MINHA PAIXÃO HÁ DE BRILHAR NA NOITE
NO CÉU DE UMA CIDADE DO INTERIOR
COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO
NÃO IDENTIFICADO (CAETANO VELOSO)
Considerando o cenário no qual o cinema brasileiro se encontra, desvalorizado por uma boa parcela do público e sendo atacado constantemente por forças políticas utilizando motivos talvez mais arbitrários do que se possa admitir, é admirável como a sétima arte resiste entregando filmes marcantes como Bacurau.
Co-escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau é o sucessor de Aquarius, outra obra de Mendonça envolta em debates políticos por conta de um protesto contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, realizado pela equipe criativa durante o Festival de Cannes em 2016. Ainda que a obra tivesse alguma ligação com a “memória seletiva” do nosso país, ela não era tão evidentemente ferrenha em sua crítica ao atual momento político como é Bacurau.
“Daqui alguns anos” a pequena cidade de Bacurau sofre com a perda de Carmelita, uma das figuras mais importantes do lugar. Tentando seguir em frente, os habitantes continuam enfrentando a falta de recursos básicos, como água. Mas as coisas começam a realmente ficar estranhas quando percebem que aquela comunidade desapareceu do mapa e algo perigoso pode estar se aproximando do lugar.
Esse é o tipo de filme que não é estragado de forma alguma se pontos específicos da trama são revelados, mas vale a pena tentar assistir a obra sem repertório algum por conta da maneira como os diretores brincam com o cinema de gênero, inserindo elementos de western, fantasia e até um pouco de ficção científica. Os trailers tentaram entregar menos informação possível, então quem assiste o filme sem saber do que se trata pode acabar achando mais divertido se surpreender com os rumos tomados por ele. Eu não costumo ter problemas com coisas como spoilers, mas minha confusão inicial na primeira meia hora de sessão foi recompensada da melhor maneira possível, então acho justo indicar que assista sem saber do que realmente se trata. Por isso, tento deixar essa crítica voltada na maior parte aos temas e a condução geral de Mendonça e Dornelles.
Não é difícil encontrar paralelos entre a situação dos cidadãos de Bacurau e o que o nordeste vem passando nas mãos do atual governo, mas o filme não foca apenas na negligência e a ignorância evidente de pessoas que procuram diminuir uma classe já afetada, ele vai além. Nos últimos anos, temos visto um aumento assustador de pessoas procurando legitimar um passado lastimável para justificar um comportamento agressivo e arrogante, sem contar aquelas que acreditam estar inseridas em um grupo privilegiado da sociedade, mas no fim estão sendo usadas como todos os outros.
Os personagens interpretados por Karine Teles e Antonio Saboia são apresentados como dois forasteiros de propósito duvidoso, mas algumas características envolvendo sua naturalidade e o desejo de fazer parte do núcleo antagônico do filme deixam clara a intenção dos diretores em exibir um país onde alguns de seus habitantes não hesitam em entregá-lo de bandeja para o exterior (no caso, a América do Norte e a Europa) pela chance de serem vistos como “iguais”. É uma lástima reconhecer que sequências como esta são as menos fantasiosas do longa.
Em contraste ao comportamento “insatisfeito” dos brasileiros inseridos no grupo dos forasteiros, podemos ver como a pequena comunidade exibe com orgulho seu modesto museu e mantém suas tradições, praticando capoeira e tomando suas substâncias psicotrópicas sem problema.
“Ele só sai de noite. Ele é bravo!”
Ainda sobre o elenco, Udo Kier é a grande surpresa. O veterano alemão assume o papel de liderar o núcleo antagonista, e o pouco que posso dizer é que ele opera em um nível mais sério que seus companheiros, por vezes caracterizados de maneira um pouco caricata, como no caso dos personagens de Brian Townes ou Julia Marie Peterson; mas por estarmos diante de um exercício do diretor em explorar o cinema de gênero, com ecos que vão de John Carpenter a Paul Verhoeven, essa abordagem é mais que bem-vinda.
Na comunidade de Bacurau encontra-se todo tipo de habitante, e nós conhecemos personagens cativantes, como Pacote, interpretado por Thomas Aquino; ou Lunga, de Silvero Pereira. Os dois são homens fortes do cotidiano violento, fazendo o que for necessário pelo seu povo. É pertinente que Mendonça também traga de volta alguns atores com quem já colaborou, como Bárbara Colen e Sônia Braga. Colen pode ser vista como a protagonista do longa, mas é toda a população de Bacurau que forma o coração da obra. A atriz tem a tarefa de carregar uma interpretação mais contida e calma, o que funciona bem em contraste com a personagem de Braga, a enfermeira Domingas, outro desempenho excelente da atriz, que vai na contramão do que realizou em Aquarius, apresentando aqui uma mulher mais arisca e frágil.
A direção de Mendonça e Dornelles respeita todos os gêneros que pretendem experimentar, com um pouco da atmosfera voltada para o suspense e o terror e a montagem de ação faroeste, com transições e fusões simples, mas eficazes. O filme também é bastante sensorial, como na tomada aérea inicial ao som de “Não Identificado”, na voz de Gal Costa, onde esbarramos em um satélite e encaramos a geografia do estado. Outro tópico que vale menção é o uso da violência, que pode criar um debate arriscado sobre o que os diretores querem passar de verdade, mas essa é uma obra de reação bastante simbólica, não há arma mais poderosa que conhecer a própria história, o que faz de escolas e museus abrigos impenetráveis. Podemos ver como Bacurau protesta e faz questão de manter viva a nossa identidade, sem esquecer daqueles que morreram para protegê-la.
“E quem nasce em Bacurau é o quê?”
“É gente”