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Um Lugar Silencioso (2018) e Sinais (2002)| Revelando Informação

Esta matéria foi publicada originalmente no site Rima Narrativa.

Esta semana pude assistir um filme que estava na minha lista de “mais aguardados”, Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018), dirigido por John Krasinski (mas se você continuar chamando ele de Jim por causa de The Office, a gente entende). Durante a sessão, fiquei surpreso não só com o que estava vendo na tela como com a educação das pessoas na mesma sala de cinema, então posso dizer que estive investido completamente no longa (“that´s what she said”), que exige silêncio do público.

A premissa é bem simples. A trama segue a jornada de uma família tentando viver em um mundo que passou por uma invasão de criaturas que conseguem destruir as pessoas em questão de segundos. Para evitar este destino, alguns conseguiram se esconder, mas com uma condição, a de que não podem fazer qualquer barulho, já que as criaturas não podem ver e dependem exclusivamente de sua audição apuradíssima. Tarefa difícil para Lee Abbott (Krasinski) e sua família, que não só lida com a perda de um membro, mas deve pensar em um plano para trazer um novo, agora que sua esposa está grávida.

Além de dirigir e roteirizar (com Scott Beck e Bryan Woods), Krasinski também estrela o suspense distópico, ao lado de Emily Blunt, sua esposa dentro e fora do filme, e ambos entregam uma atuação carregada de nuances e complexidade. Vale arranjar um espaço para mencionar o talento de Millicent Simmonds, que tem apenas dois projetos em seu currículo, mas já promete bastante. Ah, e sim, a atriz realmente é muda, o que não era necessário para o papel mas deixou as coisas um pouco mais realistas e é perceptível como a personagem se destaca.

Desde seu lançamento, Um Lugar Silencioso tem recebido críticas positivas e um retorno financeiro (público) considerável, tendo em mente que a maior parte do filme não tem diálogos, ou qualquer som quando necessário, e recorre a legendas e língua de sinais. E se tem uma coisa que muita gente — infelizmente — não suporta é ter que ler ou fazer um esforço para prestar atenção no que está acontecendo na tela quando não tem uma explosão de dois em dois minutos. Além disso, comparações são óbvias e sempre surgem. O Homem nas Trevas (Don´t Breathe, 2016) tem o mesmo nível de tensão envolvendo o silêncio que seus personagens tem que fazer para não serem atacados por um Stephen Land armado e veterano de guerra, por exemplo, e é outra obra que você deveria estar vendo, indico fortemente. Outra comparação, esta sendo uma das mais mencionadas, é com um filme do maior (não falei melhor) “girador de tramas” do cinema, M. Night Shyamalan:Sinais (Signs, 2002).

SINAIS (2002): Rory Culkin, Joaquin Phoenix (meu homem) e a Pequena Miss Sunshine, Abigail Breslin

Sinais retrata a vida da família Hess, que começa a lidar com estranhos acontecimentos depois de encontrar marcas (os sinais do título) no milharal que cultivam. Seria uma mensagem? É isso que o Reverendo Graham Hess, interpretado por Mel Gibson vem questionando, ainda mais agora que passa por uma crise de fé após a morte de sua esposa em um acidente de carro. Mas as marcas tornam-se algo maior e são encontradas em outras partes do mundo, o que pode indicar algo maior e bem diferente do que a família Hess imaginava, talvez até de origem alienígena.

Mas por que a comparação? Talvez pela sensação de paranoia que Shyamalan gosta de passar em seus filmes ou seja pelos elementos na apresentação e ambientação dos dois (plantações, família vivendo em silêncio, criaturas “alienígenas”, drama que desenvolve a parte psicológica de seus personagens, e por aí vai). São várias comparações, então eu comecei a pensar nos dois filmes e lembrei que não gosto nem um pouco de Sinais. Esse longa representa o começou da mudança na imagem de Shyamalan, de diretor prodígio saindo em capas de revista como o “Novo Spielberg” para o diretor que ninguém respeita a ponto de ter seu nome desvinculado de qualquer material promocional do filme Depois da Terra (After Earth, 2013). Tem tudo que eu odeio em um roteiro, coisas como conveniências narrativas sem qualquer senso de ironia, arcos incompreensíveis ou desnecessários e filosofia barata que traz incontáveis temas e conceitos aparentemente excitantes, mas executados da forma mais superficial e egocêntrica possível. É só assistir A Dama na Água (Lady in the Water, 2006), onde Shyamalan está praticamente se declarando um gênio capaz de salvar o mundo com seus filmes através de um personagem que o próprio interpreta, o “autor”, destinado a escrever uma obra tão inspiradora que “mudará a vida de todos”.

Mas eu saí do assunto por um momento.

Mesmo com algumas similaridades, os dois filmes possuem um aspecto que os distingue facilmente, e você já deve ter percebido onde eu quero chegar. Enquanto Shyamalan enche seu universo de metáforas no primeiro plano, Krasinski constrói uma sequencia inteligente de eventos e compõe seu cenário do jeito que melhor contribui para a narrativa, estabelecendo todas as peças de seu filme (personagens, lugares, regras…) e as aproveita para inserir debates sobre família, solidão, perda e perdão. E se acha que estou sendo duro ou exagerando ao desvalorizar alguns esforços de Shyamalan, isso é porque o próprio fez o mesmo — A protagonista de A Dama na Água se chama “história” (Story), então me perdoe se eu acho isso um pouco preguiçoso.

Bryce Dallas Howard e Paul Giamatti em A Dama na Água (2006)
Bryce Dallas Howard e Paul Giamatti em A Dama na Água (2006)

Já falei antes sobre o conceito da “Arma de Chekov, então vou só dar uma recapitulada rápida para seguirmos em frente.

A “Arma de Chekhov” (traduzindo de forma literal) é um termo elaborado pelo escritor Anton Chekhov estabelecendo que “se [algo] não for essencial para a trama, nem inclua na história”. Este é um mecanismo narrativo bastante utilizado por alguns roteiristas para manipular a atenção e a expectativa do público.

Ou seja, se você vai mostrar uma arma no primeiro ato, ela tem que disparar no segundo ou terceiro. Claro que não precisa ser necessariamente uma arma, isso foi só a melhor forma que o dramaturgo russo encontrou para ilustrar seu exemplo.

Esse artifício pode ser encontrado em diversas obras e muitas vezes se confunde com o foreshadowing (um tipo de premonição narrativa, por vezes de forma abstrata, como o urso queimado pela metade na piscina em Breaking Bad que espelha o destino de um personagem bem importante na quarta temporada), mas neste caso a Arma de Chekhov envolve uma atitude mais objetiva, aquele elemento tem que estar diretamente ligado ao que vem no futuro.

Em Sinais, temos várias “armas”, sendo as duas mais óbvias o taco de beisebol de Merrill (Joaquin Phoenix), que ele não para de mencionar o quão triste está em não poder mais utilizá-lo por motivos pessoais, e os copos de água espalhados pela casa por conta de Bo (Abigail Breslin). Além destes componentes, ainda temos o tema do filme e o foco em fé e redenção, que tenta mostrar como todas as coisas estão conectadas e tem um propósito, ou seja, qualquer coisa pode ser uma “arma”, o que tira um pouco o peso do que realmente deveríamos estar prestando atenção.

Em contrapartida, Um Lugar Silencioso introduz suas partes de forma orgânica, não apenas como um detalhe que vai voltar depois e está ali parado em algum canto, mas uma peça que já participou do quebra-cabeça e retorna para reforçar seu propósito. Em certa cena o personagem de Krasinski, Lee Abbott, leva seu filho para uma cachoeira distante de casa, e lá mostra como aquele som da natureza entra em conflito com outras ondas sonoras e domina o ambiente (vale destacar aqui o excelente trabalho da equipe de sonoplastia em saber quando e como usar a trilha, algo necessário para a proposta do filme). Neste momento de descontração, aproveitam para gritar o mais alto que podem, sabendo que as criaturas não podem ouvir. Esta informação fica com o público e nós ainda não sabemos o que fazer com ela, por enquanto é só uma cena que quebra a tensão e nos dá um tempo para conhecer melhor os personagens, mas quando avançamos o filme, chegamos em uma sequencia agora dominada pelo desespero de Evelyn Abbott (Emily Blunt) tentando esconder seu bebê de uma criatura que invadiu sua casa. Para abafar o choro do recém nascido que pode entregar a sua localização, Evelyn aproveita um vazamento no encanamento causado pela destruição que forma um véu de proteção entre ela e o monstro.

Um Lugar Silencioso

É coisa pequena, mas recompensa instantaneamente quem assiste e agora tem o que fazer com essa referência, sem contar que isso mostra como o roteiro foi bem construído (eu costumo dizer “redondo”, mas tem gente que não gosta quando uso essa palavra) e executa com êxito o que apresenta.

O filme traz vários momentos como este, com as lâmpadas de Natal, o isqueiro, o aparelho auditivo e a própria gravidez da mãe, todos retornando e servindo para avançar a trama. Mas eu não posso deixar de falar da angustiante “cena do prego”. Enquanto leva uma sacola de roupas limpas escada acima, Evelyn acidentalmente solta um prego da madeira, e a primeira preocupação de todos assistindo é quando e quem vai acabar pisando ali. Desta cena em diante, o objeto torna-se mais um perigo iminente para família.

Esta atenção aos detalhes é visível na criação de mundo do filme. Não é só uma premissa louca para render sustos baratos, você recebe respostas para como conseguiram sobreviver tanto tempo. Durante o jantar, a família também só conversa em linguagem de sinais e come sua comida utilizando folhas e materiais que não fazem barulho, jogam Banco Mobiliário trocando as peças de plástico por bolinhas feitas de lã, enchem a estrada de areia fofa e andam descalços para poder se locomover. Krasinski dedica tempo para explicar as mudanças que a família precisou fazer com o passar do tempo, o que pode ser considerado desnecessário por muitos diretores, mas é esse tipo de coisa que nos mantém investidos e acreditando na história.

E como Sinais lida com seus elementos? Simples: no fim o ponto fraco dos alienígenas é o contato direto com a boa e velha fórmula química que chamamos de H2O, ou água mesmo, tipo aquela que a Bo deixava espalhada pela casa por motivos completamente irrelevantes ao conflito principal do filme. E se esta “arma”, que constitui a maior porção do nosso planeta (os alienígenas não nos pesquisaram antes, erro de iniciante), não for o suficiente para espantá-los, lá vem Merrill com seu taco de beisebol, aparentemente superando todos os seus traumas através da união com sua família para um bem maior, o de matar extraterrestres. Sim, dá pra entender a clara alusão religiosa que o filme tenta com essa cena, mas não convence mesmo inserindo um flashback da mulher de Graham durante o acidente. E se parece que eu não gosto desse filme, é só porque é verdade. E eu nem entrei nos méritos de personagens mal desenvolvidos e a direção sem imaginação.

Claro que Shyamalan também acerta com Sexto Sentido (1999) e com o recente Fragmentado (Split, 2016), e Um Lugar Silencioso não é perfeito, ele tem seus deméritos. A primeira metade é uma construção paciente de tudo que mencionei antes, mas começa a se perder um pouco na parte que envolve “terror” depois da primeira hora, quando a criatura fica mais presente e alguns obstáculos são resolvidos de forma pouco convincente e conveniências surgem, como a descoberta do ponto fraco dos invasores. Mas ainda assim, os pontos positivos ultrapassam os negativos com facilidade, e não deixa de ser impressionante como um filme desses — pequeno, com poucos diálogos e original, sem fazer parte de franquias ou ser um remake— ainda consegue uma bilheteria tão bem como esta está arrecadando.

Esse é o diferencial de um autor que sabe onde quer chegar com a sua obra e espero que continue nesse caminho.

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