Eu sou o tipo de fã que não se importa com novas adaptações de alguma produção, isso desde que ela seja boa, obviamente. Mas admito ter me preocupado com Star Trek: Discovery. E antes que me interpretem mal, eu não sou raso o suficiente para basear minha avaliação da série apenas no quanto ela respeita a representatividade, isso sem contar que a franquia foi construída em cima de princípios que não só apoiam como encorajam a diversidade, então se você é do tipo que acha que a série está ruim porque ela “lacra” ou algum desses argumentos sem sentido, acho melhor evitar a franquia inteira. Tirando isso do caminho, vamos falar de “Brother”.
Depois de uma primeira temporada inconsistente, havia uma preocupação para o que viria neste segundo ano, principalmente depois do season finale da temporada anterior introduzir a clássica NCC-1701, capitaneada no momento por Christopher Pike (Anson Mount). “Brother” traz uma premissa bem simples, onde Pike é designado para comandar provisoriamente a Discovery.
No meio disso, há algumas tramas paralelas promissoras — mesmo que preocupantes — envolvendo o luto de Stamets (Anthony Rapp) por seu companheiro, e a preocupação de Michael Burnham (Sonequa Martin-Green) com o possível reencontro com seu meio-irmão, Spock (Ethan Peck). Das duas opções, apenas a trama de Stamets possui algum peso dramático, com um personagem incapaz de seguir em frente, que vê a pessoa que ama em todos os cantos daquela nave. Sua relação com a cadete Tilly (Mary Wiseman) também é muito boa e gera o momento mais honesto do episódio, isso graças à carisma da atriz (mesmo que ela exagere um pouco do seu comportamento algumas vezes). Mas aí entra a parte de Burnham e Spock, que infelizmente deveria receber bastante atenção, mas acaba virando uma subtrama tediosa de assistir, com flashbacks que atrapalham um pouco o ritmo.
Com isso entramos no maior problema do episódio e, se continuar assim, da temporada: referências gratuitas. Há uma necessidade de inserir coisas que não fazem falta, pelo menos por enquanto. Não precisamos de todo o mistério em volta de Spock, por exemplo. Conhecemos o personagem, então a única função que as menções ao seu nome tem são a de lembrar o público de uma das figuras mais icônicas da franquia. As aparições de Sarek (James Frain) são menos desconfortáveis, um crédito para a atuação de Frain. O mesmo ocorre com Saru (do excelente Doug Jones), que é facilmente o meu personagem favorito da série, também graças ao desempenho de Jones.
Não tenho muito mais o que dizer do episódio. “Brother” não entrega nem mesmo o que o título propõe (a trama envolvendo os “irmãos” é a menos importante aqui), mas a ação é competente, as atuações estão boas e os efeitos visuais são o maior diferencial da série. Não vou me aprofundar em território de erro cronológico porque a série já provou não se importar com linhas temporais, e nesse episódio temos mais exemplos disso, como um visor estilo Geordi La Forge de algum membro da tripulação (vai que é uma versão teste, mas ainda assim isso entra em conflito com algumas coisas que já sabemos sobre o personagem e sua necessidade pelo aprimoramento). “Brother” não é um começo muito promissor, mas felizmente parece que Pike não vai se intrometer tanto quanto imaginei, então vamos torcer, já que o que eu quero é que melhore, torcer contra é perda de tempo.
Masamune Shirow lançou em 1991 o mangá The Ghost in The Shell, com temas e personagens complexos que merecem ser conhecidos, mas a obra só ficou realmente conhecida e aclamada pela crítica depois de sua adaptação cinematográfica, em 1995, dirigida por Mamoru Oshii.
Ghost in the Shell (Kôkaku Kidôtai no original; O Fantasma do Futuro no Brasil) não é apenas uma referência em animação ou no subgênero cyberpunk, é uma grande obra da sétima arte. Seus elementos narrativos e os temas carregados de debate existencial criam um longa que pode ser assistido e dissecado várias vezes, e felizmente isso não se torna uma tarefa cansativa por conta do incrível trabalho de direção de arte que desenvolveu alguns dos visuais mais impressionantes que você vai ver em qualquer anime.
Motoko Kusanagi é uma ciborgue à serviço do Setor 9, um departamento de inteligência “responsável pela segurança nacional” (sem contar todas as outras funções que são confidenciais), com liberdade para atuar de forma violenta, se necessário. Motoko utiliza, além de sua inteligência, armas e seu próprio corpo aprimorado para capturar qualquer figura que possa ser considerada uma ameaça, seja física ou virtual. Ao lado de seus parceiros de trabalho, Batou e Togusa, Kusanagi procura pelo Mestre dos Fantoches, uma inteligência artificial (mesmo que ela não se considere e o conceito seja um pouco mais complexo do que isso) que anda cometendo atos terroristas com um objetivo ainda incerto.
Ghost in The Shell (ou GITS)é carregado de símbolos. Um dos principais é a própria cidade, um ambiente futurista modelado a partir de Honk Kong. Oshii aproveita o neon e a arquitetura, no entanto insere elementos menos deslumbrantes, como os escombros do que ficaram para trás em alguma catástrofe natural. A cidade respira, quase como um personagem próprio, mas não de forma alegre, aqui a solidão está em cada composição, com as pessoas em movimento constante e as construções gigantes e restritas. O filme representa isso através de uma sequencia de imagens apresentadas em um ritmo inalterado e a ausência dos sons daquele universo — o que temos é a excelente música de Kenji Kawai, uma melodia tribal com uma percussão e voz quase estarrecedora que não saem da cabeça.
Mamoru Oshii já esteve envolvido em outras produções como esta, cheias de conceitos e visuais enigmáticos, como Angel´s Egg, de 1985. Em GITS ele abre debates de cunho filosófico, com temas como homogeneidade e consciência. Motoko é uma personagem tão complexa quanto o enredo da animação. A agente tem o costume de mergulhar e arrisca morrer por conta de alguma falha do sistema, mas ainda assim continua nadando, e são nestes momentos em que temos uma das rimas visuais mais poderosas do filme, quando a ascensão de Motoko à superfície é um espelho do seu nascimento, logo na cena de abertura, sendo erguida do tanque aquático onde foi projetada. A personagem diz que ali ela sente “medo, frio e solidão, mas também esperança”.
O filme abre uma conversa intensa sobre mente e corpo, mas o que mais preocupa Motoko é sua identidade: “Acho que ciborgues tem uma tendência paranoica sobre sua origem. As vezes suspeito não ser quem sou”. Ainda que a nossa individualidade esteja em questão, o filme não deixa de mostrar a importância da diversidade em uma sociedade que não consegue distinguir o real do artificial, e isso fico bem claro na forma de Togusa, o oficial da força policial que é admitido na missão de Motoko e Batou por sua particularidade: ao contrário de seus companheiros, Togusa não possui aprimoramentos que passam do superficial, ele é o mais “humano” da equipe. A experiência de cada ser vivo é uma contribuição para a consciência coletiva, as diferenças são uma vantagem, todos temos uma maneira única de ser e lidar com as coisas.
O que é verdade para um grupo também é verdade individualmente. Quando se é especialista demais, torna-se fraco.
A obra também aborda a parte mais assustadora da mente através do Mestre dos Fantoches. Um de seus primeiros atos é brincar com a realidade de suas vítimas, como o lixeiro que acredita estar fazendo tudo por sua mulher e filha, mas descobrimos que ele é solteiro e nunca foi pai. O Mestre dos Fantoches fez com que sua vítima aceitasse uma realidade que não era a sua. Os conceitos de realidade e consciência se confundem e isso faz com que todos fiquem ainda mais preocupados com o que o antagonista pode fazer.
Ghost in the Shell é uma das animações mais influentes do cinema japonês, ecoando em outras mídias e formatos, seja na abordagem de temas ou visuais, como podemos ver no cinema com Matrix (1999)ou nas séries, com Westworld (2016 — Atual). Há muito para ser dissecado de cada diálogo ou da direção de arte, seja detalhes mais óbvios ou pequenas rimas que fazem o constante retorno ao filme uma experiência cada vez melhor.
O Bokononismo pode soar complicado para alguns. A leitura dos livros sagrados pode elucidar um pouco qualquer dúvida que tenha sobre seu karass ou como as fomas tem afetado sua vida. Mas o mais difícil mesmo é aceitar que esta é uma religião fictícia, criada pelo autor Kurt Vonnegut, em seu livro, Gama de Gato. Pode soar como um choque, mas não desanime, não é como se a minha verdade tivesse que ser a sua verdade.
A obra de Vonnegut segue John (o Jonah, já que ele prefere assim) em sua procura por registros de pessoas que estiveram envolvidas direta ou indiretamente com o dia em que Hiroshima foi bombeada pelos Estados Unidos. John consegue entrevistas com os filhos de um dos principais responsáveis pela bomba atômica: Felix Hoenikker. O que poderia ser apenas um recorte de comentários sobre o cientista acaba se tornando um mar de revelações, mas também um oceano de incertezas e questões sobre o que é essa substância aparentemente poderosa chamada gelo-nove, por exemplo.
John não imaginou que a história tomaria este rumo ou que ele pararia na ilha de San Lorenzo, onde todos são adeptos do Bokononismo, uma religião baseada em uma existência consciente das mentiras de seu criador. Mas talvez a maior surpresa para John foi acabar se tornando um adepto.
A primeira frase que aparece nos livros de Bokonon é esta: “Todas as verdades que estou prestes a contar são mentiras descaradas”. Meu conselho Bokononista é este: Quem for incapaz de entender como uma religião benéfica pode ser baseada em mentiras também não vai entender esse livro. Que assim seja.
Cama de Gato, editora Aleph, 2017
Parece confuso, e é confuso. Vonnegut faz questão de explicar a terminologia e os dogmas de sua religião fictícia, mas não deixa de brincar com o conceito e a forma — irracional — como aderimos ao pensamento de uma figura religiosa (ou política) absoluta, o que rende as melhores piadas e os momentos mais engraçados do livro. Você pode fazer parte de um karass, equipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que estão fazendo; Mas se você é do tipo de pessoa que prefere apenas uma relação à dois e quer alguém para dividir seus ideais bokononistas, está pronta para um duprass, que é basicamente um karass formado por duas pessoas.
Cama de Gato consiste em 127 curtos capítulos, cada um apresenta um elemento com algum tipo de piada ou pelo menos preparação para uma, muitas vezes utilizando apenas duas páginas. A obra também traz várias canções e passagens do livro de Bokonon, muitas vezes lidos em forma de calipso, o gênero musical afro-caribenho (escolhido por ser representativo de Trinidad e Tobago, e por conta de Lionel Boyd Johnson, um negro, episcopaliano de batismo e súdito britânico da ilha de Tobago. Para a maioria ele é conhecido apenas como Bokonon). O livro de Vonnegut carrega muitas de suas marcas registradas, como o humor negro que ele insere no cotiado nos personagens, fazendo com que a tragédia seja mais um inconveniente do que uma… tragédia (não pensei em um sinônimo melhor). Há ironia espalhada durante toda a narrativa, e é assim que caímos nas situações mais hilárias da obra, como a própria relação de John com os habitantes de San Lorenzo e a bela Mona, a filha de “Papa” Monzano, o comandante da ilha.
Também há paralelos entre Cama de Gato e outras obras do autor. Um dos pensamentos do bokononismo diz que os parceiros de um duprass morrem com a diferença de uma semana um do outro, um conceito já utilizado em As Sereias de Titã. Mas a ligação mais direta com Sereias é revelada quando Bokonon escreve sobre ter trabalhado com a família Rumfoord, uma das peças mais importantes do texto.
Mas além de todas as piadas na superfície, há um debate mais íntimo na obra, envolvendo um dos capítulos mais tristes da Segunda Guerra Mundial, quando Vonnegut presenciou o bombardeio da cidade de Dresden, na Alemanha, um ataque que acabou completamente com a beleza do ponto turístico. O acontecimento serviu de inspiração para outro livro de Vonnegut, Matadouro 5, mas não ficou por aí, o autor continuou carregando o trauma em várias de suas obras. Em Cama de Gato os horrores da guerra são representados na figura de Hoenikker e sua criação, o gelo-nove, capaz de solidificar qualquer forma líquida. Uma invenção genial, com propósitos militares, que acaba parando nas mãos menos experientes que se pode imaginar. Mesmo com a abordagem cômica, fica clara a crítica e a indignação do autor com a neglicencia de figuras políticas e científicas tão poderosas.
O Décimo quarto livro [de Bokonon] é intitulado “O que um homem sensato espera da humanidade na Terra, dada a experiência dos últimos milhões de anos?”. Não levei muito tempo para ler o Décimo quarto livro. Ele consiste de uma palavra e um ponto final. É o seguinte: “Nada”.
Vonnegut acabou trazendo muito da sua realidade para a literatura, como próprio Hoenikker, inspirado em Irving Langmuir, um estudioso na área da teoria atômica e também vencedor de um Nobel, assim como o personagem. Os temas de seus livros são embasados em traumas e muito de seu comportamento e atitudes mudaram por conta da Guerra. “Foi quanto eu perdi minha inocência, na verdade… Quando a bomba caiu em Hiroshima”, conta o autor*.
A abordagem cínica e quase provocadora de Kurt Vonnegut faz de Cama de Gato uma das leituras mais absurdas e instigantes que já fiz, com personagens cheios de personalidade e diálogos carregados de acidez. É um jeito inteligente de comentar mais uma vez sobre nossas noções de livre-arbítrio e crença, e como fingimos ter tudo em controle.
“Tudo deve ter um propósito?”, perguntou Deus. “Certamente”, disse o homem. “Então deixarei que você pense em um propósito para tudo isso”, disse Deus. E Ele foi embora.
Cama de Gato (Cat´s Cradle), de Kurt Vonnegut
Editora Aleph, 2017
Capa de Adalis Martinez
304 páginas
Tradução de Livia Koeppl
*Documentário “Kurt Vonnegut So It Goes” para o canal BBC sobre Cama de Gato e a Segunda Guerra, exibido em 1983:
Todo fim de ano temos um dos rituais mais divertidos para pessoas com mania de catalogação como eu, que é fazer as listas de melhores e piores do ano. Admito que não tive o melhor histórico de leitura sci-fi, mas isso por conta da quantidade e não qualidade. Em questão de séries até que as coisas foram bem, mas também fiquei um pouco atrasado em algumas temporadas. Já no cinema, consegui assistir bastante coisa e listarei aqui alguns lançamentos que podem ser interessantes dar uma chance, outros que decepcionaram e alguns que foram genuinamente bons.
Muitas continuações, obviamente. Nunca vamos nos livrar das franquias, então para trazer um pouco de positividade para a conversa, o jeito é torcer para que sejam boas. O Predador marcou o retorno de Shane Black à franquia (ele atuou no original de 1987 e agora dirige o seu próprio filme no universo dos caçadores alienígena) e Jurassic World: Reino Ameaçadocontinua o retorno dos dinossauros, desta vez pelas mãos de J.A. Bayona. Não é como se estivéssemos precisando dessas franquias, mas pelo menos nenhuma foi tão desnecessária quando The Cloverfield Paradox.
Depois do sucesso do primeiro Cloverfield: Monstro (2008), dirigido por Matt Reeves, o produtor J.J.Abrams teve a ideia de expandir o universo do filme. Rua Cloverfield, 10 (2016), lançado quase uma década depois e comandado por Dan Trachtenberg, é uma continuação mais restrita e em menor escala, focando mais no drama dos personagens do que a perseguição e destruição causada pela criatura da série. Foi um sucesso de crítica e surpreendeu muita gente que não sabia como este filme seria conectado ao mundo da obra original. E é aqui que entra a parte curiosa: Rua Cloverfield, 10 não foi imaginado como um filme de franquia, este seria um longa independente com outro nome, mas como a produção era promissora, o estúdio decidiu comprar os direitos, modificar um pouco o roteiro e inserir umas cenas extra para dizer que esta era uma continuação oficial. Pelo menos funcionou e é um filme envolvente e tenso, o que não pode ser dito de Cloverfield Paradox.
Este terceiro longa fez o completo oposto do seu antecessor. Ao invés de comprar um filme pequeno e bem construído, o estúdio decidiu ir com algo mais ambicioso. Paradox nos levaria ao espaço, para descobrir mais sobre a origem da criatura que invadiu nosso planeta. O problema é que o elenco não parece feliz por estar ali, o enredo é mal elaborado e tudo parece uma confusão de várias tramas descartadas de outros filmes, isso porque a montagem não ajuda nem um pouco. O resultado foi um desastre de crítica e a reação negativa fez com que o filme fosse lançado diretamente no serviço de streaming da Netflix, sem sequer ganhar uma estréia nos cinemas.
A tática de despejar uma produção que não tem chance de sucesso na Netflix acabou se tornando comum este ano, infelizmente — e não só com obras sci-fi, tivemos também Mowgli, de Andy Serkins, por exemplo, que não pareceu agradar o público teste (quando vamos acabar com esse tipo de avaliação?). Mas as vezes não é questão de uma reação negativa da crítica, talvez seja uma preocupação do estúdio em não conseguir arrecadar o suficiente por conta de uma produção mais densa e complexa, como foi o caso de Aniquilação, de Alex Garland.
Garland é responsável por Ex Machina (2014), um dos lançamentos independentes mais notáveis dos últimos anos, e por conta disso recebeu o convite para dirigir a adaptação cinematográfica da obra literária homônima de Jeff VanderMeer, sobre um grupo de cientistas em uma jornada para investigar uma misteriosa área que sofreu intervenção alienígena e o ainda mais misterioso retorno do marido de Lena, uma bióloga renomada que parte para a zona com as outras mulheres para descobrir o que está acontecendo.
A premissa lembra um pouco Stalker (1979), mas Aniquilação se diferencia pela forma que trata seus personagens, um grupo formado apenas por mulheres, e a execução tem mais ação que longos monólogos. Além disso, o elenco é formado por ótimas atrizes como Natalie Portman, Tessa Thompson e Jennifer Jason Leigh. O destaque vai para a forma como o Garland desenvolve o drama entre seus personagens e debate os temas de maneira orgânica na narrativa (sem trocadilho).
Além de adaptações, o ano trouxe remakes, como Fahrenheit 451, que não foi muito bem recebido mesmo com um elenco de qualidade. Uma Dobra no Tempo foi outra adaptação que deixou muitos ansiosos por conta da aclamação pelo material original, mas o maior destaque este ano foi Ready Player One, que marcou o retorno de Steven Spielberg para o território que o próprio ajudou a construir, o de blockbusters.
O livro de Ernest Cline conta a história de Wade, um dos participantes do maior jogo virtual do mundo, o Oasis. Depois da morte do criador do jogo, o gênio programador Halliday, começa a corrida para descobrir onde está escondido o easter-egg que pode mudar o mundo, não só o virtual. A história tem essa premissa básica e passa a maior parte do tempo inserindo incontáveis referências ao mundo da cultura pop, o que pode ser um ponto negativo para alguns, mas felizmente temos a habilidade de alguém como Spielberg na direção da adaptação cinematográfica, o que faz com que os personagens de jogos, quadrinhos, filmes, séries e animações consigam interagir e servir para a narrativa sem parecer apenas menções vazias.
Ainda que no fim seja um pouco cansativo ver o mar de referências e algumas conveniências de roteiro, Spielberg traz um visual deslumbrante e efeitos especiais detalhados que mantém a atenção do público. É uma aventura divertida e descompromissada, e não há problema nisso.
Seguindo o caminho de produções originais, o serviço de streaming Netflix (olha ele aí de novo) lançou vários filmes do gênero, infelizmente a maioria foi mal recebida pela crítica. Extinção, Titã e Anon passaram despercebidos. Uma pena ter que incluir também Mudo nesta lista, isso porque Duscan Jones é um diretor competente que já provou saber fazer uma boa ficção científica de baixo orçamento com Lunar (2009).
Saindo da Netflix, alguns lançamentos são um pouco mais difíceis de encontrar, como I Think We´re Alone Now, o segundo longa dirigido por Reed Morano, que é mais conhecida por seu trabalho na série The Handmaid´s Tale. I Think We´re Alone Now é uma daquelas histórias clássicas de pessoa solitária depois de algum evento dizimar uma parte da humanidade, mas não demora muito para que um novo personagem seja introduzido e faça o protagonista questionar tudo. O filme tem a ótima direção de arte de Morano e conta com Peter Dinklage e Elle Fanning no elenco, mas não se sustenta por conta de um enredo que não parece saber onde ir, com execução confusa e uma conclusão abrupta.
Outros que ainda nem tem data para lançamento no Brasil são Upgrade e Sorry to Bother You. O primeiro é um longa de baixo orçamento com uma direção que encontra maneiras criativas de executar suas cenas de ação em uma trama envolvendo um chip capaz de atribuir habilidades incríveis ao seu portador. Chegando no segundo, dirigido pelo rapper Boots Riley, da banda The Coup, temos este que é facilmente o filme mais absurdo do ano, sobre um atendente de telemarketing que descobre uma maneira diferente de melhorar seu serviço — o que depois o coloca em várias situações inquietantes, porém divertidas para o público. Uma mistura de elementos do gênero guiado por uma força afro-punk que entrega cada linha de diálogo ou ação de personagem como um soco. Esse filme parece uma versão longa metragem de algum episódio da aclamada série Atlanta, e tem até o ator Lakeith Stanfield como protagonista, que interpreta Darius no sucesso do canal FX.
Mas saindo da tristeza que é ver alguns filmes não conseguindo ver a luz do dia no nosso país, vale lembrar que este foi o ano em que Kin conseguiu estar em algumas salas e ganhar relativo reconhecimento. E sei que o relativo aqui quer dizer pouca coisa mas pelo menos esteve em algumas salas por alguns dias e isso já é uma vitória. O filme sobre um jovem que encontra uma arma alienígena e decide usa-la para combater os traficantes que perseguem seu irmão é uma obra bem objetiva e sem muitos floreios narrativos, o que seria aceitável se não fossem incluídas tantas peças no quebra-cabeça do universo do filme no terceiro ato, o que deixa uma conclusão um pouco aleatória.
O Primeiro Homem também estreou de forma tímida por aqui. Dirigido por Damian Chazelle, mais conhecido por seus filmes com temática musical como Whiplash(2014) e La La Land (2016), aqui ele visita o momento histórico da corrida espacial que levou o homem à lua. O diferencial do longa está no fato de que, surpreendentemente, não temos muitos filmes com um foco na vida pessoal do astronauta Neil Armstrong. Mesmo não tendo sido um sucesso de bilheteria, é um retrato íntimo e bem construído da família do astronauta e a ansiedade pelo iminente.
Fechando essa lista temos dois grandes sucessos entre o público: Bird Box e Um Lugar Silencioso.
Os dois tem uma premissa similar envolvendo a privação de algum sentido. Bird Box, de Susanne Bier, faz com que seus personagens mantenham os olhos vendados por conta de criaturas que causam uma reação mortal por conta de seu visual assustador (que não nos é apresentado). Já Um Lugar Silencioso, de John Krasinski (que também estrela a obra), lida com uma invasão de criaturas assassinas que possuem uma audição perfeita, então os humanos precisam formular maneiras cada vez mais elaboradas de seguir suas vidas sem manifestar som. Saindo disso, os dois longas seguem caminhos completamente diferentes, com personagens e tramas distintas, mas mantendo o tom de suspense e horror que atravessa a história.
Bird Box tem as mesmas vantagens de Um Lugar Silencioso. Boa premissa e um elenco de qualidade. Enquanto o primeiro filme acaba dando destaque quase exclusivo ao personagem de Sandra Bullock, a protagonista, o segundo consegue equilibrar melhor o foco entre todos os personagens. O longa de Krasinski também tem uma enorme atenção aos detalhes. Durante uma cena de jantar, por exemplo, a família só conversa em linguagem de sinais e come sua comida utilizando folhas e materiais que não fazem barulho, jogam Banco Mobiliário trocando as peças de plástico por bolinhas feitas de lã, enchem a estrada de areia fofa e andam descalços para poder se locomover. Krasinski dedica tempo para explicar as mudanças que a família precisou fazer com o passar do tempo, o que pode ser considerado desnecessário por muitos diretores (infelizmente acontece mais do que se imagina), mas é esse tipo de coisa que nos mantém investidos e acreditando na história.
Susanne Bier também apresenta seu universo, mas não parece saber muito o que fazer com a direção, deixando a ambientação comum demais, sem uma identidade visual e firmeza na construção de suas cenas. É um pouco mecânico, mas Sandra Bullock ajuda a passar por estes momentos por conta de uma atuação competente.
Como mencionei anteriormente, há uma dedicação maior em dar importância para cada personagem em Um Lugar Silencioso. Cada um tem uma função e uma forma diferente de lidar com um trauma em comum. Não que Bird Box não tenha seus próprios méritos, é claro, mas se eu tiver que escolher um filme que represente um bom soft sci-fi com um pouco de horror, personagens memoráveis e uma construção de mundo através de um olhar mais apurado na direção, a obra de Krasinski marcou esse ano como uma das melhores.
E aí, anotou todos? Deixe nos comentários algum que deveria estar aqui e diga quais você viu e quais quer ver. Concorde ou discorde, o importante é manter o debate saudável.
Depois de ter feito uma lista com os Melhores Filmes Sci-Fi da Década, é chegada a hora de indicar também algumas das melhores produções feitas para a televisão. Felizmente, algumas das séries mais assistidas e premiadas atualmente são ficção científica, então não vou perder tempo e separar aqui algumas (pode ser minissérie ou telefilme) já exibidas desde 2010. Tenha em mente que não é um TOP 10, aqui a intenção é te mostrar algumas coisas que talvez você esteja perdendo, e outras que você provavelmente já assiste mas merecem elogios.
Vamos começar pela mais popular do momento: Black Mirror (2011 — ). Você provavelmente já ouviu alguém falar algo como “caramba, isso é tão Black Mirror”. Então, independente de você achar isso irritante ou não, não podemos negar o impacto que a série teve no público. No formato de antologia, a série criada por Charlie Brooker é o sonho de qualquer fã de distopias e narrativas onde a tecnologia toma um rumo mais assustador e angustiante do que o normal. Quem assiste não consegue esquecer as loucuras que já aconteceram em Black Mirror. Se tiver estômago fraco, pode pular o primeiro episódio e assistir ele depois, a ordem não vai mudar em nada a experiência e conexões entre as histórias só são feitas (de forma bem vaga também) lá para a terceira temporada, então vá sem medo de ser feliz e assista na ordem que quiser.
Outra queridinha do público tem sido The Handmaid´s Tale (2017 — ). As pessoas tem um fascínio por distopias, e isso talvez não seja apenas uma questão de preferência, mas sim um reflexo dos nossos tempos. Afinal, as melhores distopias são aquelas que não parecem estar muito longe assim da nossa realidade — pelo menos tematicamente. Em The Handmaid´s Tale, um grupo de fanáticos religiosos tomou conta do Estado e todas as regras mudaram. As maiores vítimas disso foram as mulheres, que perderam todos os seus direitos e agora servem apenas para agradar seus homens, seja limpando sua casa ou, como no caso da protagonista, June (Elisabeth Moss), sendo barriga de aluguel para a esposa infértil de seu Senhor.
Essa é uma série triste e desesperadora, um pouco difícil de assistir por conta disso e pelos paralelos assustadores que andam tendo com as notícias de assédio e figuras politicas pregando discursos sexistas sem sofrer muita represália. Mas se por um lado é pesado e realista, de outro é uma narrativa muito bem construída, direção de arte excepcional e atuações magníficas, principalmente de Elisabeth Moss. Não é à toa que ganhou vários prêmios logo na sua primeira temporada.
Para fechar a trindade de séries sci-fi mais assistidas atualmente, não posso deixar de lado minha queridinha: Westworld (2016 — ). Se você já imaginou como seria poder visitar um lugar onde é permitido atirar para matar e fazer sexo “até morrer” e jamais sofrer as consequências, talvez esteja procurando Westworld, o maior parque interativo do mundo. Totalmente inspirado no cenário faroeste, você pode participar de várias aventuras. Na série seguimos Dolores (Evan Rachel Wood), uma anfitriã (é como chamam os sintéticos do parque) tentar sair de sua rotina e descobrir cada vez mais detalhes sobre o mundo que habita.
Eu já fiz até uma matéria sobre a série e como ela brinca com suas rimas narrativas, então serve como leitura complementar (fica a dica).
Tudo bem. Já falamos das que você provavelmente já conhecia, então daqui pra frente mencionarei séries que talvez sejam muito bem recebidas pela crítica, mas não tem um público do tamanho das anteriores.
Não é só de Black Mirror e Doctor Who (1963 — ) que vive a Inglaterra. As produções britânicas tem surpreendido bastante com títulos como Utopia(2015), Humans (2015)e a antologia baseada na obra de Philip K Dick,Electric Dreams (2017 — ). Utopia e Humans são ótimas e você deveria assistir o mais rápido possível, mas Electric Dreams, que também tem um envolvimento norte-americano na produção, surpreende com a qualidade técnica e o elenco, com nomes como Bryan Cranston, Steve Buscemi e Janelle Monáe.
A primeira temporada tem dez episódios e cada um é completamente diferente do outro. Ao contrário de Black Mirror, onde temos um tema recorrente que permeia todos os episódios, em Eletric Dreams as decisões narrativas são menos restritas.
Antes de fazer essa matéria considerei deixar as animações com sua própria lista. Mas isso seria injusto. Não considero animação um gênero próprio. Você pode ter ação, comédia ou drama animados. É mais questão de técnica, e este formato tem um charme diferente e merece um espaço e respeito maior do público. Já falei aqui sobre a divertida Final Space(2018 — ), por exemplo, mas nada que tenha saído essa década talvez tenha sido mais comentado e debatido do queRick and Morty (2013 — ).
Criada por Dan Harmon (gênio por trás da série Community) e Justin Roiland, Rick and Morty conta as aventuras de um cientista que se envolve em todo tipo de atividade moralmente questionável, e o pior de tudo é que ele leva seu neto como testemunha. Seja rompendo o tecido da realidade, invadindo outras dimensões ou visitando um planeta onde tudo tem a forma de espiga de milho, essa série não usa o absurdo apenas como piada e levanta temas mais sérios à superfície. Se você terminar um episódio tendo uma crise existencial é só a reação natural causada pela animação.
Voltando para os live action e lembrando que uma lista não precisa ser apenas de séries de sucesso — nem precisei mencionarStar Trek: Discovery (2017 — )porque Star Trek é Star Trek, e independente de qual seja sua opinião sobre Discovery, é claro que vamos assistir — , também temos algumas canceladas, porém bem atraentes, como o caso de Dark Matter (2015–2017), que trazia uma premissa intrigante e era bem executada, mas foi uma das vítimas dos cancelamentos absurdos do canal SyFy. Outro cancelamento prematuro foi o de Almost Human (2013–2014), com sua abordagem mais leve, um drama de ação policial com ótimos personagens. Karl Urban como protagonista? Claro que eu quero! Mas, sabe como é a vida…
Felizmente, há casos de produções que se mantém seguras, como Orphan Black (2013–2017) e KillJoys (2015 — ); já o futuro de The OA (2016 — ) é, até o momento, uma incógnita. O que mais preocupa alguns fãs atualmente é a excelente série The Expanse (2015 — ), que foi cancelada pelo SyFy (olha ele aí de novo), mas foi renovada pela Amazon. Só não se sabe — ainda — por quanto tempo.
The Expanse começa devagar, mas já mostra seu potencial com um bom elenco (Nathan Lane nunca decepciona) e efeitos especiais de qualidade. Você entra por isso e acaba ficando pelo enredo cheio de conspirações e debates políticos e sociais que te fazem lembrar o que a ficção científica tem de melhor para oferecer. Pode não ter a fama que merece, mas nunca deixa de prezar uma narrativa de qualidade. Sério, assista.
Por falar em cancelamento, vamos fechar com um que me doeu na alma: Dirk Gently´s Holistic Detective Agency (2016–2017). Criada por Max Landis (o pobre coitado não dá uma dentro, vive tendo projetos cancelados) e estrelada por Elijah Wood, Dirk Gently é uma ~leve~ adaptação da obra de Douglas Adams de mesmo nome sobre o investigador particular que utiliza os meios menos convenientes possíveis para resolver os quebra-cabeças que encontra. Mesmo não sendo tão fiel ao material original, o mesmo tom é mantido, a comédia é ótima e a trama se desenvolve da maneira mais louca e divertida possível. Começa confuso mas garanto que vale a pena ficar assim por um tempo, porque a conclusão sempre compensa.
São apenas duas temporadas — o canal BBC decidiu não renovar a série — mas são imperdíveis. Houveram poucas comédias sci-fi para a TV nessa década, tirando essa só consigo lembrar de The Orville (2017 — ), que ainda não assisti, mas pelo menos o gênero está sendo bem representado com Dirk Gently.
O que achou da lista? Temos bastante coisa sci-fi legal da televisão. Eu sei que provavelmente deixei algumas de fora, mas a vida é como o canal SyFy: tem horas que te deixa feliz, mas na maioria das vezes te dá um chute na bunda.
Se você quiser indicar alguma série, é só vir nos comentários que eu adoro conhecer coisas novas.
Flores Para Algernon é um livro bastante conhecido do público norte-americano. Originada em forma de conto na Magazine of Fantasy & Science Fiction, a história conseguiu vencer um prêmio Hugo em 1960 e dar certa visibilidade para o autor, Daniel Keyes. Em 1966, ele transformou o conto em um romance que acabou bastante aclamado, também vencedor de alguns prêmios, como o Nebula, e até hoje é considerado leitura obrigatória em muitas escolas dos EUA.
Com sucesso, sempre vem as adaptações. A primeira mais conhecida é o filme Charly, de 1968, estrelado por Cliff Robertson, que acabou ganhando um Oscar de Melhor Ator. A segunda adaptação cinematográfica só aconteceu em 2000, desta vez direto para a televisão e com Matthew Modine no papel do protagonista. O livro também foi parar nas rádios e nos palcos do teatro, tendo até mesmo uma versão musical. E mesmo sendo uma obra tão icônica, é curioso como é pouco conhecido no Brasil. Felizmente, com o lançamento do livro pela editora Aleph em 2018, pude ler Flores para Algernon e entender porque é considerado tão essencial.
Charlie Gordon é um bom amigo e um bom funcionário em uma padaria local, porém sofre de uma deficiência intelectual, tem um QI muito baixo. Ele quer muito mudar isso, quer surpreender seus amigos e impressionar todos sendo uma pessoa “tão normal quanto as outras”. Por isso Charlie se submete a um experimento que envolve uma cirurgia inovadora capaz de aumentar sua capacidade mental.
O livro é escrito na forma de epístola, como se fossem relatórios de progresso do protagonista. Com isso temos uma leitura em primeira pessoa, mas o que chama a atenção de primeira é a decisão do autor em incorporar uma escrita propositalmente errada (Charlie não é bom com as palavras, por motivos óbvios), no entanto fazendo sentido na proposta e contribuindo para o desenvolvimento não apenas do personagem, como o narrativo. Ver a forma que são empregados os acentos ou pequenos detalhes, como vírgulas, por exemplo, criam uma conexão e simpatia maior por Charlie.
Infelizmente, o que deveria ser considerado um milagre, logo se torna uma maldição. Charlie começa a ficar inteligente, mais até que os próprios médicos que o operaram. Além disso, ele agora reconhece todas as vezes em que foi humilhado. As pessoas riam dele, não com ele. Onde antes existia um indivíduo inocente e com um eterno sorriso no rosto agora dá lugar a um homem amargo e desconfiado. Algernon, o pequeno ratinho que serviu de cobaia antes que testassem a cirurgia em Charlie, acaba sendo seu único companheiro.
Alguém pode argumentar que a obra não tenha elementos o suficiente para justificar ser categorizada como ficção científica, mas não é só na parte “científica”, a cirurgia no caso, que se sustenta o gênero. Keys questiona uma realidade com outra. No começo não confiamos na veracidade de alguns relatos, o passado é revelado lentamente depois de passarmos pela neblina do esquecimento na cabeça do protagonista. Além disso, antes do experimento surtir o efeito desejado, os personagens tem características que nos são apresentadas de uma forma completamente diferente da que é relatada assim que Charlie começa a ter uma nova óptica sobre suas relações. Seus companheiros de trabalho na padaria eram divertidos e engraçados, agora são maldosos e ignorantes.
A nova realidade deveria trazer alegria para Charlie, mas ele não consegue mais se divertir com quem fazia piada de sua condição. Descobrir que todos que você considerava de maior confiança são na verdade pessoas falsas e maliciosas dói demais para o protagonista, e pensar que tudo que ele queria era ser inteligente o suficiente para entender as coisas e surpreender seus amigos.
Ao longo da história o leitor descobre pequenos detalhes e informações através das reminiscências de Charlie, que ou esqueceu as coisas ou reprimiu para evitar um sofrimento maior. Essa é a parte mais dramática do livro, com questionamentos sérios e o momento mais catártico da obra, que não vou estragar para você porque esse livro realmente deve ser considerado leitura obrigatória de qualquer currículo escolar.
Mesmo tendo um narrador não muito confiável por conta da forma que interpreta as coisas “à flor da pele”, Flores para Algernon é um livro carregado de significados e debates sobre a condição humana. Essa é provavelmente uma das melhores leituras que você pode ter e uma das mais emocionantes da ficção científica.
Depois de ter feito uma lista de mesmo nome para os anos 2010, ficou claro que outra sobre a década anterior seria feita — é só ver a quantidade de bons filmes lançados nessa época. Então, sem muita enrolação, vamos começar. A década de 2000 trouxe algumas coisas que receberam uma reação bem negativa da crítica, como o criminoso remake de Solaris (2002), estrelado por George Clooney, ou o deplorável A Reconquista (2000), que redefiniu tudo que conhecemos sobre John Travolta ou ângulo holandês.
Falando assim nem parece que foi a mesma década que teve ótimas obras como Sunshine: Alerta Solar (2007), de Danny Boyle; ou a adaptação dos quadrinhos de Alan Moore (que o próprio não aprova, mas foi um sucesso de público), a distopia V de Vingança (2005). Até mesmo Michael Bay decidiu diminuir um pouco sua paixão por filmes espalhafatosos e dirigiu A Ilha(2005), uma ficção científica bem intrigante que surpreendeu alguns. Tudo bem que na segunda metade do filme as coisas começam a realmente parecer um filme do Michael Bay que todos conhecemos, mas ninguém é perfeito. Bem, talvez a exceção seja Filhos da Esperança (2006), que é considerado por muitos o melhor da época e uma das melhores obras já lançadas para o gênero no cinema.
Em um futuro onde as mulheres não podem mais ter filhos e a última pessoa a nascer acabou de morrer, Theo Faron (interpretado por Clive Owen) recebe a missão de tomar conta e transportar uma jovem grávida que corre incontáveis riscos em um mundo em caos. Com um excelente enredo, atores comprometidos e a ambiciosa direção de Alfonso Cuarón, Filhos da Esperança é uma obra indispensável que dialoga com temas impactantes de maneira honesta e inteligente.
Os anos 2000 foram bons para pequenas produções. Mesmo sem o orçamento dos filmes mencionados anteriormente conseguiram certa notoriedade e respeito entre a crítica e o público, como o melancólico e desesperador A Estrada (2009) ou o claustrofóbico Lunar (2009). Mas se tem um filme que conseguiu aclamação em quase todo festival que foi e agora é considerado um cult do gênero, temos que reconhecer Primer (2004).
Dirigido por Shane Carruth, Primer é provavelmente o filme mais complexo da lista. E quando digo isso não quero desmerecer a narrativa ou decisão estética de qualquer outro (ainda mais por Primer não ter um apelo visual impressionante), a verdade é que esse filme foi escrito da maneira mais crua possível, os termos técnicos não são explicados em ponto algum, a ciência é contada por quem entende para quem entende e nós ficamos ali tentando entender o que eles estão falando. Mas essa é a parte fácil,depois de um tempo você consegue entender a premissa, mas aí entra a trama envolvendo viagem temporal, traição e conspiração. É nessa hora que se deve prestar toda a atenção que você tiver em sua mente. Eu nem me atrevo tentar falar demais do enredo (assisti o filme há quase dez anos pela primeira vez e toda vez que assisto acho que entendi apenas metade), mas saiba apenas que é uma jornada de um grupo de amigos engenheiros que se arrisca em um projeto e acabam criando uma máquina do tempo. Alguns podem achar que é apenas um filme-conceito, mas há um drama pessoal bem desenvolvido, mesmo que não seja o foco.
Carruth viria a dirigir novamente mais de uma década depois, com Upstream Color (2013), mas quem esperava que ele fosse deixar as coisas mais mastigadas para atrair um público maior acabou se enganando.
nota: aproveitei esse espaço para mencionar o filme já que esqueci de inseri-lo na lista de melhores dos anos 2010 ¯\_(ツ)_/¯
Já que estamos nessa de baixo orçamento, vale lembrar dos found-footage, a técnica que virou mania entre estúdios que querem lucrar em cima de um formato que economiza bastante no orçamento graças ao uso “amador” da câmera (maldito seja, Bruxa de Blair, a culpa é sua!). Dois grandes sucessos saíram desse formato: Cloverfield (2008) e Distrito 9 (2009). Enquanto Cloverfield mescla elementos de terror e cinema catástrofe e rendeu uma ótima continuação (pena que houve mais uma que não deve ser mencionada), quem merece um destaque aqui é Distrito 9, não apenas por ser uma ficção científica inteligente com comentários políticos bem inseridos e efeitos especiais de qualidade, mas por ter lançado a carreira de Neill Blomkamp, que depois trouxe longas como Elysium (2013) e Chappie (2015) — não que estes estejam sequer no mesmo nível de seu primeiro filme, mas todos tem a mesma estética futurista.
Em Distrito 9 uma nave pousa na África do Sul e uma raça alienígena é recebida pela população. Anos depois, as pessoas estão cada vez menos seguras do que os visitantes podem estar fazendo, então o que antes era um campo de refugiados agora serve como uma instalação militar intitulada Distrito 9. No meio de tudo isso, um funcionário do governo é mandado para lá com o intuito de expulsar os visitantes, mas como é de se esperar, as coisas não dão certo. Adorado por muitos, esse filme marcou a década passada e agradou até aqueles que não gostam de ficção científica.
Enquanto anotava os filmes para a lista notei que a década passada fez muito bem também para Steven Spielberg, que teve três obras sci-fi bem recebidas, elas são Minority Report: A Nova Lei (2002), Guerra dos Mundos (2005) e o controverso A.I. Inteligência Artificial (2001), que eu vou defender agora e depois vou defender um pouco mais em um artigo dedicado ao filme.
Inteligência Artificial seria o próximo projeto de Stanley Kubrick, sobre um sintético em forma de garoto que deseja se tornar um menino de verdade (é basicamente Pinocchio, só que mais triste). Kubrick esteve em conversas com Spielberg e fez o pedido para que o Steven terminasse o filme caso a tecnologia ainda não estivesse do jeito que ele quer. Perfeccionista como sempre, Kubrick nunca esteve feliz o suficiente e depois foi tarde demais para poder fazer algo. Depois de sua morte, Spielberg partiu na missão de realizar o filme. Reuniu um ótimo elenco, efeitos especiais muito bons para a época e deu seu próprio toque no roteiro, o que considero uma boa decisão. Kubrick, sendo meticuloso, queria que seus filmes tivessem o visual mais impecável possível, mas Spielberg tinha uma atenção para os personagens que poucos tem até hoje. Para ele há uma necessidade em criar algo cativante, não apenas belo para os olhos, mas para o coração.
Essa mistura de Kubrick com Spielberg é uma boa ideia e mesmo que alguém possa considerar os estilos conflitantes, ainda é um filme cheio de momentos emocionantes. Tem uma cena envolvendo um sintético do Chris Rock sendo lançado por um canhão? Sim! Mas isso dura alguns segundos e não atrapalha em forma alguma a narrativa. E você provavelmente deve estar pensando no final, envolvendo alienígenas que leem mentes… ou no verdadeiro final, onde na verdade não são alienígenas e sim outros sintéticos mais evoluídos que conseguiram ler a base de dados do protagonista. Falaremos sobre isso com mais detalhes no futuro.
Eu sei que essa última colocação provavelmente irritou alguém, por isso vamos para as animações, que são várias. Tendo isso em mente, vai ficar difícil escolher apenas uma opção para representar essa categoria, isso porque tivemos obras memoráveis como Wall-E (2008), Planeta do Tesouro (2002) e Atlantis (2001), todos da Disney/Pixar. Mas do outro lado do oceano surgiram animes excelentes como A Garota que Conquistou o Tempo ( Toki o kakeru shôjo, 2006) e o brilhante Paprika ( Papurika, 2006), que inspirou filmes como A Origem, de Christopher Nolan (sério, tem muios paralelos e referências visuais diretas), e foi o último longa do gênio Satoshi Kon, antes de morrer por conta de um câncer. Ele tem outro que poderiam entrar nessa lista, Millennium Actress ( Sennen joy, û2001), mas como ele e Paprika tem uma proposta similar, fiquei com o mais impressionante.
Paprika envolve o roubo de uma máquina que permite que seu usuário entre nos sonhos alheios. Com a ajuda da terapeuta Chiba Atsuko, um detetive pode evitar que um plano desastroso tome conta do mundo real ao atravessar a barreira dos sonhos. E eu paro por aqui sem dar mais detalhes porque vale a pena descobrir cada pedaço desse mundo e ficar fascinado com os visuais e a montagem incrível de Satoshi Kon.
Indo para algo mais leve, sem muita intriga política ou conceitos complexos, tivemos alguns filmes bem divertidos, como a primeira adaptação cinematográfica de O Guia do Mochileiro das Galáxias (2005), baseado na obra de Douglas Adams e estrelado por Martin Freeman; ou MIB: Homens de Preto II (2002), um tremendo sucesso, assim como o primeiro. Mas o que eu vou usar como exemplo aqui é uma comédia “infantil” bastante criativa e com efeitos especiais muito bons: Zathura (2005).
Dirigido por um Jon Favreau pré-Homem de Ferro (Favreau foi o responsável por abrir as portas do MCU), a história é basicamente um Jumanji (1995) no espaço, mas consegue ter personalidade o suficiente para de diferenciar. Walter e Danny são mandados ao espaço por conta de um jogo de tabuleiro mágico e tem que descobrir como sobreviver a todas as ameaças dele.
Esqueça seu preconceito com a Kristen Stewart e eu esqueço o meu com o Dax Shepard, porque esse é um daqueles filmes família com um robô gigante que quer matar duas crianças inocentes, então ele merece um pouco mais de amor e eu estou dando. Toma, Zathura!
Assim como na lista anterior, vou deixar um filme mais dramático onde as relações humanas são mais fortes que todo o conceito sci-fi em volta. Não é todo dia que temos uma obra do gênero que fale sobre relacionamentos com tanta força quanto Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). A direção de Michel Gondry e roteiro de Charlie Kaufman já deveriam ser o suficiente para entender o quão bom é esse filme. Kaufman desenvolve uma das suas melhores narrativas com Brilho Eterno, com uma história sensível e inteligente.
Joel não aguenta mais lembrar do passado depois de terminar seu relacionamento com Clementine, para resolver isso decide passar por um procedimento experimental que promete apagar literalmente todas as memórias que Joel tiver dela. O longa tem o roteiro metalinguístico e absurdo de Kaufman ao lado dos visuais surreais de Gondry, isso combinado com um elenco certeiro encabeçado por Jim Carrey e Kate Winslet. A ficção científica está no filme inteiro, não apenas nas representações mentais do protagonista ou na tecnologia, é a relação de Joel e Clementine o conceito mais complexo da obra. Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças permanece por dias com quem assiste e melhora com cada revisitada.
E aí, anotou todos? Devo ter indicado aqui uns vinte filmes, e independente de ter mais ação, drama ou comédia, acredito que todos merecem ser assistidos. Deixe nos comentários algum que deveria estar aqui e diga quais você viu e quais quer ver. Vai ter mais listas de onde essa veio, então não esqueça de seguir o Primeiro Contato.
Comprei meu Kindle e fiz a limpa em algumas editoras que eu gosto, e devo admitir que fiquei bem satisfeito com o resultado. É claro que não há aquele charme do livro físico, mas o conteúdo é o que realmente importa e é bom ter um aparelho leve e com um dicionário embutido do que carregar peso na mochila. Uma das coisas que mais me chamou atenção foi também descobrir novas editoras, como a Plutão, que chegou no mercado com um serviço completamente digital e uma proposta que me deixou bem feliz: produzir e relançar conteúdo brasileiro sobre ficção científica. Independente do que você pensa sobre a forma que a fantasia e ficção científica são recebidos por aqui, deve admitir que é uma ideia bem interessante.
Para estrear a editora tivemos uma publicação que veio como surpresa para muitos, era uma obra de Machado de Assis (sim, o Machado de Assis que você está pensando). Eu confesso que não imaginei que o autor tivesse trabalhado com o gênero sci-fi antes, mas como nunca fui um estudioso sobre Assis e meu repertório envolvendo sua obra ainda é bem básico, fiquei curioso.
Sobre a Imortalidade de Rui de Leão traz dois textos de Machado de Assis, eles são “Rui de Leão” e “O Imortal”. As duas obras foram lançadas em épocas diferentes, uma em 1872 e a outra uma década depois, respectivamente. Com alguns paralelos entre as tramas, fez total sentido publica-las no mesmo livro. Ainda que tenha uma língua mais rebuscada e regionalista de outrora, há uma narrativa simples e limpa que não se aprofunda demais no debate científico do gênero mas sim no território especulativo e fantasioso.
Rui de Leão é um fidalgo que mora no interior do Brasil e é casado com uma bela jovem de família indígena. Certo dia seu sogro, o pajé, o presenteia com um licor que supostamente trará vida eterna ao fidalgo. Dessa premissa dá pra imaginar um pouco onde as coisas podem ir, mas o texto de Assis instiga e faz com que a jornada de Leão seja memorável. O uso da terminologia tupiniquim agrega mais aos diálogos e enriquece a narrativa, como nos momentos em que o pajé utiliza os frutos para descrever o estado de espírito de um personagem.
“A água bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza”
Essa é uma obra que debate temas mais filosóficos sobre o conceito de imortalidade. A angustia da perfeição e a busca por propósito fazem parte da sina do protagonista. Mas além do drama há espaço para o humor, mesmo que bem pontual. Em certo ponto, Leão faz um discurso que impressiona tanto o público a ponto de receber elogios mais positivos do que o esperado: “Está fundada a eloquência brasileira” talvez entre na minha lista de falas favoritas.
Além dos textos de Assis, o livro digital tem as belas artes de Paula Cruz, responsável pelas ilustrações da obra e a identidade visual da editora. E como se não fosse suficiente ainda temos um prefácio muito informativo sobre a história da ficção científica no Brasil pelo escritor Roberto de Souza Causo.
Sobre a Imortalidade de Rui de Leão é curto mas um ótimo pontapé inicial para uma editora como a Plutão, que mesmo pequena (por enquanto) já mostra ao que veio.
Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, de Machado de Assis
O cinema é uma arte visual, muito pode ser contado apenas com um olhar. Há filmes que entregam uma carga de emoções em questão de segundos com apenas uma tomada, até mesmo um plano estático. Diretores como Kubrick e Tarkovsky fizeram grandes obras da ficção científica e souberam aproveitar cada pedaço da película, transformaram o filme em uma experiência única. Nem sempre precisamos de diálogos explicando tudo que estamos vendo ou uma direção mais didática, também é necessário abraçar o abstrato e dar valor ao silêncio. Isso é algo queSob a Pele faz muito bem, se arriscando em tempos de um cinema cada vez mais apressado e de atenção limitada.
Estrelado por Scarlett Johansson (que esteve em outra obra sci-fi no mesmo ano, o ótimo Ela, de Spike Jonze), Sob a Pele segue uma figura misteriosa, uma jovem -obviamente- belíssima em uma missão curiosa que envolve seduzir alguns homens que encontra no caminho. Isso é apenas metade da premissa, a parte que eu consigo explicar sem entrar em especulações, porque a outra metade envolve motoqueiros obstinados e um lugar completamente sombrio onde você afunda na escuridão (é isso ou algo bem próximo disso).
Jonathan Glazer, o diretor, recorre ao silêncio, esse é um filme que constrói uma atmosfera característica, e não estou falando apenas da parte sci-fi (mais tarde séries como Stranger Things utilizam o mesmo apelo visual das cenas de Scarlett na escuridão) ou do suspense durante os encontros da personagem; Sob a Pele também é carregado de solidão. A personagem caminha um mundo frio e desolador, as poucas conexões humanas talvez sejam o suficiente para fazê-la questionar suas atitudes, mas ainda assim há uma tristeza que não parece ir embora. Esse é um filme difícil de ser assistido, mas ainda assim cresce com cada assistida, você encontra um novo detalhe que diz muito. É uma pena que alguns tenham assistido esse filme na época apenas pela promessa de uma cena envolvendo nudez com a protagonista, o que explica as reações negativas depois de perceber que tipo de filme estavam assistindo.
Por falar em Johansson, a atriz está perfeita. Se em Ela houve uma falta de presença física e uma predominância através de sua voz (ela interpreta um sistema operacional), aqui é o completo oposto. Johansson tem pouquíssimas falas e entrega todo o drama com sua interpretação, os olhares tortos, a boca travada e o corpo tenso. Uma curiosidade sobre isso é que o diretor pediu para a atriz participar de algumas cenas e improvisar um pouco. O filme foi gravado em uma vila da Escócia onde Scarlett ainda não era tão reconhecida, por isso Glazer fez com que a atriz interagisse com homens aleatórios na estrada, nada de atores, em cenas onde ele podia incluir uma câmera escondida.
Foram quase dez anos de produção, mudanças no elenco e outros ajustes, mas todo esforço valeu a pena. Além da direção de arte belíssima que rende alguns momentos de puro êxtase visual com suas cores e composições, seria tolo esquecer outra composição: a musical, feita por Mica Levi. A trilha principal tem uma melodia quase acolhedora e ameaçadora ao mesmo tempo, é uma sensação estranha que deixa a experiência de assistir o filme ainda mais poderosa. Talvez sem ela este filme pudesse perder até um pouco do tom melancólico que apresenta. Vale mencionar aqui que o filme Aniquilação (2018) claramente pega um pouco emprestado da trilha sonora de Levi, mas isso é só um detalhe.
Sob a Pele é baseado no livro homônimo de Michel Faber. Existe uma possibilidade de muitas perguntas serem respondidas na versão literária, mas considero o mistério o que fez do filme uma obra poderosa. Não precisamos saber de tudo o tempo todo, a experiência é o suficiente. Em um mundo onde não nos esforçamos para interpretar e recorremos ao primeiro vídeo de explicação do filme em um vídeo no Youtube, o longa de Jonathan Glazer apenas cresce com a maneira sutil e quase experimental que executou sua arte. Esse longa não é para todos, mas quem disse que tudo precisa ser?
Andrei Tarkovsky é facilmente um dos maiores nomes do cinema russo. Seu olhar para uma direção de arte impecável e a sensibilidade para debater temas complexos e existenciais é um diferencial que ele carrega como poucos. Na área da ficção científica ele tem no seu currículo duas grandes obras: Solaris (1971) e Stalker (1979). A primeira, adaptada do livro homônimo de Stanisław Lem, é grandiosa e muitas vezes comparada, com razão, ao maior feito de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Já Stalker, bem menor em escala mas igualmente impactante, é uma adaptação de Piquenique Na Estrada, a obra mais aclamada dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski. Recentemente, li a última edição traduzida para o português da obra, lançada no país pela Editora Aleph em 2017.
Em Piquenique na Estrada temos um clássico sci-fi de primeiro contato, mas com uma particularidade na premissa, desta vez os alienígenas vão embora sem que nós ao menos tenhamos a chance de descobrir o que está acontecendo. A cidade de Harmont é um dos pontos abandonados pelos visitantes, mas o curioso aqui está no que eles deixaram para trás. Chamados de “zonas”, os territórios habitados pelos invasores continuam um mistério para muitos que acreditam que qualquer tipo de coisa perigosa e bizarra pode acontecer. Por isso, poucos tem coragem de entrar nestas zonas. Um deles é Redrick Schuhart, um stalker, o tipo de pessoa que conhece o lugar e invade os pontos abandonados para coletar e tentar vender objetos de outro mundo.
O livro sofreu bastante na mão da censura. Lançado originalmente em 1971 na União Soviética, Piquenique na Estrada foi uma obra que refletiu seu tempo, trazendo momentos de alusão à Guerra Fria em seu texto. A edição brasileira além de ser traduzida diretamente do russo, estar em sua versão definitiva e ainda ter um prefácio pela incrível Ursula K. Le Guin, apresenta um posfácio escrito por um dos autores originais, Bóris, onde ele comenta o processo criativo da dupla e o contexto político que envolvia a obra — é nesta altura que o autor lista algumas das “razões” para o texto original ter sido atacado à ponto de perder sua essência. Trechos como “… eu gostaria de beber algo forte, mal conseguia me aguentar.”- p. 62, ou “… estava coberto de lama, como se fosse um porco.”- p. 113, são apenas alguns exemplos que a censura da época carimbou por “comportamento amoral” ou “expressões chulas”.
Por já ter assistido o filme, ficou difícil ler a obra dos Strugátski sem fazer algumas comparações, é claro. A versão literária é muito mais objetiva na apresentação de seus personagens e em seus temas. O enredo tem uma proposta instigante e é cheio de elementos peculiares, mas devo confessar que a narrativa pode ser um pouco enfadonha. Em compensação, os diálogos são um dos pontos altos do livro, isso evita que você desanime de algumas partes. Piquenique na Estrada é uma obra única que merece atenção de qualquer fã de ficção científica pela maneira inovadora que executa um subgênero tão provocante. E acredite, a versão cinematográfica é para alguns (me inclua nessa) ainda mais surpreendente.
Assim como o livro, a adaptação de Tarkovsky possui um ritmo mais lento, mas sempre justificado. Sua câmera toma tempo, faz longas tomadas do ambiente e entrega a atmosfera onírica necessária para contar essa ficção científica com divagações filosóficas.
Os visuais de Tarkosvky são um espetáculo. O filme foi gravado em locais que exibiam a estética que o diretor considerava a mais próxima do que a zona deveria ser: decrépita, manchada e cheia de tralhas. Um dos locais da produção foi em uma usina abandonada na Estónia, o que já era praticamente um local pronto para a equipe de filmagem. Um outro elemento importante que permeia a obra é a presença da água, um tema recorrente do diretor. Ela está em quase todas as cenas de alguma maneira.
Ainda que o livro exija um exercício de imaginação e tenha chances de ser mais “interpretativo”, a versão cinematográfica tem a vantagem de inserir imagens impactantes e memoráveis. O cinema é uma mídia visual e quando uma ideia é representada com tamanha força como em Stalker, você entende a importância de capturar a pintura perfeita. Aqui Tarkovsky faz isso várias vezes. Um dos exemplos disso é a representação visual que o diretor decidiu utilizar para criar certo suspense, como a passagem do trem próximo à casa do protagonista — o resultado é uma das conclusões mais incríveis do cinema.
Outra comparação — já que entrei nessa e não deixei de lado — envolve os personagens. Para Tarkovsky é importante apresentar de forma clara as intenções e crenças de cada um dos viajantes que acompanha Redrick Schuhart (Aleksandr Kaydanovskiy), o stalker. Se no trabalho dos Strugátski há uma diversidade e “rotatividade” maior nos acompanhantes do protagonista, a película foca na dupla composta por um escritor (Anatoliy Solonitsyn) e um professor (Nikolay Grinko), ambos interessados em visitar a zona. Na versão cinematográfica, eles procuram uma sala que supostamente entrega uma revelação. No livro, o maior objeto de interesse é uma esfera que -mais uma vez, supostamente- concede desejos. O que dá ainda mais força ao enredo é a forma como a jornada se desenvolve.
Tarkovsky é um dos poucos diretores que sabe como trabalhar com a beleza e a captura da forma mais pura. Seus filmes são alguns dos mais desafiadores que já assisti, com visuais extraordinários e uma noção de tom que poucos tem.
Stalker e Piquenique na Estrada são obras igualmente carregadas de debate filosófico, trazendo reflexões sobre ciência, religião, política e o nosso papel no mundo. Faça um favor a si mesmo e assista o filme e leia o livro. O primeiro pode ser assistido (com legendas) de graça no canal do Youtube da própria produtora do filme, a Mosfilm, por enquanto. Ela tem liberado vários filmes clássicos de seu catálogo em boa qualidade para todos. E aproveite, porque tem mais coisa do Tarkosvky por lá.
Já o segundo teve sua última edição lançada pela editora Aleph, com ótimo acabamento, tradução do idioma original e material extra imperdível.
Piquenique na Estrada (Roadside Picnic), de Arkádi e Boris Strugátski