Aviso: Possíveis spoilers (coisa leve).
Recentemente assisti a adaptação cinematográfica do quadrinho (AKA “gibi”) de Joe Kelly, I Kill Giants, e enquanto assistia não conseguia deixar de lado a sensação de que algo estava faltando, mesmo com o filme sendo bastante fiel em muitos pontos narrativos. Não sei se era questão de dinamismo durante as cenas de ação, de entrega dramática em momentos mais íntimos entre os personagens ou a direção pouco imaginativa… espera, era isso aí mesmo. Faltava imaginação, algo novo. É tudo bem parecido, o visual é bem atraente e a história segue basicamente cada capítulo na mesma ordem de acontecimentos, pelo menos a maior parte, diria que é bastante fiel ao enredo da HQ, e é aí que entra aquele meu problema com o longa.
Mas, vocês sabem, eu preciso contextualizar tudo e explicar ou refrescar a memória das pessoas sobre a premissa.
Lançada em 2008 pela editora Image Comics, I Kill Giants é desenvolvida por Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, e é protagonizada por Barbara Thorson, uma menina com poucos amigos, mas que consegue reunir uma mesa de RPG para horas e horas jogando Dungeons and Dragons, onde ela geralmente cumpre o papel de “Mestre” (aquele que narra e conduz a aventura imaginária), mostrando seu lado mais criativo, lado este que está sempre presente, mas ela tem que tomar cuidado para não se desviar de seu verdadeiro objetivo: “encontrar gigantes, caçar gigantes e matá-los”. Sua obsessão pelas criaturas é tamanha que se acha na obrigação de alertar todos de um ataque iminente e devastador, e munida de seu poderoso martelo, Kovaleski, segue em sua missão.
A trama de Joe Kelly traz uma proposta divertida e promessa de muita ação, mas também é o drama de uma personagem lidando com temas complexos para alguém da sua idade, então a única coisa que pode fazer é recorrer à um mundo fantástico onde ela acredita ser o melhor caminho para continuar negando a realidade. E é só o que vou dizer sobre a trama porque eu não quero estragar a experiência já que a HQ é ótima e facilmente uma das melhores da última década. Mas como nada passa despercebido pelo olhar da indústria cinematográfica, era óbvio que uma adaptação estava chegando.
Devo deixar aqui uma observação sobre o filme Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, 2016), já que muita gente fez comparações com I Kill Giants, mesmo que erroneamente. A HQ original de Joe Kelly saiu antes do livro, lançado em 2011, então temos uns três anos de diferença aí.
Dirigido pelo estreante Anders Walter, o filme é uma adaptação bem fiel ao material original, ainda mais considerando que os próprios responsáveis pela HQ são creditamos como roteiristas. Então isso é tudo, caso encerrado, não precisamos de mais nada além disso, não é?
Então porque ainda fica aquela sensação de que algo está faltando?
Uma afirmação que todos estão fadados a bater de frente, principalmente dentro da “comunidade nerd” (por falta de uma denominação melhor) é a de que “uma adaptação só pode ser boa se for fiel ao material original em todos os aspectos”. E é uma consideração válida, nós queremos ver aquele livro ou quadrinho sendo respeitado, seguindo a exata visão de seus criadores em cada detalhe, sem que nada mude. A essência tem que estar lá. Mas por algum motivos algumas destas mesmas pessoas também não se incomodam com a visão de Christopher Nolan para sua trilogia sobre o Cavaleiro das Trevas.
Sim, alguns elementos podem ter sido pegos de uma fase ou outra, mas o próprio diretor não parecia um grande conhecedor do herói encapuzado, mas fez questão de manter em primeiro plano tudo o que os fãs consideravam importante para o personagem não sofrer inconsistências gritantes. Tirando isso, sua Gotham era muito mais voltada para aquela estabelecida por Tim Burton em 1989, que contribuiu para reformular muito do que conhecemos atualmente do universo de Batman, inserindo sua ambientação e arquitetura mais gótica e a atmosfera de clássicos noir. Pode parecer pouca coisa agora, mas na época foi um marco e continua ecoando até hoje no consciente coletivo de todos os fãs do morcego. E quem diria, grande parte disso foi uma liberdade criativa do diretor e por conta dessas liberdades tivemos ótimos filmes como Blade e Hellboy, ambos de um aficionado pela nona arte, Guilhermo Del Toro. Mas falaremos mais disso daqui a pouco.
Como Del Toro, temos casos onde o responsável pela adaptação é um apaixonado pelo material original. Sam Raimi dirigiu a primeira trilogia de Homem-Aranha (fiz alguns textos sobre a ameaça aracnídea, é só clicar), estrelada por Tobey Maguire. Mesmo com pequenas modificações na roupa e outra que pode não ter agradado alguns envolvendo os cartuchos de teia –culpe James Cameron por isso -, ainda assim fica evidente como Raimi mescla a comédia e as breguices típicas de quadrinhos do gênero, mas desenvolve seus personagens e nunca deixa de lado o drama pessoal de Peter Parker, o que ele considera o coração de todas as histórias clássicas de Stan Lee e Steve Ditko.
E aí fica uma grande razão para não dependermos demais apenas da fidelidade ao material original: No cinema temos a visão de um diretor mais interessado em criar um espetáculo visual e uma narrativa envolvente do que apenas referências e easter eggs para os fãs acharem, e isso pode parecer um comentário óbvio, mas ainda assim nos apegamos demais aos personagens e suas histórias que fica um pouco difícil aceitar uma interpretação divergente da nossa. Porém o formato é diferente e as necessidades são outras. Vamos usar de exemplo um querido do público, Clube da Luta. Um livro impactante com uma mensagem forte no centro, cheia de metalinguagem e ironia narrativa, coisas que as palavras conseguem revelar de uma forma completamente diferente do cinema. Se em um momento Tyler Durden está fazendo um discurso real demais para as páginas do livro, no filme essa sensação é extrapolada e executada de forma inusitada, com o enquadramento saindo do lugar, a câmera trêmula e o ator olhando diretamente para nós, como se o filme estivesse queimando e fugindo do projetor. Isso foi uma liberdade tomada pelo diretor David Fincher, que fez um trabalho excelente e acabou recebendo elogios do próprio autor do livro, Chuck Palahniuk, sobre como a obra conseguiu criar algo novo e diferente sem sair da proposta de seu trabalho original.
Mas e quando o próprio criador está envolvido na adaptação, assim como Frank Miller esteve em Sin City (2005), dirigido por Robert Rodrigues? Também é complicado, e é um caso bem parecido com o de I Kill Giants, só que em Sin City o responsável pelas decisões narrativas e a direção era Rodrigues, enquanto Miller ficava mais ocupado supervisionando tudo e, quando podia, até dirigia algumas cenas (isso o motivou a realizar seu próprio filme em 2008, uma versão Millerizada de Spirit, o que não deu muito certo). Um dos maiores feitos de Sin City foi manter a paleta monocromática da HQ sem que ficasse estranho, mas sim convidativo e intrigante. É este tipo de adaptação que não faz apenas um longa ser um bom filme baseado em quadrinhos, mas apenas um bom filme.
Com tudo isso não quero dizer que devemos dar uma de Jodorowsky e violar completamente o material original e a visão de seu criador, mas aceitar novas interpretações e formas diferentes de contar uma história podem ser uma experiência incrível. Podemos até ver uma mudança total em perspectiva, como Tropas Estelares, com um livro e um filme com o mesmo tema, mas o debate passa longe de ser o mesmo. A versão cinematográfica de Paul Verhoeven é bem mais leve e cômica (alguns diriam “boba”) em tom e aborda seu comentário político de maneira mais satírica e niilista, uma interpretação que diverge muito da escrita mais intelectual de Robert A. Heinlein(independente de sua opinião política, Heinlein traz questionamentos que vão além da superficialidade da qual o roteiro do filme sofre).
O que eu quero não é fidelidade, mas um compromisso com o material, um que não precise impedir a fidelidade. O que os cineastas deveriam se perguntar não é “Como posso trazer essa história para a tela sem perder coisa alguma” e sim “O que eu quero enfatizar deste material?” (Scott Tobias, do AV CLUB).
Com isso em mente, voltamos para I Kill Giants.
O filme pode ser bem fiel, mas também toma pequenas liberdades. Ah, e nessa parte eu tentarei o máximo para não ultrapassar o território de spoilers.
Como na HQ, Barbara interage com criaturas assustadoras e outras nem tanto, já no filme muito dessa manifestação criativa da protagonista é executada de uma forma que posso definir apenas como “genérica”. Não só transformam algo relevante do material original em um grupo de figuras assustadoras (algumas só presentes no filme) sem qualquer personalidade, como perdem a relevância narrativa. Se na HQ o comportamento de Barbara e seu mundo desenvolvem a trama, aqui parecem apenas pontos obrigatórios que o filme precisava riscar da lista para chegar logo no final. E não me entenda mal, eu gostei do filme, achei bem divertido e me entreteve na maior parte, mas mesmo se nunca tivesse lido o trabalho de Joe Kelly, ainda assim estaria com essa indiferença, ou talvez até achasse pior sem conhecer o original.
No fim, fica difícil simpatizar com alguns personagens, principalmente quando não ganham espaço no roteiro. Imaginei que talvez a mudança na bully que intimida Barbara pudesse ser uma boa ideia, mas a sua presença no filme e total falta de importância evidencia ainda mais o que falei sobre “riscar pontos da lista”. A irmã de Barbara e sua melhor amiga estão mais conectados aos dilemas e obstáculos da protagonista, no entanto aqui a atenção do filme é maior nas interações com a psicóloga da escola, a senhorita Mollé, e eu não consigo deixar de imaginar que isso é por conta dela ser interpretada pela Zoe Saldana, o nome mais famoso no elenco, mas eu não quero entrar em debate sobre a indústria cinematográfica agora, então vamos seguir em frente.
O cinema é uma arte visual e é sempre bom quando um filme consegue mostrar muito dizendo pouco (aquele famoso “show, don´t tell”). E mesmo em cenas com longos diálogos como os do roteirista Aaron Sorkin (A Rede Social, A Grande Jogada), eles servem a favor da narrativa e não mastigam informação desnecessária para o público. Mas os quadrinhos são uma mídia diferente e às vezes as partes mais interessantes podem acontecer entre os painéis, onde você é o diretor e sua mente preenche com a imaginação.
Um ótimo exemplo disso (no caso, de como não fazer) é a vergonhosa versão de Ang Lee para o gigante esmeralda em Hulk (2003), um filme cheio de transições e inserções para criar divisões na tela como se fossem os painéis do quadrinho. Sério, é uma das coisas mais feias que eu já vi na vida – e eu gosto do Ang Lee.
Todas as noções de tempo, ritmo e movimento variam de acordo com o formato, e é a mesma coisa quando comparamos o cinema com os quadrinhos.
O Scott McCloud explica melhor do que eu:
“É por isso que acho um erro ver os quadrinhos apenas como um hibrido das artes gráficas e da prosa de ficção. O que acontece entre os painéis é uma coisa mágica que só os quadrinhos podem criar”.
Assistir I Kill Giants pode ter sido legal, mas não me prendeu como fã de cinema, não é memorável ou traz qualquer coisa nova, diferente ou arriscada, e olha que com uma premissa dessas o que não falta é oportunidade. O filme pode ser bem fiel, repete algumas falas da HQ, recria algumas cenas e faz várias referências, mas nunca tenta ser algo mais e se é para ver a mesma história, não é melhor ficar logo no quadrinho original?
Não sou daqueles que pensa que um filme PRECISA ter uma mensagem grandiosa ou crítica política para ser bom. Ser divertido já é o suficiente, todos gostam de assistir Curtindo a Vida Adoidado para passar um tempo com Ferris Bueller e seus amigos, mas para fazer com que o público continue voltando e se fascinando com o mesmo filme e os mesmos rostos, acredito que ele PRECISA acreditar no que está dizendo e ter coração, e isso não é coisa fácil, mas se você se esforçar, tem horas que sai um Homem-Aranha 2 ou Cavaleiro das Trevas. Tudo que precisa fazer é ser fiel aos princípios e os temas que fizeram o material original tão incrível, daí pra frente é só mostrar para todos o impacto que isso teve em você e compartilhar seu ponto de vista. Só assim podemos ter uma boa conversa.