Scott McCloud dedicou grande parte de sua carreia ao estudo dos quadrinhos. Assim como Will Eisner fez para popularizar o formato como uma “arte sequencial”, McCloud é um grande professor e defensor do potencial desta arte com seus livros didáticos (mas nem um pouco enfadonhos), Desvendando os Quadrinhos, Desenhando os Quadrinhos e Reinventando os Quadrinhos. Se você tem o sonho de fazer algo nesta área, sinta-se obrigado a ler estes livros, que foram estruturados como uma HQ, por motivos óbvios. Neles, o autor define o formato, seu comportamento e todos os elementos envolvidos no processo.
Conhecido também por ter feito Zot!, uma HQ bem humorada e completamente diferente do que as grandes editoras estavam fazendo com seus heróis na época, McCloud se tornou um dos nomes mais respeitados da área. Não posso deixar de mencionar o movimento 24 Hour Comics, um desafio que envolvia a criação de uma HQ de 24 páginas por um único artista em apenas um dia. Neil Gaiman, Steve Bissette e Erik Larsen foram alguns dos que aceitaram o desafio.
Mais de uma década se passou desde que McCloud desenvolveu seu último trabalho, e agora, coloca tudo o que aprendeu com seus próprios livros teóricos em prática, com sua primeira Graphic Novel, O Escultor.
Agora vamos falar dela.
David Smith está triste, bebendo sozinho em um bar, pensando em sua carreira, que teve um ótimo começo, mas agora nem paga as contas e serve apenas como uma das frustrações na vida do protagonista. Depressivo e desesperado, faria de tudo para poder se sentir completo novamente, poder criar projetos que fariam as pessoas ficarem sem palavras e esculpir as mais belas figuras.
Faria de tudo, até mesmo um pacto com a morte, e não pensa duas vezes quando recebe a oferta da própria. ”Tudo que importa é a arte”. Assim David tem 200 dias de vida, mas em troca recebe a habilidade de esculpir o que quiser no material que quiser, até mesmo em granito, com as próprias mãos. Ele teria que se preocupar apenas com os dias, se não se apaixonasse por uma jovem que se apresentou como um anjo na sua frente, literalmente.
Não quero entregar mais da trama, já que foi uma das leituras mais interessantes e envolventes do ano, talvez a melhor. Ok, a melhor.
Em O Escultor, McCloud consegue se aprofundar nos temas mais comuns da humanidade, como vida, morte, amor, mentira, ego e solidão. É a forma como aborda estes temas que faz toda a diferença, quando fala das frustrações de seus personagens, do amor inconsequente e irracional que temos por algo que mal conhecemos, do apego, da nostalgia, tudo o que é e poderia ter sido. David é comprometido com seus princípios, assim muitos se identificam com seus esforços para manter tudo aquilo que prometeu, mesmo vivendo em mundo onde a as galerias de arte estão cada vez mais ocupadas pela indicação de um amigo do que a arte em si.
E por falar em arte, a de McCloud é um espetáculo. Simples, animadas e até um pouco cartunescas, em um mundo azul bastante moderado, que fica belíssimo em contraste com outros tons da mesma cor, além do branco e preto que ficam lindos nos painéis maiores e dão uma dimensão e perspectiva agradáveis, principalmente nos momentos mais surreais da história. A cidade tem um papel enorme na história e é desenhada com um detalhe e paciência que só uma pessoa muito talentosa teria. Se você chegar na página em que David caminha pela rua visualizando um calendário sob seus pés, com os dias ausentes representando uma queda para o esquecimento, e não parar por alguns minutos para refletir sobre o que acabou de ver, a única razão lógica para isso é… ok, não existe uma.
Eu diria que nada é perfeito e faria uma menção ao uso de um pequeno recurso narrativo que o autor usa logo no finalzinho da obra, mas que não afeta em nada a trama geral que é desenvolvida muito bem, flui perfeitamente e tem diálogos muito bem escritos. O tempo e espaço entre os painéis é outra coisa que te deixa de boca aberta, as composições e a contraluz fazem com que você se sinta assistindo um filme — por falar nisso, se prepare para procurar referências cinematográficas das mais óbvias, como “O Sétimo Selo”, até as mais escondidas, como de “Clube da Luta”. É tudo dinâmico e nunca cansativo, você pode ler as quase 500 páginas de uma só vez e ainda vai quer mais daquele mundo.
Eu disse que nada era perfeito, mas como prefiro ser esta metamorfose ambulante, retiro o que disse. Esta é a realização de tudo que McCloud tem construído ao longo de sua carreira, fazendo de O Escultor uma das melhores leituras da última década e de longe a minha favorita do ano.