Traçar a origem da ficção científica é uma tarefa complexa em vários meios, mas quando falamos sobre cinema, é comum considerar Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, no original), de 1902, dirigido por Georges Méliès, o precursor do gênero na sétima arte. Ainda que tenhamos alguns filmes (na época apenas curta metragens) onde elementos fantasiosos sejam encontrados da narrativa, nenhum foi tão dedicado a uma jornada épica assumindo tantos princípios da ficção científica como a obra de Méliès.
O que pode parecer apenas um filme de treze minutos com uma premissa simples envolvendo um grupo de exploradores em missão à lua que se depara com os habitantes de nosso satélite natural, é na verdade um dos maiores feitos da história do cinema. Para entender melhor o filme e sua importância, devemos abordar Georges Méliès, a figura responsável por transformar imagens em movimento em uma expressão artística única.
Considerado por muitos (inclua cineastas do calibre de Martin Scorsese nesta afirmação) como um mágico do cinema, Méliès foi essencial para o avanço do cinema como arte, contribuindo com soluções inteligentes para realizar efeitos visuais em uma época onde a edição de películas era um conceito inovador. O uso de sobreposição e a experimentação com técnicas de stop-motion também tornaram-se populares por sua conta, além de ser creditado como um dos primeiros, se não o primeiro, a utilizar storyboards em suas produções. Vale mencionar que o diretor chegou a se dedicar ao árduo trabalho de colorir cada fotograma à mão para que o público pudesse ter uma experiência de como o filme seria com um visual mais vibrante.
Francês, nascido em 1961, Méliès sempre mostrou interesse pelo teatro e trabalhou por um tempo desenvolvendo espetáculos ilusionistas, mas foi apenas quando atendeu uma das apresentações cinematográficas dos Irmãos Lumière que ficou fascinado, se deparando com a invenção do cinematógrafo. Os Lumière recusaram vender o aparelho para Méliès, que via o potencial da descoberta para entreter o público, mas os irmãos consideravam sua novidade uma contribuição puramente científica, não artística.
É curioso como a dupla é geralmente creditada como a responsável por inventar o cinema, mas nem sempre o ilusionista francês recebe a atenção merecida. Felizmente, Méliès comprou um dos dispositivos do eletricista Robert William Paul (outra figura pertinente para a história do cinema) e começou a exibir seus filmes no teatro Robert Houdin, mas não demorou para arriscar e utilizar a tecnologia de maneira revolucionária, tirando a câmera do lugar e escolhendo ângulos que favoreciam a narrativa. A criação dos Lumière evoluiu graças aos filmes de Méliès, e nenhum foi tão impressionante até o momento como Viagem à Lua.
Como mencionada anteriormente, a trama do filme é bem simples, mas o impressionante aqui não é o enredo em si, mas a narrativa visual do diretor. Se em 1968 o público ficou admirado com 2001 — Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, e a maneira como tivemos uma elipse de milênios que serve como transição para a sequência inicial dos nossos ancestrais em contato com o monolito, imagine como foi a reação das pessoas ao ver um enorme projétil sendo lançado de um canhão e atingindo o olho da lua logo em seguida. Essa imagem não é icônica apenas por seu apelo visual, mas pelo magnífico esforço de Méliès em executar sua obra usando técnicas completamente inovadoras para a época.
Não há registros da recepção exata do público na época, mas o filme foi tão bem aceito que logo foi encomendado por vários lugares interessados em exibir a obra. Vários negativos da película foram roubados e copiados, e até Thomas Edison se envolveu nisso, removendo o nome do diretor nos créditos.
Ao longo dos anos, várias imitações de Viagem à Lua foram surgindo, como o caso mais gritante de todos, Excursion dans la Lune(1908), de Segundo de Chomón, um plágio descarado da obra de Méliès, carregando tomadas idênticas e recriando a sequência do projétil sendo lançado ao espaço, desta vez sendo engolido pela lua. Chomón não foi o único, mas dedicou parte da sua carreira tentando fazer filmes envolvendo viagens fantásticas, e mesmo com essa “mancha no currículo” teve suas próprias contribuições para a sétima arte, como o excelente Le voyage sur Jupiter (1909)e o processo de colorização desenvolvido em conjunto com a Pathé, uma das maiores companhias de produção cinematográfica do mundo.
Com dificuldade para se manter relevante em uma indústria em crescimento, Méliès abandonou o cinema. Muitos de seus filmes foram perdidos, alguns queimados e o que restou foi restaurado por estudiosos alguns anos depois, surpreendendo o diretor, que pensava ter sido esquecido. Você pode saber mais sobre isso assistindo o filme A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese, uma grande carta de amor para Méliès e os primórdios do cinema.
Viagem à Lua é uma obra que resistiu ao tempo e fascinou as pessoas, uma adaptação dos textos de Júlio Verne interpretada por um visionário essencial para a história do cinema e da ficção científica.
Assista o filme:
Assista também os filmes de Segundo de Chomón!
– Excursion to the Moon (1908): https://bit.ly/2GqkvSq
– A Trip to Jupiter (1909): https://bit.ly/2Y9ocC3