“O que caracteriza uma civilização?
Será o gênio excepcional?
Não; é a vida rotineira”
O francês Pierre Boulle pode não ser um dos escritores mais conhecidos pelos leitores de ficção científica, principalmente por não se considerar um autor do gênero, mas seu trabalho merece reconhecimento, não só em âmbito literário, mas cinematográfico. Ele é responsável pelo roteiro do aclamado filme A Ponte do Rio Kwai, baseada em seu próprio romance de mesmo nome, mas é claro que nada chamou tanto a atenção quando seu trabalho em O Planeta dos Macacos. Com propostas e desenvolvimento de trama similares, não há grandes diferenças entre as versões das páginas e a das telas, com exceção, claro, da grande reviravolta final.
Talvez a maior diferença na abordagem narrativa entre os dois seja a sua estrutura. Enquanto o filme parte direto para a jornada do protagonista, o livro primeiro nos introduz a dois viajantes espaciais, um casal em lua de mel, que encontra uma garrafa à deriva na escuridão do espaço, mas dentro dela há uma mensagem, um diário escrito pelo jornalista Ulysse Mérou. Assim, nos situamos na narrativa principal, lendo os relatórios de Ulysse sobre uma aventura a trezentos anos-luz da Terra, a caminho da estrela Betelgeuse, em um planeta bastante similar ao nosso, com exceção de seus habitantes, uma sociedade constituída de macacos que podem falar como nós. O curioso é que neste planeta, também encontramos humanos, mas que regrediram de alguma forma e assumem o papel de animais daquele planeta.
O texto de Boulle é dinâmico e constrói os personagens, assim como suas intrigas políticas, eximiamente. A sagacidade dos diálogos e o desenvolvimento orgânico da trama faz a leitura da obra uma experiência agradável. Quando Ulysse Mérou e seus companheiros de viagem, o cientista Antelle e o jovem físico Arthur Levain, descem para a superfície de Soror, como decidiram chamar o planeta por conta de uma semelhança geográfica com a Terra, Boulle narra o primeiro contato com paciência, revelando aos poucos as informações que logo chocariam os personagens. Antelle e Arthur logo deixariam a história, o que nos deixa com os símios, principalmente o casal de cientistas Zira e Cornelius, e o respeitado ministro da ciência, Dr. Zaius. Logo, também acompanhamos de maneira pontual a humana Nova, incapaz de comunicação verbal, mas interesse romântico de Ulysse.
Na contramão de sua primeira adaptação cinematográfica, em 1968, na qual Zaius torna-se o antagonista principal e os comentários sobre armamento nuclear são o tópico mais relevante para a conjuntura da época, a obra literária tem mais interesse em evidenciar nossa arrogância, com a proposta de refletir sobre o ciclo da humanidade, principalmente na forma como as sociedades acabam obsoletas.
Os símios do livro são o reflexo mais cristalino de nossa própria realidade, não importa em qual planeta ou ano, o que alguns podem ler como uma interpretação mais pessimista do autor. Ulysse encontra-se constantemente espantado ao confrontar as coincidências daquele mundo com o seu, observando a hierarquia entre os primatas e como eles se separam em gêneros, com os gorilas, orangotangos e chimpanzé tendo diferentes funções e responsabilidades na comunidade.
“O planeta inteiro é governado por um conselho de ministros, à frente do qual está um triunvirato, compreendendo um gorila, um orangotango e um chimpanzé […] Não se misturam à massa; não são vistos nas manifestações populares, mas são eles que dirigem a maioria das grandes empresas.”
Lançado originalmente em 1963, a obra de Boulle continua atual, isso se pudermos relevar a representação feminina quase previsível pela mídia da década, onde as mulheres por vezes serviam mais como um prêmio pelos feitos heróicos do protagonista ou apenas um interesse amoroso sem personalidade. No livro temos Nova, a “parceira” de Ulysse, incumbida da exclusiva tarefa de reagir aos estímulos do protagonista. É intrigante como, em contraste, a cientista símia Zira, tenha um papel bem mais ativo e chegue a ser talvez minha personagem favorita da versão literária.
É óbvio que eu não deixaria de falar das reviravoltas encontradas no livro e no filme, completamente diferentes. Se no filme temos Charlton Heston (George Taylor, protagonista com um nome norte-americano, ao contrário do francês Ulysse) na praia, berrando e amaldiçoando a humanidade depois do que acabou de presenciar, o livro não fica atrás e entrega duas incríveis revelações que transformam a leitura de quem já assistiu o filme em uma nova experiência. Por mais que Rod Serling, um dos roteiristas da versão cinematográfica, tenha feito um trabalho impecável de adaptação, fica fácil entender quem prefira a saída mais irônica de Boulle.
“Estou cansado de viver preso, mesmo na mais confortável das jaulas, mesmo aos seus cuidados.”
Como mencionei a distinção entre o nome dos protagonistas, também vale mencionar como os dois possuem personalidades nem um pouco parecidas. De um lado, Ulysse é um jornalista arrogante e ocasionalmente hipócrita, enxergando o pedantismo de Zeius, mas não o seu, à medida que George Taylor configura a imagem do homem musculoso e carismático com um charuto sempre acesso, isso até o momento em que os perde, junto de suas roupas.
O Planeta dos Macacos é uma das leituras mais envolventes para qualquer um interessado em ficção científica ou apenas uma boa aventura, com personagens marcantes e um enredo excepcional. Entra para a lista de clássicos indispensáveis do gênero.
Ficha Técnica:
Título Original: La planète des singes
Editora Aleph, 2015
Tradução de André Telles
Arte de Pedro Inoue
216 Páginas, Posfácio de Bráulio Tavares e entrevista com o autor.
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