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Ubik | Entre a vida, morte e a realidade

“Eu tenho vida”

Philip K Dick talvez seja meu autor favorito, o que não o isenta de ressalvas, como a maneira que costuma negligenciar o desenvolvimento de alguns personagens ou simplesmente os transforma em um narrador sem personalidade. Mas eu não comecei essa resenha com uma afirmação tão positiva sobre ele para deixar de mencionar o que fez para merecê-la. Os textos de Dick se apoiam em conceitos únicos, vindos de uma mente pouco convencional, e o que ele faz melhor é explorar temas complexos de maneira objetiva, criando um debate como poucos conseguem.

Romances como Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? ou O Homem do Castelo Alto conseguem se desvencilhar dos problemas que mencionei no parágrafo anterior, trazendo personagens mais envolventes e ativos, e depois de ler Ubik, tenho mais um exemplo de como o autor nem sempre cai na mesma armadilha. Lançado originalmente em 1969, no ano da eleição de Nixon e em meio à primeira retirada do exército Norte-Americano da Guerra do Vietnã, Philip K Dick decide conceber uma obra sobre o que entende melhor: questionamentos sobre a nossa realidade e espionagem corporativa, sem contar um pouco de religião e poderes mentais.

A obra se situa em uma Nova York de 1992 habitada por humanos que desenvolveram habilidades psíquicas ou conseguem se relacionar com o tempo de maneira diferente (eles tecnicamente não viajam no tempo, então prefiro deixar a definição dessa maneira). Em um mundo onde poderes como esse podem ser utilizados para manipular a realidade de seus adversários, muitas vezes com propósitos corporativos, algumas empresas oferecem um serviço de proteção, que contrata humanos capazes de neutralizar a ameaça original. Glen Runciter é um dos homens mais poderosos do mundo, responsável por uma dessas empresas, mas há um mistério a ser resolvido, envolvendo o desaparecimento de seus funcionários. Para ajudá-lo, o técnico Joe Chip parte em uma investigação que pode alterar toda a realidade.

Além da premissa mais “policial” do livro, PKD também explora temas de religião e até vida após a morte através de um conceito de meia-vida no qual a consciência de pessoas que já faleceram pode ser preservada para que seus contatos possam se comunicar, isso por conta de um serviço oferecido, novamente, por uma empresa. Fica clara a intenção do autor em comentar o avanço de grandes conglomerados e o impacto da propaganda no cotidiano, tanto que cada capítulo é apresentado com um texto publicitário sobre algum produto inovador, todos com o mesmo nome: Ubik.

Capa Ubik

Mors certa et hora certa

Há muito mais elementos apresentados no romance, como uma viagem à lua (talvez a promessa do homem na lua tenha o influenciado nesse aspecto) ou a esposa em meia-vida de Runciter, mas é Joe Chip o verdadeiro protagonista, correndo contra o tempo para descobrir o que está acontecendo, sem certeza sequer de que seu mundo continua real. Essa é uma das brincadeiras favoritas de PKD, alternando entre tempo e espaço e experimentando com a percepção do leitor, que nunca sabe se pode confiar no que está escrito.

Também podemos encontrar referências diretas com outros textos do autor, como a presença de precogs, aqui extremamente relevantes para o enredo, mesmo que indiretamente. Os precogs são humanos com habilidades mentais avançadas, capazes de observar o futuro, o que cria uma das sequências mais criativas do livro, envolvendo uma conversa entre Joe e Runciter através de um anúncio na TV. São momentos como esse que evidenciam a escrita quase cinematográfica de Dick, descrevendo ações como uma voz fora de sintonia com o movimento da boca ou um corpo tentando fugir da realidade.

Alguns leitores podem pegar uma obra como essa e considerar sua proposta desconfortável, isso porque o autor não faz questão de entregar uma narrativa comum, nem mesmo se importa em construir tramas incontestáveis, nos deixando com um exercício mental sobre o que consideramos real ou não. Terminamos o livro com mais questionamentos que antes, e esse pode ser o verdadeiro objetivo de Philip K Dick, abrir nossas mentes para tudo o que pode ser. Isso é apenas o começo.

Ubik

Ficha Técnica:
Título Original: Ubik
Editora Aleph, 2019
Tradução de Ludimila Hashimoto
Arte de Rafael Coutinho e Giovana Cianelli
240 Páginas.

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