Uma década depois do cancelamento prematuro da série clássica em 1969, Jornada nas Estrelas atingiu um espaço onde jamais esteve antes, as salas de cinema. Star Trek: The Motion Picture (ou Jornada nas Estrelas: O Filme) foi uma produção cercada de elementos e decisões curiosas que deixaram alguns fãs confusos, mas a alegria de ver a Enterprise e sua tripulação de volta são o verdadeiro motivo para deixar todos ansiosos durante seu lançamento.
A produção já começou com o pé esquerdo, enfrentando vários problemas, como os atrasos causados pela reconstrução de alguns cenários e modelos da série que agora deveriam fazer parte de um filme com grande orçamento. Além disso, também havia o impasse envolvendo o elenco, como William Shatner e Leonard Nimoy, que tentavam se distanciar dos seus personagens, Kirk e Spock, respectivamente, mas acabaram aceitando participar do filme.
Situado quatro anos depois dos eventos do último episódio da série clássica, Turnabout Intruder, James T. Kirk é designado para a Enterprise mais uma vez, que precisa lidar com um objeto vindo em sua direção e acabou de destruir três naves Klingon. Kirk tenta reunir a sua tripulação enquanto conhece novos rostos, incluindo o atual capitão da nave, Decker, que agora precisa deixar seu posto para o veterano. Como se não fosse o suficiente, temos o surgimento de V’Ger, uma entidade misteriosa que pode botar a galáxia em risco.
A direção do longa ficou por conta de Robert Wise, conhecido por editar o clássico Cidadão Kane, de Orson Welles, e dirigir os musicais Amor, Sublime Amor e A Noviça Rebelde. Lendo os exemplos listados, você não imaginaria que ele fosse o diretor certo para um filme de Star Trek, mas Wise já tinha em sua filmografia outra ficção científica, O Enigma de Andrômeda, que dirigiu no começo da década de 1970. Ainda assim, ele realmente não era a pessoa certa considerando que não assistia a série, mas aceitou o desafio independente disso. Felizmente, Jornada nas Estrelas: O Filme tem vários méritos, para muitos por uma perspectiva técnica, mesmo que nem todos os fãs sejam apaixonados pela obra, que tem uma abordagem completamente diferente do que se esperava da franquia.
A primeira coisa que você nota no filme é o seu ritmo vagaroso. Uma das principais reclamações de alguns é a duração de algumas cenas, principalmente a famigerada tomada na qual Kirk reencontra a Enterprise, onde temos mais de cinco minutos da câmera explorando cada canto da nave, e estou falando apenas do exterior, e fica mais engraçado notar como no roteiro isso tomou apenas duas páginas.
A comparação mais óbvia que se pode fazer com outra obra é 2001: Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick. Isso não se dá apenas pelo ritmo, mas pelo tom, mais sério e contemplativo, e pelo apelo visual – por vezes o filme chega a executar cenas de tal maneira que fica impossível não comparar diretamente ao filme de Kubrick, como as tomadas das naves e estações espaciais em descanso no vazio do universo, a quase escassez de diálogos e até mesmo uma sequência onde Spock adentra a entidade V’Ger.
O filme contou com consulta técnica da própria Nasa e dos Institutos de Tecnologia da Califórnia e Massachusetts, sem contar o escritor Isaac Asimov, que usou seu vasto conhecimento sobre ficção científica para colaborar com conceitos que fossem não só acurados cientificamente, mas envolventes para o grande público, e isso fica visível quando assistimos a Enterprise sofrendo por passar em um buraco de minhoca desbalanceado, criando um efeito que faz a imagem da tripulação se dissolver aos poucos.
Além dos efeitos visuais de computação, o longa conta com mais de cem Matte Painting, uma técnica de pintura de cenários que pode distrair em algumas instâncias, mas é impressionante quando bem incorporado com as filmagens normais. Podemos ver a mais evidente delas no planeta Vulcano, quando Spock passa pelo ritual de kolinahr, ou em uma das várias tomadas da Enterprise. Essas pinturas combinam bem com o visual quase abstrato de algumas sequências, contribuindo com cores vibrantes e uma arquitetura incomum, criando uma atmosfera que distingue completamente esse filme dos outros da franquia.
Outro aspecto importante para a obra é a sua música. A composição épica de Jerry Goldsmith é tão poderosa que o próprio Gene Roddenberry decidiu utiliza-la como o tema de abertura de Next Generation, o primeiro spin off da série clássica (a animação de 1973 é uma continuação), estrelado por Patrick Stewart como o Capitão Picard. O diretor Robert Wise também foi um dos que adorou trabalhar ao lado de Goldsmith, chegando a dizer que foi uma das melhores colaborações de sua carreira.
Mas é claro que há problemas que não dá pra relevar, como a péssima escolha de figurino, que deixou o elenco tão desconfortável e nervoso a ponto de jamais voltarem a utilizar as peças em qualquer outro lançamento da franquia, mesmo que o traje dos engenheiros seja similar no filme seguinte, A Ira de Khan.
Saindo um pouco da parte técnica, o filme mostra uma relação um pouco mais fria entre os membros da Enterprise clássica, tirando ocasionais diálogos onde mostram como sentiram falta um do outro, ainda assim não há tantos momentos de intimidade e descontração como nos filmes por vir. Temos um foco maior na relação Kirk e Decker, o atual capitão da nave que acaba aceitando uma posição inferior por conta da influência de Kirk na Federação.
Essa mudança no comando cria um desconforto entre os dois, e acaba sendo o principal tema do longa, até que surja a figura de V’Ger, uma entidade que tomou o corpo da tenente Ilia, uma antiga paixão de Decker. Ao contrário dos filmes seguintes, onde Kirk lida com a passagem de tempo e sua relevância na frota estelar, Star Trek: The Motion Picture é uma batalha interna para afirmar sua própria liderança e confiança nos novos membros da tripulação.
Para os fãs da série clássica, há várias referências, desde alguns sons e trilhas e até diálogos que fazem menção a algum episódio específico, como quando McCoy menciona que “faz tempo que não ajuda no parto de um bebê”, uma piada com Friday’s Child, da segunda temporada. É curioso também como a existência de V’Ger criou várias teorias por conta da criação dos Borg, em Next Generation. Isso se dá por conta das similaridades entre os dois: É dito que V’Ger vem de “um planeta populado por máquinas vivas. Tecnologia avançada”, e ela menciona que seu propósito é apenas observar e compreender as coisas. Essas características podem facilmente serem confundidas com as dos Borg, e a linha de diálogo de Spock em que “qualquer tentativa de resistência seria inútil” acaba corroborando ainda mais para a teoria. Mas nada disso é confirmado.
Jornada nas Estrelas: O Filme acaba sendo a experiência mais próxima da proposta original de Roddenberry, com um foco na exploração e o maravilhamento diante de novas descobertas; o longa também possui mais representatividade (há uma cena em que Kirk conversa com a tripulação da nave e podemos ver várias formas de representação cultural, incluindo indígena, que nunca foi bem retratada na série clássica) e momentos de introspecção. Pode não ser o favorito de muitos, mas é um dos mais originais em todos os aspectos, e esse é apenas o primeiro filme de uma franquia longa e próspera.
Em seguida: A IRA DE KHAN.