“Tudo isso aconteceu, ou quase. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras”
Kurt Vonnegut é um autor que entende a comédia como poucos, com ritmo e sutileza suficiente para fazer cada nova leitura uma experiência com novas sensações. Ainda que seu tratamento siga, geralmente, um ângulo mais descontraído e fácil de digerir pelo público, Vonnegut não evita tecer seus comentários ácidos sobre conceitos como política e filosofia. Isso porque o autor teve um encontro com o pior que a humanidade pode oferecer, tendo sobrevivido ao terror da Segunda Guerra Mundial. Mas não foi só isso.
“Billy Pilgrim ficou solto no tempo”. Assim somos apresentados ao personagem principal, sem rodeios. Pilgrim é um veterano de guerra com bastante história para contar, mesmo que algumas delas possam parecer mais absurdas do que o normal. Ser abduzido por uma raça alienígena e fazer parte de um zoológico humano não chega perto do horror que é sua experiência como soldado durante a Segunda Guerra Mundial. Pilgrim, o coitado, não consegue convencer as pessoas que tem a capacidade de visitar diversos momentos de sua vida instantaneamente e aleatoriamente. Agora ele pode estar sentado em um sofá assistindo as notícias, mas num piscar de olhos se encontra no meio do campo de batalha, sendo arrastado e humilhado por seus companheiros, cansados de sua atitude. Ainda que seja uma obra sobre guerra, Matadouro-Cinco não se importa com representações de grandes batalhas e segue uma premissa que utiliza mais a comédia e a ficção científica para dar seu relato incrivelmente pessoal sobre o que o autor passou. Vamos falar um pouco sobre a relação de Vonnegut com a guerra e as decisões narrativas tomadas com esse livro.
Os Fantasmas de Dresden
Como Billy Pilgrim, Kurt Vonnegut serviu na Segunda Guerra e acabou retido em Dresden, uma pequena cidade barroca na Alemanha, constantemente descrita como um ponto turístico cheio de beleza, comparada ao que o mundo tinha de mais charmoso e artístico, uma “Florença do Elba”. Dresden nunca foi uma cidade militar, sendo até aproveitada como um lugar independente dos conflitos da época. Foi por este motivo que ninguém estava pronto (mesmo em tempos como aqueles) para o que estava por vir: um bombardeio efetuado pelos próprios aliados que lançou toneladas de dispositivos incendiários na capital. O desastre foi uma das maiores atrocidades do período, deixando um número de baixas perturbador, principalmente quando lembramos que dos milhares, a maioria era constituída de civis. “Dresden era uma imensa labareda. A labareda devorava tudo o que fosse orgânico, tudo o que pegasse fogo” (p. 237).
A catástrofe esteve presente nas obras de Vonnegut, mas apenas de forma alegórica, como em Cama de Gato, onde atribui à figura do cientista Felix Hoenikker a responsabilidade por ter desenvolvido a bomba atômica. No caso, o livro dá destaque para o ataque de Hiroshima, o que levanta a questão: por que não abordar Dresden? O motivo é simples, era um tópico doloroso demais para ser revisitado, mas que precisa ser contado. Esse dilema é representado nas primeiras páginas de Matadouro-Cinco, onde o autor se posiciona como narrador do capítulo inicial para fazer uma brincadeira de metalinguagem, confessando suas preocupações em escrever um livro sobre algo tão íntimo.
É um começo inusitado, somos lembrados pelo próprio autor que tudo o que estamos prestes a presenciar é uma história saindo de sua máquina de escrever. Vonnegut arrisca perder uma conexão com o público, mas é neste mesmo instante que ficamos ainda mais intrigados com o rumo da jornada de Billy Pilgrim, seu protagonista, e nosso interesse apenas aumenta em ver como um autor tenta se desligar de sua própria narrativa, principalmente uma que se tornou tão essencial para seu desenvolvimento pessoal. Há um certo alívio em sua decisão, tanto que conclui seu relato mencionando uma tragédia bíblia, a de Sodoma e Gomorra, especificamente quando a esposa de Ló desobedece uma orientação divina e olha para trás, para toda a destruição, fazendo com que a mulher se transforme em uma estátua de sal.
Mas ela olhou. E eu a amo por isso, porque foi um ato muito humano.
Aí ela virou uma estátua de sal. É assim mesmo.
As pessoas não devem olhar para trás. Eu garanto que não vou fazer mais isso. Já terminei meu livro sobre a guerra. O próximo […] vai ser divertido. Este é um fracasso, e tinha mesmo de ser, pois foi escrito por uma estátua de sal.
Narrativa e Referências
Além da metalinguagem que atravessa a obra, tendo pequenas menções do autor dizendo onde estava durante o evento (“aquele ali no banco de trás, era eu”), Vonnegut emprega figuras de linguagem o tempo todo, a mais recorrente sendo a repetição de adjetivos para descrever a situação deplorável de algum personagem (“coitado”) ou frases que servem para acentuar o absurdo de alguns acontecimentos, talvez fazendo alusão à “regra não escrita” de como funciona a estrutura de uma piada, podendo ser repetida no máximo três vezes até perder a graça.
Em Matadouro-Cinco temos a frase mais conhecida do autor, repetida em demasia como uma forma de luto por alguém (ou algo) que teve um fim trágico: “É assim mesmo” (no original, “so it goes”). Isso é repetido em todos os capítulos; na verdade, em quase todas as páginas. No começo parece uma maneira leve de abordar as mortes e o caos, mas logo somos tomados pelo sentimento desconfortável de estarmos ficando cada vez mais acostumados com uma frase que representa algo tão deprimente. É o jeito inteligente de utilizar a comédia, como uma ferramenta de auto-crítica. O texto simples e limpo de Vonnegut, ao lado das ilustrações, atesta seu talento para escrever algo impactante com uma abordagem menos carregada nas palavras, deixando esse trabalho para a própria trama.
Há referências, é claro. Vonnegut tem um tipo de universo compartilhado em sua biblioteca. Neste livro encontramos figuras conhecidas de quem está acostumado ao autor, como um membro da família Rumfoord, importantíssima para a trama de Sereias de Titã; temos também o escritor de ficção científica Kilgore Trout, de Café da Manhã dos Campeões (uma obra posterior, mas com o mesmo personagem); e Eliot Rosewater, que empresta seu nome para outro livro de Vonnegut: God Bless You, Mr. Rosewater (ainda sem tradução no Brasil).
“pu-ti-uít?”*
Matadouro-Cinco é um livro denso em seus temas, mas leve na escrita. Considerada por muitos como uma obra-prima da ficção científica cômica (e pessoalmente, a melhor obra do autor que li até o momento), este é um exercício de memória que tenta soar despretensioso, mas não consegue esconder a indignação com tudo que aconteceu. Vonnegut não gosta da guerra, não quer envolvimento com ela, sequer gostaria de ler sobre ela. Mas ele precisa escrever, ele esteve lá.
Nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre (p. 37)
Toda a viagem espacial e a abdução pelos tralmafadorianos (a raça alienígena que Billy diz ter encontrado) abre a mente do protagonista da obra, o ensina sobre a nossa própria concepção de tempo e como lidar com o luto, percebendo que “quando uma pessoa morre […], ela está bem viva no passado. Todos os momentos, passado, presente e futuro, sempre existiram, sempre existirão”. Pode ser apenas a maneira estranha que Billy escolheu para sobreviver tanto tempo com as memórias de guerra, mas ele se sente bem assim. Mais uma vez Vonnegut questiona nossa liberdade, assim como fez em obras anteriores, e nos deixa sozinhos com perguntas que talvez ninguém consiga responder, nem mesmo no fim da humanidade.
É assim mesmo.
*pu-ti-uít?: Som dos pássaros. Os únicos que tem algo para falar sobre a guerra.
Matadouro-Cinco ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória Com a Morte(Slaughterhouse-Five),
de Kurt Vonnegut
Editora Intrínseca, 2019
Capa de Túlio Cerquize
288 páginas
Tradução de Daniel Pellizzari