A primeira temporada de The Expanse foi uma dose de originalidade e qualidade que eu precisava. Não é sempre que temos uma história e personagens tão envolventes como o dessa série. Felizmente, ela continua maior e mais forte no seu segundo ano.
Desta vez temos uma presença maior de Marte nos conflitos políticos, com a chegada da sargento Bobbie Draper (Frankie Adams), que perdeu todos os membros do seu esquadrão e é a única sobrevivente de um ataque misterioso. Há uma grande conspiração fabricada pela força militar marciana, que deseja usar a morte de seus soldados como manobra política. Enquanto a tensão aumenta entre marcianos, terráqueos e belters, seguimos com a Rocinante e seus tripulantes tentando resolver sua própria conspiração envolvendo a proto-molécula na estação Eros.
A construção de mundo continua impressionante, com cada vez mais lugares e conceitos sendo introduzidos de maneira relevante para o desenvolvimento dos personagens e da trama geral. É um roteiro bem trabalhado, consciente de todos os pontos que precisa tocar e como, alternando entre momentos leves de descontração dos personagens e a apreensão por cada peça movida no tabuleiro político. O ritmo acelera e a guerra parece cada vez mais iminente entre os polos, mas isso nunca tira a importância dada aos núcleos dramático.
A primeira metade desta temporada destaca a jornada da Rocinante depois de encontrar Miller e descobrir o destino de Julie Mao. A equipe investiga a proto-molécula e se encontra no meio de outro grande impasse político. A conclusão deste arco narrativo acaba promovendo o que veio a se tornar a principal ameaça da série, sem contar que seus feitos ressoam mais uma vez ao longo das tramas paralelas e abrem as portas para a segunda metade da temporada, que deixa Bobbie em uma posição importante, tendo de lidar com o sistema e tudo no que acreditou toda sua vida. Entre estas duas tramas principais, temos mais intrigas e manipulação, felizmente acompanhadas de ótimos diálogos e atuações.
Desta vez, podemos ver mais do cotidiano dos tripulantes da Rocinante e como eles lidam com tudo que está acontecendo. A relação entre Holden (Steven Strair) e Naomi (Dominique Tipper) evolui com cautela, tem peso e traz uma nova dinâmica entre os membros da nave. Strait revela firmeza enquanto seu personagem exibe destreza na liderança e situações diplomáticas; Tipper não deixa Naomi perder sua força mesmo guardando segredos da equipe e lidando com seus próprios dilemas envolvendo os protestos dos belters. Amos (Wes Chatham) e Alex (Cas Anvar) tem seu próprio embate, que pode ficar um pouco repetitivo, mas serve para mostrar um lado de cada um dos dois que ainda não vimos. Já que estamos no elenco, vale mencionar mais uma vez Frankie Adams pelo seu papel como Bobbie, e Thomas Jane como Joe Miller. Os dois sabem roubar uma cena, mas se tem alguém que sabe fazer isso melhor é Shohreh Aghdashloo, com sua Chrisjen Avasarala, mais boca suja e impaciente que o normal. Há até uma participação especial de Adam Savage, um dos responsáveis pelo programa Mythbusters, que virou fã da série e aqui interpreta um especialista na missão da nave exploratória Arboghast.
Assim como na temporada anterior, souberam utilizar cada centavo do orçamento com efeitos especiais incríveis. As batalhas espaciais são lindas de ver, assim como toda a sequencia envolvendo Eros, onde os efeitos ajudaram na ambientação fluorescente do asteroide, coberto em proto-molécula. As vítimas do Projeto Caliban são a grande revelação da temporada (já mencionei os spoilers), com um design assustador que poderia quebrar o realismo que a série traz, mas acaba se incorporando organicamente ao tom dos episódios.
The Expanse mais uma vez impressiona com uma história instigante, que se desenvolve em um ótimo ritmo. A tensão aumenta e a guerra está chegando!
Ficha Técnica: The Expanse, S02 Criada por Mark Fergus e Hawk Ostby Direção de Breck Eisner, Jeff Woolnough, Terry McDonough… Roteiro de Hallie Lambert, Georgia Lee, Naren Shankar… Atuações de Thomas Jane, Shohreh Aghdashloo, Steven Strait, Dominique Tipper, Jared Harris, Frankie Adams
A China é o segundo maior mercado do mundo quando falamos em cinema. É normal vermos alguns filmes do ocidente que não estavam indo muito bem na bilheteria ter uma recuperação surpreendente ao chegar no oriente. The Wandering Earth é uma ficção científica adaptada do conto literário de mesmo nome do autor chinês Cixin Liu, que ficou conhecido por ter sido o primeiro de seu continente a receber o prêmio de Melhor Romance no Hugo Awards (com o seu “O Problema dos Três Corpos”). O filme foi feito com aproximadamente $50 milhões e tornou-se um sucesso rendendo quase $350 milhões de bilheteria apenas em seu país de origem. Com tudo isso, é óbvio que a curiosidade do público ocidental aumentou, e aqui no Brasil o filme foi distribuído pelo serviço de streaming da Netflix, com o título traduzido para Terra Á Deriva.
O filme muda alguns elementos do material original para inserir mais ação, mas justifica a mudança com um drama bem construído. A premissa do filme é promissora: o desespero da humanidade aumenta quando o sol se expande em uma velocidade inesperada. Para evitar a destruição iminente, um plano para tirar a Terra do sistema solar é colocado em prática, e com a ajuda de imensos propulsores e todos os engenheiros que o planeta precisar, assistimos as últimas tentativas da raça humana.
Por ser uma empreitada que exige séculos de execução, cada geração tem seu papel. O astronauta Liu Peiqiang (Wu Jing) precisa deixar seu filho Liu Qi (Qu Chuxiao) na Terra, para que possa seguir sua missão na estação espacial que auxiliará a Terra na viagem para um lugar seguro. Anos depois, quando Peiqiang completa seu trabalho e pode voltar para seu planeta, descobre que um Liu Qi já adulto está em sua própria missão depois de ser pego roubando um caminhão e forjando documentação para comemorar o ano novo chinês com sua irmã adotiva, Han Duoduo (Jaho Jinmai).
Frant Gwo assina a direção. Mesmo com poucos filmes no currículo, faz um excelente trabalho aqui. Além de encontrar um ótimo elenco (incluindo Mike Sui, que interpreta Tim e serve de alívio cômico. Felizmente, bem encaixado) e desenvolver alguns visuais impressionantes, Terra Á Deriva é o tipo de obra que consegue construir drama envolvente no meio da ação incessante. Há a culpa de Peiqiang em deixar seu filho para trás com o sogro, Han Ziang (Ng Man-tat). O longa abre com o monólogo do pai sobre a importância do que está prestes a fazer e uma excelente linha de diálogo envolvendo uma estrela, que retorna no roteiro da maneira mais satisfatória possível. A relação deles é a base do filme, e Gwo sabe quando repetir uma cena através de flashback ou inserir emoção sem soar forçado. A inteligencia da direção e da montagem em estender as cenas de tensão ao limite sem perder o impacto é outro ponto alto.
O filme apresenta três núcleos narrativos diferentes: a estação espacial, a superfície da Terra e o seu subterrâneo, onde a maior parte da população tem vivido por conta do frio extremo da superfície. Como mencionei antes, o roteiro é um destaque. É curioso ver como a obra carrega cinco roteiristas e ainda assim não é um desastre (geralmente, muitas mãos no mesmo roteiro gera uma bagunça na produção); pelo contrário, o enredo dessa história é extremamente consistente e aproveita cada elemento apresentado, até mesmo em seus primeiros minutos, onde introduz temas e obstáculos importantes para futuras resoluções.
Com um roteiro sólido e um diretor capaz de executar visuais impressionantes (alguns eu poderia emoldurar facilmente), fica a responsabilidade do departamento de efeitos especiais em manter a qualidade. Mesmo que não seja perfeito e tenha aquele clássico problema de textura quando envolve o maquinário pesado das grandes estruturas de metal, há espaço para vários elogios ao trabalho da equipe em desenvolver os propulsores e os equipamentos militares da Terra. Não só fizeram um bom trabalho junto da direção de arte com uma identidade visual distinta, mas pelo uso de objetos obtidos através da impressão 3D, bastante convincentes.
Terra Á Deriva já está disponível na Netflix brasileira e indico fortemente que assista antes que saia do catálogo. É um excelente trabalho que funciona em todos os níveis, com sequencias de ação angustiantes na superfície e debates sobre culpa e arrependimento nos minutos derradeiros da humanidade.
Ficha Técnica Título Original: Liu lang di qiu Direção de Frant Gwo Roteiro de Gong Geer, Junce Ye, Yan Dongxu, Frant Gwo, Yang Zhixue Duração: 2h 5min
Ainda é um mistério para mim como este filme foi parar nos cinemas, ainda mais nos cinemas brasileiros. Deixe-me explicar: Com a demanda cada vez maior por produções que tenham um enorme chamariz para atrair o público, se o seu filme quiser ter uma boa distribuição, ele precisa de algo que chame a atenção. Por mais que Cópias — De Volta à Vida (ou a mais conveniente versão original, Replicas) tenha um ator conhecido como Keanu Reeves no papel principal, isso não é o suficiente, porque além de ser uma produção menor, ela é uma ficção científica, o que infelizmente não é o gênero favorito do grande público.
Geralmente, um filme desses é escondido em alguma plataforma de streaming ou lançado direto em formato digital ou físico sem grande alarde para não chamar atenção. Por isso eu fico impressionado como um filme tão ruim continuou sendo lançado pelo estúdio em mais de 2.000 cinemas, e isso só nos Estados Unidos. Bem, esse é um debate complicado que podemos ter depois, mas agora vamos focar no filme. Cópias é mais uma grande mistura de elementos sci-fi jogados sem razão alguma no meio de uma trama genérica sobre intriga corporativa. A premissa abre a possibilidade para incontáveis narrativas, mas o filme decide seguir o caminho mais previsível.
O cientista Will Foster (Keanu Reeves) estuda a possibilidade de transferência de consciência orgânica para um corpo sintético. Os testes ainda não renderam resultados satisfatórios, mas ele não desiste. Depois de um acidente de carro, Foster perde sua mulher e filhos, mas consegue usar seu conhecimento para trazê-los de volta. Esse experimento secreto atrai a atenção de pessoas que podem colocar sua vida e a de sua família em risco.
O problema do filme não é ter todos os elementos mais batidos do mundo para a construção da trama (acidente de carro, corporação do mal…), mas sim não saber usá-los. Eu não vejo problema algum em ter um roteiro simples e direto ao ponto, mas se você não for consistente com cada uma das coisas que apresenta, o resultado é um produto vazio e tedioso. Cópias erra em quase todos os aspectos, o primeiro deles sendo a direção de Jeffrey Nachmanoff, que não só depende demais de movimentos de câmera desnecessários, como o excesso do ângulo holandês (dutch angle para o pessoal internacional), presente em cenas onde não só destroem a tensão que o longa tenta construir, mas distraem pela maneira nada natural com a qual Nachmanoff aborda as cenas, deixando o filme consistente apenas na fotografia e as composições que focam mais em tomadas fechadas e muitos cortes, talvez por conta de sua experiência trabalhando mais em séries.
E por falar em cortes, não posso deixar de mencionar o problema de montagem desse filme, que mata a família de Foster nos primeiros minutos, dedica um bom tempo no laboratório e depois tem um desenvolvimento apressado que termina em uma grande perseguição de filme de ação (onde poderiam aproveitar para criar um paralelo visual interessante com a cena do acidente no primeiro ato, mas nem isso souberam fazer). O nosso pouco tempo convivendo com a família antes do experimento faz com que ela não seja importante, entregando que todos os membros foram claramente sacrificados para o Deus da narrativa preguiçosa. É curioso ver como Stephen Hamel, um dos roteiristas (ao lado de Chad St. John), também é um dos produtores do drama Passageiros, de 2016, que teve uma narrativa “fraca” que poderia ter sido consertada facilmente com uma simples mudança na montagem. O canal Nerdwriter já fez um vídeo inteiro sobre esse caso, então indico para quem quiser saber mais.
Tirando Keanu Reeves, que não está se esforçando nem um pouco, o elenco conta com nomes que o público pode não conhecer mas tiveram seus rostos em produções maiores. Alice Eve já esteve na ponte da Enterprise interpretando uma versão mais nova de Carol Marcus em Star Trek: Além da Escuridão. Aqui ela faz a esposa de Foster; sem personalidade alguma, ela é só a esposa de alguém. O mesmo acontece com John Ortiz, que está presente em várias produções grandes com um papel pequeno. Aqui ele tem um personagem mais importante, mas infelizmente caricato e mal escrito. A única exceção é Thomas Middleditch, mais conhecido por protagonizar a série Silicon Valley, que parece estar mais confortável como o Ed, o amigo e parceiro de laboratório de Foster. Convenhamos que ele é constantemente escalado para o papel de “nerd inteligente e ansioso”, mas de todos os estereótipos que esse filme traz, pelo menos Middleditch faz questão de executar bem o seu.
Como se já não bastasse a direção preguiçosa, o roteiro inconsistente e cheio de diálogos ruins, e o elenco sem vontade, Cópias não se garante nem mesmo nos efeitos especiais, que parecem ter saído de uma produção barata do começo do século, caindo até um pouco no vale da estranheza com um robô sem textura ou atenção ao detalhe o suficiente para me dar pesadelos. Esse é mais um filme genérico e previsível que poderia ter sido lançado direto em algum streaming e ainda assim, não recomendaria.
Ficha Técnica Título Original: Replicas Direção de Jeffrey Nachmanoff Roteiro de Stephen Hamel e Chad St. John Atuações de Keanu Reeves, Alice Eve, Thomas Middleditch e John Ortiz
Já faz um tempo desde a última lista, então vamos direto ao ponto porque a década de 1990 foi uma loucura. Tivemos uma saturação de narrativas envolvendo computadores e distopias, mas alguns acabaram se destacando. Aqui vou listar vários filmes da década, mas apenas os em negrito são as minhas indicações genuínas para melhor representar o momento. Vamos lá!
Vou começar tirando logo a escolha mais óbvia do caminho: Matrix. Lançado no fim da década, esse foi o filme que melhor capturou alguns de seus elementos mais marcantes, como roupas de couro, óculos escuros e hackers, muitos hackers!!!. Tudo bem, o filme pode não ter envelhecido bem nesse departamento, mas até hoje conquista com um ótimo roteiro (pelo menos o primeiro filme) e alguns conceitos visuais inteligentes tão impressionantes que toda a industria decidiu copiar ou parodiar, como o bullet effect, a câmera lenta no meio da ação que estava em TODO LUGAR depois desse filme, até em Shrek e Kung Pow.
Mas por mais que Matrix tenha sido um sucesso estrondoso na época, eu vou escolher um outro filme, bem menor em escala e orçamento, que também aborda os mesmos temas existenciais sobre escolha e destino. Dark City: Cidade das Sombras é a história de um homem sem memória, tentando descobrir o que aconteceu com sua esposa e como fugir de uma terra sem sol.
O longa foi lançado apenas um ano antes mas possuía várias similaridades com o Matrix, desde o visual sujo e escuro até o conceito envolvendo um mundo controlado por “máquinas”, mas com uma vestimenta menos exagerada por parte do protagonista. Ainda que tenham paralelos, Cidade das Sombras se destaca por uma edição que estranhamente casa perfeitamente com a atmosfera do filme, com vários cortes por minuto, mas surpreendentemente consistentes. Além disso e do ótimo elenco, temos a música e o design de produção, com sons e uma arquitetura incrível que ajudaram ainda mais no tom noir do longa.
A década de 1990 foi ótima também para o ator Arnold Schwazenegger, que não só esteve em vários filmes de ação com ótima bilheteria. Ele esteve em dois grandes títulos que marcaram os fãs de ficção científica, o primeiro deles foi O Vingador do Futuro, em 1990, que adaptava o conto literário “Lembramos para você a preço de atacado”, do autor Philip K Dick. O filme, como esperado, fez sucesso e mesmo que não seja uma representação muito fiel do material original, agradou o público com uma trama e representação intrigantes do futuro pelo diretor Paul Verhoeven.
Além desse longa, Schwazenegger retornou para a continuação de sua franquia mais famosa, estrelando O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (1991). Agora comandado por James Cameron, que fez um trabalho impressionante com os efeitos especiais, principalmente no antagonista da trama, o androide T-1000, interpretado por Robert Patrick. O filme segue a mesma premissa do anterior, mas se destaca pela forma como desenvolve a relação entre o Exterminador e o pequeno John Connor. Tirando toda a ação e os efeitos que até hoje se sustentam, o filme tem a Sarah – fodona – Connor, uma personagem memorável interpretada por Linda Hamilton.
E por falar em Paul Verhoeven, eu sempre arranjo uma maneira de mencionar Tropas Estelares (1997), só que desta vez ele realmente merece estar aqui. Entendo como pode ser uma obra polarizante com uma abordagem política problemática, mas eu acho que a falta de sutileza funciona muito bem com a proposta mais satírica de Verhoeven, que vai na contramão de tudo que a obra original de Robert A. Heinlein representava. É uma pegada bem mais bizarra e estúpida, mas com seus momentos de humor negro que acabam acertando a ferida direitinho.
Aproveitando o tom mais cômico, a década de 1990 teve algumas obras que acabaram se transformando em comédias, mesmo sem a intenção — Ou essa era a intenção o tempo todo e fizeram um péssimo trabalho, como na péssima adaptação de O Juíz (1995), baseada nos quadrinhos do Juíz Dredd; ou o hilário de tão ruim O Demolidor(1993), com um futuro distópico tão mal elaborado que chega a dar pena. Esses dois últimos foram estrelados por Sylvester Stallone, que aparentemente não teve a mesma sorte de Schwazenegger no sci-fi.
Outro filme mal recebido foiMarte Ataca! (1996), a sátira política e social de Tim Burton que era bizarra demais até para ele, seja na trama boba e desconexa ou no elenco, que era cheio de atores renomados, como Jack Nicholson e Gleen Close, que se meteram em cenas nem um pouco merecedoras de seu currículo.
Deixando de lado os desastres, vamos para os que funcionaram. O primeiro deles é MIB: Homens de Preto (1991), o sucesso estrelado por um Will Smith no auge da carreia. Eu nem vou me prolongar falando desse porque é provavelmente um dos mais queridos dessa lista e um dos mais mencionados de qualquer uma envolvendo a década de 1990. Então, para trazer algo diferente, venho indicar Galaxy Quest, que ficou conhecido no Brasil como Heróis Fora de Órbita (1999).
É uma pena uma comédia tão bem construída como essa ser tão esquecida pelo público, mas o motivo talvez seja na quantidade de referências que você precisa entender para realmente apreciar a obra. Esse é um filme que brinca com os bastidores de um grupo de atores de uma série de ficção científica que até hoje enche os corredores das convenções de fãs, mas não se dá nem um pouco bem. É uma piada com todos os desentendimentos que costumam acontecer nos bastidores de séries, e no filme o elenco é claramente uma paródia dos atores e atrizes da franquia Star Trek. E eu falei tanto em elenco que esqueci de mencionar que esse longa tem um que eu amo, com Sigourney Weaver, Alan Rickman e Sam Rockwell. Por eles vale a pena aturar a cara do Tim Allen, uma pessoa que ainda levanta um mistério para mim: como alguém contrata um ator tão ruim? (desculpem por essa, mas ninguém é fã dele mesmo, então não sei nem para quem estou me desculpando).
Seguindo em frente, temos as já esperadas adaptações cinematográficas de séries de TV, como o último filme incluindo a equipe clássica da Enterprise, Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida (1991), que considero uma das melhores aventuras da tripulação em um longa. Mas também temos o contrário, quando um filme se transforma em uma série. Esse é o caso de Stargate, a Chave Para o Futuro (1994), que se transformou em uma obra cultuada por tantos fãs ao ponto de render uma série para a TV, e em seguida, alguns spin-offs.
O filme foi dirigido por Roland Emmerich, que ficaria mais famoso dois anos depois com seu Independence Day (1996). Depois desse ele assumiu de vez a identidade de diretor de longas sobre catástrofe, seguindo com o péssimo Godzilla (1998) e o tedioso O Dia Depois de Amanhã (2004). Ou seja, por mais que Stargate tenha nascido, o cinema poderia ter se saído bem sem Emmerich. Mais uma vez, desculpem-me os fãs dele.
Espera aí! É uma lista dos melhores. Vamos voltar ao caminho certo com Gattaca (1997), o thriller sci-fi estrelado por Ethan Hawke, que também não recebe a atenção que merece. É um filme com um ótimo elenco e um dos enredos mais bem construídos dessa lista, então merece estar aqui. Outro longa que é um pouco esquecido e merece ao menos uma menção honrosa é o competente O Enigma do Horizonte (1997), que pode não ser lá essas coisas mas ajuda em um dia tedioso.
Voltando rapidamente para as distopias que amamos tanto, eu não iria esquecer Os Doze Macacos (1995). A obra dirigida por Terry Gilliam tem uma das premissas mais absurdas e ao mesmo tempo envolventes da década, e o filme ainda tem no elenco nomes como Bruce Willis e Brad Pitt, ambos entregando personagens e algumas de suas melhores performances. A produção se transformou em um clássico do gênero e rendeu uma série para a TV de mesmo nome, mas que infelizmente não trazia a essência e o tom que fizeram do original tão diferente.
Não seria uma lista justa sobre os filmes mais impactantes e relevantes da década sem a presença de Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros (1993). Um dos maiores feitos da carreira de Steven Spielberg, este é um filme gigantesco, e não só pelas criaturas que o habitam, mas pelo tremendo trabalho por trás das câmeras, no desenvolvimento da trama, no elenco carismático, nos efeitos visuais impressionantes e na música de John Williams que é uma das coisas mais belas que já tocou os ouvidos de qualquer ser humano.
Um filme atemporal que poderia depender completamente de seus efeitos especiais, mas faz mais que isso e aborda a relação humana como seu elemento principal, deixando o fascínio apenas como uma parte do que faz deste filme provavelmente um dos melhores do cinema e facilmente o melhor da década de 1990. Nada é maior que Jurassic Park!
E aí, o que achou da lista? Que filmes ficaram faltando para você? Johnny Mnemonic? Armageddon? O 5º Elemento? Tank Girl? Rocketeer?ExistenZ? Star Wars Episódio 1: A Ameaça Fantasma? Eu sei que alguns ficaram de fora, mas não foi tão fácil assim escolher os meus favoritos, então coloque aí nos comentários o seu! Com exceção de Star Wars Episódio 1, esse não vale.
Eu sou do time que adora o filme Tropas Estelares (1997), de Paul Verhoeven. Completamente exagerado e ridículo em abordagem, e com aquela crítica escancarada sobre a abordagem militar como pano de fundo. O filme é bem diferente do material original que rendeu a adaptação cinematográfica, o livro homônimo de Robert A. Heinlein, que trata tudo com mais seriedade. Com isso em mente, dá pra ver que Guerra do Velho, de John Scalzi, é uma obra literária cheia de paralelos com a escrita de Heinlein, mas com um tom que lembra muito mais a adaptação cinematográfica de Verhoeven.
Em um futuro onde a humanidade conquistou o espaço com suas naves e viagens interestelares, tudo que precisam conquistar agora é território, ou seja, planetas que já são habitados por raças alienígenas. Temos a tecnologia, temos a vontade e a verba, mas precisamos de soldados, e não é qualquer soldado. Para se alistar você deve ter no mínimo 75 anos. Isso vem como uma boa notícia para John Perry, que não tem mais a companhia de sua esposa, então decide comemorar seu aniversário se alistando.
“No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: visitei o túmulo da minha esposa, depois entrei para o exército. Visitar o túmulo de Kathy foi a menos dramática das duas”.
Essa é minha primeira leitura de qualquer obra de Scalzi, e pelo que vi, foi seu primeiro romance publicado. Isso pode explicar um pouco alguns problemas do livro que são justificados pelo “amadorismo” do autor. O excesso de conveniências ou situações com pouco peso dramático e honestidade são um incômodo, mas pequenos comparados ao que o livro tem de bom em sua proposta. Deixando logo o negativo no ar, posso seguir para o que faz de Guerra do Velho um bom trabalho.
De começo, destaco o protagonista. Carismático e complacente, John Perry é o principal motivo para esse primeiro livro funcionar do início ao fim. Independente da quantidade de missões que recebe e a forma simplista com as quais alguns conflitos são resolvidos, não se deve desconsiderar o personagem, que tem atitude sem soar arrogante e é engraçado sem ser ácido demais. Isso me leva a outro ponto positivo da obra, os diálogos ágeis e ótimas quebras de expectativa. Logo na primeira interação do livro, entre Perry e a recepcionista das Forças Coloniais de Defesa (FCD), temos uma amostra do que está por vir, em uma situação cheia de tiradas rápidas, desentendimentos e piadas bem construídas.
Não falta ação para Perry e os outros recrutas, o livro é uma mina de sangue espirrando para todos os lados e criaturas com lâminas nos braços. O texto de Scalzi não é minucioso como muitos do gênero, preocupados em desenvolver com precisão cada elemento do ambiente, por exemplo, mas ele detalha o suficiente para situar o leitor e deixar claro quem é quem, onde estão e como estão. Um problema nessa abordagem mais objetiva do autor surge quando entram as já mencionadas conveniências ou quando características do próprio protagonista parecem não possuir relevância narrativa, como o fato dele ter sido um escritor antes de se alistar. Traços de personalidade são essenciais na construção de um personagem, mas criá-los sem que isso seja aproveitado pode ser um desperdício de oportunidade, e acontece aqui em alguns momentos.
A trama é bem intrigante, é o típico livro onde fica difícil largar um capítulo no meio sem saber no que vai dar. Reviravoltas são esperadas, e felizmente aqui são todas úteis para a narrativa, não apenas um jeito de surpreender o leitor. Uma delas pode dividir opiniões de primeira, mas quando você descobre para onde as coisas estão indo e o debate filosófico que isso rende, dando mais peso dramático, talvez considere uma boa decisão.
Guerra do Velho é um dos lançamentos mais divertidos da editora Aleph, responsável também por um ótimo acabamento gráfico e uma das melhores artes de capa que eu já vi. Scalzi entrega uma obra leve e sem muita pretensão, mais interessada em criar um laço forte entre o leitor e o protagonista. É uma estratégia sensata, mas não se deve esquecer que no meio de todos os diálogos bem pensados e personagens carismáticos, precisamos de um argumento mais consistente e menos conveniente, com riscos e drama mais realistas, sem que afete o já acertado tom bem humorado e absurdo da obra.
Ainda assim, vale a pena a leitura, e estou doido para ler a continuação, AsBrigadas Fantasma.
Charlie Kaufman é um dos meus roteiristas preferidos. Ele não é tão conhecido quanto merecia, principalmente por conta dos projetos que escolhe, mas é um dos melhores. Filmes como Quero ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002) deixam bem clara a sua proposta: narrativas sobre a condição humana com uma abordagem íntima e sem medo de ser extremamente metalinguística. Adaptação é dirigido por Spike Jonze, mas o enredo chega a ser uma análise sobre o processo criativo de um roteirista. O longa é estrelado por Nicolas Cage, que interpreta dois personagens, cada um servindo como contraposto para a visão do outro sobre a abordagem de um texto. Um dos fatos curiosos está no nome deles, Charlie e Donald Kaufman. Pode soar egocêntrico, mas o roteirista utiliza o filme como uma ferramenta para debater suas neuroses e dilemas sobre o próprio trabalho. Como ser original em uma industria que preza o contrário?
Uma das vantagens do roteirista foi envolver-se com bons diretores, como Jonze, com quem colaborou por anos. Depois disso, até George Clooney quis uma colaboração, o convidando para fazer o roteiro adaptado para o seu primeiro filme por trás das câmeras, o subvalorizado Confissões de uma Mente Perigosa (2002). O próprio Kaufman não demorou para dirigir seus próprios projetos, tendo agora liberdade para levar à tela o texto da maneira que imaginou desde o começo. Com isso vieram algumas obras incríveis como Sinédoque, Nova York (2008) e Anomalisa (2015). Mas antes que pudesse seguir este caminho, escreveu o roteiro de Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembranças (2004), dirigido por Michel Gondry, um diretor francês mais acostumado em filmar curtas, mas com um olhar diferente para representações visuais. Até hoje eu considero essa uma das melhores colaborações do cinema, e uma das mais criativas.
A ideia do filme veio de um amigo de Gondry, que imaginou um mundo onde você poderia simplesmente apagar alguém da sua memória usando uma tecnologia capaz de visitar suas lembranças e fazer com que você não precise mais lidar com o que aquela pessoa significou para você. Tendo este argumento em mente, a tarefa de Kaufman foi construir o roteiro. O que já poderia ser a premissa para uma ficção científica intrigante acabou sendo um estudo sobre as relações humanas.
Joel Barish descobre que sua namorada, Clementine Kruczynski, passou pelo procedimento. Ele sabe que as coisas não estavam indo bem, mas também não consegue acreditar no que aconteceu, então decide fazer o mesmo para que não sinta mais a dor da perda. Entramos na cabeça de Joel e assistimos o processo. Ele vê Clementine esvair-se de sua mente, mas com ela vão também os bons momentos. Enquanto analisa seu comportamento e passa mais um tempo com a mulher que ama, Joel percebe que talvez tenha cometido um erro.
Um dos grandes acertos do filme é o elenco. Joel é interpretado pro Jim Carrey, mais uma vez mostrando ser capaz de um atuação dramática genuína, como fez em O Show de Truman e o pouco apreciado O Mundo de Andy. Aqui ele tem uma das suas performances mais consistentes, com um personagem de comportamento mais contido e receoso. Do outro lado, Kate Winslet faz Clementine, que considero até hoje seu melhor papel, mesmo com Titanic no currículo. Sua personagem é um dos pontos mais interessantes do filme, e eu vou chegar lá daqui a pouco.
Além da dupla principal, o elenco conta com Elijah Wood, Kristen Dunst, Mark Ruffallo, David Cross e Tom Wilkinson. Esse é o tipo de filme onde cada personagem tem um papel importante na trama, existindo para servir o propósito do roteiro. E esse vai ser o foco desse debate, mostrar como Charlie Kaufman e Michel Gondry fizeram uma das obras mais originais da década passada.
Não é sempre que a direção anda de mãos dadas com o roteiro. Há diretores como David Fincher, que adoram mexer no texto original, mas ele pelo menos compensa no resultado final, com um trabalho impressionante. Mas surgem casos onde o texto é tão bom que o maior desafio do diretor é procurar a melhor maneira de executar as ideias do roteirista. Gondry viu nas páginas de Kaufman uma porta para experimentar com a câmera. Por ser uma narrativa que envolve personagens tendo suas memórias apagadas, uma das decisões mais inteligentes do longa foi a edição fragmentada e a continuidade inconsistente (propositalmente), que não atrapalha a montagem e consegue entregar a sensação de incerteza e a angústia do casal protagonista.
Conhecemos partes do ambiente através de transições criativas, fazendo com que cada episódio da vida do casal pareça mais presente, como se não os pudesse ser deixado para trás. Saímos da livraria onde Clementine trabalha e com um simples jogo de luz e o beneficio de ter os cenários conectados, paramos na casa de Rob e Carrie, os amigos de Joel, que estão ouvindo ele contar os exatos acontecimentos de quando esteve na livraria e não foi reconhecido por sua ex-namorada. Essa técnica é usada constantemente, seja no consultório da empresa responsável pelo procedimento ou indo de um acontecimento mais importante para outro completamente mundano, como os personagens comendo enquanto assistem televisão.
O conceito de memória fragmentada é representado também no texto e na narrativa visual do filme constantemente, seja no gelo rachado onde o casal deita para observar as constelações ou no próprio nome da clínica responsável pelas operações, chamada Lacuna. Um título apropriado levando em consideração o significado da palavra, que indica uma falha ou ausência de alguma coisa, exatamente o que acontece com o protagonista ao longo do filme.
A ciência de Brilho Eterno entra em território de ficção por conta de todo o maquinário e supervisão necessário para que o procedimento seja um sucesso, mas a pesquisa de Kaufman e Gondry é boa o suficiente para trazer alguns debates sobre memória. O filme lida com um tipo de amnésia induzida, e por mais que ainda não seja possível, há ligações com estudos neurológicos reais, como o de Eleanor Maguire, que trouxe melhores resultados para o debate, concluindo que pacientes sofrendo de amnésia não conseguem imaginar novas experiências, ao contrário de outros pacientes, que conseguem utilizar seus circuitos neurais para construir um retrato do futuro, como elaborar um piquenique na praia com os amigos e detalhar componentes como a temperatura e a textura da areia mesmo sem estar lá.
– Há risco de dano cerebral? – Bem, tecnicamente falando, esse tipo de procedimento já é um dano cerebral.
Nossa percepção de passado e futuro são mais complexas do que imaginamos, e é por isso que no filme, quando Joel começa a perceber como Clementine desaparece rápido, fica desesperado pedindo para continuar com alguma coisa dela. A nossa história não é contada apenas através dos bons momentos, são os erros que costumam nos ensinar. Podemos ver como as relações moldam nossos pontos de vista, e é por isso que temos os amigos de Joel, Carrie e Rob, para fazer o exemplo. Eles são um casal monótono e sem surpresas, e mesmo com pequenos desentendimentos, no fim esquecem tudo para se divertir com um simples avião de brinquedo.
Brilho Eterno se vale de uma equipe talentosa. A edição de Valdís Óskarsdóttir e a direção de arte de Ellen Kuras, com a decoração mais realista e mundana das casa cobertas por colchas remendadas e roupas batidas, são alguns dos motivos para este filme ter uma apresentação tão marcante. Isso sem esquecer o trabalho de Gondry por trás da câmera. O diretor fez questão de adotar uma abordagem mais clássica, limitando os efeitos especiais do VFX à elementos que realmente precisavam da técnica, como um carro que cai e invade o plano, ou a destruição da casa de praia no clímax do filme. Para o resto da obra, temos efeitos visuais práticos, que deixam a cena mais natural mesmo que envolva imagens surreais, como o banho que Joel toma na pia da cozinha ou toda a sequencia onde ele muda de tamanho enquanto se esconde embaixo de uma mesa. Para realizar a última cena, por exemplo, Gondry usou perspectiva forçada para fazer com que os objetos e atores tiverem proporções diferentes, montando o cenário estrategicamente para que cada canto tivesse seu próprio tamanho. Esse tipo de técnica é bastante comum e foi usada por outros diretores como Peter Jackson, durante as gravações de O Senhor dos Anéis, nas cenas envolvendo os hobbits.
Gondry teve a chance de experimentar, mas não sozinho. O roteiro de Kaufman permite que a direção do filme seja a mais criativa possível sem perder o essencial: o foco nos personagens. Brilho Eterno é a jornada de um casal debatendo suas diferenças e descobrindo suas próprias falhas enquanto avaliam a relação. Joel é contido e tímido, mas tem o péssimo hábito de julgar as pessoas e fazer comentários inconvenientes para magoar sua namorada. Já Clementine é um caso mais curioso. Sua personagem é impulsiva e poderia cair facilmente na categoria de Manic Pixie Dream Girl (basicamente essa é uma convenção narrativa onde a história coloca uma personagem feminina com personalidade “forte” como uma maneira do protagonista masculino fugir de sua realidade e ter todos seus problemas resolvidos, como acontece em Scott Pilgrim Contra o Mundo ou 500 Dias Com Ela, por exemplo), mas ela tem identidade e sofre as consequências por seus atos, o que faz dela um comentário ácido de Kaufman para um estereótipo antes mesmo dele existir. Não é a primeira vez que o roteirista usa seu trabalho para dar uma alfinetada na maneira que a industria vem conduzindo suas narrativas.
A maioria dos caras pensa que sou um conceito, ou que eu os completo, ou que eu os faço viver. Mas eu sou só uma garota ferrada que está procurando por sua própria paz de espírito. Não me faça ser responsável pela sua.
Além deles, seguimos as tramas pessoais da equipe responsável pelo procedimento, que está na casa de Joel finalizando o processo enquanto ele dorme. Patrick (Elijah Wood) e Stan (Mark Ruffallo) se preparam para mais uma noite de trabalho, com comida e cerveja, mas Patrick precisa sair para ver uma garota. Logo descobrimos que ele está saindo com Clementine, o que já é completamente inapropriado; Para piorar, ele está usando os objetos abandonados por Joel para tentar conquistá-la. Com a saída do amigo, Stan passa a noite com Mary (Kristen Dunst), a recepcionista por quem está apaixonado. Podemos ver como Kaufman desenvolve várias relações ao mesmo tempo para nos mostrar todos os pontos de vista possíveis, mas ainda mais para revelar como todos lidam com a inveja e a rejeição.
Assistindo as cenas deletadas, há muita informação que poderia ser deixada no resultado final, mas também vemos o caso contrário. Algumas partes realmente não funcionariam muito bem, como a presença de Naomi, uma ex-namorada de Joel. Nas gravações ela foi interpretada por Ellen Pompeo e tinha até uma subtrama própria, mas nunca chegou a fazer parte da obra no final. Ainda que fossem momentos que serviam para explorar mais do lado de Joel sem Clementine, podemos ver como Naomi apenas distrairia do foco do filme.
Essa foi uma boa decisão, mas o filme tem um outro trecho deletado que seria melhor deixada no corte final, envolvendo Mary e a revelação de que ela já usou o procedimento para apagar da memória um aborto. É uma cena difícil de assistir mas que faz falta quando vemos a sua reação mais raivosa no terceiro ato, ou ao escutar alguns diálogos, como o do Dr. Howard dizendo que ela “queria o procedimento”, ou na ocasião que começa a divagar com Stan sobre sua vida: “É lindo. Você olha para um bebê e ele é tão puro e livre e inocente. E os adultos são, tipo, essa bagunça de tristeza e fobias. E o Howard faz com que tudo isso vá embora”.
Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é um projeto que acerta todas as notas. Um enredo bem construído e inteligente ao lado de uma direção criativa e sem medo de experimentar, isso sem contar o excelente trabalho de toda a equipe envolvida no design de produção, montagem e até a música, que não mencionei ainda mas foi composta por Jon Brion. Aqui ele colabora para a atmosfera melancólica do longa, e se isso não for o suficiente, ainda temos o cantor Beck com sua bela e depressiva versão de Everybody´s Got to Learn Sometime, da banda The Korgis, concluindo o filme com uma sequencia de Joel e Clementine correndo na praia enquanto a câmera faz vários cortes que não nos deixam esquecer que talvez o casal já tenha passado pelo procedimento mais vezes que imaginamos. Pode ser uma resolução pouco otimista, mas é como a própria música diz: arriscamos e erramos, mas uma hora todos aprendem. Ou pelo menos tentam.
Como é imensa a felicidade da virgem sem culpa. Esquecendo o mundo e o mundo esquecendo-a. Brilho eterno de uma mente sem lembranças! Cada oração aceita e cada desejo realizado. (“De Eloisa Para Abelardo”; POPE, Alexander)
Fontes e Referências:
–Uma curiosidade: existe um site da clínica, com a sua história, funcionários e alguns clientes: Você pode visitar o Lacuna Inc.
No começo de Abril tivemos os indicados deste ano ao Hugo Awards, uma das principais premiações de ficção científica e fantasia. Os finalistas foram indicados pelos membros da World Science Fiction Society, responsável pela Worldcon, uma das convenções anuais mais aguardadas pelos fãs do gênero. E dando uma olhada nas categorias, podemos ver um aumento no número de mulheres e minorias, principalmente por conta de um mercado com mais opções e um espaço relativamente maior para artistas negligenciados há muito tempo. Vou listar aqui de acordo com o site Tor.com. e comentar naqueles que eu já li/assisti.
Melhor Romance
The Calculating Stars, by Mary Robinette Kowal (Tor)
Record of a Spaceborn Few, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)
Revenant Gun, by Yoon Ha Lee (Solaris)
Space Opera, by Catherynne M. Valente (Saga)
Spinning Silver, by Naomi Novik (Del Rey / Macmillan)
Trail of Lightning, by Rebecca Roanhorse (Saga)
Comentários: Eu estou bem atrasado nas minhas leituras esse ano, mas ouvi apenas coisas boas de Trail of Lightning e The Calculating Stars, provavelmente os que tem a maior chance de ganhar por conta de todos os prêmios no qual foram indicados recentemente.
Melhor Novela
Artificial Condition, by Martha Wells (Tor.com Publishing)
Beneath the Sugar Sky, by Seanan McGuire (Tor.com Publishing)
Binti: The Night Masquerade, by Nnedi Okorafor (Tor.com Publishing)
The Black God’s Drums, by P. Djèlí Clark (Tor.com Publishing)
Gods, Monsters, and the Lucky Peach, by Kelly Robson (Tor.com Publishing)
The Tea Master and the Detective, by Aliette de Bodard (Subterranean Press / JABberwocky Literary Agency)
Comentários: Finalmente peguei a série Binti no meu Kindle e posso me atualizar, então você provavelmente vai ler sobre ela por aqui no futuro. Gods, Monsters, and the Lucky Peach está sendo bastante aclamado e tem enorme chance de levar.
Melhor Noveleta
“If at First You Don’t Succeed, Try, Try Again,” by Zen Cho (B&N Sci-Fi and Fantasy Blog, 29 November 2018)
“The Last Banquet of Temporal Confections,” by Tina Connolly (Tor.com, 11 July 2018)
“Nine Last Days on Planet Earth,” by Daryl Gregory (Tor.com, 19 September 2018)
“The Only Harmless Great Thing”, by Brooke Bolander (Tor.com Publishing)
“The Thing About Ghost Stories,” by Naomi Kritzer (Uncanny Magazine 25, November- December 2018)
“When We Were Starless,” by Simone Heller (Clarkesworld 145, October 2018)
Comentários: The Last Banquet of Temporal Confections é uma noveleta bem intrigante, com uma narrativa envolvente. Esse foi o único da lista que li, mas os próximos já estão aqui separados para poder avaliar antes da premiação. O mais legal dessa categoria é que alguns indicados são bem fáceis de achar para ler gratuitamente.
Melhor Conto
“The Court Magician,” by Sarah Pinsker (Lightspeed, January 2018)
“The Rose MacGregor Drinking and Admiration Society,” by T. Kingfisher (Uncanny Magazine 25, November-December 2018)
“The Secret Lives of the Nine Negro Teeth of George Washington,” by P. Djèlí Clark (Fireside Magazine, February 2018)
“STET,” by Sarah Gailey (Fireside Magazine, October 2018)
“The Tale of the Three Beautiful Raptor Sisters, and the Prince Who Was Made of Meat,” by Brooke Bolander (Uncanny Magazine 23, July-August 2018)
“A Witch’s Guide to Escape: A Practical Compendium of Portal Fantasies,” by Alix E. Harrow (Apex Magazine, February 2018)
Melhor Série
The Centenal Cycle, by Malka Older (Tor.com Publishing)
The Laundry Files, by Charles Stross (most recently Tor.com Publishing/Orbit)
Machineries of Empire, by Yoon Ha Lee (Solaris)
The October DayeSeries, by Seanan McGuire (most recently DAW)
The Universe of Xuya, by Aliette de Bodard (most recently Subterranean Press)
Wayfarers, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)
Melhor Artigo / Ensaio
Archive of Our Own, a project of the Organization for Transformative Works
Astounding: John W. Campbell, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, L. Ron Hubbard, and the Golden Age of Science Fiction, by Alec Nevala-Lee (Dey Street Books)
The Hobbit Duology(documentary in three parts), written and edited by Lindsay Ellis and Angelina Meehan (YouTube)
An Informal History of the Hugos: A Personal Look Back at the Hugo Awards, 1953- 2000, by Jo Walton (Tor)
www.mexicanxinitiative.com:The Mexicanx Initiative Experience at Worldcon 76(Julia Rios, Libia Brenda, Pablo Defendini, John Picacio)
Ursula K. Le Guin: Conversations on Writing, by Ursula K. Le Guin with David Naimon (Tin House Books)
Comentários: Esse é complicado. Por mais que eu tenha adorado o vídeo-ensaio de Lindsay Ellis sobre a produção da trilogia Hobbit, existe aí a presença de um artigo sobre o próprio Hugo, o que rende aquela chance por ter ligação com o evento; e de outro lado, também temos um documento de Ursula K. Le Guin, que faleceu no último ano. Então, não dá pra saber quem vence.
Melhor Narrativa Gráfica
Abbott, written by Saladin Ahmed, art by Sami Kivelä, colours by Jason Wordie, letters by Jim Campbell (BOOM! Studios)
Black Panther: Long Live the King, written by Nnedi Okorafor and Aaron Covington, art by André Lima Araújo, Mario Del Pennino and Tana Ford (Marvel)
Monstress, Volume 3: Haven, written by Marjorie Liu, art by Sana Takeda (Image Comics)
On a Sunbeam, by Tillie Walden (First Second)
Paper Girls, Volume 4, written by Brian K. Vaughan, art by Cliff Chiang, colours by Matt Wilson, letters by Jared K. Fletcher (Image Comics)
Saga, Volume 9, written by Brian K. Vaughan, art by Fiona Staples (Image Comics)
Comentários: Eu AMO Saga, mas admito estar um pouco atrasado na leitura. Paper Girls e Monstress são duas ótimas obras criativas que merecem seu espaço aqui, mas se tivesse que escolher entre um dos dois, seria facilmente a belíssima Monstress. Por mais que Black Panther: Long Live the Kingseja escrito por Nnedi Okorafor, o que é um destaque, não acho que tenha impressionado tanto quando os outros mencionados.
Melhor Dramatização, Longa (Melhor Filme)
Aniquilação, directed and written for the screen by Alex Garland, based on the novel by Jeff VanderMeer (Paramount Pictures / Skydance)
Vingadores: Guerra Infinita, screenplay by Christopher Markus and Stephen McFeely, directed by Anthony Russo and Joe Russo (Marvel Studios)
Pantera Negra, written by Ryan Coogler and Joe Robert Cole, directed by Ryan Coogler (Marvel Studios)
Um Lugar Silencioso, screenplay by Scott Beck, John Krasinski and Bryan Woods, directed by John Krasinski (Platinum Dunes / Sunday Night)
Sorry to Bother You, written and directed by Boots Riley (Annapurna Pictures)
Homem-Aranha no Aranhaverso, screenplay by Phil Lord and Rodney Rothman, directed by Bob Persichetti, Peter Ramsey and Rodney Rothman (Sony)
Comentários: Algumas ótimas escolhas. Pantera Negra foi um sucesso e merece destaque pelo que conseguiu fazer com uma narrativa menor dentro de um universo compartilhado tão grande; Um Lugar Silencioso com certeza impressionou muita gente por termos John Krasinski se provando um bom diretor e promessa por trás das câmeras; Aniquilação é a adaptação de Alex Garland de um livro bastante adorado, e além disso o filme teve a tarefa de ser o sucessor do pequeno, mas bem construído, Ex-Machina. Todos são bons, mas não se nega o brilhantismo de Sorry to Bother You e Homem-Aranha no Aranhaverso. Os mais impressionantes da lista por conta da enorme criatividade na narrativa visual e uma abordagem completamente diferente do que estamos acostumados. Se qualquer um dos dois levar, posso morrer feliz.
Melhor Dramatização, Curta (Melhor Episódio de Série)
The Expanse: “Abaddon’s Gate,” written by Daniel Abraham, Ty Franck and Naren Shankar, directed by Simon Cellan Jones (Penguin in a Parka / Alcon Entertainment)
Doctor Who: “Demons of the Punjab,” written by Vinay Patel, directed by Jamie Childs (BBC)
Dirty Computer, written by Janelle Monáe, directed by Andrew Donoho and Chuck Lightning (Wondaland Arts Society / Bad Boy Records / Atlantic Records)
The Good Place: “Janet(s),” written by Josh Siegal & Dylan Morgan, directed by Morgan Sackett (NBC)
The Good Place: “Jeremy Bearimy,” written by Megan Amram, directed by Trent O’Donnell (NBC)
Doctor Who: “Rosa,” written by Malorie Blackman and Chris Chibnall, directed by Mark Tonderai (BBC)
Comentários:The Good Place tem o costume de aparecer nas premiações com mais de uma indicação, e dessa vez não foi diferente. O problema é que esta provavelmente foi a temporada mais morna para o público, diminuindo as chances de levarem esse ano. Dirty Computer é o único da lista que não é um episódio de série, mas entra no formato de dramatização, por ser um grande álbum conceito da cantora Janelle Manáe, ambientado em uma sociedade futurista. Ele está disponível do Prime Video e pode ser assistido, por enquanto. Eu assisti e achei interessante, mas nada que seja melhor que os outros indicados. The Expanse é uma maravilha de série e eu vivo falando bem dela para todos, então nem preciso dizer qual o meu favorito da lista, mas não podemos negar que a última temporada de Doctor Who teve alguns episódios marcantes para o público, e eles estão indicados aqui, com uma enorme chance de levar, principalmente levando em conta todas as polêmicas envolvendo boicote por termos uma protagonista feminina pela primeira vez na série. Quando esse povo vai aprender?
Melhor Fanzine
Galactic Journey, founder Gideon Marcus, editor Janice Marcus
Journey Planet, edited by Team Journey Planet
Lady Business, editors Ira, Jodie, KJ, Renay & Susan
nerds of a feather, flock together, editors Joe Sherry, Vance Kotrla and The G
Quick Sip Reviews, editor Charles Payseur
Rocket Stack Rank, editors Greg Hullender and Eric Wong
Melhor Livro de Arte (Conceito Visual, Design…)
The Books of Earthsea: The Complete Illustrated Edition, illustrated by Charles Vess, written by Ursula K. Le Guin (Saga Press /Gollancz)
Daydreamer’s Journey: The Art of Julie Dillon, by Julie Dillon (self-published)
Dungeons & Dragons Art & Arcana: A Visual History, by Michael Witwer, Kyle Newman, Jon Peterson, Sam Witwer (Ten Speed Press)
Spectrum 25: The Best in Contemporary Fantastic Art, ed. John Fleskes (Flesk Publications)
Spider-Man: Into the Spider-Verse — The Art of the Movie, by Ramin Zahed (Titan Books)
Tolkien: Maker of Middle-earth, ed. Catherine McIlwaine (Bodleian Library)
Comentários: Eu já dei uma olhada em alguns desses, mas apenas online. Por mais que The Books of Earthsea, sobre Terramar, seja bem bonito, e Tolkien: Maker of Middle Earth fale com meu lado fã do autor, não tem como eu querer um desse em mãos mais do que o de Aranhaverso. Até hoje fico louco com os visuais e impressionando com cada detalhe, então o livro com toda a parte de conceito visual do filme é minha escolha óbvia.
Prêmio John W. Campbell Award para Melhor Escritor
Katherine Arden (segundo ano elegível)
S.A. Chakraborty (segundo ano elegível)
R.F. Kuang (primeiro ano elegível)
Jeannette Ng (segundo ano elegível)
Vina Jie-Min Prasad (segundo ano elegível)
Rivers Solomon (segundo ano elegível)
Lodestar Award para Melhor Livro YA (Young-Adult)
The Belles, by Dhonielle Clayton (Freeform / Gollancz)
Children of Blood and Bone, by Tomi Adeyemi (Henry Holt / Macmillan Children’s Books)
The Cruel Prince, by Holly Black (Little, Brown / Hot Key Books)
Dread Nation, by Justina Ireland (Balzer + Bray)
The Invasion, by Peadar O’Guilin (David Fickling Books / Scholastic)
Tess of the Road, by Rachel Hartman (Random House / Penguin Teen)
Comentários: Children of Blood and Bone foi lançado no Brasil como “Filhos de Sangue e Osso”, e é um dos livros mais populares da lista. Eu não cheguei a ler qualquer um dos indicados nesta categoria, mas alguns parecem bem interessantes, como The Invasion e Tess of the Road.
Este ano o Hugo Awards tem uma lista de indicados bastante diverso. É interessante ver a quantidade de mulheres nas principais categorias, o que mostra como a premiação segue um caminho mais aberto para representações e pontos de vista diferentes.
Assim que os vencedores sairem, voltamos com a lista. Enquanto isso, hora de atualizar as leituras.
Mesmo adorando o trabalho de Brit Marling no cinema, demorei para entrar na lista de fãs de The OA. Foi mais uma questão de sempre esquecer que a série estava ali, e agora fico pensando nela o tempo todo. Mas finalmente assisti e fiz um texto sobre a primeira temporada. Felizmente, por ter demorado tanto para fazer isso, não sofri esperando mais de dois anos pelo retorno da série (não sei como os fãs aguentaram tanto tempo), e ainda por cima, apenas algumas semanas depois, é anunciada a data definitiva para a continuação. E aqui estou, sentindo o impacto dos oito episódios lançados na última sexta-feira (22 de março), tentando botar os pensamentos em ordem para escrever algumas linhas, derrubando algumas lágrimas ao lembrar que passei a fazer parte daqueles que vão esperar anos pela terceira temporada.
Passei o primeiro parágrafo falando de “temporadas”, mas a série é tecnicamente dividida em “partes”, então é assim que chamarei daqui pra frente.
The OA retorna depois de deixar algumas coisas importantes em aberto na sua Parte 1. Com um desfecho inesperado e uma cena nos créditos finais que piora a situação de qualquer um com ansiedade, a série tem muito o que cobrir. Agora estamos em outra dimensão, Prairie conseguiu “saltar”, mas ainda precisa lidar com vários obstáculos. Hap arranjou uma maneira de atravessar para o mesmo lugar e aproveita sua posição privilegiada como doutor para tomar conta da OA, obviamente considerada louca por conta de sua história. Ele também consegue capturar todas as suas cobaias, mas percebe que Homer é um caso diferente (mais dele para frente). Paralelamente, a série introduz um segundo protagonista e uma trama que toma conta de quase metade dessa segunda parte: o detetive Karim Washington, empenhado em investigar o desaparecimento de uma jovem. Na dimensão original (chamarei assim para poder diferenciar), os jovens e BBA correm conta o tempo para descobrir novas pistas indicando que a OA pode estar viva.
The OA se posiciona como uma das produções mais originais atualmente, e eu ouso arriscar que é o mais próximo que teremos de algo no nível de Twin Peaks (que saudades de você!). A segunda parte mescla alguns gêneros sem perder seu ritmo. A ficção científica ainda é uma base para a série, mas o misticismo, já presente antes, agora tem um papel ainda maior na jornada. A produção chega a explorar um pouco de suspense também, incluindo uma subtrama que beira os filmes clássicos de casa mal assombrada, com novos conceitos que expandem ainda mais a ideia do jardim bifurcado (primordial para a compreensão de grande parte da série). Como se não fosse suficiente, a missão do detetive Karim tem a atmosfera perfeita para um thriller policial.
Transitar entre gêneros é algo que a série faz bem, mas isso não chega perto de descrever toda a loucura que a segunda parte traz para o público. Zal Batmanglij e Brit Marling justificaram a demora para a continuação da história. The OA ficou maior e mais ambiciosa, abrindo as portas para a dupla arriscar mais com o universo que criou, incluindo um episódio inteiro que parece ter saído da cabeça de David Lynch, utilizando tudo que conhecemos sobre séries para destruir a expectativa de quem espera uma narrativa mastigada. Isso não é apenas enredo, estou falando também das decisões visuais usadas para representar o que nossa mente não está treinada para assimilar com facilidade. Para ajudar nisso, Batmanglij emprestou a cadeira de diretor por três episódios para Andrew Haigh e Anna Rose Holmer, responsáveis por ótimos filmes como The Fits e Weekend, respectivamente.
Trazer o abstrato para uma mídia visual é arriscado, e The OA é um dos poucos casos onde há consistência no absurdo e beleza no grotesco, e até mesmo no ridículo. Há sequencias envolvendo um conjunto de robôs que pode soar bobo e fora de lugar, e talvez essa seja uma das poucas partes onde a série poderia se beneficiar abraçando um pouco a ideia de se levar menos à sério, pelo menos em alguns aspectos (algo que Twin Peaks faz com maestria). Mas não é toda vez que isso acontece, principalmente porque você não espera se sentir tão intrigado assistindo um dos momentos mais impensáveis de toda a série (você vai saber exatamente do que estou falando quando chegar nela, mas se tiver dúvida, ela envolve tentáculos), que provavelmente vai afastar uma parte do público, mas conquistar completamente outra, principalmente depois da atuação de Marling, sempre se entregando para as cenas.
Três tramas paralelas podem ser um sinal preocupante para quem assiste, ainda por cima quando elas tem propostas distintas. Seria um desperdício de tempo se toda a apresentação de novos personagens e mundos atrapalhasse o ritmo dos episódios. Felizmente, essa Parte 2 é maior e melhor em muitos aspectos. Karim é a aposta mais perigosa, sendo um novo membro com uma trama própria, mas Kingsley Ben-Adir é mais do que a figura de autoridade que assume uma responsabilidade. O ator revela-se um dos componentes mais atraentes da história, indo de investigador confiante e carismático para um homem com dificuldades na hora de se relacionar com as pessoas mais próximas. É bom ver que, mesmo com todo o destaque para o fantástico, o drama ainda é o que move a série.
O núcleo dos jovens e BBA também está melhor. Depois de passar a maior parte da primeira parte (queria chamar de temporada, mas…) como testemunhas da jornada de Prairie, tomando atitudes apenas nos episódios finais, podemos nos dedicar aos traumas e dilemas de cada um. Com a revelação de que Prairie pode estar viva, o grupo faz uma viagem pela estrada, passando por obstáculos que testam sua amizade. Cada um dos personagens tem seus próprios demônios para lidar, mas devem correr contra o tempo na busca de respostas. Assim como eles, Prairie e seus companheiros estão em uma prisão pior que a anterior, uma que não precisa ser escondida. Para piorar a situação, Homer não parece ter tido sucesso durante o salto, resultando em mais um trabalho para a Oa, que agora precisa trazê-lo de volta. Os dois tem uma bagagem emocional forte, e é outro crédito para a série ter dois atores tão bons dividindo isso. Emory Cohen (que interpreta Homer) e Marling tem a dura tarefa de interpretar mais de um personagem, mesmo que dividam o mesmo corpo. Só posso deixar aqui meus elogios para a forma como os dois conseguiram usar tudo que tinham para criar personalidades opostas ao que estavam acostumados, principalmente Marling, que muda sua linguagem corporal de maneira impressionante para tomar o lugar de Nina Azarova, sua versão que sobreviveu ao acidente de ônibus.
Cada linha narrativa é muito bem executada, sem perder o ritmo, aumentando a atenção do público para um desfecho mais impressionante que o anterior. As tramas convergem e culminam em uma grande jornada sobre união e fé, resultando em uma conclusão que se joga de cabeça em algo que promete ser um exercício de metalinguagem como poucos (mas isso só o tempo dirá).
A ambição da série não está apenas na narrativa e no visual, ou no acréscimo de dois diretores talentosos, mas no próprio elenco. Além do retorno de Riz Ahmed, que na época não era tão cotado quanto hoje, temos a presença da atriz Zendaya, em uma atuação contida e mais pontual que não distrai em momento algum. O que surpreendentemente acaba atrapalhando um pouco é a presença de Ahmed. Sua participação é apressada e surge de maneira conveniente, entregando informações que talvez fossem melhor mantidas em segredo para manter a ambiguidade de um dos mistérios da primeira parte. E por falar nisso, é sentida a falta de alguns elementos recorrentes da primeira parte, como as conversas com Khatun, que eram partes importantes para a Oa.
O que transformou The OA em um evento para mim é a forma como abraça cada pedaço da trama, até aqueles que podem soar vergonhosos à principio, mas que logo revelam-se um momento executado com tanta honestidade e vontade de inovar que você passa a admirar com mais força. Ainda que tenha suas subtramas e conclua a jornada da temporada, essa é uma produção que não se apoia apenas em análises e teorias mirabolantes, se dedicando em estimular os sentidos com um mundo incrível.
Vamos torcer por mais séries nesse nível. É questão de fé!
Ficha Técnica: The OA, S02 Criada por Zal Batmanglij e Brit Marling Direção de Zal Batmanglij, Andrew Haigh e Anna Rose Holmer Roteiro de Zal Batmanglij, Brit Marling, Dominic Orlando… Atuações de Brit Marling, Emory Cohen, Patrick Gibson, Jason Isaacs, Ian Alexander, Phyllis Smith, Kingsley Ben-Adir
“Tudo isso aconteceu, ou quase. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras”
Kurt Vonnegut é um autor que entende a comédia como poucos, com ritmo e sutileza suficiente para fazer cada nova leitura uma experiência com novas sensações. Ainda que seu tratamento siga, geralmente, um ângulo mais descontraído e fácil de digerir pelo público, Vonnegut não evita tecer seus comentários ácidos sobre conceitos como política e filosofia. Isso porque o autor teve um encontro com o pior que a humanidade pode oferecer, tendo sobrevivido ao terror da Segunda Guerra Mundial. Mas não foi só isso.
“Billy Pilgrim ficou solto no tempo”. Assim somos apresentados ao personagem principal, sem rodeios. Pilgrim é um veterano de guerra com bastante história para contar, mesmo que algumas delas possam parecer mais absurdas do que o normal. Ser abduzido por uma raça alienígena e fazer parte de um zoológico humano não chega perto do horror que é sua experiência como soldado durante a Segunda Guerra Mundial. Pilgrim, o coitado, não consegue convencer as pessoas que tem a capacidade de visitar diversos momentos de sua vida instantaneamente e aleatoriamente. Agora ele pode estar sentado em um sofá assistindo as notícias, mas num piscar de olhos se encontra no meio do campo de batalha, sendo arrastado e humilhado por seus companheiros, cansados de sua atitude. Ainda que seja uma obra sobre guerra, Matadouro-Cinco não se importa com representações de grandes batalhas e segue uma premissa que utiliza mais a comédia e a ficção científica para dar seu relato incrivelmente pessoal sobre o que o autor passou. Vamos falar um pouco sobre a relação de Vonnegut com a guerra e as decisões narrativas tomadas com esse livro.
Os Fantasmas de Dresden
Como Billy Pilgrim, Kurt Vonnegut serviu na Segunda Guerra e acabou retido em Dresden, uma pequena cidade barroca na Alemanha, constantemente descrita como um ponto turístico cheio de beleza, comparada ao que o mundo tinha de mais charmoso e artístico, uma “Florença do Elba”. Dresden nunca foi uma cidade militar, sendo até aproveitada como um lugar independente dos conflitos da época. Foi por este motivo que ninguém estava pronto (mesmo em tempos como aqueles) para o que estava por vir: um bombardeio efetuado pelos próprios aliados que lançou toneladas de dispositivos incendiários na capital. O desastre foi uma das maiores atrocidades do período, deixando um número de baixas perturbador, principalmente quando lembramos que dos milhares, a maioria era constituída de civis. “Dresden era uma imensa labareda. A labareda devorava tudo o que fosse orgânico, tudo o que pegasse fogo” (p. 237).
A catástrofe esteve presente nas obras de Vonnegut, mas apenas de forma alegórica, como em Cama de Gato, onde atribui à figura do cientista Felix Hoenikker a responsabilidade por ter desenvolvido a bomba atômica. No caso, o livro dá destaque para o ataque de Hiroshima, o que levanta a questão: por que não abordar Dresden? O motivo é simples, era um tópico doloroso demais para ser revisitado, mas que precisa ser contado. Esse dilema é representado nas primeiras páginas de Matadouro-Cinco, onde o autor se posiciona como narrador do capítulo inicial para fazer uma brincadeira de metalinguagem, confessando suas preocupações em escrever um livro sobre algo tão íntimo.
É um começo inusitado, somos lembrados pelo próprio autor que tudo o que estamos prestes a presenciar é uma história saindo de sua máquina de escrever. Vonnegut arrisca perder uma conexão com o público, mas é neste mesmo instante que ficamos ainda mais intrigados com o rumo da jornada de Billy Pilgrim, seu protagonista, e nosso interesse apenas aumenta em ver como um autor tenta se desligar de sua própria narrativa, principalmente uma que se tornou tão essencial para seu desenvolvimento pessoal. Há um certo alívio em sua decisão, tanto que conclui seu relato mencionando uma tragédia bíblia, a de Sodoma e Gomorra, especificamente quando a esposa de Ló desobedece uma orientação divina e olha para trás, para toda a destruição, fazendo com que a mulher se transforme em uma estátua de sal.
Mas ela olhou. E eu a amo por isso, porque foi um ato muito humano. Aí ela virou uma estátua de sal. É assim mesmo. As pessoas não devem olhar para trás. Eu garanto que não vou fazer mais isso. Já terminei meu livro sobre a guerra. O próximo […] vai ser divertido. Este é um fracasso, e tinha mesmo de ser, pois foi escrito por uma estátua de sal.
Narrativa e Referências
Além da metalinguagem que atravessa a obra, tendo pequenas menções do autor dizendo onde estava durante o evento (“aquele ali no banco de trás, era eu”), Vonnegut emprega figuras de linguagem o tempo todo, a mais recorrente sendo a repetição de adjetivos para descrever a situação deplorável de algum personagem (“coitado”) ou frases que servem para acentuar o absurdo de alguns acontecimentos, talvez fazendo alusão à “regra não escrita” de como funciona a estrutura de uma piada, podendo ser repetida no máximo três vezes até perder a graça.
Em Matadouro-Cinco temos a frase mais conhecida do autor, repetida em demasia como uma forma de luto por alguém (ou algo) que teve um fim trágico: “É assim mesmo” (no original, “so it goes”). Isso é repetido em todos os capítulos; na verdade, em quase todas as páginas. No começo parece uma maneira leve de abordar as mortes e o caos, mas logo somos tomados pelo sentimento desconfortável de estarmos ficando cada vez mais acostumados com uma frase que representa algo tão deprimente. É o jeito inteligente de utilizar a comédia, como uma ferramenta de auto-crítica. O texto simples e limpo de Vonnegut, ao lado das ilustrações, atesta seu talento para escrever algo impactante com uma abordagem menos carregada nas palavras, deixando esse trabalho para a própria trama.
Há referências, é claro. Vonnegut tem um tipo de universo compartilhado em sua biblioteca. Neste livro encontramos figuras conhecidas de quem está acostumado ao autor, como um membro da família Rumfoord, importantíssima para a trama de Sereias de Titã; temos também o escritor de ficção científica Kilgore Trout, de Café da Manhã dos Campeões (uma obra posterior, mas com o mesmo personagem); e Eliot Rosewater, que empresta seu nome para outro livro de Vonnegut: God Bless You, Mr. Rosewater (ainda sem tradução no Brasil).
“pu-ti-uít?”*
Matadouro-Cinco é um livro denso em seus temas, mas leve na escrita. Considerada por muitos como uma obra-prima da ficção científica cômica (e pessoalmente, a melhor obra do autor que li até o momento), este é um exercício de memória que tenta soar despretensioso, mas não consegue esconder a indignação com tudo que aconteceu. Vonnegut não gosta da guerra, não quer envolvimento com ela, sequer gostaria de ler sobre ela. Mas ele precisa escrever, ele esteve lá.
Nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre (p. 37)
Toda a viagem espacial e a abdução pelos tralmafadorianos (a raça alienígena que Billy diz ter encontrado) abre a mente do protagonista da obra, o ensina sobre a nossa própria concepção de tempo e como lidar com o luto, percebendo que “quando uma pessoa morre […], ela está bem viva no passado. Todos os momentos, passado, presente e futuro, sempre existiram, sempre existirão”. Pode ser apenas a maneira estranha que Billy escolheu para sobreviver tanto tempo com as memórias de guerra, mas ele se sente bem assim. Mais uma vez Vonnegut questiona nossa liberdade, assim como fez em obras anteriores, e nos deixa sozinhos com perguntas que talvez ninguém consiga responder, nem mesmo no fim da humanidade.
É assim mesmo.
*pu-ti-uít?: Som dos pássaros. Os únicos que tem algo para falar sobre a guerra.
Matadouro-Cinco ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória Com a Morte(Slaughterhouse-Five), de Kurt Vonnegut
Talvez o longa mais polarizante do currículo de Steven Spielberg seja AI: Inteligência Artificial, de 2001. Alguns consideram um ótimo trabalho de um diretor mais que competente que conseguiu unir sua técnica com a de outro realizador de visão única, mas no outro canto do ringue ficamos com quem considera este um trabalho sem imaginação e desnecessário. Eu aposto meu dinheiro no primeiro grupo e vou dizer porquê. Mas antes, contexto:
Assim como muitos diretores, Stanley Kubrick deixou alguns projetos em aberto antes de sua morte, em 1999. Além do roteiro para uma possível megaprodução sobre a vida de Napoleão, foi revelado um novo projeto que o traria de volta para a ficção científica (onde já realizou clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica), sobre a jornada de um robô para tornar-se um garoto de verdade. Mas a ideia não chegou a sair do papel e várias anotações e artes conceituais foram deixadas para trás, até que Steven Spielberg, por mais inesperado que pareça, decidiu continuar a visão de seu amigo.
Os dois possuem uma filmografia completamente diferente, seja em linguagem cinematográfica ou sensibilidade. Como levantou o site AV Club: “Temos o filosófico ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ de Kubrick em um lado, e o emocional ‘Contatos Imediatos do Terceiro Grau’ de Spielberg em outro; ou o cínico ‘Nascido Para Matar’ contra o patriótico ‘O Resgate do Soldado Ryan’. Se tivermos que escolher um, seria uma duvida entre um analista da condição humana e um humanista”. Ainda assim, os diretores eram fãs um do outro, o que não deixa de ser curiosa a decisão de Kubrick em deixar seu projeto final nas mãos de Spielberg. A resposta é mais simples do que se imagina, e está na própria carreira deles. O filme tinha todos os elementos para uma boa ficção científica, mas precisava de um que seria essencial; se você tem uma história onde seu protagonista é um robô que anseia pela humanidade, há uma necessidade por uma carga emocional que o público está acostumado a conseguir em obras como E.T.: O extraterrestre ou Jurassic Park, realizados pela mesma pessoa. Por isso, considero essa a melhor decisão possível.
Baseado no conto de Brian Aldiss, Supertoys Last All Summer Long(“Superbrinquedos Duram o Verão Inteiro”, lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2001), AI: Inteligência Artificial nos apresenta David, uma criança robô criada por uma equipe de cientistas com a promessa de desenvolver a primeira inteligência artificial capaz de “amar” seu administrador. Monica e Henry Swinton decidem “adotar” David ao descobrir que seu filho possui uma doença aparentemente incurável. A família consegue conviver mesmo com o comportamento robótico do mecha, mas as coisas ficam complicadas quando o filho do casal é liberado do hospital e volta para testar e se vingar de David por ter tomado seu lugar.
A primeira decisão certeira de Spielberg foi contratar Haley Joel Osment, provavelmente o ator mirim mais requisitado naquele ano, depois de ter agradado público e crítica ao estrelar longas como O Sexto Sentido (1999) e A Corrente do Bem (2000). Osment era diferente da maioria dos atores de sua idade, se destacando por conseguir executar papéis complexos de maneira convincente, tanto que chegou a ser uma das pessoas mais novas a concorrer ao Oscar. E não é como se o resto do elenco ficasse devendo, já que tinha nomes como Jude Law e William Hurt. Com um diretor comprometido em apresentar narrativas e personagens memoráveis, o maior desafio de Spielberg seria trazer a visão do amigo para a luz, sem perder sua identidade.
AI possui três atos bastante distintos. O primeiro tem foco total no cotidiano familiar, introduzindo David e seu antagonista, o filho biológico dos Swinton, Martin. Aqui fica aparente a fidelidade ao visual e atmosfera de Kubrick que Spielberg tenta manter. A claustrofobia de cenas simples como um jantar em família é sentida mesmo na grande casa. Os corredores estão sempre vazios, o silêncio predomina, e mesmo com a chegada de Teddy, um robô na forma de ursinho de pelúcia, a diferença é pequena.
Neste momento, a composição fotográfica é centralizada — como era comum de Kubrick. Temos ângulos incomuns, porém uma direção de arte limpa e uma câmera mais estática, com poucos movimentos, mas geralmente reveladores, como quando Monica tenta preparar um café e David observa no canto da mesa, ou no reflexo causado por ele atrás de um vidro. O ponto de vista inicial vem de Monica: é ela quem seguimos, e isso serve para termos um pouco de sua perspectiva deste mundo antes que a humanidade torne-se definitivamente apenas espectadores da jornada de David, assim como todos nós assistindo.
Essa abordagem atravessa o filme, mas deixa de ser a regra assim que chegamos no segundo ato, resultado de uma atitude difícil tomada pela mãe, por conta das competições entre David e Martin, que ficam cada vez mais perigosas. É um dos momentos mais dramáticos do filme e o desespero do robô é tão realista que a mãe não consegue segurar o choro.
A estrutura narrativa de AI lembra a de Nascido Para Matar, outro filme de Kubrick com um primeiro ato em poucas localidades, mais fechado, que força uma abertura para o mundo real em sequencia. Aqui saímos da casa sufocante dos Swinton para um mundo de sucata e neon. Deixamos os humanos para trás e é a hora dos mechas tomarem conta da trama.
É neste mundo que David, acompanhado de Teddy, encontra Gigolo Joe, um mecha adulto (interpretado por Jude Law) que trabalha usando suas ferramentas de sedução. Somos apresentados ao personagem de maneira inusitada, quando ele foge da cena de um crime que não cometeu. Isso faz com que os dois parem em um ferro-velho, no meio de outros de sua espécie, abandonados ou escondidos. A partir de agora Spielberg nos entrega alguns dos visuais mais impressionantes do filme, com uma fotografia mais suja e planos abertos, reveladores como os de Kubrick, mas em escala, como o balão que surge no horizonte e ilumina a noite. É curioso como esse balão parece replicar a famosa imagem da lua usada pelo diretor em E.T.- O Extraterrestre, que mais tarde viria a ser a logo da produtora de Spielberg, Amblin.
Durante o segundo ato podemos ver uma mudança na abordagem do filme, que expande seu próprio universo, mostrando outros mecha e sua relação — nada boa — com os humanos. Fica claro que a partir de agora estamos lidando com a linguagem de Spielberg, um ritmo mais rápido e orgânico. É claro que a cena de um sintético com a fisionomia e a voz do comediante Chris Rock sendo atirado de um canhão como uma bola não é o que você espera em um momento tão desesperador para David, então eu dou ponto para o time que não gosta do filme por essa parte.
Não demora para visitarmos Rogue City, o centro de luxúria e cobiça, mas também de tecnologia e informação. É a parte mais extravagante do filme não só em questão de espetáculo visual e uso de efeitos especiais. Alguns consideram isso uma forma de Spielberg tomar conta do filme e deixar as coisas mais grandiosas do que o necessário, mas esse é um dos vários casos onde ele apenas seguiu o que Kubrick já tinha planejado. De acordo com o próprio artista conceitual, Chris Baker, que esteve envolvido no projeto desde o início: “Se eu fizesse a cidade hoje, seria um pouco mais sutil. Eu teria evitado que fosse excessivamente feminina. Talvez mesclar tudo para que não fosse tão óbvio”. Não sabemos se Kubrick traria essa sutileza, mas a ideia era dele e tudo que seu amigo fez foi seguir com ela. No fim, tivemos uma direção de arte mais que competente e alguns ambientes incríveis.
Após consultar uma enciclopédia holográfica, David esbarra na fábula de Pinóquio e fica mais empenhado em descobrir como se tornar um garoto de verdade. Até aqui eram notáveis as ligações metafóricas do filme com o conto do brinquedo de madeira, mas é a partir deste instante que Inteligência Artificial assume por completo sua missão de realizar os desejos de David, mesmo que eles não venham da forma que desejou.
E assim chegamos no polêmico terceiro ato, que afastou tantas pessoas e aparentemente destruiu suas experiências. David e Teddy encontram a fada azul (na verdade, uma estátua sobrevivente das ruínas da civilização), a mesma que concebeu o desejo de Pinóquio e o transformou em uma criança de verdade. David faz seu pedido e espera ao lado de seus companheiros, na esperança de que em algum momento a fada os ouça.
Anos, décadas e séculos se passam e eles não saíram dali. A superfície da água agora é gelo, a humanidade não parece ter sobrevivido, mas os circuitos das personagens continuam funcionais. Os dois são acordados por figuras que conseguem fazer uma leitura de tudo que David presenciou em sua vida. Logo descobrimos estar na presença de um grupo de mechas, em uma versão muito mais avançada (SIM, são mechas! Não são alienígenas, como alguns pensam até hoje). Diante da ânsia do pequeno garoto sintético, eles decidem realizar seu último desejo, de passar mais um dia com sua mãe. É tudo uma simulação, mas David não se importa. Ele pode falar, andar e tocar, e assim passa horas brincando em sua antiga casa, com sua mãe, como se ele fosse um menino de verdade. Assim, ele pode ser desligado tendo uma sensação de paz. E se vai.
Todo o terceiro ato do filme é considerado por alguns como desnecessário e fantasioso demais. O próprio autor do livro original, Brian Aldiss, não estava feliz com a motivação envolvendo Pinóquio. Então, por que Spielberg fez isso? A obra poderia ter terminado assim que David encontra a fada. Este poderia ser um final lógico, mesmo que desolador. A imagem do mecha no fundo do mar é prevista no primeiro ato, quando David afunda na piscina dos Swinton. Mas a intenção de Spielberg é ser o menos convencional possível, ir além do que se espera. Pode soar óbvio, e é por isso que, de acordo com Spielberg, o próprio Kubrick queria ultrapassar esta barreira e revelar um desfecho satisfatório para David, um que envolvia aproveitar o que nunca conseguiu, abraçando aquela realidade como ninguém. Ficamos com um momento de catarse, e a atuação de Osment ajuda muito nisso. É uma sequencia mais calma, de doçura e alegria, mas que também traz uma sensação conflitante quando percebemos o quão depressivo e desesperador foi para David nunca ter isso e como ele dedicou sua existência procurando por um sentimento que agora está perdido em um futuro congelado.
Spielberg fez o máximo que pôde para manter o visual e a narrativa de Kubrick, isso sem deixar de lado sua própria habilidade para desenvolver personagens e drama realistas, e é uma tarefa ainda mais difícil fazer isso em uma trama com pouco elemento humano. Inteligência Artificial tem seus defeitos, como o ritmo inconsistente e a falta de uma música mais memorável de alguém tão talentoso como John Williams (responsável pela trilha sonora do filme), mas ainda é um longa com vários pontos positivos e um debate intrigante sobre a condição humana através de uma perspectiva incomum. Estou do lado que considera Spielberg a escolha certa para o projeto, e também acredito que ele tenha sido um bom amigo no fim.