ver pensamentos do protagonista como “Porque pegamos as mais cansadas quando estamos com fogo e as mais fogosas quando estamos cansados?”. A maior questão surge mesmo quando Mandella revela seu lado homofóbico, o que felizmente é mencionado e corrigido pelo personagem aos poucos. O controle de natalidade da Terra só é possível por conta da dominância de cidadães homossexuais. É inteligente de Haldeman fazer um tratamento mais acolhedor das pessoas, o que entra em outra crítica ao jeito que o exército trata os gays, mas incomoda um pouco vê-los tendo atitudes efeminadas quase caricatas em alguns momentos. A versão brasileira lançada pela editora Aleph traz uma introdução, do próprio Haldeman, sobre isso. Ele admite não ter a tido a sutileza necessária para tocar no assunto, “Em Guerra Sem Fim, há sexo gay, é claro, mas normalmente entre mulheres ou entre homens efeminados. Minha única desculpa é que era assim que eu via o mundo, na época em que escrevi”.

Guerra Sem Fim é considerado, merecidamente, um clássico da ficção científica militar. Você encontra elementos da obra em várias mídias, seja em filmes como Interestelar Nascido Para Matar, ou até mesmo no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror. Haldeman desenvolve uma narrativa devastadora sobre manipulação e as cicatrizes da guerra. É uma leitura essencial para conhecer um dos trabalhos mais influentes do gênero e relembrar uma das maiores manchas da história.

Capa do Livro Guerra Sem Fim

Guerra Sem Fim (The Forever War)
de Joe Haldeman

Editora Aleph, 2019

Capa de Gustavo Perg

354 páginas

Tradução de Leonardo Castilhone

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O Salmão da Dúvida | As Confissões de Douglas Adams

Douglas Adams é uma das figuras mais instigantes da ficção científica, não só pelo seu texto, mas por ter um comportamento despreocupado e honesto com os fãs e, aparentemente, a própria carreira. Tendo O Guia do Mochileiro das Galáxias como a maior referência em sci-fi cômica, é curioso saber mais sobre os bastidores da criação de Adams.

O Salmão da Dúvida é o livro póstumo do autor, que morreu aos 49 anos em 2001, e reúne várias anotações, entrevistas e manuscritos. A edição brasileira, lançada em 2014 pela editora Arqueiro, segue o modelo do original, com uma introdução feita pelo escritor Stephen Fry. A obra consiste de três partes, intituladas obviamente como A Vida, sobre algumas histórias de vida do autor; O Universo, com algumas observações divertidas do tipo que só Adams conseguia; e a conclusão com E Tudo Mais, onde fica a parte mais interessante para os fãs, com uma versão diferente do conto Young Zaphod Plays it Safe, intitulado Perfeitamente Seguro na versão traduzida, e alguns capítulos até então inéditos sobre uma possível nova aventura envolvendo o detetive holístico Dirk Gently, chamada de O Salmão da Dúvida. Adams, como sempre, ficou na duvida sobre a história e passou um tempo em conflito sobre continuar uma narrativa para Gently ou talvez transformar a nova obra em mais uma entrada no Guia. No fim, a obra ficou inacabada — o que faz do título um tipo de piada feita pelo próprio Adams.

O Salmão de Dúvidas

E outra coisa surpreendente, mas praticamente inofensiva, é como toda essa informação foi encontrada no computador do autor. Adams passou anos zombando a tecnologia e a dependência das pessoas nas máquinas, mas com o passar dos anos, assumiu uma relação saudável com o monitor e o teclado, utilizando seu Macintosh para quase tudo envolvendo escrita. Foi em seu computador que manteve os capítulos inéditos, comentários sobre sua infância e o tamanho do nariz, assim como um ensaio filosófico sobre a existência de Deus.

O livro abre com anotações de Adams para o editor e um relato sobre os tempos de escola e o impacto que os Beatles tiveram na sua infância. Há pequenas menções à Graham Chapman, o integrante do grupo de comediantes Monty Python, onde Douglas participou brevemente colaborando nos roteiros e fazendo bagunça com a equipe. Aqui aviso logo que esta não é uma biografia; O Salmão da Dúvida engloba o universo do autor do seu próprio ponto de vista, o que é ótimo mas também sofre um pouco com a ausência de contexto. Se você já não segue o trabalho do escritor, vai ficar um pouco perdido. Indico a leitura de Não Entre em Pânico, da editora Novo Século, uma biografia de Douglas Adams escrita por ninguém menos que Neil Gaiman. Ela foca bastante na criação da série Mochileiro das Galáxias, e o texto de Gaiman é tão leve que tudo pode ser lido em um dia. Também existe a biografia Wish You Were Here, de Nick Webb, mas essa ainda não tive a chance de ler.

O Salmão de Dúvidas

Voltando ao livro, Douglas faz questão de contar mais uma vez um incidente conhecido dos fãs, envolvendo um jornal e um pacote de biscoito. Felizmente, é uma piada que não perde a graça. Entre as opiniões do autor, descobrimos o que ele pensa sobre cachorros, visitas inesperadas e vídeo-games, sem contar uma lição humorada (mas SÉRIA) sobre a execução apropriada para uma excelente xícara de chá:

“Os americanos nunca conseguem entender por que os ingleses dão tanta importância ao chá porque a maioria deles NUNCA TOMOU UMA XÍCARA DE CHÁ DECENTE. Mas para dizer a verdade, a maioria dos ingleses também já não sabe preparar um bom chá e prefere beber café instantâneo barato”

É uma pena não termos a continuação da nova aventura de Dirk Gently, mas é uma alegria ler um pouco do que estava preparado, principalmente com a louca premissa envolvendo o desaparecimento de apenas metade de um gato. O conto envolvendo Zaphod não é tão divertido, mas quem sou eu para reclamar de qualquer coisa nova no universo do Guia ¯\_(ツ)_/¯

Douglas Adams pode não ter vivido o suficiente, mas é um dos maiores gênios da comédia. Suas séries literárias (Guia Dirk Gently) são algumas das mais lembradas e adoradas da ficção científica, e sua contribuição para a cultura pop e o humor é incalculável, bem maior que 42.

Capa O Salmão de Dúvidas

O Salmão da Dúvida (The Salmon of Doubt)
de Douglas Adams

Editora Arqueiro, 2014

Capa de Ana Paula Daudt Brandão

304 páginas

Tradução de Fabiano Morais

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Cinema Quadrinhos

Alita: Anjo de Combate | A Nova Experiência de Robert Rodrigues

Independente do que ache sobre a filmografia de Robert Rodrigues, não podemos negar que ele tenta se reinventar algumas vezes. Eu comecei a seguir o diretor há muito tempo, quando ainda era criança e morava em frente à locadora da rua. Ao lado de Sam Raimi e Quentin Tarantino, ele estava na capa da maioria das fitas que eu alugava. O Mariachi, seu primeiro filme, é um sólido começo com uma história divertida e uma identidade forte. Não demorou muito para ele começar sua amizade com Tarantino e desenvolver o ótimo longa sanguinário Um Drink No Inferno, em 1996.

Rodrigues nunca chegou a ser um dos meus diretores favoritos, mas era aquele nome que eu seguia por instinto, como se fosse um hábito involuntário. E se você notar, provavelmente já assistiu algumas obras dele, mesmo sem saber. Depois de sua fase trash pistoleira, Rodrigues seguiu um rumo completamente diferente e dirigiu o longa infantil Pequenos Espiões, em 2001. Foi a primeira vez que o diretor atingiu um público maior, obviamente por conta de ter feito um filme mais acessível para toda a família (que rendeu mais três continuações em sua mão).

Ele passou por uma fase morna, sem grandes lançamentos, focando em curtas e documentários. Mas em 2005, comandou Sin City: A Cidade do Pecado, uma adaptação cinematográfica da HQ de Frank Miller bastante fiel à atmosfera e o estilo narrativo do quadrinista. Rodrigues mais uma vez envolvia-se com um projeto original e seu nome voltou a ser lembrado. O longa foi bem recebido pela crítica e recebeu vários elogios sobre sua abordagem com uma fotografia estilizada de preto e branco que parece ter saído direto das páginas do quadrinho noir.

Com Sin City, Rodrigues lentamente voltava ao seu mundo de sujeira e crime, mas o retorno foi real apenas quando, ao lado de Tarantino, desenvolveu Grindhouse, uma homenagem dos diretores ao movimento da década de 60/70, no qual dois filmes eram exibidos em sequencia durante as sessões, geralmente de obras trash com um pouco de gore. Grindhouse consistia de À Prova de Morte (de Tarantino)e Planeta Terror (de Rodrigues). Depois disso, o diretor fez dois longas para Machete e uma continuação para Sin City, mas nada que tenha impressionado.Finalmente, em 2019 tivemos Alita: Anjo de Combate, um projeto que esteve em desenvolvimento há mais de uma década nas mãos de outro diretor: James Cameron; mas sabemos como ele acabou ficando ocupado por conta de Avatar, então confiou em Rodrigues para seguir com o filme. Cameron continuou como produtor e assina como um dos roteiristas, ao lado de Laeta Kalogridis.

Cameron e Rodrigues

Baseado no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio. É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem Rodrigues para comandar o projeto. Ele já provou conseguir criar boas sequencias de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.

O maior desafio do filme foi manter a promessa de deixar Alita visualmente parecia com a figura que saiu de um mangá, com os olhos gigantes e tudo. Felizmente, Cameron é um gênio quando se fala de efeitos visuais, então mais uma vez conseguiu arranjar uma maneira de executar sua ideia. A captura de movimentos da personagem, através da atriz Rosa Salazar, foi um sucesso e impressiona como deu certo quando poderia facilmente ter caído em território de vale da estranheza. É claro que nem toda colaboração de Cameron é necessária, como sua presença nos roteiros, que são a parte mais fraca do longa. Toda a trama de Alita é divertida e traz bons momentos de personagens, mas alguns diálogos podem beirar o cliché (há instâncias onde não só beira, como se joga completamente neles) e a segunda metade do filme já chega com o conflito interno principal da protagonista resolvido, então perdemos um pouco do interesse no drama dos personagens.

Ao lado de Salazar, o elenco conta com Christoph Waltz (que já trabalhou com Tarantino e provavelmente foi uma indicação), Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein e Keean Johnson. Waltz e Johnson tem a maior presença e servem, respectivamente, como uma figura paterna e um interesse amoroso. Connelly e Ali estão pagando a reforma da cozinha, mas ainda assim se dedicam, mesmo com a atuação caricata necessária para seus papéis antagônicos. Skrein, como sempre, parece se divertir independente do orçamento do filme.

Outra contribuição de Cameron foi o 3D. Particularmente, tenho uma raiva do uso excessivo de 3D em filmes, e é óbvio que a técnica é usada até hoje para aumentar o preço dos ingressos no cinema, mas aqui ele é bem atribuído. Sequencias de ação, como as do torneiro de Motorball, e algumas batalhas entre Alita e outros ciborgues se beneficiaram da técnica, utilizando profundidade nos personagens para criar um senso de espaço melhor. Essa noção de espaço é também um ponto positivo para um filme onde batalhas de CGI acontecem constantemente. Pode-se perceber a dimensão da cidade onde o filme se passa, e a importância dada aos espaços que introduz. Há um bar onde os caçadores de recompensa se encontram para beber e se gabar de seus feitos, nesta sequencia temos a introdução de alguns conceitos e personagens que mostram como aquele mundo pode ser explorado no futuro.

Alita

Alita: Anjo de Combate se despede confiante, com um gancho para uma possível sequencia. Até o momento, o filme se pagou na bilheteria, mas não foi nada estrondoso. Ainda que tenha seus problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação, que talvez seja a primeira competente envolvendo a de um anime feito pelos norte-americanos. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.

Robert Rodrigues se encontra mais uma vez no holofote, com um filme que mescla seu olhar para ação e desenvolve o início para o que pode ser uma franquia divertida e despretensiosa, mas carregada de conceitos e efeitos visuais que funcionam muito bem e tem a chance de continuar experimentando sem medo, talvez com um roteiro melhor e uma ameaça mais original.

Ficha Técnica
Título Original: Alitta: Battle Angel (2019)
Direção: Robert Rodrigues
Roteiro: James Cameron e Laeta Kalogridis
Baseado na obra de Yukito Kishiro
Elenco: Rosa Salazar, Christoph Waltz, Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein, Keean Johnson

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Séries Quadrinhos

Patrulha do Destino | “Puppet Patrol” (s01e03)

Estamos apenas no terceiro episódio e já posso afirmar que, se Patrulha do Destino fosse cancelada neste exato momento, a série seria considerada uma das melhores coisas já produzidas para a TV envolvendo um material da editora DC. Preacher é claramente um deleite de sangue e humor negro, mas a equipe de desajustados da Patrulha conseguiu em apenas poucas semanas entregar personagens bem desenvolvidos, um tratamento visual de qualidade e um enredo competente e criativo.

Em Puppet Patrol a equipe fuça os arquivos do Chefe e descobre informações que os levam para o Paraguai. Na verdade, eles não são levados, é mais questão de tentarem chegar lá por uma boa parte do episódio. Ciborgue não consegue contribuição financeira de seu pai e como ainda não é um membro da Liga da Justiça, não pode pegar um jato emprestado. A solução é carregar todos em um ônibus surrado (para ser generoso com os adjetivos). Não sendo apenas uma decisão criativa da série para evitar gastos no orçamento, obviamente (e há uma cena onde fica ainda mais claro como um simples corte — bem feito — na edição ajudou bastante nessa economia), essa acabou sendo uma daquelas ideias que abrem espaço para várias situações cômicas, como cada integrante do grupo tentando (e falhando) botar a mão no volante ou Crazy Jane tentando se matar por conta do tédio, literalmente. Há uma pausa em um hotel na beira da estrada que também serve para conhecermos mais da rotina de Rita e exibir o humor inconveniente de Cliff, que joga nomes como Batman Aquaman no ar com a intenção de irritar Ciborgue.

Preparados para a Fuchtopia

Com o primeiro episódio dando um foco maior na história de Cliff e a relação com sua filha, e o seguinte explorando as origens de Ciborgue e a superfície do que aconteceu com Jane, é chegada a hora de falarmos um pouco mais sobre Larrye os relacionamentos que mantinha, com sua esposa e o colega de trabalho, que acaba se tornando um amante. É mais uma das jornadas trágicas da série, de um homem tomado pelo arrependimento que decide se distanciar de tudo e todos. Mais um bom trabalho do roteiro em apresentar uma certa despedida através do ponto de vista das figuras que mais decepcionou, de um lado um adeus seco e triste de uma esposa traída; do outro uma partida sutil, mas cheia de sentimento, de um homem que perdeu uma das conexões mais fortes que tinha. Matt Bomer atua nas sequencias de flashback e em um momento importante do clímax do episódio, onde tem um embate com sua entidade mal-vinda. Como foi com Brendan Fraser anteriormente, esse é outro caso de um membro do elenco se dedicando ao papel e abraçando o absurdo da série.

Por falar em absurdo, esse episódio tem de sobra, e olha que nem tivemos a narração do Mr. Nobody (fez falta, mas não afetou negativamente a experiência em momento algum). À caminho de Paraguai, o grupo é separado novamente. Rita e Ciborgue ficam em um hotel (contra suas vontades), onde debatem a importância da ex-atriz para a equipe. Esse é o núcleo mais “normal” do episódio, e serve como um alívio cômico reverso, como se colocasse um pé no chão depois de sair da realidade. Por isso também é uma parte que sofre um pouco por não ser tão intrigante quanto a trama paralela, envolvendo Larry, Cliff e Jane chegando (de forma propositalmente conveniente) no seu destino, o ponto turístico provavelmente menos movimentado do país: Fuchtopia (sim, se escreve com h. Tire a cabeça do esgoto). Fantoches que revelam informações sobre o passado do Chefe e Von Fuchs, camponeses prontos para a batalha e a introdução de outra figura bizarra dos quadrinhos são algumas das coisas que me deixam cada vez mais animado para onde esta série pode ir. E pode ir para qualquer lugar.

Puppet Patrol é mais um ótimo episódio de uma série que vem se provando como uma das mais criativas e irreverentes dos últimos anos, e isso com apenas três episódios, mas também com uma trama que está se desenvolvendo muito bem e um trabalho de direção cada vez mais peculiar, com um filtro quase sépia que dá aquela sensação de estarmos vendo uma fotografia velha de algo abandonado há um tempo. É assim que os personagens se sentem e não deixamos de torcer por uma possível luz no fim do túnel para cada um deles.

Que visual ❤

Ficha Técnica:
Puppet Patrol, S01E03
Direção de Rachel Talalay
Roteiro de Tamara Becher e Tom Farrell
Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brendan Fraser