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Admirável Mundo Novo | O direito de ser infeliz

Aldous Huxley entrega um estudo notável sobre a humanidade e questiona se realmente é possível ou válida a promessa de uma utopia.

Aldous Huxley entra na lista de autores que mudaram completamente a ficção científica e a literatura pela maneira que usou o seu enredo para construir uma crítica social e política pertinente até hoje. Sua narrativa distópica, Admirável Mundo Novo, publicado originalmente em 1932, coloca o nome de Huxley entre grandes como George Orwell (1984) ou Ievguêni Zamiátin (Nós), mas há uma riqueza em detalhes e elementos que fazem com que sua obra divirja das demais.

A proposta inicial de Admirável Mundo Novo está na exploração da humanidade através do avanço das civilizações, principalmente em um contexto tecnológico. O que a obra consegue, além de entregar uma leitura provocante, é explorar tópicos inéditos, prevendo avanços científicos como os conceitos de hipnopedia e manipulação psicológica, assim como estudos envolvendo manipulação genética e a abordagem behaviorista.

Na futurística Londres de 632 d.F, é o Estado Mundial quem dita as regras, sustentando o seu lema de “comunidade, identidade e estabilidade”. Criados em laboratório, os habitantes possuem funções pré-determinadas para manter uma hierarquia social (dividida em castas) capaz de atingir um equilíbrio utópico, um futuro onde a velhice pode ser retardada, a solidão é literalmente proibida e pensamentos ruins podem ser eliminados pelo consumo de uma droga chamada soma.

Assim, somos apresentados ao personagem Bernard Marx, que ao contrário de seus companheiros faz questão de ser crítico ao governo e possui um complexo de inferioridade por conta de sua baixa estatura, mesmo fazendo parte de uma das castas mais altas da sociedade. Ao contrário dele, Lenina Crowne é uma jovem contente e sem medo de demonstrar seus desejos sexuais ou a alegria em depender de soma. O único amigo de Marx é Helmholtz Watson, escritor insatisfeito com seu trabalho. 

Admirável Mundo Novo

Aproveitando suas férias ao lado de Lenina, Bernard visita Malpaís, uma reserva selvagem fora do território comandado pelo governo. Eles conhecem John, um rapaz que cresceu na reserva depois de sua mãe se perder no local e engravidar, uma vergonha tão grande que a fez abandonar o Estado Mundial. Isso também faz com que John não seja acolhido pela tribo, e aprenda a ler por meio da única fonte de leitura acessível, uma coleção das peças de Shakespeare. Ao retornar para a cidade, Bernard e Linda são acompanhados pelo selvagem.

Narrativas distópicas correm o risco de se limitar aos elementos superficiais do gênero, como os governos totalitários e a ambientação desoladora, e oferecer uma construção de mundo rasa e péssima execução. O principal risco de Aldous Huxley está em sua tentativa de examinar um sistema totalitário através de uma aparente utopia. Há regras e limitações, mas a verdadeira distopia é aquela abraçada pela própria população, confortável em sua alienação e ignorância. A farsa é acolhedora, e não há tempo para insatisfação contra o governo quando ele proporciona tantas opções tentadoras e convenientes de manter a sociedade distraída.

“Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos […] e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão” (Huxley)

Apoiado em uma crítica direta ao Fordismo, os conceitos de produção em massa e a homogeneidade de seres humanos em Admirável Mundo Novo são essenciais para compreendermos a construção de mundo proposta pelo autor. Mesmo que os personagens julguem-se livres de religiões ou mesmo um Deus, a admiração instintiva à figura do magnata industrialista Henry Ford, considerado o “criador” dessa sociedade, carrega seus próprios dogmas. Não só clamam e juram em nome de Ford, como todo o calendário é remodelado para adotar o termo d.F (“depois de Ford”). A data na obra é descrita como 632 d.F, equivalente ao ano 2540 d.C. 

De acordo com Huxley, sua maior inspiração para a obra é o autor H.G. Wells e seu romance Men Like Gods. Valendo-se de alguns elementos, Admirável também compartilha similaridades (ao ponto de alguns considerarem plágio) com a distopia Nós, do russo Ievguêni Zamiátin. Além de referenciar Wells, Huxley utiliza outros nomes não ficcionais para uma base mais realista no estabelecimento do contexto da obra, e ao lado de Henry Ford, temos figuras como Sigmund Freud e Ivan Pavlov criando um paralelo com os principais temas da obra.

Com tantos argumentos para explorar, o texto limpo e descritivo de Huxley contribui para uma leitura que deixa clara a sua intenção e não cai na armadilha de ser enfadonho. Ainda que seja necessariamente expositivo através de alguns diálogos e tenha um clímax onde acaba soando mais didático do que o exigido, o autor faz um excelente trabalho na execução dos temas que propõe. Compreendemos as circunstâncias daquele mundo, portanto o livro oferece informações como a extinção de determinados animais e línguas ou seus rituais sociais. Por serem criados em laboratório e receber funções específicas, os personagens acham conceitos como casamento ou família uma noção absurda e comicamente ofensiva.

O autor Aldous Huxley assinando obras
Aldous Huxley

Entre as várias previsões imprevistas de Huxley, a concepção de um “Cinema Sensível” é uma das mais certeiras, apresentando um cinema sensorial onde toda a experiência de estar em uma sala escura é elevada por conta de artifícios sensoriais, como a sessão ser acompanhada de “um órgão de perfumes”. Com exceção de termos hoje tecnologia capaz de fazer cadeiras vibrantes e realidade virtual, o livro também aproveita o entretenimento descartável com o propósito de manter sua população dessensibilizada, exibindo filmes com teor racista, xenofóbico e sexista.

A experiência de assistir uma obra de arte é trocada pelo próprio ato de ir ao cinema e se maravilhar com todas as novas tecnologias capazes de forçar uma imersão que o filme sozinho é incapaz de realizar. Os habitantes do Estado Mundial tem bibliotecas a sua disposição, mas ler é um esforço mental e solitário demais para eles, e por isso as reuniões no cinema sensível são uma das formas mais cômodas de interação.

“A beleza atrai, e nós não queremos que ninguém seja atraído pelas coisas antigas. Queremos que amem as novas […] O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem”. 

O enredo de Huxley enfatiza o desenrolar dos eventos e deixa o núcleo dramático em segundo plano. Não obstante, há espaço para boas cenas envolvendo as personagens, e mesmo que a obra alterne pontos de vista, eles se mantém entre Bernard, Lenina e John. Enquanto Bernard serve como o observador inicial capaz de ressaltar as inconveniências do mundo ficcional e Lenina cai em um infeliz padrão de narrativas especulativas em que personagens femininas são tratadas apenas como interesse amoroso ou acompanhante reagindo aos feitos do protagonista masculino, é John a figura mais fascinante e complexa. 

Apelidado de “Selvagem”, John é introduzido em um ponto de ruptura da história. Ele tem uma abordagem mais direta com o mundo distópico, enfrentando o contraste cultural entre sua reserva, limitada em recursos, mas rica em rituais e história; e o Estado Mundial, abundante em informação, mas sem interesse por parte da população. Fazer com que o selvagem use a literatura de Shakespeare como a sua única forma de comunicação verbal, é uma das decisão mais inteligentes de Huxley. Em um mundo onde a cultura não é incentivada e a população está confortável com seu destino pré-determinado, a beleza de uma poesia pode não só confundi-los, como incomodar a estrutura social. 

“As flores do campo e as paisagens […] têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica”

Admirável Mundo Novo se destaca entre outros livros do gênero por conta de sua abordagem e execução. Em uma narrativa clara, Aldous Huxley entrega um estudo notável sobre a humanidade e questiona se realmente é possível ou válida a promessa de uma utopia. 

Admirável Mundo Novo

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