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Duna | Um épico poderoso

Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E quando estiver passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei. (p. 14)

Falar sobre Duna não é uma tarefa fácil. O universo criado por Frank Herbert é um dos mais ricos que qualquer fã de ficção científica pode encontrar, isso porque o autor não se limita aos elementos do gênero e acrescenta características que fazem desta obra um épico essencial para qualquer leitor.

Lançado originalmente em partes na revista Analog, Duna foi publicado como romance em 1965 pela Chilton Books, uma editora conhecida por seus manuais de reparo de peças. Ainda que tenha um começo peculiar, um ano depois o livro saiu vencedor na principal categoria da premiação Nebula, quando ainda era um evento estreante.

Utilizando muito do conteúdo que reuniu durante as pesquisas para um artigo sobre as dunas de areia no estado de Oregon, Herbert trouxe uma perspectiva conveniente para seu texto quando decidiu introduzir elementos de uma vertente mais ambientalista. Com uma abordagem diferente de outras space opera, personagens complexos e um mundo provocativo, o livro de Herbert é uma experiência única. É impossível sintetizar todas as suas páginas de maneira absoluta para uma simples resenha, mas tentarei ao máximo.

Em um futuro distante, a humanidade abandonou seu planeta natal e está no caminho de conquistar novos territórios. Cada novo planeta é comandado por uma “Casa”, todas supervisionadas pelo imperador padixá Shaddan IV. Por conta da ascensão da Casa Atreides, um decreto faz com que ela seja responsável pelo planeta Arrakis, também chamado de Duna, um lugar onde se encontra apenas areia e perigosos vermes gigantes, mas também a substância mais significativa e cobiçada do universo, a especiaria chamada mélange. Mas o que parecia uma grande honra, revela-se um golpe político orquestrado pelo próprio imperador ao lado da Casa Harkonnen, uma rival dos Atreides.

Mas há muito mais engrenagens nos bastidores de Duna, como os Fremen, habitantes dos terrenos áridos de Arrakis e únicos capazes de viver entre os vermes gigantes. Eles têm seus próprios segredos e aguardam pela chegada de Lisan al Gaib, um profeta que trará o paraíso para seu planeta. Mas mais misteriosas são as Bene Gesserit, uma irmandade ancestral que também tem planos para uma figura que nos guiará para o futuro da raça humana. Entre estes dois lados está o jovem Paul Atreides, filho do duque Leto e uma Bene Gesserit, Jessica. Paul ainda não sabe, mas será protagonista da maior lenda da história de Arrakis.

Fã Arte de Duna

“O poder de destruir algo representa o controle absoluto sobre aquela coisa”.

Duna toca em diversos temas, nenhum deles de maneira superficial. Religião, política e sociedade são abordados com um olhar bastante crítico do autor, que faz questão de não mostrar ambiguidade em seu texto. A narrativa de Herbert é minuciosa, ela descreve sensações e atmosfera como se estivesse estudando cada pedaço do planeta. As comparações com a escrita de Tolkien são compreensíveis, tanto que uma citação de Arthur C. Clarke comparando Duna com O Senhor dos Anéis acabou parando na contra capa de várias edições do livro. A leitura pode ser um pouco arrastada no começo e você deve se esforçar um pouco para manter todos os nomes e conceitos em mente, mas assim que nos familiarizamos com a estrutura básica da obra, o livro fica mais palatável para o leitor médio.

Ao aprender sobre as relações entre os personagens e as descrições da atmosfera e a superfície de Arrakis, vislumbramos uma construção de mundo exemplar, atenta em detalhes que vão desde o comportamento dos vermes até o pequeno rato que inspira um dos títulos de Paul: Muad´Dib. É uma trama onde a tecnologia é caracterizada por um aspecto mais analógico, sem androides, computadores ou coisas do tipo, ainda que hajam armas como escudos de força pessoais para proteção contra armas laser.

Também entendemos porque este livro é considerado uma referência no debate sobre ecologia na ficção científica e como a humanidade pode mudar um planeta e ser mudado por ele. A água é tão importante que os habitantes do planeta precisam aproveitar cada gota — não há desperdício, literalmente. Mas mesmo com a preocupação em nos posicionar no cenário de Arrakis, as intrigas políticas e os embates entre os personagens são o maior diferencial da obra.

Ainda que Paul “Muad´Dib” Atreides seja interpretado muitas vezes como um personagem frio e distante, principalmente por conta de suas ações, ele é um protagonista frágil e trágico com uma jornada infeliz. Ele pode parecer impassível por fora, mas lamenta a mudança na maneira que as pessoas o tratam, vendo todos os seus amigos assumindo a posição de seguidores. Antes de ler a obra ouvi bastante sobre os poderes “ilimitados” de Paul, mas sua percepção de passado, presente e futuro não é recebida como uma dádiva: “É preciso entender os limites desse poder. Pense na visão. Temos olhos, mas não enxergamos sem luz. Se estamos no leito de um vale, não enxergamos além de nosso vale. Da mesma maneira, Muad´Dib nem sempre tinha a opção de ver o outro lado do terreno misterioso”.

Embora tenhamos outros personagens interessantes como o leal Duncan Idaho, o antagonista Vladimir Harkonnen e o próprio duque Leto, são as mulheres de Duna que causam uma forte impressão. Não vou debater aqui sobre a representação dos personagens femininos no livro e a distribuição hierárquica de Herbert (o que seria ótimo para um texto próprio), mas observar seu impacto na narrativa. Chani, a companheira de Paul, é uma oportunidade desperdiçada, o que acabou sendo o meu único ponto negativo para a obra, que apresenta personagens como ela e as incube de grandes responsabilidades, mas as deixa como coadjuvantes, apenas testemunhas dos incríveis feitos das figuras masculinas da obra. Alia, a filha do duque Leto, é outra com um potencial tremendo, e até tem seus momentos (seus diálogos e a interação com Harkonnen são uma das melhores partes do livro), mas não recebe espaço o suficiente para desenvolvimento.

Felizmente, temos Jessica, que considero a melhor personagem. Ela é o elemento mais humano da obra, e é quem carrega o peso de manter sua autoridade em uma sociedade onde “nasceu para servir”, sem contar que basicamente constrói o caminho de Paul, seja para o bem ou para o mal. Ela, ao lado das Bene Gesserit, é um dos componentes mais intrigantes daquele universo.

Frank Herbert

“Duna aponta para a ideia do líder infalível porque minha visão da história diz que os erros feitos por um líder (ou em seu nome) são alastrados pelo números de seguidores cegos” (Herbert, 1985).

Arrakis é o cenário para uma lenda em andamento e Duna serve como uma grande coleção dos feitos de Muad´Dib, uma das razões para a linguagem de Herbert ser por vezes parecida com escritos antigos retirados de pergaminhos, inserindo excertos no começo da cada capítulo, escritos pela princesa Irulan. Mas isso não nega os aspectos subjetivos da narrativa, uma que o autor usa para comentar sobre nosso papel no mundo e, através de figuras messiânicas e o poder da crença, nosso próprio papel ao esculpir a história. Não precisamos de Paul, “apenas a lenda que ele já se tornou”.

Como eu disse, falar sobre Duna não é uma tarefa fácil.

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