É a minha primeira vez lendo Kurt Vonnegut. Eu não estava preparado.
As Sereias de Titã possui uma premissa absurda que consegue ficar ainda mais fantástica do que se imagina. Mas calma lá, não quero estragar a experiência, então tentarei ser o mais breve possível nessa parte — mesmo que considere praticamente inútil tentar omitir informações do enredo já que nem mesmo com contexto essa é uma história comum.
Winston Niles Rumfoord é um homem poderoso (com isso quero dizer abastado). Tão poderoso que conseguiu ir ao espaço em sua própria nave, acompanhado apenas por seu cão, Kazak. Mas ele não esperava que fosse passar por um fenômeno que resultaria em uma mudança completa na forma que percebe o tempo e o espaço. Depois disso, consegue fazer breves materializações na Terra para sua esposa, o que acaba causando uma comoção pública. O mais curioso nessa história toda, como se já não fosse misteriosa o suficiente, é que Rumfoord está mais interessado em entrar em contato com Malachi Constant, um ator Hollywoodiano considerado o americano mais rico do mundo, para que ele realize uma missão que está praticamente definida do início ao fim, envolvendo viagens espaciais (com paradas em Marte, Mercúrio e Titã), espécies alienígenas e até ter um filho com a esposa do próprio Rumfoord. É claro que a ideia parece estúpida e sem sentido algum, mas Malachi talvez não tenha muita escolha sabendo que a missão foi dada por alguém que viu o futuro.
E isso é tudo que você precisa saber da trama por enquanto.
Para tirar logo isso do caminho, é notável e inevitável a comparação que alguns fazem do trabalho de Vonnegut com o de outro grande autor da ficção científica: Douglas Adams, o criador da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. Ambos utilizam uma abordagem mais cômica e absurda em suas obras, o que é algo mais do que bem-vindo em um gênero constituído de conceitos surpreendentes e formas diferentes de debater temas importantes. Mas se Adams utiliza o humor para enfatizar o absurdo no melhor estilo Monty Python, Vonnegut é mais sutil e não se importa se algumas piadas passarem por você porque, acredite, algumas vão. Mas ele também não se aguenta e coloca algumas situações hilárias que dão aquela sensação de piada que nunca termina mas continua engraçada, como o momento em que descobrimos como o pai de Malachi se tornou um homem rico através da “palavra de Deus” ou basicamente tudo envolvendo o Viajante Espacial.
Vonnegut não é tão criativo em “termos técnicos” quanto Adams, mas ainda assim tem sua contribuição para o departamento de zombarias com a física ficcional do gênero. O que é um “infundíbulo cronossinclástico”? Você provavelmente não terá chance de descobrir tão cedo, mas foi onde Rumfoord foi parar com seu companheiro canino.
Mas Sereias de Titã não é apenas um livro com alguns momentos engraçados e piadas bem elaboradas; há um mar de questões filosóficas que estão constantemente retornando para a história. A própria missão de Malachi seria, por definição, uma forma de abandonar seu livre arbítrio? — se é que este conceito seja relevante de qualquer maneira para nós. Malachi está cumprindo algum tipo de destino? Será que os planos de Rumfoord fazem sentido apenas para ele, e dependendo da resposta, seriam os planos justificados? O livro levanta debates morais em um contexto complexo e aborda temas pesados, como estupro e homicídio.
Vonnegut tem um problema em mãos, na verdade é um que muitos autores do gênero tiveram por anos, que é a falta de uma personagem feminina de destaque (isso quando tem alguma) ou que tenha pelo menos uma individualidade que não seja baseada em estereótipos como, no caso do livro em questão, a de “megera” que serve apenas para cumprir seu “papel de mulher”. É claro que o próprio autor aborda a forma que ela foi usada, mas ainda assim é uma parte que sofreu um pouco com o tempo.
“Eu fui vítima de uma série de acidentes, como todos nós somos”.
Mas saindo um pouco da crítica social —sabemos que é outra época e esse debate deve ser feito com muito mais cuidado e embasamento, então vamos focar na resenha literária — , esse é um livro mais informal do que imagina, mesmo abordando tudo o que já mencionei. A escrita de Vonnegut é limpa e dinâmica, talvez um dos motivos que tenha rendido comparações com Adams (e com isso não o mencionarei mais aqui). Essa é uma obra surpreendentemente humana, principalmente nos seus momentos finais, quando toma um rumo mais sentimental, mas mesmo assim não deixa de brincar com a situação e ir na contramão do que alguns esperam de uma conclusão para uma jornada como essa.
Kurt Vonnegut escreve com a maestria de alguém que não se importa com as regras estabelecidas da narrativa. As Sereias de Titã tem tudo para ser uma das coisas mais mirabolantes e aleatórias que você já leu, e provavelmente é, mas no fim somos nós quem parecemos loucos ao conseguir assimilar tanta loucura.
As Sereias de Titã (The Sirens of Titan),
de Kurt Vonnegut
Editora Aleph, 2018
304 páginas
Tradução de Livia Koeppl