Spoilers das temporadas anteriores de Star Trek: Discovery.
Não é novidade que algumas produções de Jornada nas Estrelas passam pelo mesmo problema: uma temporada de estréia inconsistente e/ou dificuldade para encontrar sua identidade nos primeiros episódios. A Nova Geração, Voyager e Enterprise sofreram com mudanças nos bastidores e narrativas pouco envolventes no início, mas cada uma delas conseguiu encontrar um ótimo ritmo ao longo do caminho (infelizmente, Enterprise não pôde desfrutar disso, já que foi cancelada). Star Trek: Discovery ainda é um caso em aberto, com duas temporadas completamente distintas em proposta, mas o mesmo tom.
Enquanto a sua temporada de estréia foca em um embate com os Klingons e universos espelhados, o ano seguinte parecia “atirar para todos os lados”, tentando reunir diversas ameaças, como inteligências artificiais, a já-não-tão-secreta Seção 31, as criaturas Ba’ul e anomalias temporais, além de ter a tarefa de reintroduzir os personagens Pike (Anson Mount), Spock (Ethan Peck) e Número Um (Rebecca Romijn) – uma reunião que logo rendeu mais um spin-off da franquia, chamado Strange New Worlds.
Portanto, Discovery encontrou uma solução para poder desenvolver uma narrativa própria, e ao transportar a história de Burnham e companhia para um futuro distante, a série conseguiu se livrar da obrigatoriedade em tentar equilibrar uma tecnologia mais avançada com a estética mais “clássica” da linha temporal. Não é como se eles já estivessem fazendo um bom trabalho nesse departamento, mas com essa desculpa narrativa Discovery pode explorar a mitologia de Jornada sem se preocupar tanto com anacronismos.
Por conta dos eventos do final da temporada anterior de Star Trek: Discovery, Michael Burnham chega no futuro, atravessando mais de 900 anos de história. Mas por conta de uma viagem turbulenta e incerta, ela atravessa o portal temporal antecipadamente, e assim chega sozinha ao ano de 3.188. Sem rumo, Michael encontra Cleveland Booker (ou apenas Book), um humano cheio de segredos, mas que acaba sendo a única chance de Burnham sobreviver ao futuro hostil.
That Hope is You: Parte 1 tem um dos melhores exemplos de direção de arte da série até o momento, provavelmente por conta da equipe ter filmado cenas na Islândia e Canadá, grande parte sem a necessidade de um estúdio fechado. Com isso tivemos tomadas abertas de belíssimas paisagens naturais, com contrastes entre cachoeiras vivas e um deserto desolador e cinzento. Além disso podemos ver como a série introduz estruturas e tecnologias novas, sem precisar de qualquer conexão com o que foi estabelecido anteriormente. Uma das mais curiosas foi o uso do que parece ser nanotecnologia ou uma forma de manipular energia, algo que lembrou um conceito do livro O Fim da Eternidade, de Isaac Asimov. Algo bastante utilizado nesse episódio foi o conceito de transportadores portáteis, que pode ser interessante mas também corre o risco de resultar em soluções convenientes para o roteiro.
O episódio é dirigido por Olatunde Osunsanmi, que já esteve por trás de vários episódios da série, e aqui ele apresenta uma narrativa mais contida, principalmente por dar destaque para as interações entre Burnham e Book, os dois principais personagens do episódio. Essa foi uma boa decisão para desenvolver melhor um lado diferente e mais descontraído de Michael Burnham e fazer com que Sonequa Martin-Green mostre suas habilidades como atriz. Além dela, David Ajala faz um ótimo trabalho ao definir a personalidade de Book, que em apenas um episódio deixa claro como pode alternar entre intimidador e delicado sem problemas, sem contar que esse é um caso raro em que um roteiro de Discovery consegue estabelecer um personagem de forma envolvente em apenas um episódio.
Mesmo que o foco seja na relação dos personagens de Sonequa e Ajala, o episódio ainda traz as mesmas sequências de ação desenfreada e sem muita consequência, o que é um comprometimento que a série precisa fazer para poder atrair a atenção da base de fãs que considera Jornada nas Estrelas muito “cerebral”. Mas também há uma melhora no ritmo, que fica mais dinâmico e menos inconsistente, sem contar que esse episódio carrega um tom mais cômico e despretensioso, algo que considero muito bem-vindo e espero que continue no futuro. Aqui menciono rapidamente a participação especial do ator Adil Hussain, em um papel que claramente serve de referência para Battlestar Galactica. Ele pode ter uma presença mais pontual, mas significativa, trazendo um dos momentos mais emocionantes e até otimistas que Discovery já viu.
That Hope is You: Parte 1 é promissor e traz alguns mistérios (quando a tripulação chega; o que foi a Combustão?…), e se ele for indicativo do tom que a temporada seguirá, talvez Discovery finalmente tenha encontrado sua identidade, e vamos torcer para que não tenhamos mais mudanças inesperadas nos bastidores que causem a bagunça que foi a temporada anterior.
Star Trek: Discovery.
Episódio 3×01: That Hope is You: Part. 1
Lançado originalmente em 15 de Outubro de 2020.
Direção: Olatunde Osunsanmi.