Não é difícil entender como Neuromancer tornou-se um clássico.
O livro de William Gibson tem um enorme peso na história da ficção científica, principalmente por conta de todos os elementos que contribuíram para a construção do imaginário do gênero, como a introdução de conceitos sobre ciberespaço antes mesmo da popularização da internet (o livro foi lançado originalmente em 1984) ou a maneira como explorou e virou uma referência cyberpunk.
Na obra de Gibson, o virtual substitui o cotidiano da vida real. Seguimos Case, um hacker talentoso, porém infeliz em todos os outros sentidos, lidando com as consequências de ter usado suas habilidades para roubar um de seus empregadores. Como se não bastasse estar impossibilitado de acessar a matrix (em outras palavras, a rede global de computadores), o hacker descobre estar sendo caçado. Assim, com a oportunidade de recuperar seu acesso e consertar o passado, Case segue em uma missão arriscada.
O que Neuromancer faz é estruturar um mundo com componentes quase arquétipos para o cyberpunk, ajudando na sua popularização. As concepções triviais da tecnologia diegética, assim como a qualidade de vida precária, estão presentes ao longo do enredo. Tudo isso por conta do texto bastante descritivo de Gibson, que faz questão de capturar as minúcias do ambiente e das sensações dos seus personagens. É uma decisão arriscada com chance de dividir alguns leitores que talvez se distraiam com a narrativa do livro, como aconteceu comigo.
“O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar”
Esse é o primeiro romance de William Gibson, que até o momento trabalhava com contos. É impressionante ver seu uso de uma linguagem capaz de mesclar gírias, termos tecnológicos e filosóficos, sem contar todo o impacto cultural causado pela obra, uma conquista inquestionável. Não são apenas todos os termos cunhados pelo autor, mas os temas que explora envolvendo inteligência artificial, consciência e até terrorismo virtual, se mantêm relevantes até hoje. É claro que nenhuma expressão artística tem a obrigação de ser atual, muitas vezes o debate com os obstáculos de seu tempo é exatamente o que faz de algumas obras uma representação perfeita de nossa evolução, conquistando assim o atemporal.
Mas embora seja um documento importante para qualquer um interessado em compreender a construção da ficção científica como a conhecemos, Neuromancer por vezes se equilibra em uma corda bamba narrativa, beirando o desnecessário com descrições longas e redundantes (mesmo levando em conta a estrutura inovadora), possivelmente resultado das constantes reescritas de Gibson por não ter certeza da conclusão de sua história. Também temos bastante tensão mas pouco peso dramático, com um aspecto distante e insólito. Isso não tira nenhum dos méritos mencionados no parágrafo anterior, mas por focar mais em apresentar os fundamentos de seu mundo e estabelecer conceitos instigantes, Gibson acaba caindo em uma armadilha construída pelo seu próprio estilo, deixando o enredo quase previsível, principalmente considerando as influências noir nas características básicas dos personagens, esses delegados a diálogos repetitivos e monótonos.
Em Neuromancer podemos encontrar similaridades com a abordagem textual de Philip K. Dick, conhecido por explorar temas arriscados e experimentar com uma estrutura que serve para “desnortear” o leitor, alternando entre tempo e espaço constantemente. Infelizmente, não é toda vez que isso funciona e em algumas instâncias as transições tendem a ser abruptas demais, o que pode afetar negativamente o ritmo da leitura.
O clássico de William Gibson merece todos os créditos por ter introduzido milhares de leitores a um dos subgêneros mais envolventes da ficção científica, e devo mencionar sua inteligência para debater temas tão pertinentes, mas a maneira como constrói o drama de seus personagens (alguns quase caricatos) e depende demais de seu próprio estilo acabam tirando um pouco do brilho do que poderia ser uma leitura menos trabalhosa e um tanto enfadonha para alguns.
Ficha Técnica:
Neuromancer, de William Gibson; Lançado originalmente em 1984;
Editora Aleph, 2014;
Tradução de Fábio Fernandes;
Arte de Josan Gonzales;
416 Páginas.