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Ad Astra: Rumo às Estrelas | Humanidade no espaço

A ficção científica tem a vantagem de utilizar sua ambientação, aproveitando o vazio do espaço, para executar sequências de introspecção e/ou catarse emocional dos seus personagens. Em Ad Astra, seguimos o astronauta Roy McBride (Brad Pitt) em uma missão secreta envolvendo o desaparecimento de seu pai, H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), considerado um herói por seus projetos em busca de novas formas de vida em outros planetas. 

Pouco pode ser dito sobre a proposta da obra sem entregar detalhes relevantes da trama, que apresenta sequências de ação impressionantes ao lado de um ritmo mais vagaroso. Isso pode soar como um contraste capaz de colocar a experiência do filme em risco, mas por conta da tensão e os obstáculos envolvendo as leis da física fora de nosso planeta, algo como um carro saindo do curso em uma atmosfera diferente ou um capacete quebrado podem ser o seu fim. É claro que há circunstâncias onde o diretor precisa brincar um pouco com as regras para que a trama siga um caminho mais envolvente, mas isso pode ser perdoado, já que esse é um filme sobre a procura de nossa própria humanidade, e James Gray, diretor do longa, também responsável por obras como Z: A Cidade Perdida, acerta em cheio na execução. 

Seguindo uma trajetória diferente do que se espera de um filme grande como esse no atual contexto das salas de cinema, Ad Astra se distancia completamente de sucessos como Interestelar, de Christopher Nolan, e tem mais interesse em uma condução que ecoa melhor os longa-metragens de ficção científica do diretor russo Andrei Tarkovski, como Solaris ou Stalker, mas não nas tomadas que destacam a beleza da natureza (ainda que a fotografia mais transparente de Ad Astra seja belíssima, feita por Hoyte Van Hoytema – talvez a maior semelhança de Gray com Nolan, já que ambos trabalharam com Hoyte para capturar o visual de seus filmes), e sim em sua composição e temas, abordando a solidão e o vazio existencial do protagonista.

Esse debate existencial talvez seja a maior força do filme, onde até o que parece mais absurdo, como piratas espaciais ou uma sequência envolvendo primatas raivosos, funciona perfeitamente para contribuir com o desenvolvimento do protagonista, que começa a obra agindo de maneira fria e pouco expressiva (resultado de um rigoroso treinamento e avaliações psicológicas), mas aos poucos revela suas verdadeiras intenções, medos e arrependimentos. 

Ad Astra: Rumo às Estrelas

O comportamento de Roy McBride, papel muito bem desempenhado por Pitt, um ator ótimo para personagens mais contidos, é um estudo sobre a nossa tendência em manter a distância dos outros. Em certo ponto do filme, assistimos um flashback do astronauta sendo deixado por sua esposa, interpretada por Liv Tyler, o que pode ser lido como uma simples entrega de informação desnecessária, mas aqui se transforma em uma das peças que contribui para um complexo quebra-cabeça sobre as nossas emoções, mais uma vez servindo mais a favor dos temas da obra do que apenas da trama. 

Além de Tyler, o elenco conta com Donald Sutherland e Ruth Negga, dois atores de peso, infelizmente com pouco tempo em tela e papéis que, nesse caso, acabam tendo a responsabilidade de avançar a trama, que em momento algum promete focar em alguém além de Roy. Tommy Lee Jones retorna, depois de ter atuado em 2017 na péssima comédia Apenas o Começo; e mesmo que por vezes esteja presente em forma de gravações deixadas para trás pelo personagem, sua imagem é essencial para o crescimento do protagonista e o grande comentário final da obra. 

Ainda que o roteiro possua alguns diálogos pouco impressionantes, considerando a importância da narração de Pitt ao longo do filme, a obra se destaca por seus temas, boas atuações, excelente direção e impecável música de Max Richter (compositor da magestral On The Nature Of Daylight). James Gray se arrisca questionando nossa história e introduzindo alguns elementos bastante pontuais sobre religião que representam um pouco do possível futuro no qual nos encontraremos e na relação do ser humano com seus ídolos, seja ele a imagem de Deus ou um pai ausente, aproximando o divino e o paterno.  

Ad Astra é uma experiência diferente, a jornada solitária de um homem com um dilema universal. Aqui podemos ver como a humanidade conquistou a lua e até Marte, mas continua olhando para o céu na esperança de nova vida, esquecendo a que já possui.

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Séries

Undone | Experimentando com a realidade

Após terem escrito o sucesso Bojack Horseman, da Netflix, os roteiristas Kate Purdy e Raphael Bob-Waksberg (também showrunner da série), decidiram desenvolver uma nova produção, com um formato diferente e para outro serviço de streaming, dessa vez a Amazon Prime Video. A minissérie Undone é um drama peculiar em sua apresentação, envolvido em elementos de ficção científica.

Alma Winograd-Diaz (Rosa Salazar, de Alita: Anjo de Combate) está insatisfeita com a sua vida e não aguenta mais a rotina, até que um dia sofre um acidente de carro, causado por uma visão de seu falecido pai, Jacob (Bob Odenkirk), que descobriu uma maneira de manipular o tempo e mudar os eventos do dia de sua morte, mas vai precisar da ajuda de sua filha para que o plano dê certo.

Em oposição à Bojack HorsemanUndone utiliza um método de animação chamado rotoscopia, onde as filmagens com atores são aproveitadas para que novos quadros sejam desenhados “por cima delas”, criando um visual distinto que, de acordo com Kate Purdy, pode “brincar com a flexibilidade da realidade”.

Essa não é uma técnica nova, na verdade é bastante conhecida, presente no cinema e na TV há décadas, mas tem sido abordada de uma maneira ainda mais direta, onde há uma unidade maior entre as filmagens e a animação, o que pôde ser visto em filmes como O Homem Duplo ou Acordar Para a Vida (aquele com o “monólogo” sobre as formigas), ambos de Richard Linklater. Ainda assim, foi por conta do filme Cobain: A Montage of Heck, que Undone encontrou seu animador e diretor, Hisko Hulsing.

Undone

Com algumas sequências impressionantes, principalmente quando a série nos leva ao subconsciente dos personagens, onde carros congelam no tempo durante um diálogo ou a realidade é moldada num estalar de dedos, a narrativa se beneficia do formato e alterna entre diferentes linhas temporais, o que faz a alegria de qualquer fã de Philip K Dick (autor da obra que deu origem ao filme O Homem Duplo) e ficção científica em geral. Mas a série não se apoia apenas em apelo visual, tendo um roteiro inteligente, onde debates sobre identidade e o próprio conceito de realidade ficam em primeiro plano.

Por conta da ascendência mexicana de Alma, a série aborda também temas sobre preconceito racial, como a dificuldade da protagonista em se conectar com o noivo de sua irmã ou os comentários sarcásticos que ela faz sobre o passado que os EUA tenta apagar. A representatividade em Undone é bastante orgânica, como a figura de Sam (Siddharth Dhananjay), o namorado indiano de Alma, que chega a fazer uma piada sobre isso. Os diálogos também soam naturais, mesmo quando tentam brincar um pouco com as palavras, fazendo um trocadilho ou outro.

Essa é uma série curta, tendo apenas oito episódio, mas de ritmo lento, passando a maior parte do tempo desenvolvendo os laços familiares e explicando as regras da “viagem para o passado”. A ficção científica fica no banco de trás na maior parte do tempo, servindo mais para justificar a premissa, deixando o drama no volante, felizmente bem interpretado por um ótimo elenco.

O que Undone faz é entregar uma experiência arriscada, capaz de distrair e distanciar alguns não acostumados ou satisfeitos com a técnica (o que não é o meu caso), mas que ainda funciona muito bem como a jornada de uma jovem descobrindo sua própria identidade enquanto encara o desafio da aceitação.

Agora imagine uma adaptação da HQ Promethea nessa estilo!
Agora imagine uma adaptação da HQ Promethea nessa estilo!
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O Planeta dos Macacos | O que é uma civilização?

“O que caracteriza uma civilização?

Será o gênio excepcional?

Não; é a vida rotineira”

O francês Pierre Boulle pode não ser um dos escritores mais conhecidos pelos leitores de ficção científica, principalmente por não se considerar um autor do gênero, mas seu trabalho merece reconhecimento, não só em âmbito literário, mas cinematográfico. Ele é responsável pelo roteiro do aclamado filme A Ponte do Rio Kwai, baseada em seu próprio romance de mesmo nome, mas é claro que nada chamou tanto a atenção quando seu trabalho em O Planeta dos Macacos. Com propostas e desenvolvimento de trama similares, não há grandes diferenças entre as versões das páginas e a das telas, com exceção, claro, da grande reviravolta final.

Talvez a maior diferença na abordagem narrativa entre os dois seja a sua estrutura. Enquanto o filme parte direto para a jornada do protagonista, o livro primeiro nos introduz a dois viajantes espaciais, um casal em lua de mel, que encontra uma garrafa à deriva na escuridão do espaço, mas dentro dela há uma mensagem, um diário escrito pelo jornalista Ulysse Mérou. Assim, nos situamos na narrativa principal, lendo os relatórios de Ulysse sobre uma aventura a trezentos anos-luz da Terra, a caminho da estrela Betelgeuse, em um planeta bastante similar ao nosso, com exceção de seus habitantes, uma sociedade constituída de macacos que podem falar como nós. O curioso é que neste planeta, também encontramos humanos, mas que regrediram de alguma forma e assumem o papel de animais daquele planeta.

O texto de Boulle é dinâmico e constrói os personagens, assim como suas intrigas políticas, eximiamente. A sagacidade dos diálogos e o desenvolvimento orgânico da trama faz a leitura da obra uma experiência agradável. Quando Ulysse Mérou e seus companheiros de viagem, o cientista Antelle e o jovem físico Arthur Levain, descem para a superfície de Soror, como decidiram chamar o planeta por conta de uma semelhança geográfica com a Terra, Boulle narra o primeiro contato com paciência, revelando aos poucos as informações que logo chocariam os personagens. Antelle e Arthur logo deixariam a história, o que nos deixa com os símios, principalmente o casal de cientistas Zira e Cornelius, e o respeitado ministro da ciência, Dr. Zaius. Logo, também acompanhamos de maneira pontual a humana Nova, incapaz de comunicação verbal, mas interesse romântico de Ulysse.

O Planeta dos macacos

Na contramão de sua primeira adaptação cinematográfica, em 1968, na qual Zaius torna-se o antagonista principal e os comentários sobre armamento nuclear são o tópico mais relevante para a conjuntura da época, a obra literária tem mais interesse em evidenciar nossa arrogância, com a proposta de refletir sobre o ciclo da humanidade, principalmente na forma como as sociedades acabam obsoletas.

Os símios do livro são o reflexo mais cristalino de nossa própria realidade, não importa em qual planeta ou ano, o que alguns podem ler como uma interpretação mais pessimista do autor. Ulysse encontra-se constantemente espantado ao confrontar as coincidências daquele mundo com o seu, observando a hierarquia entre os primatas e como eles se separam em gêneros, com os gorilas, orangotangos e chimpanzé tendo diferentes funções e responsabilidades na comunidade.

“O planeta inteiro é governado por um conselho de ministros, à frente do qual está um triunvirato, compreendendo um gorila, um orangotango e um chimpanzé […] Não se misturam à massa; não são vistos nas manifestações populares, mas são eles que dirigem a maioria das grandes empresas.”

Lançado originalmente em 1963, a obra de Boulle continua atual, isso se pudermos relevar a representação feminina quase previsível pela mídia da década, onde as mulheres por vezes serviam mais como um prêmio pelos feitos heróicos do protagonista ou apenas um interesse amoroso sem personalidade. No livro temos Nova, a “parceira” de Ulysse, incumbida da exclusiva tarefa de reagir aos estímulos do protagonista. É intrigante como, em contraste, a cientista símia Zira, tenha um papel bem mais ativo e chegue a ser talvez minha personagem favorita da versão literária.

É óbvio que eu não deixaria de falar das reviravoltas encontradas no livro e no filme, completamente diferentes. Se no filme temos Charlton Heston (George Taylor, protagonista com um nome norte-americano, ao contrário do francês Ulysse) na praia, berrando e amaldiçoando a humanidade depois do que acabou de presenciar, o livro não fica atrás e entrega duas incríveis revelações que transformam a leitura de quem já assistiu o filme em uma nova experiência. Por mais que Rod Serling, um dos roteiristas da versão cinematográfica, tenha feito um trabalho impecável de adaptação, fica fácil entender quem prefira a saída mais irônica de Boulle.

“Estou cansado de viver preso, mesmo na mais confortável das jaulas, mesmo aos seus cuidados.”

O Planeta dos macacos

Como mencionei a distinção entre o nome dos protagonistas, também vale mencionar como os dois possuem personalidades nem um pouco parecidas. De um lado, Ulysse é um jornalista arrogante e ocasionalmente hipócrita, enxergando o pedantismo de Zeius, mas não o seu, à medida que George Taylor configura a imagem do homem musculoso e carismático com um charuto sempre acesso, isso até o momento em que os perde, junto de suas roupas.

O Planeta dos Macacos é uma das leituras mais envolventes para qualquer um interessado em ficção científica ou apenas uma boa aventura, com personagens marcantes e um enredo excepcional. Entra para a lista de clássicos indispensáveis do gênero.

Capa O Planeta dos Macacos

Ficha Técnica:
Título Original: La planète des singes
Editora Aleph, 2015
Tradução de André Telles
Arte de Pedro Inoue
216 Páginas, Posfácio de Bráulio Tavares e entrevista com o autor.

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Séries

O Problema de The I-Land e os originais Netflix

The I-Land é uma das piores séries que eu já assisti.
Essa afirmação pode parecer hiperbólica, mas em apenas alguns episódios podemos ver como a nova série da Netflix não apenas possui uma total falta de noção na execução da narrativa, como sequer se deu ao trabalho de procurar por uma premissa original. Neste texto pretendo falar um pouco sobre essa série desastrosa e alguns outros lançamentos “originais” do serviço de streaming para o público amante de ficção científica. A maioria desses, no mínimo, decepcionante.

Em The I-Land (o título desnecessariamente estilizado já é um indício do que podemos esperar), um grupo se encontra perdido e sem memória em uma ilha misteriosa, eles não lembram seus próprios nomes mas precisam se unir para descobrir uma maneira de voltar para casa. Se você já ouviu essa premissa antes é porque provavelmente assistiu Lost, mas não se engane, ao contrário da aclamada série produzida por J.J. Abrams, Jeffrey Lieber e Damon Lindelof, The I-Land tem um enorme diferencial: pouquíssimos dos elementos apresentado funcionam de verdade.

Não faltam produções com propostas similares, e ter um conceito batido não seria ruim se a série ao mesmos soubesse executá-lo. Nos primeiros minutos há uma clara falta de organização, talvez culpa de um roteiro mal elaborado, o que poderia ser salvo pela direção, mas tirando as tomadas competentes que estabelecem o ambiente, e o CGI bem feito, o que The I-Land tenta fazer na maior parte do tempo é fornecer cenários cada vez mais forçados para tentar instalar tensão e desenvolver o drama entre os personagens.

The I-Land
The I-Land

Em vários momentos eles se deparam com alguma pista claramente colocada em seu campo de visão propositalmente, mas o grupo ignora cada uma delas e se prontifica a retornar para suas intrigas mal elaboradas. Isso, somado ao péssimo desempenho dos atores, travados e sem dimensão alguma (por vezes caracterizados por apenas um traço de personalidade, já que tudo o que precisam ser é apenas uma máquina de informação conveniente), deixa a experiência de assistir essa série uma das mais desconfortáveis desse ano.

Voltando ao roteiro e as formas óbvias na qual se manifesta, preciso falar da estrutura narrativa, o que realmente me deixou incomodado (até o momento, achava essa série apenas uma piada). O uso de números espalhado pela ilha para criar paranoia, a corporação misteriosa e os flashbacks que revelam, aos poucos, o passado dos personagens, são traços da história claramente influenciados por Lost. A falta de interesse da série em ao menos se distanciar disso revela como The I-Land é preguiçosa.

Além disso, os esforços para se apoiar no núcleo dramático dos personagens é uma aula de como não escrever um roteiro. Se há uma placa no meio da ilha que claramente os alerta de que algo maior está acontecendo, o que eles fazem é começar um debate sem sentido, o que na cabeça do roteirista talvez seja considerado “desenvolvimento de personagem”, mas o resultado é vergonhoso. Não há uma cena onde um diálogo acontece sem que algum tipo de intriga ou desentendimento aconteça, tirando da série qualquer respiro do enredo, isso faz com que o fascínio pelo lugar e o envolvimento do público com a história seja comprometido.

Infelizmente, esses problemas são só alguns dos que vem me incomodado bastante em algumas produções “originais” da Netflix — para deixar claro, eu sempre coloco assim porque a maior parte do conteúdo que o streaming considera original, ele apenas distribui. Se focarmos apenas nas produções de ficção científica, temos esses mesmos pontos negativos em séries como Outra Vida (estrelada por uma Katee Sackhoff em modo de piloto automático), onde temos igualmente um grupo que vive se desentendendo, sem mencionar algumas reviravoltas similares como a morte de um membro que causa comoção e animosidade entre a protagonista e o resto dos personagens.

Agora, se formos para o lado dos filmes, a realidade é ainda mais triste, com várias produções superficiais e estereotipadas, como IOExtinçãoPróxima Parada: ApocalipseO SilêncioTauSpectral ou ARQ, para mencionar alguns, que utilizam elementos batidos de subgêneros FC mas não sabem o que fazer com eles, vide The I-Land. É claro que há exceções, por exemplo, o filme I am Mother ou a excelente série The OA, sem contar os não-originais da Netflix, tais como Riqueza Tóxica ou Terra à Deriva.

Terra à Deriva
Terra à Deriva

Com a ascensão de serviços de streaming como Prime VideoHBO GO e Hulu (esse último apenas nos EUA), sem contar a poderosa Disney+, cada vez mais próxima, a Netflix produz e compra paulatinamente mais conteúdo para manter uma programação própria, mas ela tem um sério problema na hora de escolher esse conteúdo, muitas vezes pegando uma enxurrada de produtos mais baratos e de qualidade “duvidosa”, sem contar sua forma quase desleixada de divulgar novos filmes e séries, dando atenção apenas ao que já é aclamado, sem tentativa alguma de prestigiar material relevante para os próprios assinantes, no caso, os fãs de ficção científica que muitas vezes recebem por outras fontes a notícia de que filmes como Terra à Deriva estavam no catálogo.

Eu sei que o streaming não tem obrigação alguma em divulgar o que não interessa a ele, mas assim algumas oportunidades acabam sendo perdidas e a sua credibilidade com uma parcela do público pode ser afetada. Continuando com Terra à Deriva como exemplo, esse foi um filme que marcou a história do cinema chinês e do mercado cinematográfico asiático, batendo recordes de bilheteria que superaram até filmes da Disney / Marvel (eu falo mais sobre isso na minha crítica do filme), então seria mais do que justo utilizar informações como essa para instigar o público, muitas vezes parado por horas na frente da TV sem saber o que escolher para assistir.

É uma pena ver mais uma série Sci-Fi chegando na netflix e ter um resultado tão negativo, mas esse parece ser o caminho que a Netflix decidiu seguir quando se trata de produções do gênero. Espero que seja passageiro e as coisas melhores, até lá continuamos caçando coisas boas no catálogo.

¯\_(ツ)_/¯

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Literatura

A Curva do Sonho | A vida não pode ser segura

George Orr é uma figura peculiar. Com exceção de seu talento para os desenhos, poderia ser apenas um homem simples de rotina calma, mas tem abusado do seu medicamento porque acredita possuir a habilidade de mudar a realidade através de seus sonhos, então permanecer consciente parece ser a melhor opção para evitar qualquer possível catástrofe, já que não é apenas a sua realidade que muda, mas a de todos. Se Orr vivesse em ignorância, talvez tivesse uma vida mais fácil (considerando as circunstâncias), no entanto, ele mantém sua memória e lembra de todas as vezes em que seus sonhos moldaram a existência.

Isso faz com que ele seja “convidado” a atender sessões de terapia com o doutor William Haber, um psiquiatra e pesquisador sobre as condições de sono que acredita no infortúnio de Orr e passa a utilizar seu intelecto e recursos para propósitos pessoais, tentando assim se transformar em um dos homens mais poderosos do mundo. Quando os sonhos do paciente provam-se efetivos, Orr e Haber começam um esquema arriscado onde não apenas a realidade, mas suas mentes, são manipuladas.

Escrito por Ursula K Le Guin, A Curva do Sonho é um romance curto, mas de grande impacto, mais uma vez salientando como a autora trata temas relevantes e perenes de forma inteligente, principalmente considerando que a obra foi publicada originalmente em 1971, apenas dois anos depois do seu clássico A Mão Esquerda da Escuridão.

A humanidade enfrenta a superpopulação e os desastres das mudanças climáticas. Temos um drama ambientado no “nosso mundo”, em Portland, no Oregon, e esse é um elemento importante para entender alguns aspectos da obra, como a pintura do Monte Hood, no consultório de Haber, tornando-se parte da trama. Mas esse é apenas um detalhe quando percebemos que a verdadeira força da história está na maneira como os sonhos se concretizam, com sucesso ou não em sua premissa, apresentando cenários aparentemente utópicos, mas que logo revelam-se cheios de falhas, como quando Orr sonha com um mundo livre da superpopulação, mas para resolver isso acaba inventando uma praga que dizimou parte da população.

A Curva do Sonho

É através da execução dos sonhos que Ursula nos apresenta alguns dos principais temas da obra, com debates filosóficos sobre determinismo e a nossa necessidade de livre-arbítrio. Cada capítulo é anunciado com citações sobre o assunto, a maioria envolvendo algum pensamento de tradição taoista, onde é atribuída uma força poderosa e invisível por toda existência. Além disso, uma das comparações mais óbvias que podemos fazer é com as obras de Philip K Dick, por conta das experiências envolvendo realidades alternativas, mas Le Guin não deixa de trazer sua própria voz, abordando mais uma vez um debate sobre individualidade e racismo, como quando Orr sonha em acabar com a desigualdade racial, mas as coisas não saem do melhor jeito.

“Eliminamos o problema de cor, de ódio racial. Eliminamos a guerra. Eliminamos o risco de deterioração da espécie e o estímulo a linhagens com genes deletérios. Eliminamos… não, digamos que estamos em processo de eliminação… a pobreza, a desigualdade, a guerra de classes, em todo mundo. O que mais?”

Em uma leitura mais rápida como essa, ainda assim temos um excelente desenvolvimento de personagens, mostrando a evolução do passivo Orr, aceitando tudo que lhe é mandado, e do inteligente e malicioso doutor Haber. Logo cedo, também somos introduzidos a Heather Lelache, uma advogada pela qual Orr acaba se apaixonando. Temos uma narrativa que intercala entre núcleos dramáticos, e essa é talvez a parte mais envolvente da obra, que infelizmente sofre um pequeno tropeço em sua segunda metade, quando tenta introduzir eventos cada vez mais absurdos e impactantes, mas acaba ironicamente perdendo um pouco da sua força, antes concentrada em seus personagens e uma premissa consistente. Não é algo que chega a estragar a leitura, mas pode distrair alguns da proposta original do livro.

A Curva do Sonho é mais uma tentativa de Ursula K Le Guin em nos mostrar o potencial humano, seja ele para o bem ou não. Os dilemas de George Orr, por mais que cobertos por algumas camadas de ficção científica, são universais, mostrando como não somos donos de nosso destino e talvez seja melhor assim.

Capa A Curva do Sonho

Ficha Técnica
Título Original: The Lathe of Heaven,
de Ursula K Le Guin
Editora Morro Branco, 224 Páginas
Arte (que brilha no escuro!) de Paula Cruz
Tradução de Heci Regina Candiani

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Quadrinhos

SAGA – Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos

Poucas HQs foram tão aclamadas pelo público e crítica quanto Saga. Com argumento de Brian K. Vaughan (Y: O Último Homem) e arte de Fiona Staples (Archie), a revista, publicada pela Image Comics, é uma das space opera mais criativas que você vai ler. Em um mundo onde humanoides com uma televisão no lugar da cabeça comandam um exército e felinos podem detectar se uma afirmação é verdadeira ou falsa, seguimos Alana e Marko, um casal fugindo das autoridades por terem concebido uma criança em período de guerra entre as suas duas raças. Alana vem de Aterro (Landfall, no original), o maior planeta da galáxia, mais militarizado e acostumado ao uso de tecnologia. Marko, por outro lado, vem de Grinalda (Wreath), a lua natural de Aterro, onde seus habitantes tem bastante conhecimento no uso de magia.

Uma das coisas mais curiosas da série, logo de cara, é a sua estrutura. A história é narrada pelo bebê do casal, Hazel, mas de um período não determinado no futuro. Ainda que ela sirva como um narrador onisciente (e presente), o leitor não se restringe ao núcleo dramático de sua família, fazendo assim com que as conversas e conspirações entre os governos possam ser observadas com cautela, e a jornada de O Querer (The Will), um caçador de recompensas de Grinalda, encarregado de deter o casal e capturar a criança, possa se desenvolver com bastante tensão.

As seis primeiras edições, compiladas no primeiro encadernado da série, tem a tarefa de apresentar os personagens e pelo menos uma parcela de seu universo – o que não é fácil, considerando a quantidade de elementos e temas que Brian K. Vaughan promete explorar (aqui eu me atenho apenas ao que é introduzido no primeiro encadernado), com debates sobre a natureza da guerra e da perversão humana, um tópico que fica evidente quando assistimos a missão de O Querer terminar com uma revelação chocante envolvendo escravidão sexual.

SAGA - Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos

O mundo de Saga é rico em detalhes, mas não são apenas as informações sobre magia e figuras importantes que chama a atenção, mas a maneira como o cotidiano é retratado com uma naturalidade incomum nos quadrinhos, revelando como o casal principal tem mais problema enfrentando os desafios da parentalidade e as discussões da relação ao invés das ameaças armadas que surgem em cada esquina (mesmo quando não há uma). Isso faz com que o público compreenda com mais facilidade os personagens, sem contar que todos possuem um certo charme e sabem divertir, mesmo tendo um papel mais antagônico.

O roteiro de Vaughan tem um ritmo excelente, sabendo mesclar com sucesso a comédia, o drama, o terror e a violência; e mesmo que os diálogos não sejam um grande destaque, contribuem para a construção dos personagens e resumem bem os pontos mais importantes da trama. Através deles, podemos compreender o comportamento mais pacifista de Marko, a atitude sarcástica de Alana, a fachada intimidadora de O Querer, ou o descontrole emocional do Príncipe Robô IV (aquele humanoide com uma TV na cabeça que mencionei anteriormente).

Mas se o roteiro de Vaughan mantém o interesse do leitor é por causa da arte de Fiona Staples. A canadense começou sua carreira com pequenos projetos e participações pontuais em alguns materiais, como a antologia de horror Contos do Dia das Bruxas, adaptação do filme de mesmo nome. Staples consegue um desenho expressivo e de enorme impacto visual, não importa o quão violenta ou inocente seja a proposta da página.

Tenho lido várias comparações da HQ com produções como Star Wars, Game of Thrones ou até a tragédia de Shakespeare, Romeu e Julieta, mas ainda que a intenção seja boa, nenhum desses exemplos realmente representa o que Saga faz, um debate relevante através de uma interpretação introspectiva das suas space opera favoritas, o que prova porque ela tem chamado tanta atenção.

SAGA - Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos
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Séries

O começo de uma Jornada nas Estrelas

É impossível não gostar da tripulação da Enterprise, principalmente a da série original. Kirk, Scotty, McCoy, Uhura, Sulu, Chekov e Spock. Por isso é curioso lembrar que por pouco não tivemos um elenco bastante diferente. O episódio piloto da série, The Cage, foi ao ar em 1965 pela NBC, e mesmo que o responsável pela programação da emissora, Mort Werner, tenha se interessado , a série correu o risco de ter sido cancelada prematuramente por ser considerada “muito cerebral”.

No livro Inside Star Trek: The Real Story (1997), Herbert F. Sollow, produtor da Desilu, e o diretor assistente Robert H. Justment, atraíram atenção para os costumes e morais da América na época como a principal razão de a série não ter seguido em frente logo de início. Enquanto séries que eram queridinhas do público retratavam a mulher em sua maior parte cozinhando, reclamando ou sendo apenas uma “boa esposa”, Jornada nas Estrelas tinha uma oficial competente e independente, recebendo um bom espaço em tela sem cair nos estereótipos da época.

Número Um era como a personagem de Majel Barret foi chamada, provavelmente sabendo que a emissora poderia questionar um nome feminino nos estágios de produção do episódio. Primeira oficial, inteligente e extremamente capacitada, Número Um teria enorme destaque entre os protagonistas, mas logo após a exibição de The Cage, precisou ser cortada do elenco. Por ser bem querida entre os produtores, a atriz foi mantida durante a série original, mas como outra personagem sem tanto destaque, a enfermeira Christine Chapel.

O começo de uma Jornada nas Estrelas

As mudanças e cortes não pararam na Número Um. A primeira opção para capitão da nave não era William Shatner e sim Jeffrey Hunter. Antes mesmo de Kirk, existia Christopher Pike. Hunter, confrontado com a insatisfação e a não aprovação do piloto de Jornada nas Estrelas, decidiu largar a série, mas o personagem não foi apagado da cronologia, sendo usado mais tarde, no episódio duplo The Menagerie, da primeira temporada, onde décadas após os incidentes ocorridos no piloto, encontramos um Capitão Pike velho, cansado e desfigurado, interpretado por Sean Kenney. Esta também foi uma boa forma dos produtores manterem The Cage dentro da continuidade oficial da série, criando uma forma de retcon para alguns acontecimentos.

Mesmo sendo rejeitada pela emissora na primeira tentativa, Jornada nas Estrelas conseguiu algo sem precedentes: uma segunda chance. Pela primeira vez na história da televisão, uma série recebeu autorização para um segundo piloto, e Where no Man Has Gone Before foi o que oficializou e garantiu a primeira temporada.

As mudanças de um piloto para outro envolveram em sua maior parte o elenco. A saída de personagens como o doutor Boyce (John Hoyt), que mesmo bem interpretado, não trazia o carisma que DeForest Kelly carregava, dando lugar à McCoy, foram decisões que acabaram melhorando a dinâmica entre os personagens na série, mesmo que não fossem a primeira opção dos criadores.

Com os novos personagens, a tripulação ficou mais diversificada, fazendo com que as relações e os diálogos da série se tornassem bem mais interessantes quando tocavam em outros assuntos fora da trama principal de ficção científica.

Equipe Star Trek

Um dos grandes apelos de Jornada nas Estrelas era poder contar com seus personagens sempre que necessário; quando a ameaça principal do episódio não estava intrigante o suficiente, sempre poderíamos contar com os momentos mais íntimos dos tripulantes da Enterprise, como o desentendimento constante entre um lógico Spock e um temperamental McCoy, as pausas para uma bebida e um conselho de amigo de Scotty, e a esperteza de Kirk sob pressão, sempre elaborando um plano ou forma brilhante de escapar.

A série original é até hoje conhecida por quebrar várias barreiras culturais. Além de Uhura, uma personagem negra com destaque positivo na televisão (você pode ler mais sobre ela nesse especial que fiz), outras etnias tiveram seu espaço, como o personagem do nipo-americano George Takei, o oficial Hikaru Sulu, ou o russo Pavel Chekov, interpretado por Walter Koening. É importante lembrar que escolher um personagem russo no auge da guerra fria foi uma das várias decisões arriscadas de Roddenberry.

Pode ter sido um começo cheio de obstáculos e a série ainda continuou sofrendo com baixa audiência e cancelamentos da emissora, mas com o tempo transformou-se em uma das maiores e mais fortes franquias que o mundo já viu, audaciosamente indo!

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Quadrinhos

Por que você precisa ler O “IMORTAL HULK”

Texto publicado originalmente no site Rima Narrativa, em 28 de Julho de 2018, postado aqui com algumas atualizações.

Quando Matt Fraction começou com sua fase de Hawkeye (Gavião Arqueiro), não demoraram nem cinco edições e eu já estava elogiando e achando uma das melhores coisas que eu já li pela Marvel.

Isso há seis anos, quando ainda estava saindo nos EUA, e desde então eu não tive muitos motivos para criar outro texto especulando materiais promissores, e olha que tivemos o Visão, de Tom King, que eu gosto bastante, mas não tive a chance de debater por aqui. E por falar no King, ele também merece ser exaltado por seu trabalho comandando fase do Senhor Milagre.

Ainda assim, tivemos bons materiais das duas grandes editoras do mercado: Marvel e DC, mas nada que me impressionasse como Immortal Hulk.

Immortal Hulk

Escrita por Al Ewing, com artes de Joe Bennett (e capas de Alex Ross), essa série promete uma abordagem diferente para o gigante esmeralda, com uma ambientação muito mais aterrorizante, e não foi à toa que alguns estão comparando essa fase com a clássica do Monstro do Pântano, de Alan Moore e John Totleben. Isso faz sentido, já que as duas lidam um dilema existencial, uma atmosfera de mistério que paira por conta da presença destas figuras em qualquer lugar e o rastro de destruição deixado por eles.

Em Immortal Hulk, começamos tudo do jeito que muitos fãs já conhecem, com um Bruce Banner fugindo das autoridades, tentando se esconder entre a multidão e levar uma vida sem conflitos. Vale lembrar que essa história se passa depois dos acontecimentos da saga Guerra Civil II, de Brian Michael Bendis, que – sejamos honestos – foi um desastre.

Aqui os eventos da saga são brevemente mencionados através da narração de Banner: “Certa vez, pedi para um conhecido lançar uma fecha especial direto na minha cabeça. Foi uma situação complexa, vou te poupar dos detalhes”. E depois dessa sutil crítica ao que o personagem passou recentemente, é bom ver como até isso foi bem integrado no enredo, com a “morte” servindo como um novo pretexto para Banner deixar de ser o centro das atenções e vagar sem ser notado. Infelizmente, isso é quase impossível, porque a criatura verde parece ter uma voz cada vez mais forte na relação de médico e monstro dos dois, essa que é retratada aqui com uma mescla de horror e angústia. É como se o Hulk fosse, além de um acidente de laboratório, uma assombração. Não é uma ideia inédita, mas aqui é feita com um toque mais “refinado” que o normal.

Immortal Hulk

Tudo começa com um tiro. Um jovem assustado tenta roubar uma loja de conveniências mas acaba puxando o gatilho na hora errada. Além de matar uma adolescente, acerta Bruce Banner. Tomado pela fúria, Hulk decide fazer justiça com as próprias mãos e procura satisfação com o jovem e a gangue que o obrigou a fazer o roubo. A destruição causada pela criatura atrai a atenção das autoridades e dos noticiários.

No começo, a maior parte da trama tem mais foco na tensão criada pelo personagem e as reações de quem ele atinge do que apenas batalhas exageradas para mostrar o quão forte ele é. Essa proposta lembra bastante a série clássica da televisão, O Incrível Hulk, estrelada por Bill Bixby e Lou Ferrigno, que você pode acusar de datada o quanto quiser, mas tinha um bom roteiro e empresta um pouco dele para esse novo quadrinho, que não esquece de fazer pequenas referências aqui e ali, seja na manchete de um jornal ou na icônica imagem de Bixby solitário pela estrada.

Essa dinâmica forma uma narrativa com possibilidades para coisas incríveis, como a excelente edição #3, “Ponto de Vista”, formada por depoimentos de pessoas sendo interrogadas pela repórter Jackie Mcgee. Temos um policial, um barman, um padre e uma idosa, cada um mais esquisito, engraçado ou assustador que o outro  —  aliás, uma decisão criativa bem inteligente foi chamar desenhistas diferentes para ilustrar cada depoimento, como Leonardo Romero e Paul Hornschemeier.

immortal hulk

Immortal Hulk vem cumprindo todas as promessas com êxito, seja no roteiro detalhado de Ewing ou no traço forte de Bennett, que ao lado da arte finalização de Ruy José (ele, assim com Bennett, representa o Brasil lá fora. Isso é algo que eu sempre gosto de mencionar), deixa as coisas mais impactantes visualmente, com peso, mas sem ser grosseiro demais. É a quantidade certa de agressividade que uma HQ como essa precisa.

Depois de ter feito um tremendo sucesso com a crítica e vendendo até mais que o Batman nos EUA, o quadrinho finalmente chegou ao Brasil, pela Panini, em um encadernado que reúne suas cinco primeiras edições. Se você ainda não teve a chance de ler, está perdendo um dos materiais mais criativos dos últimos anos, talvez da Marvel inteira. Daqui para frente, torço para mais conteúdo nesse nível.