“Todas as lutas são lutas por poder”
A ficção científica dispõe de diversas narrativas capazes de experimentar possíveis realidades distópicas, seja através dos governos totalitários ou até a opressão por conta de uma certa utopia alienadora. Muitas vezes, essas histórias são protagonizadas por um herói insatisfeito com a sua condição, que por fim se rebela contra o sistema e consegue trazer uma mudança no pensamento de todos, acabando com a figura opressora. Para a autora Octavia E. Butler, esse herói não existe, mas a mudança é possível, apenas exige muito esforço.
Em seu livro A Parábola do Semeador, lançado originalmente em 1993, Butler comenta a maneira na qual a história se repete através do comportamento humano. Seguindo a filosofia de vida de Nina Simone, na qual afirma que “o dever do artista é refletir sobre sua realidade”, Butler especula sobre nossos caminhos e os obstáculos que negligenciamos, principalmente os econômicos e ambientais.
A Parábola do Semeador começa em 2024 e é narrado por Lauren Oya Olamina, uma jovem vivendo em uma sociedade falida, afetada por mudanças climáticas e escassez de recursos básicos, como a própria água. Além disso, as cidades são controladas por grandes corporações, e quem não trabalha para elas, simplesmente tenta sobreviver como pode.
Lauren mora na Califórnia, em uma comunidade pequena, onde todos precisam andar armados e revestir os muros em volta com arame farpado e pedaços de vidro, isso porque são constantemente invadidos por pessoas procurando roubar seus poucos pertences, isso quando não possuem intenções ainda mais malígnas. Como se a situação não fosse ruim o suficiente, Lauren lida com um fenômeno chamado hiper empatia, que faz com que ela compartilhe a dor e o prazer de outras pessoas. Em um mundo onde existe apenas tristeza e solidão, sentir em demasia pode ser mortal.
“Mas se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer dor desnecessária a alguém?”
A literatura de Butler é carregada de símbolos, e por ser uma autora preta que começou a escrever ficção científica, gênero constituído majoritariamente por homens brancos, em uma época em que as manifestações por direitos iguais para a comunidade afro-descente nos Estados Unidos estava no auge, é fácil afirmar que seu ponto de vista era mais do que necessário, e isso explica o impacto de seu texto e a força com a qual retornou nos últimos anos, principalmente influenciando diretamente movimentos literários como o Afrofuturismo. No Brasil, suas obras têm sido publicadas pela editora Morro Branco (que também fez um excelente trabalho de resgate de outro grande autor, Samuel R. Delany).
A Parábola do Semeador carrega, em sua maior parte, um tom pessimista e deprimente, considerando a quantidade de violência “gráfica” durante os momentos mais pesados da obra, marcados por sangue e abuso. Octavia é uma escritora sem rodeios, seu texto é protesto e ela não tem medo de comentar temas arriscados de forma visceral. Sexo, religião, política e racismo são tópicos indispensáveis; e por mais que essa seja considerada uma expressão batida, poucos autores realmente “permanecem relevantes e atuais” como Butler.
Entre as diversas subtramas apresentadas no livro, mesmo que estejam acontecendo em segundo plano, temos um personagem chamado Donner, um político vivendo pela sua promessa em “trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século XX”. As semelhanças com o contexto político atual não é uma previsão, mas as preocupações de uma autora capaz de estudar a humanidade e nos lembrar como a história é cíclica, e vive se repetindo.
“Os fracos podem vencer os fortes se os primeiros resistirem. Persistir nem sempre é seguro, mas costuma ser necessário”
Butler nos traz uma protagonista complexa. Lauren é jovem e impulsiva, mas também é inteligente e sua empatia faz com que o senso de comunidade seja mantido mesmo em um cenário tão desolador. A relação de Lauren com sua religião, e por extensão seu Deus, é outro grande diferencial da obra. Para a personagem, Deus representa mudança, mas é indiferente, não favorece ou detesta, apenas é. Essa abordagem mais filosófica encaixa bem com a natureza da narrativa, principalmente considerando sua ambientação.
A escrita da autora é quase cinematográfica, com descrições rápidas, mas eficientes. Um diálogo pode mudar completamente o rumo de tudo; há atenção aos detalhes, como pequenos trejeitos dos personagens; as sequências de ação são cheias de tensão por conta do texto limpo e objetivo, mas impactante.
Há até espaço para que Butler crie sua própria corrida espacial, introduzindo elementos como exploração e colonização do espaço, que continua acontecendo, mesmo com todos os problemas na Terra de 2024. Esse pode ser um comentário da autora sobre os movimentos pelos direitos civis da década de 1960, onde era possível ver o contraste entre a comunidade afro-americana lutando por igualdade racial enquanto o resto da atenção dos EUA se voltava à chegada do homem à lua.
A Parábola do Semeador é um livro intenso e corajoso. Até onde o ser humano consegue aguentar e seguir em frente, mesmo que todos pareçam estar contra você? A jornada de Lauren é difícil e perigosa, mas é necessária apenas uma semente de empatia para que uma enorme mudança aconteça.
Tudo o que você toca.
Você muda.
Tudo o que você Muda.
Muda você.
A Parábola do Semeador (Octavia E. Butler, 1993)
Edição Nacional de Editora Morro Branco, 2018
Tradução de Carolina Caires Coelho
Projeto Gráfico de Luana Botelho