“Amor! A única coisa que minha armadura não aguenta”
Clancy comanda um podcast espacial chamado The Midnight Gospel, onde entrevista seres diversos de planetas em extinção. Com um simulador de multiversos, ele pode enviar um avatar com a sua consciência para estes planetas e gravar longas conversas, que podem ir de um simples questionamento sobre a legalização da maconha até uma viagem através dos sentidos, com debates sobre ética existencial e identidade. Mas para entender de verdade a proposta dessa nova animação da Netflix, que leva o mesmo nome do podcast de Clancy, é necessário conhecer um pouco dos bastidores.
Todos os episódios de The Midnight Gospel, a série, tem como destaque os diálogos, as entrevistas de Clancy, que na verdade são excertos retirados diretamente de um podcast real, o Duncan Trussell Family Hour. Duncan Trussell é um ator, comediante e dublador que costuma receber todo tipo de convidado em seu programa: celebridades como Dan Harmon, o criador de Community e Rick and Morty; o músico e professor espiritual, David Nichtern; ou até mesmo figuras como Damien Echols, condenado por homicídio em um famoso caso dos Estados Unidos onde três garotos foram mortos no que foi confirmado como um “ritual satânico”. Um dos exemplos faz uma ponta na animação, mas vou deixar você descobrir enquanto assiste.
A série é desenvolvida por Pendleton Ward, mais conhecido como o criador da animação Hora de Aventura. Mas deu para notar que a abordagem de The Midnight Gospel é restrita ao público adulto, principalmente por conta de toda a profanidade e violência. Mesmo que Hora de Aventura tenha momentos brilhantes de questionamentos envolventes, a nova produção de Ward segue uma linha mais voltada para as crises existenciais de Bojack Horseman, com uma dose do absurdismo encontrado em Rick and Morty.
Mesmo que a maior parte dos diálogos venha das conversas de Trussell e seus convidados, há uma narrativa própria na série. Assistimos às tentativas de Clancy em conhecer melhor seus vizinhos, conseguir novas amizades, colecionar artefatos de suas viagens e lidar com os defeitos de sua máquina, que precisa ser lubrificada constantemente (a semelhança de seu simulador de multiversos com um órgão sexual feminino faz parte da linguagem mais infantil e do humor escatológico de Ward, que se estende pela temporada representado em todo tipo de excremento que lhe vem à cabeça). Mas Clancy também tem alguns segredos e parece estar fugindo para novos mundos na intenção de esquecer o seu.
Considerando o formato, há uma estrutura base para a maioria dos episódios, colocando as entrevistas em primeiro plano, com uma animação de fundo que nem sempre parece estar conectada ao assunto das conversas entre o protagonistas e os seres que encontra no caminho, mas rende alguma piada visual engraçada ou cria um segundo debate que parece complementar de certa maneira o tema geral de um episódio. Como se não fosse o suficiente, sobra espaço para alguns números musicais aleatórios, algo que Ward trouxe de seus outros trabalhos, mas falaremos disso em breve. Parece loucura resumir tudo dessa maneira, mas é uma daquelas coisas que só seria capaz de explicar desenhando, confirmando como a animação pode ser um recurso narrativo tão poderoso.
E por falar em animação, se você estiver acostumado com os desenhos de traço mais infantil dos trabalhos anteriores de Ward, aqui temos algo similar, mas carregado de sangue e vísceras, o que não distrai demais da construção de mundo louca e cheia de referências e piadas do cenário. As cores também são mais vibrantes e garantem uma viagem psicodélica, inclusive por conta da movimentação, com menos fotogramas, que causa certo estranhamento em algumas sequências. Se ainda não ficou claro, até mesmo a data oficial de lançamento da série acabou caindo em 20 de abril (brincadeira entre os usuários de maconha, que usam o termo 4:20); então, você não está sendo guiado em uma jornada louca como essa sem motivo – o universo pode ser aleatório, mas as intenções de Ward e Trussell não.
Como mencionei antes, a temporada conta com ótimas músicas originais, um compilado de rock, metal, jazz e folk, com algumas letras bobas e ridículas, mas um pouco assustadoras se você prestar atenção no que algumas estão dizendo. Não temos nada no nível de Hora de Aventura, mas se quiser versões mais estranhas de Marilyn Manson, Tom Waits ou Beck, não vai se decepcionar.
Embora pareça, na superfície, uma novelização de conversas descontraídas sobre temas delicados como a relevância das religiões, os riscos de se apoiar na esperança, as limitações da criatividade ou outros diversos questionamentos desse nível (é muito mais do que isso), a série se aproveita da jornada emocional do protagonista para executar momentos tocantes e explorar dúvidas essenciais para cada um de nós. Não se deixe enganar por elementos como barcos carregados pela energia positiva de gatos ou unicórnios que vomitam sorvete, The Midnight Gospel é uma experiência única através do espaço e da alma.
O trabalho do autor e ilustrador sueco Simon Stålenhag tem sido fascinante por conta de suas artes conceituais onde elementos futuristas são inseridos em suas fotografias, criando um cotidiano rodeado por máquinas e arquitetura que parecem ter saído de uma obra de ficção científica. Sua arte foi parar em alguns livros, como Things From The Flood e The Electric State; e também chegou aos videogames, onde contribuiu para o incrível visual do jogo No Man’s Sky. Mas a sua criação mais influente ainda é o seu primeiro livro de fotografias, Tales From The Loop, que rendeu um jogo de RPG e acabou de ser adaptado para uma série pelo serviço de streaming da Amazon, o Prime Video.
Inspirado nos livros de Stålenhag, que participa da série como roteirista e produtor executivo, Tales From The Loop conta com dez episódios e adaptação de Nathaniel Halpern, um dos responsáveis pela psicodélica e absurda série Legion, do canal FX. E uma das primeiras decisões a chamar atenção na série é o seu formato, que parece seguir uma linha mais antológica, o que não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada.
Seguimos a rotina dos habitantes de uma pequena cidade aparentemente pacata, mas localizada acima de uma instalação de pesquisa, onde se encontra uma máquina chamada The Loop, capaz de desvendar e explorar diversos mistérios do universo. Isso acaba afetando os habitantes, que experienciam situações inusitadas envolvendo inconsistências temporais, forças que desafiam as leis da física e outras coisas que poderiam ter saído de alguma obra de ficção científica.
Para observar a maneira como cada um é afetado pela máquina, a série carrega uma estrutura narrativa em que cada episódio segue o ponto de vista de um personagem diferente, mas todos acabam ligados de alguma maneira, não só por conta da cidade. Por isso que, ainda que pareça ser estabelecida como uma antologia, a história de Tales From The Loop adota uma linha narrativa que se complementa e, mesmo com o envolvimento de anomalias temporais, possui uma ordem cronológica, então indico que seja assistida em ordem.
Na maior parte da série, a trama gira em torno de duas famílias lidando com traumas diferentes, que sem saber, acabam conectadas por conta da máquina. É o máximo que posso dizer sem entregar mais detalhes, e vale a pena entrar de cabeça na série sem conhecimento prévio de alguns elementos porque ela traz revelações significativas, que ao contrário de outras produções do gênero, servem para construir um arco dramático mais importante que a própria ficção científica da cidade.
Essa preocupação diz bastante sobre a proposta da série, que usa de componentes retro futuristas e referências dos anos 70 e 80, além de menções a obras da cidade natal de Stålenhag, como o filme Mônica e o Desejo, do diretor sueco Ingmar Bergman, ilustrado na entrada de um cinema. Mas essas referências servem apenas para reforçar a ambientação e a belíssima direção de arte, deixando o drama dos personagens e o elemento humano como o principal objeto de estudo da série.
Enquanto alguns preferem simplesmente comparar a produção com sucessos como Stranger Things ou Black Mirror, considero Tales From The Loop algo próprio, com uma estrutura e atmosfera única, não só mais uma história sobre pequenas cidades afetadas por uma força misteriosa, o que é uma premissa bastante comum e pode ser vista desde o clássico Twin Peaks até a animação Gravity Falls. O importante não é a premissa, mas o que você faz com ela.
Os arcos dramáticos fazem com que a série tenha um ritmo mais lento, uma experiência introspectiva, com momentos de silêncio e um tom mais melancólico. Há episódios em que a trama principal não envolve diretamente as famílias, ainda assim contribui para a construção daquele mundo.
Cada episódio tem um ponto de vista completamente diferente do anterior, mas todos complementam a temporada introduzindo peças para um quebra-cabeça maior: em Loop seguimos uma garota tentando encontrar sua mãe, em Echo Sphere é apresentado um orbe influenciado pela passagem de tempo, e em Enemies descobrimos uma história de origem que não só nos informa sobre o presente como desenvolve um enredo sobre pessoas tentando corrigir o passado.
Episódios como Parallel e Stasis são os que mais se distanciam da trama principal, mas ainda assim tem seu próprio charme, principalmente Parallel, que começa como uma história sobre realidades paralelas e se transforma em um drama mais íntimo. Esses dois arriscam afetar a estrutura geral da temporada, mas não abandonam a proposta principal da série.
É notável como tantos nomes talentosos acabaram envolvidos nesse projeto, como a atriz Rebecca Hall e o veterano Jonathan Pryce, além de ter Jodie Foster na direção de um dos episódios. E Shane Carruth pode não ser um nome conhecido da maioria, mas foi uma boa surpresa ver que ele tem uma participação especial no elenco, mesmo que pequena. Para quem não sabe, Carruth dirigiu alguns filmes independentes de ficção científica, como o complexo Primer e o excelente Upstream Color.
Para terminar a menção de pessoas que admiro envolvidas nesse projeto, até mesmo o compositor Philip Glass faz parte do episódio inicial da temporada, mas a trilha sonora dos outros episódios é feita por Paul Leonard-Morgan, e ele não fica pra trás com um arranjo que atribui uma sensação quase nostálgica para a fotografia adaptada de Stålenhag.
Tales From The Loop é uma série que segue os moldes de outros grandes sucessos, mas se destaca na execução, apresentando mundos e personagens diversos sem depender de suas referências, explorando o que há de mais complexo na ficção científica, o ser humano.
A confirmação de uma nova série no universo Jornada nas Estrelas costuma ser recebida como uma boa notícia, e parece que teremos várias opções para entreter os fãs da franquia, seja com novas temporadas de Discovery, um spin off sobre a Seção 31, ou a animação Lower Decks, focada nos membros da tripulação que costumam ser representados como coadjuvantes. Mas nenhuma dessas novidades chamou tanta atenção quanto o retorno de Jean-Luc Picard, um dos capitães mais adorados da franquia e protagonista da série Jornada nas Estrelas:A Nova Geração (The Next Generation).
Interpretado por Patrick Stewart, Picard tinha a difícil tarefa de continuar o legado do carismático James T. Kirk (William Shatner) como o novo líder da franquia, o que conseguiu ao ponto de criar uma identidade forte o suficiente para dividir alguns fãs sobre qual seu capitão preferido. Outros personagens como Sisko, Janeway e Archer também assumiram o posto de capitão em seu próprio spin off derivado de Jornada nas Estrelas, mas o debate entre Kirk e Picard é recorrente. Ainda que Kirk seja importantíssimo para mim e sua “diplomacia de cowboy” tenha me divertido bastante, admito que Picard roubou meu coração com uma atitude menos extravagante e usando o discurso como a maior arma.
Há vários obstáculos no caminho de uma nova série estrelada por Picard, incluindo a necessidade de atrair uma audiência inédita para um personagem estabelecido, sem contar que os fãs já possuem uma série da franquia Jornada atualmente, Discovery, com uma abordagem mais dinâmica e voltada para a estética estabelecida por J.J. Abrams nos filmes da linha temporal Kelvin (criada para distinguir os filmes de Abrams, situados em uma “realidade alternativa”, dos clássicos da linha Prime). Isso pode ser um problema, já que uma série focada em Picard parece demandar um tratamento mais introspectivo, com atenção maior aos diálogos e as atuações, se nos basearmos na abordagem da série Nova Geração.
O resultado é um híbrido entre a ação rápida da timeline Kelvin e da série Discovery, com toques de A Nova Geração, dando espaço para pequenos momentos de reflexão e silêncio (pequenos mesmo, infelizmente). Talvez nem todos concordem com essa decisão, mas particularmente considero um compromisso necessário, desde que tenhamos um enredo e personagens consistentes.
Da mesma forma, Picard se beneficia dos avanços tecnológicos e o orçamento atual da televisão para entregar um visual cinematográfico, com uma câmera dinâmica, capaz de dar mais atenção aos detalhes, além de um tratamento melhor nas cores e uma estética limpa. Ao longo dos dez episódios tivemos coreografias mais elaboradas, não só nas empolgantes batalhas com Phasers, mas nos confrontos espaciais com a presença de novas naves e algumas naves clássicas remodeladas. É um pouco estranho ver tanta ação em volta de Picard, mas faz parte do compromisso mencionado no parágrafo anterior, então é compreensível.
Começamos a série com um Picard aposentado, conhecido como o ex-almirante que abandonou a federação para liderar uma frota de resgate depois do surgimento de uma supernova que acabou destruindo o planeta Romulus (uma ligação com os filmes da linha Kelvin). O que já era uma missão arriscada, logo transforma-se em tragédia depois de um grupo de sintéticos se rebelarem, causando a devastação do estaleiro de Utopia Planitia, localizada em Marte. Além de lidar com as repercussões de suas ações, Picard conhece Dahj, uma jovem procurando refúgio ao lado do ex-almirante, mas as coisas pioram quando ela é procurada por uma entidade misteriosa chamada Zhat Vash, organização secreta envolvida com a Tal Shiar, liderada por agentes romulanos.
Ainda que tenha algumas vantagens em comparação à Nova Geração, Jornada nas Estrelas: Picard sofre em outros departamentos, principalmente no enredo e na estrutura narrativa, algo que a franquia costuma trabalhar com muito cuidado. Muitos fãs costumam colocar a culpa de algumas inconsistências do universo Trek no atual responsável pela franquia, o produtor executivo Alex Kurtzman, uma figura que esteve por trás dos filmes de J.J.Abrams e supervisiona todas as novidades envolvendo Jornada nas Estrelas.
Independente do responsável (vamos ser honestos, é o próprio Kurtzman), estou aqui para questionar alguns pontos da trama e elementos narrativos que poderiam ser melhor aproveitados ou simplesmente abandonados por completo, mas também devo dar crédito onde ele merece ser dado.
Mais tripulantes, mais problemas
Patrick Stewart é uma figura forte o suficiente para sustentar a popularidade de uma série, mas precisamos aceitar que ele está mais velho e não pode estar sozinho em uma trama sobre exploração espacial, ainda mais uma cheia de ação como a franquia tem sido nos últimos anos (queira ou não).
Para ajudá-lo, a série traz alguns personagens interessantes, como o sedutor capitão Christóbal Rios (Santiago Cabrera), a ex-membro da federação Raffi Musiker (Michelle Hurd), a ciberneticista Dra. Agnes Jurati (Alison Pill) e o romulano guerreiro Elnor (Evan Evagora). Além deles, temos o retorno de personagens estabelecidos, como Sete de Nove (a excelente Jeri Ryan), de Jornada nas Estrelas: Voyager; o borg Hugh (Jonathan Del Arco) e o andróide Data (Brent Spiner), mesmo que através de visões e flashbacks.
Algumas dessas adições foram muito boas, introduzindo novos componentes que enriquecem o universo da franquia, como a personagem Rios, sua nave La Sirena e os vários tripulantes holográficos, cada um carregando um pouco da personalidade do capitão. O conceito de uma Holomatrix, com um “Holograma Médico de Emergência” (EMH), não é novidade, principalmente porque já tivemos o ótimo Doutor da nave USS Voyager, mas a interação do capitão com suas outras versões criou alguns dos momentos de alívio cômico mais genuínos na série, isso por conta da atuação de Cabrera.
Raffi e Elnor são antigos conhecidos de Picard quando começamos a série, mas enquanto Raffi recebe uma subtrama pouco explorada envolvendo seu filho, com o qual não se comunica mais, Elnor é uma proposta atraente mas sem desenvolvimento algum (seu único propósito é surgir em cenas onde a ação é necessária, como um deus ex machina na maioria das vezes).
A Dra. Jurati é um caso mais complicado. Ela é a personagem mais passiva da temporada, geralmente reagindo e fazendo pequenos comentários tímidos, mas sua presença na aventura pareceu estranha desde o princípio. Com uma motivação fraca, a revelação de que ela estava infiltrada na missão de Picard para atrapalhar seus planos foi um dos pontos mais previsíveis da série. Para piorar, ela é responsável pela morte de Bruce Maddox, personagem pouco presente – mas importante – em Nova Geração; e mesmo depois de admitir o crime, termina a temporada como se nada tivesse acontecido, livre, leve e solta ao lado de seu novo namorado, Rios. Devo admitir que esse é um dos casais mais sem química que já vi, mas quem sou eu para julgar?
Vale mencionar aqui que algumas pessoas já estão incomodadas com uma rápida sequência em que Sete de Nove e Raffi parecem estar trocando carícias por alguns segundos, e mesmo que eu considere Raffi um pouco cliché (com sua atitude indiferente e piadas sarcásticas), convenhamos que a base de fãs de Jornada nas Estrelas conta com uma parcela pouco liberal, o que não faz sentido considerando o quanto a franquia lutou para derrubar preconceitos de gênero.
Alguns personagens ainda não foram mencionados, isso porque eles vão estar presentes em breve. Vamos continuar.
Desejo de morte
Ao tentar estabelecer um tom “sombrio” para Jornada nas Estrelas: Picard, a série tenta executar cenas com mais violência e sangue, o que nunca foi uma prioridade para a franquia, mas aparentemente consideram necessário que todos assistam a gráfica morte de Icheb, personagem presente em Voyager que teve um arco trágico como um ex-borg tentando se adaptar ao mundo e aprender como ser tão talentoso quanto sua líder, Sete de Nove.
É uma pena ver que aqui o reduziram a uma rápida cena em que tem seu olho arrancado e é deixado em uma mesa de cirurgia para morrer, uma conclusão deprimente para alguém que representava um pouco da visão otimista do futuro que fez a franquia ser tão adorada. E isso é tudo, Icheb foi arrastado de volta para Jornada com o único propósito de ser uma morte chocante o suficiente para motivar Sete de Nove a seguir em uma vingança que dura… um episódio.
E o extermínio de personagens já estabelecidos não se limita ao borg Icheb. Por algum motivo, Hugh também é morto em um confronto com uma das principais antagonistas da temporada, a romulana Narissa Rizzo (Peyton List). Hugh é um dos símbolos mais importantes para a história dos Borg, o primeiro do coletivo a adquirir uma identidade, destaque de mais de um episódio de Nova Geração, ele representa o que todos os borg podem ser. Infelizmente, em Picard ele serve como uma participação especial para agradar os fãs de longa data e fonte de explicação para algumas pontas soltas da trama, e no fim segue o mesmo rumo de Icheb, em uma morte menos violenta, mas igualmente desnecessária.
As críticas sobre a forma que a série parece “matar seus personagens” apenas como um recurso para impactar o público, tem sido uma preocupação desde o momento em que a Dra. Jurati mata Bruce Maddox no mesmo episódio em que ele foi introduzido.
Mas nem tudo é negativo. Tirando todas as mortes (nunca escrevi tanto a palavra morte, e nunca imaginei escrever em um texto sobre Jornada nas Estrelas) desnecessárias, a série teve uma saída inteligente para utilizar a personagem do tenente-comandante Data, aqui atuando como uma representação das frustrações de Picard e a memória de alguém que entendia e acreditava em sua integridade. A decisão de finalmente dar um descanso para a consciência de Data, que teve seu corpo destruído após se sacrificar no filme Jornada nas Estrelas: Nêmesis, foi um dos grandes acertos da temporada.
Antes de sair deste tópico, não vou deixar de mencionar a “morte” do próprio Jean-Luc Picard, que depois de sofrer por anos sabendo de sua inevitável síndrome cerebral (Irumodic Syndrome), acaba sucumbindo. Mas através de uma saída conveniente do roteiro, Picard sobrevive recebendo um “novo corpo” desenvolvido pelo Dr. Altan Inigo Soong, o filho de Noonian Soong, responsável pela criação de Data. Ainda não sei como me sinto sobre isso, então melhor mudar de assunto.
Eu, Borg?
Antes mencionei um problema com a estrutura narrativa da temporada, e não foi à toa. Além do desconforto de toda a violência desnecessária (já tivemos cenas pesadas na franquia, mas o olho arrancado de Icheb parece ter saído de algo como Jogos Mortais) e as mortes para chocar o público, Picard tenta inserir constantemente referências e easter eggs para os fãs de Nova Geração.
Não há problema algum nisso, eu mesmo adoro perceber alguma menção ao resto do universo de Jornada, seja nos diálogos ou no visual, mas parece que os produtores de Picard queriam demais introduzir de uma vez todos os elementos que fizeram do personagem tão famoso, entre eles a sua relação com os borg, uma parte essencial da história de Jean-Luc, mas que aqui se resume em um ponto solto da trama que realmente não se conecta com os demais.
Parte da primeira metade da temporada envolve Picard e sua nova equipe a procura da androide Soji (Isa Briones), que está localizada em um Cubo Borg abandonado chamado de Artefato, transformado em laboratório de pesquisa pelos romulanos. Eles estão usando o local para estudar os borg com a ajuda de Hugh.
Um dos romulanos é o misterioso Narek (Harry Treadaway), que rapidamente seduz Soji para investigá-la. Eles desenvolvem um relacionamento, mas Narek é constantemente alertado por sua irmã, Narissa, sobre a importância da missão e como não deve se distrair. A relação entre Narek e Narissa carrega um caráter quase incestuoso (isso pode ter a ver com a visão do produtor Alex Kurtman, explico mais pra frente) nunca justificado.
Quando Picard finalmente chega ao Artefato, tem uma rápida conversa com Hugh, mas logo precisa fugir por conta de Narissa, que está caçando Soji. A interação entre Picard e Soji é rápida e se limita ao cliché do “protagonista pedindo que alguém em apuros confie nele sem motivo algum”. Com a ajuda de Hugh, eles conseguem fugir para o planeta Nepenthe, onde Will Riker (Jonathan Frakes) e Deanna Troi (Marina Sirtis) moram. Hugh, Elnor e Sete de Nove permanecem no Artefato para tentar impedir Narissa de destruir os borg remanescentes que permanecem em descanso e desconectados do coletivo.
Sete de Nove tenta se comunicar com o Artefato e acordar os borg, mas eles são ejetados para o espaço por uma Narissa furiosa. Vendo que não há mais o que se fazer com o Artefato, a subtrama do cubo borg é abandonada e parece ter servido apenas para introduzir Narek e Soji, mas nenhum dos dois tem uma forte ligação com os borg, um é romulado e a outra é androide, então eles trabalharem no Artefato é apenas circunstancial. O retorno de Hugh não tem peso significativo na trama, nem sua morte é o suficiente para afetar o resto da história já que os próximos episódios correm para apresentar Coppelius, o planeta natal de Soji e os vários sintéticos do Dr. Altan Inigo Soong.
Em Coppelius, mais subtramas envolvendo traição e conspiração tomam conta da maior parte da história, e agora que Narissa parece ter sido derrotada por Sete de Nove (depois de ser derrubada de uma altura que mataria qualquer um; mas não há limites para as formas mirabolantes na qual os roteiristas podem trazer personagens de volta), Narek aparentemente muda de lado e a irmã de Soji assume o posto de antagonista.
O pior de dois mundos
Alex Kurtman é um problema. Não o considero uma ameaça para a popularidade da franquia, na verdade acho que Jornada nas Estrelas tem chegado com cada vez mais força para novos públicos, e é ótimo ver esse sucesso na TV. Enquanto alguns fãs reclamam sobre a representatividade de minorias e exigem menos foco em debates políticos, o que não faz sentido algum já que esses tópicos são praticamente intrínsecos da franquia (falamos sobre isso em outro texto), acredito que o maior problema enfrentado por Jornada está na narrativa.
Em entrevista para a Variety em 2019, o produtor executivo Alex Kurtman fez questão de mencionar como a série Game of Thrones o influenciou durante o desenvolvimento de Jornada nas Estrelas: Picard. Além das duas séries não parecerem semelhantes, seja por temas ou gênero, o sucesso da HBO carrega um tom mais sério e realista, o que não é novidade para Jornada, mas GOT preza por enredos carregados de conspiração, traição e reviravoltas. E é exatamente o que Kurtman procura para suas novas produções, tentando “subverter expectativas” (suas próprias palavras), não importa o quanto isso possa afetar negativamente a trama, a prioridade é surpreender à qualquer custo (agora são as minhas palavras).
“Ninguém reclama por ter que pagar para assistir Game of Thrones. Podemos fazer o mesmo” (Kurtman, 2019)
Pode não parecer, mas podemos ver algumas influências de Game of Thrones em Discovery e Picard, como a relação aparentemente incestuosa entre Narek e Narissa, claramente inspirada em Jamie e Cercei Lannister; até mesmo a sequência em que Lorca luta contra um guarda raivoso da Imperatriz Georgiu é bastante similar ao famoso combate entre Oberyn Martell e o Montanha na quarta temporada de GOT.
Não só a coreografia parece “pegar emprestado” alguns movimentos, como a motivação para o guarda estar tão nervoso envolve a morte de sua irmã pelas mãos de Lorca, assim como Martell procura vingança pelo Montanha ter matado a sua irmã. Como se já não fossem coincidências o suficiente, a conclusão da batalha em Discovery não surpreende quem já assistiu a de Game of Thrones. E esses são apenas alguns casos soltos.
Na mesma entrevista, Kurtman se orgulha por inserir elementos como nudez Klingon (esse assunto também não é novidade, e já tivemos casos onde a nudez foi um problema, principalmente na sexualização desnecessária de algumas personagens, como T´Pol em Enterprise) e palavrões: “Usamos a palavra ‘f*ck’, a propósito”.
O que acabei de mencionar não é exatamente um problema com a narrativa, mas um indício de como Discovery e Picard planejam “subverter as expectativas” do público através da violência, sexo e linguagem vulgar, e é assim que a narrativa é afetada negativamente, por dar destaque para o choque, deixando de lado o que realmente fez de Jornada nas Estrelas uma franquia única, com debates envolventes e questões que eram realmente levadas a sério, não só introduzidas com o propósito de surpreender todos com o quão corajosos eles são em colocar uma almirante da frota estelar ofendendo Picard com a palavra “Sheer Fucking Hubris” (algo como “Que arrogância de merda”) ou uma romulana perguntando para seu próprio irmão se ele “f*deu” outra personagem ¯\_(ツ)_/¯
Para onde vamos, afinal?
Jornada nas Estrelas nunca teve medo de tocar em assuntos delicados, debatendo política, racismo, gênero e o que fosse necessário. Isso era o suficiente para construir uma história envolvente, que fizesse o público realmente refletir sobre seu papel nessas questões. Mas é difícil termos uma conversa significativa e necessária quando a principal preocupação da franquia passa a ser a “subversão de expectativas” e a corrida para chegar na próxima reviravolta superficial.
O formato serializado de Picard pode ser um dos responsáveis por termos tantas revelações, mortes e mudanças no foco narrativo, isso porque ao contrário do formato clássico, onde cada episódio trazia uma história contida, agora temos dez episódios com um arco principal que precisa ser constantemente abastecido com intrigas e surpresas para manter o público investido. Talvez eu esteja atribuindo a culpa no formato com certo exagero, mas não é como se a afirmação não tivesse algum nível de veracidade.
E depois de tudo, parece que odiei Picard, mas fiz questão de ressaltar os aspectos positivos, principalmente nos primeiros parágrafos desse texto. Ainda há muito o que eu gostaria de mencionar por aqui, como as participações especiais, a forma como os vilões foram representados, as referências, entre outras coisas, e talvez eu volte a falar sobre Picard em outro momento. Por enquanto, vamos ficar na torcida para mais novidades sobre as futuras séries da franquia (estou ansioso para Lower Decks), e aproveite para comentar com as suas considerações sobre essa primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard.