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A Ficção Científica no Cinema | Retrospectiva 2019

Para a última matéria do ano, decidi fazer a retrospectiva com produções sci-fi que conseguiram se destacar, positiva ou negativamente. Tivemos um ano com boas produções, talvez melhor que o anterior, e mesmo que alguns desastres tenham chegado às salas de cinema (ou no conforto da sua casa, com algum serviço de streaming), há mais vitórias que derrotas.

Antes de começar, vale mencionar que as obras destacadas (em negrito), boas ou não, correspondem ao gosto de quem escreve essa matéria. Vamos lá.

Os Desastres

Mesmo com boas produções, esse foi o ano em que a Netflix decidiu colocar em seu catálogo os filmes IO, com uma premissa genérica que desperdiça o tempo da atriz Margaret Qualley, e a comédia Fim do Mundo, que considera citar referências de outros filmes (melhores) constantemente e depender de humor barato, algo engraçado. 

Mas saindo da Netflix, esses dois exemplos não chegam perto do desperdício de tempo e dinheiro chamado Cópias – De Volta à Vida, estrelado por Keanu Reeves. 

Cópias - De Volta à Vida
Cópias – De Volta à Vida

O problema do filme não é ter todos os elementos mais batidos do mundo para a construção da trama (acidente de carro, corporação do mal…), mas sim não saber usá-los. Eu não vejo problema algum em ter um roteiro simples e direto ao ponto, mas se você não for consistente com cada uma das coisas que apresenta, o resultado é um produto vazio e tedioso.

Cópias erra em quase todos os aspectos, o primeiro deles sendo a direção de Jeffrey Nachmanoff, que não só depende demais de movimentos de câmera desnecessários, como o excesso do ângulo holandês (dutch angle para o pessoal internacional), presente em cenas onde não só destroem a tensão que o longa tenta construir, mas distraem pela maneira nada natural com a qual Nachmanoff aborda as cenas. Esse é mais um filme genérico e previsível que poderia ter sido lançado direto em algum streaming e ainda assim, não recomendaria.

Outra produção que não conseguiu convencer o público foi o retorno da franquia MIB: Homens de Preto, com o filme MIB: Homens de Preto – Internacional, estrelado por Tessa Thompson e Chris Hemsworth, a direção ficou por conta de F. Gary Gray, responsável pela comédia Friday (Sexta-Feira em Apuros, no Brasil), que parece não ter dado conta de uma franquia grande como essa. O desastre foi público e crítico, e o filme quase não apareceu nessa lista por ser tão esquecível. 

E infelizmente, uma outra grande decepção veio estrelada pelo ex-protagonista de MIB, Will Smith. O ator não parece conseguir uma nova produção que carregue a aclamação do começo de sua carreira, mas ele continua tentando, e por isso se reuniu com o ótimo diretor Ang Lee, de O Tigre e o Dragão e As Aventuras de Pi, para um novo blockbuster de ação que prometia trazer de volta um sucesso de bilheteria e público para o ator. 

Com Projeto Gemini, Ang Lee explora a velocidade de fotogramas (ou frame rate), e tenta gravar o filme em 120 quadros por segundo (ou fps), o que altera drasticamente a experiência, mexendo com o ritmo e a nitidez da imagem, deixando-a tão suave que chega a causar náusea em algumas pessoas. Os cinemas sequer tinham capacidade para passar essa versão do filme em todas as suas salas, então disponibilizou em outras versões, não só a comum, de 24 quadros, mas uma de 60.

Lee já chegou a lançar o filme A Longa Caminhada de Billy Lynn da mesma maneira; mas enquanto esse, um drama de guerra, se beneficia de uma filmagem mais realista por conta da narrativa crua, Projeto Gemini sofre por depender de sequências de ação exageradas e nem um pouco realistas, o que o aumento da quantidade de quadros deixa mais evidente, principalmente em uma absurda sequência envolvendo uma perseguição de motos que desafia várias leis da física. 

Mas não é como se a quantidade de quadros fosse o verdadeiro problema de Projeto Gemini, que traz bons atores como Mary Elizabeth Winstead e Benedict Wong para interpretar um enredo repetitivo e previsível, sem contar que dessa vez Ang Lee parece estar mais cansado que nunca, com uma das direções mais sem identidade do ano. 

Os Sucessos

Saindo das decepções, é hora de abordar o que deu certo esse ano, começando pela ação Alita: Anjo de Combate. Baseada no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio. 

É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem alguém como Robert Rodrigues para comandar o projeto. Ele já se provou competente criando boas sequências de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.

Alita: Anjo de Combate
Alita: Anjo de Combate

O filme conseguiu “se pagar” na bilheteria, mas não foi nada estrondoso, o que coloca em risco as chances de uma continuação. Mesmo com problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.

Dessa vez vou dar crédito à Netflix por ter distribuído algumas produções independentes muito boas. A primeira delas é I am Mother, um filme de menor escala e orçamento relativamente modesto, considerando o que costumam valer outros filmes de estúdios e diretores mais conhecidos. O filme tem a vantagem de poder criar cada um dos seus elementos com mais cautela e sem muita intromissão.

Esse é o primeiro longa do diretor Grant Sputore, mas ele faz um bom trabalho. Há espaço para algumas reviravoltas, o que muitos diretores parecem criar primeiro e montar o filme inteiro em cima delas, mas essa é uma obra onde o enredo e os personagens vem antes, e mesmo que traga algumas características “batidas” de narrativas sci-fi, uma execução limpa e objetiva sempre funciona. Ao lado da direção, a equipe de design merece elogios pela forma como apresentou o mundo do filme e montou o visual dos droides. Uma boa surpresa. 

I Am Mother
I Am Mother

Ao lado de I am Mother, tivemos uma aula de como fazer filmes de baixo orçamento com o ótimo Riqueza Tóxica.  Lançado originalmente em 2018, o sci-fi independente só chegou ao Brasil em 2019, quando a Netflix decidiu distribuí-lo.

No meio de tanta coisa grande saindo nos cinemas, rendendo bilhões nas bilheterias, seja mais um filme da franquia Marvel ou Star Wars (basicamente, tudo Disney), é fascinante ver como uma obra menor, em escala e orçamento, consegue ser tão poderosa. Começando pela sua construção visual, que atingiu uma estética realista e distópica sem precisar do uso de tela verde. A maior parte das filmagens foi realizada em uma floresta conhecida da infância dos diretores, e um galpão precisou ser construído para que a equipe pudesse trabalhar perto do local.

É esse tipo de esforço que me faz apreciar ainda mais filmes assim, onde é visível a importância de ter sido gravado longe de um estúdio, com luz natural, contribuindo para a imersão daquele mundo. Tudo aqui é original: trajes espaciais, armas, ilustrações e até mesmo a poeira. Para que o filme tivesse sua própria identidade visual, os diretores passaram dias explorando maneiras diferentes de representar a poeira rosada que cobre a superfície de uma lua verde.

Riqueza Tóxica
Riqueza Tóxica

Também foi em 2019 que o aclamado diretor Spike Lee produziu uma ficção científica. A Gente se Vê Ontem é o primeiro longa de Stefon Bristol, que tem alguns curtas no currículo e esteve envolvido nas filmagens de Infiltrado na Klan, onde provavelmente conheceu Spike Lee. A Gente Se Vê Ontem é baseado em um de seus curtas de mesmo nome, trazendo de volta a maior parte do elenco para a nova versão.

Esse é um filme carregado de temas pertinentes ao diretor e a comunidade negra, tendo a brutalidade policial como principal objeto de análise. Mas ainda que envolva críticas sociais e um dilema moral por parte dos seus protagonistas, seguimos com um tom leve, que lembra um pouco a sensação de estar assistindo apenas uma produção adolescente. 

Os elementos de ficção científica ficam em segundo plano, mesmo que sirvam para impulsionar a trama. Isso não é um problema, já que o gênero abre as portas para incontáveis interpretações e é uma das melhores opções quando um roteiro precisa de uma alegoria construtiva. Aqui temos viagem no tempo e efeito borboleta para mostrar como a violência contra a comunidade negra não é uma casualidade, envolve uma mentalidade preconceituosa impregnada na sociedade. 

A Gente se Vê Ontem
A Gente se Vê Ontem

Mas a grande surpresa divulgada (mesmo que pouco) pela Netflix esse ano foi o maior sucesso de bilheteria da China nos últimos anos, a jornada espacial Terra à Deriva. Também lançado originalmente em 2018, o filme chegou ao Brasil apenas esse ano, e é um excelente trabalho que funciona em todos os níveis, com sequências de ação angustiantes na superfície e debates sobre culpa e arrependimento nos minutos derradeiros da humanidade.

Frant Gwo assina a direção. Mesmo com poucos filmes no currículo, faz um excelente trabalho. Além de encontrar um ótimo elenco (incluindo Mike Sui, que interpreta Tim e serve de alívio cômico. Felizmente, bem encaixado) e desenvolver alguns visuais impressionantes, Terra à Deriva é o tipo de obra que consegue construir drama envolvente no meio da ação incessante.

Terra à Deriva é uma adaptação do conto literário de mesmo nome do autor chinês Cixin Liu, que ficou conhecido por ter sido o primeiro de seu continente a receber o prêmio de Melhor Romance no Hugo Awards (com o seu “O Problema dos Três Corpos”). O filme foi feito com aproximadamente $50 milhões e tornou-se um sucesso rendendo quase $350 milhões de bilheteria apenas em seu país de origem. 

Terra à Deriva

Continuando fora do mercado norte-americano, vale mencionar o misterioso drama brasileiro Divino Amor, sobre um futuro teocrático absurdo, mas nem um pouco impossível considerando a crítica que estão fazendo usando o paralelo da presença de uma “bancada evangélica” no congresso nacional. A atriz Dira Paes apresenta uma personagem que combina carisma e intimidação, mas é complexa o suficiente para entregar certa fragilidade.

Ainda que 2019 seja o ano de Bacurau, que tecnicamente entra em ficção científica por ser uma narrativa em um “futuro distópico”, Divino Amor explora mais o gênero, com sua ambientação de neon e construção de mundo mais futurista. Essa obra prova que o cinema brasileiro, além de inteligente em enfrentar os obstáculos que o próprio país coloca em sua frente, consegue ser original, independente do gênero. 

Vale lembrar aqui que algumas obras provavelmente não chegarão aos cinemas ou serviços de streaming brasileiros, então decidi usar esse espaço para mencionar duas obras mais introspectivas, que receberam pouca atenção da bilheteria. A primeira é High Life, estrelada por Robert Pattinson, que tecnicamente é mais uma da lista lançada em 2018, em festivais, mas chegou aos serviços de mídia digital com certo atraso. Indo para o segundo exemplo, tivemos Lucy in the Sky, dirigido por Noah Hawley, responsável pelas séries Legion e Fargo

Os dois filmes souberam explorar o formato um pouco melhor, ao contrário do que aconteceu em Projeto Gemini. Eles brincam com a estrutura e linguagem do cinema, e mesmo que a alternância na razão de aspecto em Lucy in the Sky distraia um pouco, não deixa de ser criativa. O enredo das duas obras segue uma premissa simples, mas se aproveita dos atores para entregar um estudo de personagem mais envolvente, seja a solidão do espaço sentida por Robert Pattinson em High Life, ou a solidão na Terra, por não estar mais no espaço, de Natalie Portman, como a protagonista em Lucy in the Sky

A Grande Obra do Ano

É arriscado afirmar que uma obra de arte tenha se expressado melhor que outra. Na verdade, é impossível. Todos temos reações e impressões diferentes por conta de nossos gostos, mas existem conquistas técnicas e narrativas que ficam visíveis em um filme, e talvez Ad Astra: Rumo às Estrelas represente isso melhor que os outros filmes da lista. 

Pouco pode ser dito sobre a proposta da obra sem entregar detalhes relevantes da trama, que apresenta sequências de ação impressionantes ao lado de um ritmo mais vagaroso. Isso pode soar como um contraste capaz de colocar a experiência do filme em risco, mas tudo funciona perfeitamente. 

Ad Astra: Rumo às Estrelas
Ad Astra: Rumo às Estrelas

Seguindo uma trajetória contrária do que se espera de um filme grande como esse no atual contexto das salas de cinema, Ad Astra se distancia completamente de sucessos como Interestelar, de Christopher Nolan, e tem mais interesse em uma condução que ecoa melhor os longa-metragens de ficção científica do diretor russo Andrei Tarkovski, como Solaris ou Stalker.

Ad Astra é uma experiência diferente, a jornada solitária de um homem com um dilema universal. Aqui podemos ver como a humanidade conquistou a lua e até Marte, mas continua olhando para o céu na esperança de nova vida, esquecendo a que já possui.

O que achou da lista?
Se concorda, discorda ou acha que faltou algo, é só deixar nos comentários.

2020 promete ser ainda mais agitado, com a chegada de filmes como O Homem Invisível, The Tomorrow War, o atrasado Chaos Walking, e a tão aguardada adaptação de Duna pelo diretor Denis Villeneuve. O problema agora é esperar. 

Até a próxima!
Vida Longa e Próspera 🖖

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