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A Narrativa Gráfica em Watchmen

Spoilers de Watchmen

Watchmen é uma das maiores obras dos quadrinhos. Uma das mais aclamadas e estudadas da história. Todos sabem sobre sua fama, como esteve na lista de melhores leituras da Times, inspirou um longa dirigido por Zack Snyder (que não será o foco aqui) e mudou a percepção do público sobre quadrinhos e seu potencial.

Watchmen foi lançada entre 1986 e 1987 através de 12 edições pela DC Comics. Não demorou muito para a onda das graphic novels tomar conta do mercado com a chegada de outros grandes lançamentos como SandmanO Cavaleiro das Trevas ou A Queda de Murdock. Assim, a série logo foi encadernada em um único volume. Os roteiros são de Alan Moore e a arte é de Dave Gibbons, e o resultado é um comentário sociopolítico cheio de acidez e ironia, onde assistimos um bando de super heróis aposentados lidando com um possível assassino atrás dos encapuzados de outrora. É um grande mistério cheio de subtexto sobre a guerra do vietnã, a guerra fria, a paranóia e histeria coletiva, a contracultura norte-americana e muito mais.

Enquanto muitos mencionam a violência, sexo, ótimos personagens e maravilhosa arte de Dave Gibbons, há um elemento ignorado por alguns que sempre me impressionou: sua estrutura narrativa e gráfica. Vamos começar com calma.

A estrutura de 3 atos é a mais básica e pode ser encontrada nas pequenas tiras de jornal. Nós temos o primeiro ato, o “Começo”, onde a informação é estabelecida para prover contexto para a história. Nos perguntamos onde, quando, quem, qual, por quê… Com o contexto definido temos nosso segundo ato, o “Meio”, onde os personagens tentam alcançar algum objetivo e encontram um conflito. Geralmente é nessa parte onde começamos a entender a premissa, o que está sendo construído. O conflito traz a potencial “Morte da premissa”, onde ela chega no seu terceiro ato, ou o “Fim”, onde há uma resolução para o conflito.

Act Story Structure

Mas essa é apenas uma maneira de ver as coisas. Há muito mais em uma narrativa do que apenas três atos. Há muito mais do que início, meio e fim e nem sempre nessa ordem. Ao escrever um roteiro pensamos em como desenvolver os personagens e como isso fará parte do enredo. Se você é Alan Moore, seus roteiros são gigantescos e extremamente detalhados. Só para você ter uma ideia, ele fez quatro páginas descrevendo apenas a primeira página da HQ. Cada ângulo, balão de diálogo e até sensação de textura são minuciosamente apresentados no roteiro. Mesmo que o autor tenha declarado dar liberdade para os desenhistas, fica bem claro que o que ele quer, ele quer precisamente do jeito que está em sua mente. Essa é uma obra onde o diabo realmente está nos detalhes, ainda mais considerando como o clímax da HQ é previsto ao longo de toda a história através de diálogos inteligentes e a sutileza do autor em construir cada pedaço de seu universo.

Uma curiosidade que me faz respeitar Alan Moore ainda mais é sua decisão em usar as páginas finais dedicadas aos anúncios da editora para desenvolver ainda mais do universo de Watchmen, chegando até a um exercício de metalinguagem quando aproveita um desses espaços para fazer um anúncio de um produto da (fictícia) indústria Veidt, com relatórios sobre bonecos, perfumes e a equipe de marketing e desenvolvimento. Além desses, temos alguns capítulos de amostra para o livro de Hollis Mason, Sob o Capuz.

Voltando à estrutura, uma das mais comuns na literatura é a estrutura dramática apresentada por Gustav Freytag, que desenvolveu um esquema quinário para os atos, ou seja, de cinco atos. Como podemos ver na imagem, temos introduçãoação em ascensão, o clímax, a ação em declínio, chegando no desfecho, ou resolução. Podemos também esperar uma mudança neste esquema se considerarmos o modelo funcional de Propp, que usa as atitudes dos personagens como ações que definem a narrativa. Mas é um conceito mais longo e complexo que eu vou abordar no futuro e sobre uma outra obra. Voltando para Gustav, temos estes cinco níveis com nomes auto-explicativos.

Freytag Pyramid

Se formos colocar Watchmen nesta estrutura de forma bem crua, seria mais ou menos assim: Temos a introdução, onde descobrimos que o Comediante foi encontrado morto, o que causa uma comoção na comunidade de encapuzados e nos leva direto para a Ação em Ascensão, onde a trama se desenrola e o mistério começa a ser investigado para que no Clímax tenhamos uma grande reviravolta ou mudança capaz de afetar o futuro da história. Com a ação em declínio, vemos o desenrolar do clímax, o resultado das ações de Adrian. No fim, a Resolução, onde vemos como aquele mundo ficou depois de toda a jornada dos heróis e sua influência. O último painel mostra o diário de Rorscharch, e sabemos que ele andou escrevendo sobre tudo que aconteceu para que o mundo ficasse daquele jeito. O balanço das coisas pode mudar mais uma vez.

Podemos ver a maneira que Alan Moore se apropria deste modelo, até mesmo na primeira página da HQ, começando a história DEPOIS do assassinato do Comediante. O que chamamos de Inciting Incident, ou o “incidente que motivou a trama”, acontece logo de cara. Isso faz com que Watchmen deixe a introdução dos personagens principais para depois, durante o enterro do Comediante, e pule direto na ação em ascensão enquanto assistimos os legistas conversando sobre sua morte, o que também serve como a introdução para o mundo do quadrinho.

Mas deixando um pouco de lado esse debate sobre atos, devemos lembrar que estamos falando de um quadrinho, que é uma forma de arte com características únicas, então vamos entrar um pouco no debate sobre ritmo e como a estrutura narrativa funciona em uma HQ. Para isso, vou precisar da ajuda de Scott McCloud. Para quem não conhece, McCloud é um dos maiores nomes no debate teórico sobre quadrinhos, ele é basicamente o Robert McKee da nona arte, então ele sabe o que fala.

Actions

Em Desvendando os Quadrinhos, McCloud fala um pouco sobre as transições que podem ser feitas entre os painéis de uma HQ. Seja de momento para momentoação para açãosujeito para sujeitocena para cenaaspecto para aspecto e non sequitur (imagem ao lado), que é uma expressão para falácia lógica, mais comum em quadrinhos com uma abordagem abstrata — mão confundir com as viagens alucinógenas de Grant Morrison — ou pode confundir, dependendo de qual HQ estiver lendo. Piada à parte, é muito mais fácil encontrar quadrinhos onde o foco está na ação para ação, sujeito para sujeito ou cena para cena, indo de alguém bloqueando um soco para devolver com outro na sequência, por exemplo.

Em Watchmen, temos um grande foco nas transições de momento para momento e sujeito para sujeito, com longos diálogos e a reação dos personagens a situação, desenvolvendo múltiplas tramas paralelamente. Para construir a ambientação do universo de Watchmen Moore também usa aspecto para aspecto, mais comum em mangás, geralmente servindo para estabelecer espaço ou a natureza do ambiente. É uma técnica que dá a impressão de ritmo mais lento e contemplativo, mas também traz um pouco de tensão, o que podemos ver muito bem feito nos painéis repetidos em páginas diferentes no quinto volume, intitulado apropriadamente como Terrivel Simetria.

Watchmen tem na sua maior parte uma distribuição de 9 painéis por página. Algumas vezes em uma narrativa linear, outras alternando entre tempo e espaço. O que alguns podem considerar uma decisão básica, eu considero brilhante, principalmente na forma como ele executa sua narrativa através desses nove painéis.

Quadrinho Watchmen

Uma das coisas mais curiosas no formato de 9 painéis é como ele estabelece um ritmo e depois causa um impacto maior destruindo o próprio modelo. Quando chegamos nas cenas mais impactantes da HQ, principalmente no clímax, vemos o uso de uma página completa para mostrar a importância daquele momento. É como diz Michael Brown em seu artigo sobre o quadrinho:

“As cenas de Dr. Manhattan divagando sobre seu passado revelam um desvio da forma de maneira única. Nos quadrinhos, nós esperamos que o tempo flua linearmente de painel para painel. Pulando para trás e para frente através do tempo entre os painéis, o leitor é inserido no conceito de tempo de Manhattan de uma maneira que poucos conseguem”

Quadrinho Watchmen

Há muito que pode ser estudado em Watchmen, mas eu adoro ver como Alan Moore e Dave Gibbons estruturaram sua HQ para diferenciá-la de tudo que era famoso na época, como sacrificar os anúncios por mais história, desenvolver as capas com imagens sem ação ou que apelem para o grande público. Eles aproveitaram tudo que podiam fazer e fizeram, até mesmo criar um tipo de história onde a capa da edição já fazia parte da narrativa (o primeiro painel de todas as edições é uma perspectiva ou ângulo diferente da arte da capa).

Esse foi um grande risco tomado pela dupla, mas como podemos ver é um que mexeu com o que conhecemos sobre quadrinhos até hoje. Watchmen não só trouxe novos leitores para a nona arte, essa é uma HQ que explorou o que pode ser feito com uma indústria que já é conhecida por imaginação ilimitada.

Quadrinho Watchmen

Essa foi uma rápida introdução para a narrativa gráfica de Watchmen. Se tiver interesse por mais matérias como essa, posso trazer mais nesse modelo. É só deixar nos comentários aqui ou nas redes sociais. Até a próxima!

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Literatura

O Mundo Resplandecente | O poder do conhecimento

Estudar os primórdios da ficção científica é uma das tarefas mais árduas de qualquer pesquisador. Muitas coisas acabaram se perdendo no caminho, enquanto outras são simplesmente negligenciadas pela história, e esse é o caso de O Mundo Resplandecente (originalmente intitulado The New World, Called The Blazing World), escrito por Margaret Cavendish originalmente em 1666, que ficou por séculos na escuridão e voltou a causar interesse apenas em 1925 por conta de uma menção no livro Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf.

Amante da filosofia e duquesa de Newcastle-upon-Tyne, a autora explora temas pertinentes ao seu tempo nesta obra, dando atenção maior ao debate filosófico através de sua protagonista, uma mulher que desvenda um novo mundo acessado pelo Polo Norte. Ela tenta se adaptar ao novo ambiente e compreender seus habitantes, o que consegue e logo torna-se imperatriz daquele povo. É neste lugar que adquire conhecimento inestimável sobre natureza e ciência.

Uma figura interessante do século XVII, Margaret Cavendish é uma das escritoras mais prolíficas de seu tempo, principalmente quando consideramos os obstáculos de outras escritoras femininas, tendo seus textos desprezados no círculo literário. Muitas passaram a vida assinando suas obras com pseudônimos masculinos para conseguir ter suas páginas lidas, mas Cavendish fazia questão de assinar suas publicações com o próprio nome.

Enquanto o fim último da racionalidade é a verdade, o da imaginação é a fantasia.

Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle - PETER LELY, 1665
Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle – PETER LELY, 1665

Mundo Resplandecente tornou-se objeto de estudo também por conta de sua característica utópica, o que faz com que o livro possa ser considerado a primeira ficção científica escrita por uma mulher, antes mesmo de Frankenstein, de Mary Shelley em 1818, mesmo que a segunda carregue mais elementos referenciais para o gênero — ainda que tenhamos estas informações, é impossível saber exatamente onde ele começou de verdade, mas são bons indicativos do que pode ter contribuído para a FC que temos hoje.

Felizmente, a editora Plutão (voltada para lançamentos virtuais de clássicos da FC) pôde apresentar para o público o trabalho de Cavendish, traduzido pela doutoranda em teoria e crítica literária, Milene Cristina da Silva Baldo, em sua dissertação de mestrado para a Unicamp em 2014. Essa versão vem com três prefácios, um de Milene e os seguintes da própria duquesa para edições diferentes, cada um essencial para contextualizar melhor o leitor que está prestes a encarar conceitos e pensamentos pelos quais Cavendish tem fortes opiniões.

“Em O Mundo Resplandecente, conhecimento é poder” (Milene Baldo)

Pela época em que foi publicada originalmente, é previsto que a escrita seja um pouco mais arcaica do que o público atual esteja acostumado, mas uma das particulares desta utopia é a facilidade de imersão na experiência da protagonista, constantemente fazendo perguntas sobre filosofia, religião e até matemática — assuntos de alto interesse da autora — em diálogos que tomam uma grande parte do texto e revelam a paixão de Cavendish pelo debate e a descoberta.

Mundo Resplandecente é um importantíssimo documento para qualquer estudioso ou apenas leitor de ficção científica interessado em conhecer mais sobre os primórdios de um gênero onde tudo é possível. Margaret Cavendish traz uma abordagem audaciosa, confirmando a importância da mulher na sociedade em uma época em que outras escritoras não tiveram a oportunidade de se entregar para a literatura por completo.

Capa O Mundo Resplandecente

A Descrição de um novo mundo chamado Mundo Resplandecente, 1666;
Editora Plutão, 2019;
Tradução de Milene Cristina da Silva Baldo;
Arte de Paula Cruz;
180 Páginas.

Compre o livro.

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Literatura

Duna | Um épico poderoso

Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E quando estiver passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei. (p. 14)

Falar sobre Duna não é uma tarefa fácil. O universo criado por Frank Herbert é um dos mais ricos que qualquer fã de ficção científica pode encontrar, isso porque o autor não se limita aos elementos do gênero e acrescenta características que fazem desta obra um épico essencial para qualquer leitor.

Lançado originalmente em partes na revista Analog, Duna foi publicado como romance em 1965 pela Chilton Books, uma editora conhecida por seus manuais de reparo de peças. Ainda que tenha um começo peculiar, um ano depois o livro saiu vencedor na principal categoria da premiação Nebula, quando ainda era um evento estreante.

Utilizando muito do conteúdo que reuniu durante as pesquisas para um artigo sobre as dunas de areia no estado de Oregon, Herbert trouxe uma perspectiva conveniente para seu texto quando decidiu introduzir elementos de uma vertente mais ambientalista. Com uma abordagem diferente de outras space opera, personagens complexos e um mundo provocativo, o livro de Herbert é uma experiência única. É impossível sintetizar todas as suas páginas de maneira absoluta para uma simples resenha, mas tentarei ao máximo.

Em um futuro distante, a humanidade abandonou seu planeta natal e está no caminho de conquistar novos territórios. Cada novo planeta é comandado por uma “Casa”, todas supervisionadas pelo imperador padixá Shaddan IV. Por conta da ascensão da Casa Atreides, um decreto faz com que ela seja responsável pelo planeta Arrakis, também chamado de Duna, um lugar onde se encontra apenas areia e perigosos vermes gigantes, mas também a substância mais significativa e cobiçada do universo, a especiaria chamada mélange. Mas o que parecia uma grande honra, revela-se um golpe político orquestrado pelo próprio imperador ao lado da Casa Harkonnen, uma rival dos Atreides.

Mas há muito mais engrenagens nos bastidores de Duna, como os Fremen, habitantes dos terrenos áridos de Arrakis e únicos capazes de viver entre os vermes gigantes. Eles têm seus próprios segredos e aguardam pela chegada de Lisan al Gaib, um profeta que trará o paraíso para seu planeta. Mas mais misteriosas são as Bene Gesserit, uma irmandade ancestral que também tem planos para uma figura que nos guiará para o futuro da raça humana. Entre estes dois lados está o jovem Paul Atreides, filho do duque Leto e uma Bene Gesserit, Jessica. Paul ainda não sabe, mas será protagonista da maior lenda da história de Arrakis.

Fã Arte de Duna

“O poder de destruir algo representa o controle absoluto sobre aquela coisa”.

Duna toca em diversos temas, nenhum deles de maneira superficial. Religião, política e sociedade são abordados com um olhar bastante crítico do autor, que faz questão de não mostrar ambiguidade em seu texto. A narrativa de Herbert é minuciosa, ela descreve sensações e atmosfera como se estivesse estudando cada pedaço do planeta. As comparações com a escrita de Tolkien são compreensíveis, tanto que uma citação de Arthur C. Clarke comparando Duna com O Senhor dos Anéis acabou parando na contra capa de várias edições do livro. A leitura pode ser um pouco arrastada no começo e você deve se esforçar um pouco para manter todos os nomes e conceitos em mente, mas assim que nos familiarizamos com a estrutura básica da obra, o livro fica mais palatável para o leitor médio.

Ao aprender sobre as relações entre os personagens e as descrições da atmosfera e a superfície de Arrakis, vislumbramos uma construção de mundo exemplar, atenta em detalhes que vão desde o comportamento dos vermes até o pequeno rato que inspira um dos títulos de Paul: Muad´Dib. É uma trama onde a tecnologia é caracterizada por um aspecto mais analógico, sem androides, computadores ou coisas do tipo, ainda que hajam armas como escudos de força pessoais para proteção contra armas laser.

Também entendemos porque este livro é considerado uma referência no debate sobre ecologia na ficção científica e como a humanidade pode mudar um planeta e ser mudado por ele. A água é tão importante que os habitantes do planeta precisam aproveitar cada gota — não há desperdício, literalmente. Mas mesmo com a preocupação em nos posicionar no cenário de Arrakis, as intrigas políticas e os embates entre os personagens são o maior diferencial da obra.

Ainda que Paul “Muad´Dib” Atreides seja interpretado muitas vezes como um personagem frio e distante, principalmente por conta de suas ações, ele é um protagonista frágil e trágico com uma jornada infeliz. Ele pode parecer impassível por fora, mas lamenta a mudança na maneira que as pessoas o tratam, vendo todos os seus amigos assumindo a posição de seguidores. Antes de ler a obra ouvi bastante sobre os poderes “ilimitados” de Paul, mas sua percepção de passado, presente e futuro não é recebida como uma dádiva: “É preciso entender os limites desse poder. Pense na visão. Temos olhos, mas não enxergamos sem luz. Se estamos no leito de um vale, não enxergamos além de nosso vale. Da mesma maneira, Muad´Dib nem sempre tinha a opção de ver o outro lado do terreno misterioso”.

Embora tenhamos outros personagens interessantes como o leal Duncan Idaho, o antagonista Vladimir Harkonnen e o próprio duque Leto, são as mulheres de Duna que causam uma forte impressão. Não vou debater aqui sobre a representação dos personagens femininos no livro e a distribuição hierárquica de Herbert (o que seria ótimo para um texto próprio), mas observar seu impacto na narrativa. Chani, a companheira de Paul, é uma oportunidade desperdiçada, o que acabou sendo o meu único ponto negativo para a obra, que apresenta personagens como ela e as incube de grandes responsabilidades, mas as deixa como coadjuvantes, apenas testemunhas dos incríveis feitos das figuras masculinas da obra. Alia, a filha do duque Leto, é outra com um potencial tremendo, e até tem seus momentos (seus diálogos e a interação com Harkonnen são uma das melhores partes do livro), mas não recebe espaço o suficiente para desenvolvimento.

Felizmente, temos Jessica, que considero a melhor personagem. Ela é o elemento mais humano da obra, e é quem carrega o peso de manter sua autoridade em uma sociedade onde “nasceu para servir”, sem contar que basicamente constrói o caminho de Paul, seja para o bem ou para o mal. Ela, ao lado das Bene Gesserit, é um dos componentes mais intrigantes daquele universo.

Frank Herbert

“Duna aponta para a ideia do líder infalível porque minha visão da história diz que os erros feitos por um líder (ou em seu nome) são alastrados pelo números de seguidores cegos” (Herbert, 1985).

Arrakis é o cenário para uma lenda em andamento e Duna serve como uma grande coleção dos feitos de Muad´Dib, uma das razões para a linguagem de Herbert ser por vezes parecida com escritos antigos retirados de pergaminhos, inserindo excertos no começo da cada capítulo, escritos pela princesa Irulan. Mas isso não nega os aspectos subjetivos da narrativa, uma que o autor usa para comentar sobre nosso papel no mundo e, através de figuras messiânicas e o poder da crença, nosso próprio papel ao esculpir a história. Não precisamos de Paul, “apenas a lenda que ele já se tornou”.

Como eu disse, falar sobre Duna não é uma tarefa fácil.

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Cinema

I Am Mother (2019) | Protegendo o Futuro

Distribuído pela Netflix, I Am Mother é mais uma adição para o seu catálogo de ficção científica. Depois de produções decepcionantes como ExtinçãoThe Titan ou Onde Está Segunda?, ficou difícil confiar nos lançamentos FC jogados no site (e uso “jogados” porque muitas vezes um estúdio simplesmente não confia no filme o suficiente para um lançamento em salas de cinema, então joga direto para o streaming), mas felizmente I Am Mother não cai nesta armadilha e acaba sendo um filme mais do que competente.

Uma jovem é criada por um droide chamado Mother (“Mãe”), que tem a missão de repopular o planeta depois da humanidade ter sido extinta. A robô e sua “filha” vivem bem em uma instalação do governo criada para proteger as futuras gerações, mas a relação delas pode mudar com a chegada de uma mulher misteriosa.

O primeiro aspecto notável da produção é o elenco principal que conta com apenas duas protagonistas sem nome, interpretadas por Hilary Swank e Clara Ruggard (a mulher e a filha, respectivamente), e a droide com a voz de Rose Byrne. Depender de poucos atores é arriscado, mas o filme apenas ganha por conta da direção focada de Grant Sputore e o talento das atrizes.

Swank pode não ser uma das minhas atrizes favoritas, mesmo sendo premiada pela Academia, mas sua personagem tem um comportamento exasperado que precisa de uma boa atriz para evitar exageros. Rose Byrne empresta sua voz para Mother (Luke Hawker é o ator dentro da máquina) e também fez um bom trabalho expressando atitudes “bondosas” de maneira ameaçadora. A última, mas não menos importante, é Clara Ruggard, que mesmo com um currículo menor consegue se destacar servindo como a protagonista. É dela o arco principal do filme e o interpreta muito bem.

I Am mother

Por ser um filme de menor escala e orçamento relativamente modesto, considerando o que costumam valer outros filmes de estúdios e diretores mais conhecidos, I Am Mother tem a vantagem de poder criar cada um dos seus elementos com mais cautela e sem muita intromissão. Esse é o primeiro longa de Grant Sputore, mas ele não se desespera e traz uma direção mais interessada em construir ambientes sem pressa. Há espaço para algumas reviravoltas, o que muitos diretores parecem criar primeiro e montar o filme inteiro em cima delas, mas essa é uma obra onde o enredo e os personagens vem em primeiro, e mesmo que traga algumas características “batidas” de narrativas sci-fi, uma execução limpa e objetiva sempre funciona. Ao lado da direção, a equipe de design merece elogios pela forma como apresentou o mundo do filme e montou o visual dos droides.

I Am Mother explora a natureza humana através de um mundo que a protagonista não consegue ver. Assistimos a jovem em uma instalação grande o suficiente para abrigar várias crianças no futuro, mas a sensação de claustrofobia e o desespero em saber como as pessoas foram eliminadas por sua própria ignorância faz com que um debate seja levantado sobre todos os embriões mantidos em segurança no laboratório. Nosso desenvolvimento deve ser manipulado para que o caminho da humanidade não termine como antes ou podemos confiar em nossos instintos?

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Séries

Black Mirror (S05E03) | Rachel, Jack and Ashley Too

Leia sobre os episódios anteriores.

Para sua quinta temporada, Black Mirror finalmente retorna ao formato original de três episódios, o que indica roteiros escritos com mais calma e atenção aos detalhes, principalmente porque todos são responsabilidade de Charlie Brooker, o criador da série. Em Rachel, Jack and Ashley Too temos uma abordagem um pouco diferente do que a série está acostumada.

Ashley O (Miley Cyrus) é uma das maiores estrelas da música pop, influenciando várias jovens no mundo inteiro. Ela acaba de lançar uma linha de bonecas chamada Ashley Too, que são basicamente pequenos robôs com um tipo de inteligência artificial capaz de se comunicar com seu dono. Rachel (Angourie Rice) é uma grande fã de Ashley O, então precisa da boneca para se conectar com o ídolo.

A trama alterna entre dois núcleos, o primeiro envolvendo os bastidores da vida de Ashley O, uma jovem com um sorriso e atitude positiva no palco, mas depressiva e desiludida com o rumo de sua carreira. Assistimos sua relação com os produtores e sua agente — e tia -, Catherine (Susan Pourfar), que não é das melhores. Ashley tem escondido os medicamentos que Catherine usa para controlar o seu temperamento, o que resulta em uma ação inesperada dos produtores, que colocam a cantora em um coma induzido e copiam sua imagem para manter a agenda da artista em ordem através de apresentações virtuais.

Do outro lado, seguimos Rachel e sua irmã, Jack (Madison Davenport), tentando se comunicar depois da perda de sua mãe. Rachel tem apenas Ashley Too como companhia, enquanto Jack tenta ao máximo se isolar de todos. Os dois núcleos convergem quando a consciência de Ashley O vai parar na boneca de Rachel e agora as duas irmãs precisam ajudar a cantora a retornar ao seu corpo.

Ashley Too

O roteiro de Brooker é bem mais leve neste episódio, com uma jornada divertida envolvendo duas adolescentes arranjando maneiras absurdas de ajudar uma boneca senciente. E quando eu digo “leve” é porque mesmo que haja uma corrida contra o tempo para salvar a estrela da música em coma, fica difícil sentir qualquer peso na maneira como a história foi executada, tendo uma mistura de comédia e drama que nunca chegou a combinar organicamente.

A direção ficou nas mãos de Anne Sewitsly, que carrega uma filmografia pequena mas quase sempre carregando um elenco predominantemente feminino, então faz sentido ela estar responsável pelo episódio. Sua habilidade guiando as atrizes é o ponto alto aqui, com algumas sequências engraçadas com as personagens, bem interpretadas por Rice e Davenport.

Quando se fala de Miley Cyrus alguns torcem o nariz, o que considero um exagero porque ela se esforça para trazer uma personagem atraente, seja nos palcos ou fora dele. É claro que não é nada impressionante, mas é o suficiente para que sua imagem fora da série não influencie o espectador — se bem que ela interpreta uma cantora pop, então não há muito problema nisso. O que realmente me impressionou foi ver Cyrus cantando versões mais chiclete das músicas Head Like a Hole e Right Where It Belongs, da banda Nine Inch Nails, que tem um som que vai na direção oposta a tudo que a cantora já fez na carreira (terminar o episódio com Ashley e Jack no palco foi um pouco cafona, mas o episódio já tinha descambado para uma comédia adolescente mesmo, então é melhor abraçar logo o ridículo).

Miley Cirrus

Rachel, Jack and Ashley Too tem uma abordagem bem diferente em tom do que a série está acostumada — até mesmo o humor foi sempre utilizado de maneira ácida e trágica em outras temporadas — e isso acaba afetando negativamente o formato da série. Não é um episódio que deve ser descartado, é claro, mas ainda assim perde seu sentido no meio dos outros.

Ficha Técnica:
Black Mirror, S05E03
Criada por Charlie Brooker
Direção de Anne Sewitsly
Roteiro de Charlie Brooker

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Séries

Black Mirror (S05E02) | Smithereens

Leia mais sobre a quinta temporada de Black Mirror.

Para seu quinto ano, Black Mirror finalmente retorna ao formato original de três episódios, o que indica roteiros escritos com mais calma e atenção aos detalhes, principalmente porque todos são responsabilidade de Charlie Brooker, o criador da série. Smithereens é o segundo episódio desta nova temporada, um que se passa em grande parte no interior de um carro mas ao mesmo tempo atravessa o mundo para revelar uma narrativa sobre grandes corporações e a manipulação através das redes sociais.

Todos os dias Chris (Andrew Scott) para seu carro na frente de uma grande empresa de comunicação, a Smithereens. Usando um aplicativo de transporte, finalmente consegue ter alguém da empresa em seu carro, mas descobre que é apenas um estagiário. Ainda assim, Chris o amarra no banco de trás e aponta uma arma para sua cabeça. Enquanto a polícia tenta resolver o problema, o motorista tem apenas uma demanda: conseguir entrar em contato com Billy Bauer (Topher Grace), o grande visionário responsável por uma das maiores redes sociais do mundo.

O episódio é dirigido por James Hawes, o mesmo de Hated in The Nation, outro onde a rede social é essencial para a trama. O que ele tenta aqui é construir uma atmosfera de tensão do início ao fim, o que ele consegue através de um bom ritmo, alternando entre as sequências no interior do carro com todo o alvoroço causado pelo protagonista. E se não fosse por conta de Andrew Scott, esse episódio poderia ser um desastre. Scott tem a responsabilidade de carregar a trama e tentar entregar cada linha de diálogo com convicção, o que foi uma tarefa árdua por conta de algumas partes do roteiro onde fica visível a necessidade de confrontar as questões morais do episódio.

Scott

Scott usa tudo que aprendeu em Sherlock, interpretando o excelente Moriarty, para apresentar um personagem que pode explodir a qualquer momento. Seu comportamento beira o exagero, mas o ator é bom o suficiente para evitar que o episódio caia em um território mais cômico. Isso também acontece com Topher Grace, que experimenta uma versão mais caricata de um presidente de alguma grande companhia de tecnologia, lembrando um pouco um dos criadores do Twitter, Jack Dorsey, com seu discurso calmo e comportamento descontraído. Todo o desenrolar da trama que resulta na revelação do retiro de silêncio é uma grande piada com Dorsey.

Além de Scott e Grace, temos Damson Idris como Jaden, o pobre estagiário refém. Idris também esteve este ano no episódio Replay, do revival de Além da Imaginação. Aos poucos ele constrói um currículo com atuações sólidas e estou interessado no que ele pode fazer no futuro.

O terceiro ato caminha para o clássico “não use o celular no volante”, o que acabou sendo uma revelação menos impactante do que o esperado, considerando a habilidade da série em entregar reviravoltas que fazem o público debater até hoje, e como a presença de Billy Bauer parecia tremendamente importante para a confissão catártica de Chris. Por conta de uma execução afetada por um roteiro mais contido, Smithereens pode perder um pouco do seu charme ao ser assistido uma segunda vez, mas você acaba ficando mesmo por conta das performances e toda a construção da tensão até aquele ponto.

Smithereens

Não sei quanto às intenções do episódio em referenciar os trabalhos de David Fincher, mas ficou difícil não imaginar todo o clímax do filme Seven quando a câmera escolhe um plano aberto e revela o local onde o carro de Chris foi parar, no meio do mato perto de vários postes de energia e a polícia cercando o incidente. Também há uma estrutura narrativa que lembra Zodíaco, mas isso está ligado exclusivamente ao jeito que o roteiro mostra os vários obstáculos para fazer com que uma simples mensagem seja recebida. Aqui temos uma trama envolvendo o criador de uma rede social que conecta milhões, mas é uma das pessoas mais difíceis de se encontrar no mundo.

Smithereens pode não se aproveitar muito bem do formato da série, deixando de lado toda a premissa que envolve a ameaça da tecnologia, mas ainda assim tem seus méritos, como as ótimas atuações e a experiência de angústia durante todo o processo.

Ficha Técnica:
Black Mirror, S05E02
Criada por Charlie Brooker
Direção de James Hawes
Roteiro de Charlie Brooker

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Séries

Black Mirror (S05E01)| Striking Vipers

Para sua quinta temporada, Black Mirror finalmente retorna ao formato original de três episódios, o que indica roteiros escritos com mais calma e atenção aos detalhes, principalmente considerando que todos são responsabilidade de Charlie Brooker, o criador da série.

Danny e Karl não se vêem há anos, mas isso muda depois de um reencontro no aniversário de Danny, que não parece completamente satisfeito com sua vida, já casado e entediado com as pessoas em volta. Karl tem o presente perfeito, uma nova edição de Striking Vipers, o jogo favorito deles na juventude, agora com uma tecnologia inovadora de realidade virtual. O que começa como uma forma de diversão logo se transforma em um drama sobre descobertas e a complexidade de nossas relações, seja com os outros ou nós mesmos.

Anthony Mackie e Yahya Abdul-Mateen II interpretam Danny e Karl, respectivamente. Foi bom termos dois atores competentes como eles para o episódio, que se dedicou em desenvolver o drama de cada personagem com cautela por conta dos temas que aborda. É um pouco difícil falar sobre essa temporada sem revelar informações importantes da trama, então indico que assista os episódios antes de ler.

Striking Vipers é dirigido por Owen Harris, o mesmo responsável por San Junipero, da terceira temporada, que também contava com um debate parecido e foi executado muito bem. Harris repete um pouco da sua estrutura narrativa (o que deve ser considerado mais um aspecto do roteiro de Brooker, mas ainda assim funciona), o que felizmente foi uma decisão inteligente. O episódio passa seu primeiro ato desenvolvendo os laços entre os personagens, explorando e construindo as dinâmicas antes da parte “tecnológica” fazer parte da história. Isso é necessário, estamos falando de uma narrativa onde um olhar cínico poderia estragar completamente a experiência.

Nicole Beharie é Theo, a esposa de Danny

Além da dupla principal, Nicole Beharie é Theo, a esposa de Danny. Mesmo sendo coadjuvante, tem sua própria relevância narrativa, lidando com as mudanças que podem afetar seu casamento. E como passamos algumas sequências dentro do mundo virtual do jogo, temos Pom Klementieff (Mantis, de Guardiões da Galáxia) como o avatar de Karl, Roxette; Ludi Lin faz Lance, o avatar de Danny. O jogo parece uma mistura de Street Fighters com Tekken, e os dois lutadores virtuais tem várias semelhanças com alguns personagens famosos como Chun Li ou Ken e Ryu, até mesmo em alguns golpes característicos, como os chutes consecutivos de um ou o “gancho voador” de outro.

Ainda que seja um episódio com ótimas referências visuais (placas neon com Game Over ou as composições que lembram os lugares remotos onde os lutadores se encontram nestes jogos), Striking Vipers se destaca pelos personagens e um ângulo pouco explorado em narrativas envolvendo relacionamentos como o de Danny, Karl e Theo.

Filmes como Moonlight ou Carol carregam uma identidade própria, uma direção mais delicada, onde a conversa sobre a descoberta sexual dos personagens revela muito sobre quem são. Black Mirror tem feito isso com cuidado, San Junipero foi uma das adições mais envolventes do catálogo da série, e agora Striking Vipers chega com sua abordagem mais parecida com o que foi feito em Moonlight, envolvendo homens negros e a representatividade da comunidade LGBTQ+. Pode não ser tão sutil na forma como a trama se desenrola, mas ainda assim abre uma conversa sobre um tema cada vez mais relevante.

Ficha Técnica:
Black Mirror, S05
Criada por Charlie Brooker
Direção de Owen Harris
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Literatura

Páginas do Futuro | Uma máquina do Tempo da FC brasileira

A relação do leitor brasileiro com a sua própria literatura não é das mais expressivas, ainda mais quando consideramos a ficção científica. Qual o caminho percorrido pelo gênero por aqui e como ele conversa com as influências anglo-saxônicas tão presentes em outras mídias?

Sem demora, Páginas do Futuro aceita a tarefa de apresentar, de maneira bem didática e em poucas páginas, a linha de eventos que pode ter provocado nosso cenário atual. Braulio Tavares ilustra em sua apresentação o que ele considera as três principais tradições literárias que contribuíram para o que conhecemos hoje como ficção científica. Começamos com grandes narrativas épicas e fantásticas, onde criaturas e jornadas inimagináveis (até então) são alguns dos elementos recorrentes. Em seguida, é através do casamento do fantástico com a “ascensão da literatura realista no velho continente” que nos deparamos com o chamado Scientific Romance, onde o extraordinário é tratado com um olhar mais pragmático. Para terminar, não é deixada de lado a importância de publicações pulp, principalmente a revista Amazing Stories, criada por Hugh Gernsback, que abrigou alguns nomes que logo seriam grandes autores do gênero.

Se a apresentação de Tavares já é o suficiente para instigar o leitor a conhecer mais sobre a ficção científica e sua posição no mercado editorial brasileiro, o mais impressionante ainda está por vir. Ele reúne aqui doze contos desenvolvidos em períodos diferentes, trazendo temas diversos, explorando subgêneros e compartilhando sua própria voz. É curioso ver como alguns autores desta coletânea tiveram contato com a ficção científica e escreveram usando alguns de seus componentes anos antes dela receber esse nome.

Reunindo autores como Raquel de Queiroz, Rubem Fonseca e Luiz Bras, Páginas do Futuro é em si uma máquina do tempo, nos fazendo viajar entre 1957 e 2010. Ainda que seja visível o impacto da literatura internacional em alguns dos contos, não há perda de identidade, como acontece em O Quarto Selo, de Rubem Fonseca, que carrega os traços de uma narrativa policial comum no que depois seria chamado de cyberpunk, mas também está acostumado com as ruas do Rio de Janeiro.

Páginas do Futuro | Uma máquina do Tempo da FC brasileira

Há exemplos de contos que correm fora do Brasil, como Uma Breve História da Maquinidade, de Fábio Fernandes, onde se encontram vários elementos das ficções de vapor em uma Europa pós-Revolução Industrial — em outras palavras, o Steampunk.

“A FC brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da FC internacional sob o risco de deixar de ser FC, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira”

Cada conto traz um comentário crítico, em algum nível, sobre o papel do homem e a maneira que lida com suas criações ou criaturas. Podemos ver em Veja seu Futuro, de Ataíde Tartari, ou Do Outro Lado da Janela, de André Carneiro, uma narrativa mais simples que depende do fascínio do protagonista com o objeto que carrega a trama. Estes contos poderiam facilmente figurar em alguma temporada de Além da Imaginação, como o próprio Braulio Tavares menciona em sua apresentação.

O livro tem a predominância de uma voz masculina, o que é esperado considerando o período dissertado pela obra. Não obstante, Raquel de Queiroz e Finisia Fideli marcam presença com suas histórias, que acabaram sendo algumas das melhores da antologia. Ainda que a ficção científica não seja o primeira coisa que vem em nossas cabeças quando pensamos em Raquel de Queiroz, o que a autora faz em Ma-Hôre é uma descrição intrigante com uma boa dose de ação, mas o que realmente se destaca é a proposta de nos colocar na pele do alienígena em contato com os humanos — essa é uma lógica narrativa atraente até hoje, então imagine a reação em 1961, quando o conto foi publicado originalmente.

Quanto a Finisia Fideli, seu Exercícios de Silêncio (provavelmente o meu favorito dos doze) conversa com o leitor de forma mais lenta, com atenção aos detalhes e a descrição sensorial dos personagens, com um enredo que lembra um pouco o estilo de Ursula K Le Guin, principalmente no excelente A Mão Esquerda da Escuridão. São histórias de introspecção e conexão com uma forma de coletivo, com protagonistas muitas vezes lidando com costumes do planeta no qual se encontra.

Páginas do Futuro é uma leitura rápida e bastante informativa sobre a história da ficção científica no Brasil. São doze contos que passam voando e você ainda tem as ilustrações de Romero Cavalcanti cobrindo algumas páginas com ótimas interpretações visuais do universo apresentado pelo livro.

Capa do Livro Páginas do Futuro


Páginas do Futuro, de Braulio Tavares

Editora Casa da Palavra, 2011

160 Páginas

Ilustrações de Romero Cavalcanti

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