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Três Meses no Século 81 | O futuro por Jeronymo Monteiro

Embora autores clássicos como Machado de Assis tenham se aventurado no gênero, a ficção científica começou a dar seus primeiros passos para ser reconhecida como uma possibilidade para narrativas originais no Brasil graças ao trabalho de Jeronymo Monteiro. Envolvido em diversos projetos, o jornalista e escritor ficou conhecido por seu trabalho em séries de rádio, além de ser um nome importantíssimo para os quadrinhos, editando e traduzindo materiais da editora Abril, como a primeira revista do Pato Donald no país.

Mas sua maior contribuição foi para a literatura nacional, área na qual recebeu a alcunha de “pai da ficção científica no Brasil”, sendo responsável por consolidar o gênero no país através da revista Magazine de Ficção Científica, trazendo autores como Isaac Asimov e Ray Bradbury todo mês. Monteiro é tão influente que a data de seu nascimento, dia 11 de dezembro, é considerada o dia da ficção científica brasileira.

Edição de Magazine de Ficção Científica, de 1970
Edição de Magazine de Ficção Científica, de 1970

Entre suas obras literárias está Três Meses no Século 81, relançada pela editora Plutão em sua coleção Ziguezague, onde explora as diferentes “ondas” da ficção científica no país. Monteiro está claramente na primeira, sendo pioneiro em apresentar uma narrativa sobre viagem no tempo com elementos que seriam marca do gênero até hoje.

No livro, Campos relata sua experiência visitando a civilização do século 81. A sua viagem revela um mundo aparentemente utópico, com arquitetura e tecnologia impressionante, mas talvez as coisas sejam perfeitas demais para o viajante, que ao chegar no futuro se vê no corpo de um ser chamado Loi. A decisão do autor em transformar a viagem temporal em uma experiência esotérica, através do que chama de “transmigração”, ao invés de uma máquina, como estamos acostumados, é um caminho que acaba dando mais originalidade ao material. 

“Em todo caso, aquelas construções, se eram impressionantes pela simplicidade e pela largueza, nada tinham de emocionantes”

A obra carrega uma construção de mundo surpreendente, estabelecendo a sociedade do futuro com sua nova geografia, hierarquias e economia (ou falta dela), fazendo questão de explicar o desenvolvimento de uma nova língua híbrida do inglês com outros idiomas (talvez uma pequena cutucada na maneira como a cultura norte americana tem se expandido em nosso cotidiano).

Monteiro também brinca um pouco com a metalinguagem, elemento pouco comum para a época, inserindo o escritor H.G.Wells, responsável pelo clássico A Máquina do Tempo, em sua história, não só como referência, mas como um personagem que existe no universo de Campos, ou de Loi. 

Jeronymo Monteiro em sua máquina de escrever
Jeronymo Monteiro em sua máquina de escrever

Pode ser uma boa maneira de introduzir os principais elementos da trama, mas é engraçado como a narrativa acaba sofrendo um pouco com essa atenção aos detalhes, deixando por vezes visível como Monteiro acaba sendo prolixo ao ponto de introduzir personagens essenciais para a trama tarde demais, como Ilá, que acaba servindo como ativista e interesse romântico para o protagonista, mas por ser apresentada tão tarde, perde seu peso e suas “cenas” são um problema quando consideramos o quão bem estabelecido é o universo do livro. 

Esse é um deslize fácil de relevar em uma obra precursora como essa, e importante para a ficção científica no Brasil. Jeronymo Monteiro é um nome necessário para qualquer leitor de ficção especulativa no país, e o relançamento de Três Meses no Século 81 é mais um enorme acerto da editora Plutão.

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Séries

ONISCIENTE (1ª Temporada) | De olho em mais uma FC nacional bem feita

Me sinto na obrigação de começar este texto dizendo que as comparações constantes de Onisciente, a nova série de ficção científica nacional distribuída pela Netflix, com Black Mirror são, no mínimo, uma tremenda falta de referência, sem contar que afirmações como essa acabam sendo não apenas preguiçosas e repetitivas, como parecem diminuir a importância do material, ainda mais um criativo e bem desenvolvido como a produção brasileira de Pedro Aguilera.

Na trama, Nina Peixoto (Carla Salle) trabalha para uma enorme empresa de vigilância, e as coisas parecem ir bem até o dia em que seu pai é assassinado misteriosamente e o sistema que acreditou ser infalível não é capaz de revelar um culpado. Assim, Nina procura uma maneira de descobrir o responsável enquanto tenta burlar o sistema e as câmeras em sua volta. 

Aguilera, responsável por roteiros de outro sucesso FC da Netflix, a distopia 3%, continua explorando o gênero, porém com uma abordagem diferente, trazendo uma premissa que, se formos realmente utilizar comparações (dessa vez, pertinentes), investe em elementos comuns nas obras literárias clássicas de Philip K Dick, Isaac Asimov e Aldous Huxley, principalmente o conto Minority Report e o romance Admirável Mundo Novo.

ONISCIENTE

Felizmente, Onisciente não se limita às referências e cria um universo próprio, com personagens e regras bem estabelecidas. O roteiro arrisca cair em territórios perigosos, com pequenas conveniências envolvendo a proposta principal de abordar uma cidade monitorada constantemente por drones tão pequenos que a maioria dos cidadãos sequer percebe.

Esse é um pequeno risco tomado por um enredo bem executado, atento ao cotidiano de seus personagens, o que fortalece suas motivações, e a construção de um mundo que, ao primeiro olhar parece simples, mas logo revela sua conjuntura política, hierarquias e estruturas sociais, tudo de maneira simples e direta, e é nessa objetividade que a narrativa ganha força, sabendo exatamente o que deve aproveitar e o que deve ser deixado de lado. 

Uma preocupação com produções nacionais que tentam explorar narrativas de gênero é a chance de soarem artificiais, com diálogos e ações pouco naturais. Por Onisciente ser uma ficção científica com uma linguagem visual mais norte-americana, há sequências onde algumas interações acabam soando mecânicas, mas isso é relevado quando consideramos que os personagens estão sendo vigiados o tempo inteiro, então devem ter cautela com o que dizem e fazem.

ONISCIENTE

Mesmo com as limitações, o elenco faz um bom trabalho, principalmente Carla Salle, como a protagonista Nina, que vai de uma jovem tímida e generosa para uma pessoa mais calculista e intimidadora. Além dela, temos nomes como Sandra Corveloni e a ótima Luana Tanaka (do elenco da série 3%), essa última roubando algumas cenas com uma subtrama que promete ser mais importante em uma futura temporada. 

Onisciente é mais um passo para o avanço de produções de gênero no mercado nacional, um que ainda pode ser bastante influenciado por material norte-americano, mas carrega uma voz cada vez mais forte.