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Fragmentos sobre “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”

SPOILERS!

Charlie Kaufman é um dos meus roteiristas preferidos. Ele não é tão conhecido quanto merecia, principalmente por conta dos projetos que escolhe, mas é um dos melhores. Filmes como Quero ser John Malkovich (1999) Adaptação (2002) deixam bem clara a sua proposta: narrativas sobre a condição humana com uma abordagem íntima e sem medo de ser extremamente metalinguística. Adaptação é dirigido por Spike Jonze, mas o enredo chega a ser uma análise sobre o processo criativo de um roteirista. O longa é estrelado por Nicolas Cage, que interpreta dois personagens, cada um servindo como contraposto para a visão do outro sobre a abordagem de um texto. Um dos fatos curiosos está no nome deles, Charlie e Donald Kaufman. Pode soar egocêntrico, mas o roteirista utiliza o filme como uma ferramenta para debater suas neuroses e dilemas sobre o próprio trabalho. Como ser original em uma industria que preza o contrário?

Uma das vantagens do roteirista foi envolver-se com bons diretores, como Jonze, com quem colaborou por anos. Depois disso, até George Clooney quis uma colaboração, o convidando para fazer o roteiro adaptado para o seu primeiro filme por trás das câmeras, o subvalorizado Confissões de uma Mente Perigosa (2002). O próprio Kaufman não demorou para dirigir seus próprios projetos, tendo agora liberdade para levar à tela o texto da maneira que imaginou desde o começo. Com isso vieram algumas obras incríveis como Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015). Mas antes que pudesse seguir este caminho, escreveu o roteiro de Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças (2004), dirigido por Michel Gondry, um diretor francês mais acostumado em filmar curtas, mas com um olhar diferente para representações visuais. Até hoje eu considero essa uma das melhores colaborações do cinema, e uma das mais criativas.

A ideia do filme veio de um amigo de Gondry, que imaginou um mundo onde você poderia simplesmente apagar alguém da sua memória usando uma tecnologia capaz de visitar suas lembranças e fazer com que você não precise mais lidar com o que aquela pessoa significou para você. Tendo este argumento em mente, a tarefa de Kaufman foi construir o roteiro. O que já poderia ser a premissa para uma ficção científica intrigante acabou sendo um estudo sobre as relações humanas.

Joel Barish descobre que sua namorada, Clementine Kruczynski, passou pelo procedimento. Ele sabe que as coisas não estavam indo bem, mas também não consegue acreditar no que aconteceu, então decide fazer o mesmo para que não sinta mais a dor da perda. Entramos na cabeça de Joel e assistimos o processo. Ele vê Clementine esvair-se de sua mente, mas com ela vão também os bons momentos. Enquanto analisa seu comportamento e passa mais um tempo com a mulher que ama, Joel percebe que talvez tenha cometido um erro.

Um dos grandes acertos do filme é o elenco. Joel é interpretado pro Jim Carrey, mais uma vez mostrando ser capaz de um atuação dramática genuína, como fez em O Show de Truman e o pouco apreciado O Mundo de Andy. Aqui ele tem uma das suas performances mais consistentes, com um personagem de comportamento mais contido e receoso. Do outro lado, Kate Winslet faz Clementine, que considero até hoje seu melhor papel, mesmo com Titanic no currículo. Sua personagem é um dos pontos mais interessantes do filme, e eu vou chegar lá daqui a pouco.

Além da dupla principal, o elenco conta com Elijah Wood, Kristen Dunst, Mark Ruffallo, David Cross e Tom Wilkinson. Esse é o tipo de filme onde cada personagem tem um papel importante na trama, existindo para servir o propósito do roteiro. E esse vai ser o foco desse debate, mostrar como Charlie Kaufman e Michel Gondry fizeram uma das obras mais originais da década passada.

Kate Winslet, Charlie Kaufman e Michel Gondry

Não é sempre que a direção anda de mãos dadas com o roteiro. Há diretores como David Fincher, que adoram mexer no texto original, mas ele pelo menos compensa no resultado final, com um trabalho impressionante. Mas surgem casos onde o texto é tão bom que o maior desafio do diretor é procurar a melhor maneira de executar as ideias do roteirista. Gondry viu nas páginas de Kaufman uma porta para experimentar com a câmera. Por ser uma narrativa que envolve personagens tendo suas memórias apagadas, uma das decisões mais inteligentes do longa foi a edição fragmentada e a continuidade inconsistente (propositalmente), que não atrapalha a montagem e consegue entregar a sensação de incerteza e a angústia do casal protagonista.

Conhecemos partes do ambiente através de transições criativas, fazendo com que cada episódio da vida do casal pareça mais presente, como se não os pudesse ser deixado para trás. Saímos da livraria onde Clementine trabalha e com um simples jogo de luz e o beneficio de ter os cenários conectados, paramos na casa de Rob e Carrie, os amigos de Joel, que estão ouvindo ele contar os exatos acontecimentos de quando esteve na livraria e não foi reconhecido por sua ex-namorada. Essa técnica é usada constantemente, seja no consultório da empresa responsável pelo procedimento ou indo de um acontecimento mais importante para outro completamente mundano, como os personagens comendo enquanto assistem televisão.

O conceito de memória fragmentada é representado também no texto e na narrativa visual do filme constantemente, seja no gelo rachado onde o casal deita para observar as constelações ou no próprio nome da clínica responsável pelas operações, chamada Lacuna. Um título apropriado levando em consideração o significado da palavra, que indica uma falha ou ausência de alguma coisa, exatamente o que acontece com o protagonista ao longo do filme.

Clementine (Winslet) e Joel (Jim Carrey)

A ciência de Brilho Eterno entra em território de ficção por conta de todo o maquinário e supervisão necessário para que o procedimento seja um sucesso, mas a pesquisa de Kaufman e Gondry é boa o suficiente para trazer alguns debates sobre memória. O filme lida com um tipo de amnésia induzida, e por mais que ainda não seja possível, há ligações com estudos neurológicos reais, como o de Eleanor Maguire, que trouxe melhores resultados para o debate, concluindo que pacientes sofrendo de amnésia não conseguem imaginar novas experiências, ao contrário de outros pacientes, que conseguem utilizar seus circuitos neurais para construir um retrato do futuro, como elaborar um piquenique na praia com os amigos e detalhar componentes como a temperatura e a textura da areia mesmo sem estar lá.

– Há risco de dano cerebral?
– Bem, tecnicamente falando, esse tipo de procedimento já é um dano cerebral.

Nossa percepção de passado e futuro são mais complexas do que imaginamos, e é por isso que no filme, quando Joel começa a perceber como Clementine desaparece rápido, fica desesperado pedindo para continuar com alguma coisa dela. A nossa história não é contada apenas através dos bons momentos, são os erros que costumam nos ensinar. Podemos ver como as relações moldam nossos pontos de vista, e é por isso que temos os amigos de Joel, Carrie e Rob, para fazer o exemplo. Eles são um casal monótono e sem surpresas, e mesmo com pequenos desentendimentos, no fim esquecem tudo para se divertir com um simples avião de brinquedo.

Brilho Eterno se vale de uma equipe talentosa. A edição de Valdís Óskarsdóttir e a direção de arte de Ellen Kuras, com a decoração mais realista e mundana das casa cobertas por colchas remendadas e roupas batidas, são alguns dos motivos para este filme ter uma apresentação tão marcante. Isso sem esquecer o trabalho de Gondry por trás da câmera. O diretor fez questão de adotar uma abordagem mais clássica, limitando os efeitos especiais do VFX à elementos que realmente precisavam da técnica, como um carro que cai e invade o plano, ou a destruição da casa de praia no clímax do filme. Para o resto da obra, temos efeitos visuais práticos, que deixam a cena mais natural mesmo que envolva imagens surreais, como o banho que Joel toma na pia da cozinha ou toda a sequencia onde ele muda de tamanho enquanto se esconde embaixo de uma mesa. Para realizar a última cena, por exemplo, Gondry usou perspectiva forçada para fazer com que os objetos e atores tiverem proporções diferentes, montando o cenário estrategicamente para que cada canto tivesse seu próprio tamanho. Esse tipo de técnica é bastante comum e foi usada por outros diretores como Peter Jackson, durante as gravações de O Senhor dos Anéis, nas cenas envolvendo os hobbits.

Gondry teve a chance de experimentar, mas não sozinho. O roteiro de Kaufman permite que a direção do filme seja a mais criativa possível sem perder o essencial: o foco nos personagens. Brilho Eterno é a jornada de um casal debatendo suas diferenças e descobrindo suas próprias falhas enquanto avaliam a relação. Joel é contido e tímido, mas tem o péssimo hábito de julgar as pessoas e fazer comentários inconvenientes para magoar sua namorada. Já Clementine é um caso mais curioso. Sua personagem é impulsiva e poderia cair facilmente na categoria de Manic Pixie Dream Girl (basicamente essa é uma convenção narrativa onde a história coloca uma personagem feminina com personalidade “forte” como uma maneira do protagonista masculino fugir de sua realidade e ter todos seus problemas resolvidos, como acontece em Scott Pilgrim Contra o Mundo ou 500 Dias Com Ela, por exemplo), mas ela tem identidade e sofre as consequências por seus atos, o que faz dela um comentário ácido de Kaufman para um estereótipo antes mesmo dele existir. Não é a primeira vez que o roteirista usa seu trabalho para dar uma alfinetada na maneira que a industria vem conduzindo suas narrativas.

A maioria dos caras pensa que sou um conceito, ou que eu os completo, ou que eu os faço viver. Mas eu sou só uma garota ferrada que está procurando por sua própria paz de espírito. Não me faça ser responsável pela sua.

Clementine e Joel

Além deles, seguimos as tramas pessoais da equipe responsável pelo procedimento, que está na casa de Joel finalizando o processo enquanto ele dorme. Patrick (Elijah Wood) e Stan (Mark Ruffallo) se preparam para mais uma noite de trabalho, com comida e cerveja, mas Patrick precisa sair para ver uma garota. Logo descobrimos que ele está saindo com Clementine, o que já é completamente inapropriado; Para piorar, ele está usando os objetos abandonados por Joel para tentar conquistá-la. Com a saída do amigo, Stan passa a noite com Mary (Kristen Dunst), a recepcionista por quem está apaixonado. Podemos ver como Kaufman desenvolve várias relações ao mesmo tempo para nos mostrar todos os pontos de vista possíveis, mas ainda mais para revelar como todos lidam com a inveja e a rejeição.

Assistindo as cenas deletadas, há muita informação que poderia ser deixada no resultado final, mas também vemos o caso contrário. Algumas partes realmente não funcionariam muito bem, como a presença de Naomi, uma ex-namorada de Joel. Nas gravações ela foi interpretada por Ellen Pompeo e tinha até uma subtrama própria, mas nunca chegou a fazer parte da obra no final. Ainda que fossem momentos que serviam para explorar mais do lado de Joel sem Clementine, podemos ver como Naomi apenas distrairia do foco do filme.

Essa foi uma boa decisão, mas o filme tem um outro trecho deletado que seria melhor deixada no corte final, envolvendo Mary e a revelação de que ela já usou o procedimento para apagar da memória um aborto. É uma cena difícil de assistir mas que faz falta quando vemos a sua reação mais raivosa no terceiro ato, ou ao escutar alguns diálogos, como o do Dr. Howard dizendo que ela “queria o procedimento”, ou na ocasião que começa a divagar com Stan sobre sua vida: “É lindo. Você olha para um bebê e ele é tão puro e livre e inocente. E os adultos são, tipo, essa bagunça de tristeza e fobias. E o Howard faz com que tudo isso vá embora”.

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é um projeto que acerta todas as notas. Um enredo bem construído e inteligente ao lado de uma direção criativa e sem medo de experimentar, isso sem contar o excelente trabalho de toda a equipe envolvida no design de produção, montagem e até a música, que não mencionei ainda mas foi composta por Jon Brion. Aqui ele colabora para a atmosfera melancólica do longa, e se isso não for o suficiente, ainda temos o cantor Beck com sua bela e depressiva versão de Everybody´s Got to Learn Sometime, da banda The Korgis, concluindo o filme com uma sequencia de Joel e Clementine correndo na praia enquanto a câmera faz vários cortes que não nos deixam esquecer que talvez o casal já tenha passado pelo procedimento mais vezes que imaginamos. Pode ser uma resolução pouco otimista, mas é como a própria música diz: arriscamos e erramos, mas uma hora todos aprendem. Ou pelo menos tentam.

Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa.
Esquecendo o mundo e o mundo esquecendo-a.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças!
Cada oração aceita e cada desejo realizado.
(“De Eloisa Para Abelardo”; POPE, Alexander)

Clementine e Joel

Fontes e Referências:

 Uma curiosidade: existe um site da clínica, com a sua história, funcionários e alguns clientes: Você pode visitar o Lacuna Inc.

 Patients with hippocampal amnesia cannot imagine new experiences, Eleanor Maguire: https://www.pnas.org/content/104/5/1726

– ‘Eternal Sunshine’ Destroyed the Manic Pixie Dream Girl Stereotype Before It Even Existed, Alison Herman: http://flavorwire.com/446166/eternal-sunshine-destroyed-the-manic-pixie-dream-girl-stereotype-before-it-even-existed

 Poema “De Eloisa Para Abelardo”, Alexander Pope (Inglaterra,1688–1744), tradução de Jorge Luis Gutiérrez: http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/eterno_sublime/jorge.pdf

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