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O Horror Cósmico de H.P. Lovecraft e suas Influências

“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”

Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples. 

Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?

Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:

“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.

Arte de Andree Waliin sobre o Mito de C´tchullu
Arte de Andree Waliin

Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.

Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas. 

Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.

Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança. 

Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta. 

O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.

O escritor Alan Moore
Alan Moore

A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.

Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.

Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde

No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível. 

Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.

Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.

Filme O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter

Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.

O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.

Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.

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A Parábola do Semeador | A Empatia é a Salvação

“Todas as lutas são lutas por poder”

A ficção científica dispõe de diversas narrativas capazes de experimentar possíveis realidades distópicas, seja através dos governos totalitários ou até a opressão por conta de uma certa utopia alienadora. Muitas vezes, essas histórias são protagonizadas por um herói insatisfeito com a sua condição, que por fim se rebela contra o sistema e consegue trazer uma mudança no pensamento de todos, acabando com a figura opressora. Para a autora Octavia E. Butler, esse herói não existe, mas a mudança é possível, apenas exige muito esforço.

Em seu livro A Parábola do Semeador, lançado originalmente em 1993, Butler comenta a maneira na qual a história se repete através do comportamento humano. Seguindo a filosofia de vida de Nina Simone, na qual afirma que “o dever do artista é refletir sobre sua realidade”, Butler especula sobre nossos caminhos e os obstáculos que negligenciamos, principalmente os econômicos e ambientais.

A Parábola do Semeador começa em 2024 e é narrado por Lauren Oya Olamina, uma jovem vivendo em uma sociedade falida, afetada por mudanças climáticas e escassez de recursos básicos, como a própria água. Além disso, as cidades são controladas por grandes corporações, e quem não trabalha para elas, simplesmente tenta sobreviver como pode.

Arte conceitual de Eran Fowler
Arte conceitual de Eran Fowler

Lauren mora na Califórnia, em uma comunidade pequena, onde todos precisam andar armados e revestir os muros em volta com arame farpado e pedaços de vidro, isso porque são constantemente invadidos por pessoas procurando roubar seus poucos pertences, isso quando não possuem intenções ainda mais malígnas. Como se a situação não fosse ruim o suficiente, Lauren lida com um fenômeno chamado hiper empatia, que faz com que ela compartilhe a dor e o prazer de outras pessoas. Em um mundo onde existe apenas tristeza e solidão, sentir em demasia pode ser mortal. 

“Mas se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer dor desnecessária a alguém?”

A literatura de Butler é carregada de símbolos, e por ser uma autora preta que começou a escrever ficção científica, gênero constituído majoritariamente por homens brancos, em uma época em que as manifestações por direitos iguais para a comunidade afro-descente nos Estados Unidos estava no auge, é fácil afirmar que seu ponto de vista era mais do que necessário, e isso explica o impacto de seu texto e a força com a qual retornou nos últimos anos, principalmente influenciando diretamente movimentos literários como o Afrofuturismo. No Brasil, suas obras têm sido publicadas pela editora Morro Branco (que também fez um excelente trabalho de resgate de outro grande autor, Samuel R. Delany).

A Parábola do Semeador carrega, em sua maior parte, um tom pessimista e deprimente, considerando a quantidade de violência “gráfica” durante os momentos mais pesados da obra, marcados por sangue e abuso. Octavia é uma escritora sem rodeios, seu texto é protesto e ela não tem medo de comentar temas arriscados de forma visceral. Sexo, religião, política e racismo são tópicos indispensáveis; e por mais que essa seja considerada uma expressão batida, poucos autores realmente “permanecem relevantes e atuais” como Butler.

Octavia E. Butler
Octavia E. Butler

Entre as diversas subtramas apresentadas no livro, mesmo que estejam acontecendo em segundo plano, temos um personagem chamado Donner, um político vivendo pela sua promessa em “trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século XX”. As semelhanças com o contexto político atual não é uma previsão, mas as preocupações de uma autora capaz de estudar a humanidade e nos lembrar como a história é cíclica, e vive se repetindo.

“Os fracos podem vencer os fortes se os primeiros resistirem. Persistir nem sempre é seguro, mas costuma ser necessário”

Butler nos traz uma protagonista complexa. Lauren é jovem e impulsiva, mas também é inteligente e sua empatia faz com que o senso de comunidade seja mantido mesmo em um cenário tão desolador. A relação de Lauren com sua religião, e por extensão seu Deus, é outro grande diferencial da obra. Para a personagem, Deus representa mudança, mas é indiferente, não favorece ou detesta, apenas é. Essa abordagem mais filosófica encaixa bem com a natureza da narrativa, principalmente considerando sua ambientação.

A escrita da autora é quase cinematográfica, com descrições rápidas, mas eficientes. Um diálogo pode mudar completamente o rumo de tudo; há atenção aos detalhes, como pequenos trejeitos dos personagens; as sequências de ação são cheias de tensão por conta do texto limpo e objetivo, mas impactante.

Arte de John Jude Palencar
Arte de John Jude Palencar

Há até espaço para que Butler crie sua própria corrida espacial, introduzindo elementos como exploração e colonização do espaço, que continua acontecendo, mesmo com todos os problemas na Terra de 2024. Esse pode ser um comentário da autora sobre os movimentos pelos direitos civis da década de 1960, onde era possível ver o contraste entre a comunidade afro-americana lutando por igualdade racial enquanto o resto da atenção dos EUA se voltava à chegada do homem à lua.

A Parábola do Semeador é um livro intenso e corajoso. Até onde o ser humano consegue aguentar e seguir em frente, mesmo que todos pareçam estar contra você? A jornada de Lauren é difícil e perigosa, mas é necessária apenas uma semente de empatia para que uma enorme mudança aconteça. 

Tudo o que você toca.

Você muda.

Tudo o que você Muda.

Muda você.

Capa do Livro A Parábola do Semeador

A Parábola do Semeador (Octavia E. Butler, 1993)

Edição Nacional de Editora Morro Branco, 2018

Tradução de Carolina Caires Coelho

Projeto Gráfico de Luana Botelho