É a minha primeira vez lendo Kurt Vonnegut. Eu não estava preparado. As Sereias de Titã possui uma premissa absurda que consegue ficar ainda mais fantástica do que se imagina. Mas calma lá, não quero estragar a experiência, então tentarei ser o mais breve possível nessa parte — mesmo que considere praticamente inútil tentar omitir informações do enredo já que nem mesmo com contexto essa é uma história comum.
Winston Niles Rumfoord é um homem poderoso (com isso quero dizer abastado). Tão poderoso que conseguiu ir ao espaço em sua própria nave, acompanhado apenas por seu cão, Kazak. Mas ele não esperava que fosse passar por um fenômeno que resultaria em uma mudança completa na forma que percebe o tempo e o espaço. Depois disso, consegue fazer breves materializações na Terra para sua esposa, o que acaba causando uma comoção pública. O mais curioso nessa história toda, como se já não fosse misteriosa o suficiente, é que Rumfoord está mais interessado em entrar em contato com Malachi Constant, um ator Hollywoodiano considerado o americano mais rico do mundo, para que ele realize uma missão que está praticamente definida do início ao fim, envolvendo viagens espaciais (com paradas em Marte, Mercúrio e Titã), espécies alienígenas e até ter um filho com a esposa do próprio Rumfoord. É claro que a ideia parece estúpida e sem sentido algum, mas Malachi talvez não tenha muita escolha sabendo que a missão foi dada por alguém que viu o futuro.
E isso é tudo que você precisa saber da trama por enquanto.
Para tirar logo isso do caminho, é notável e inevitável a comparação que alguns fazem do trabalho de Vonnegut com o de outro grande autor da ficção científica: Douglas Adams, o criador da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. Ambos utilizam uma abordagem mais cômica e absurda em suas obras, o que é algo mais do que bem-vindo em um gênero constituído de conceitos surpreendentes e formas diferentes de debater temas importantes. Mas se Adams utiliza o humor para enfatizar o absurdo no melhor estilo Monty Python, Vonnegut é mais sutil e não se importa se algumas piadas passarem por você porque, acredite, algumas vão. Mas ele também não se aguenta e coloca algumas situações hilárias que dão aquela sensação de piada que nunca termina mas continua engraçada, como o momento em que descobrimos como o pai de Malachi se tornou um homem rico através da “palavra de Deus” ou basicamente tudo envolvendo o Viajante Espacial.
Vonnegut não é tão criativo em “termos técnicos” quanto Adams, mas ainda assim tem sua contribuição para o departamento de zombarias com a física ficcional do gênero. O que é um “infundíbulo cronossinclástico”? Você provavelmente não terá chance de descobrir tão cedo, mas foi onde Rumfoord foi parar com seu companheiro canino.
Mas Sereias de Titã não é apenas um livro com alguns momentos engraçados e piadas bem elaboradas; há um mar de questões filosóficas que estão constantemente retornando para a história. A própria missão de Malachi seria, por definição, uma forma de abandonar seu livre arbítrio? — se é que este conceito seja relevante de qualquer maneira para nós. Malachi está cumprindo algum tipo de destino? Será que os planos de Rumfoord fazem sentido apenas para ele, e dependendo da resposta, seriam os planos justificados? O livro levanta debates morais em um contexto complexo e aborda temas pesados, como estupro e homicídio.
Vonnegut tem um problema em mãos, na verdade é um que muitos autores do gênero tiveram por anos, que é a falta de uma personagem feminina de destaque (isso quando tem alguma) ou que tenha pelo menos uma individualidade que não seja baseada em estereótipos como, no caso do livro em questão, a de “megera” que serve apenas para cumprir seu “papel de mulher”. É claro que o próprio autor aborda a forma que ela foi usada, mas ainda assim é uma parte que sofreu um pouco com o tempo.
“Eu fui vítima de uma série de acidentes, como todos nós somos”.
Mas saindo um pouco da crítica social —sabemos que é outra época e esse debate deve ser feito com muito mais cuidado e embasamento, então vamos focar na resenha literária — , esse é um livro mais informal do que imagina, mesmo abordando tudo o que já mencionei. A escrita de Vonnegut é limpa e dinâmica, talvez um dos motivos que tenha rendido comparações com Adams (e com isso não o mencionarei mais aqui). Essa é uma obra surpreendentemente humana, principalmente nos seus momentos finais, quando toma um rumo mais sentimental, mas mesmo assim não deixa de brincar com a situação e ir na contramão do que alguns esperam de uma conclusão para uma jornada como essa.
Kurt Vonnegut escreve com a maestria de alguém que não se importa com as regras estabelecidas da narrativa. As Sereias de Titã tem tudo para ser uma das coisas mais mirabolantes e aleatórias que você já leu, e provavelmente é, mas no fim somos nós quem parecemos loucos ao conseguir assimilar tanta loucura.
As Sereias de Titã (The Sirens of Titan), de Kurt Vonnegut
Damian Chazelle é um nome relativamente novo na industria cinematográfica mas tem feito bastante sucesso com seus filmes, como os aclamados Whiplash(Em Busca da Perfeição, 2014)e La La Land (Cantando Estações, 2016). É curioso como depois de se envolver na direção de projetos voltados para uma veia mais musical (até seu primeiro longa, Guy and Madeline on a Park Bench, tem a música como personagem) decidiu partir para a produção de um longa sobre a exploração espacial. Em O Primeiro Homem (First Man, 2018), Chazelle visita o momento histórico da corrida espacial que levou o homem à lua. O diferencial aqui está no fato de que, surpreendentemente, não temos muitos filmes com um foco na vida pessoal do astronauta Neil Armstrong — na verdade, não consigo sequer pensar em algum que tenha essa proposta.
Ryan Gosling interpreta o astronauta. O ator já se provou mais do que competente em vários filmes e aqui ele está tão bom quanto sempre foi, sua performance contida combina com a frustração do personagem, mesmo com poucas expressões ele consegue provar seu ponto. Ainda assim, o destaque no elenco vai para Claire Foy, no papel de Janet, esposa de Neil. Ela carrega as cenas com sua atitude apreensiva, e como grande parte do longa se passa na casa da família Armstrong, ela tem uma presença forte nessa narrativa. O casal passa por todos os imprevistos da preparação para a missão espacial, o que infelizmente quer dizer que devem saber lidar com a perda, esse que é um tema presente em todo o longa.
A alternância de sequencias entre os testes da Nasa e o drama familiar dos astronautas é perfeitamente equilibrado. Chazelle tem uma boa noção de ritmo e estabelece uma boa conversa entre os dois núcleos principais, isso permite sairmos da tensão de estar dentro de uma cápsula espacial minúscula para depois nos encontrarmos em um ambiente aberto e confortável em um quintal tomando cerveja. Há um desconforto em toda a experiência de Neil, ele não sabe o quanto mais pode aguentar das pessoas que acabam sofrendo ao longo dos testes. Não bastando os acidentes letais, ele lida com a pressão pública, com as incertezas da população.
Em O Primeiro Homem há espaço (sem trocadilho, mas se quiser, sinta-se em casa) para pontos de vista. O que sinto falta em alguns filmes do gênero é a ausência de alguns elementos que prejudicam um pouco o contexto no qual o filme é inserido. É pertinente a atenção dada aos movimentos sociais da época e o cenário político, isso tira o enredo de um território mais superficial. Claro que isso abre caminho para vários momentos icônicos, curiosidades e referências, como os protestos civis em ascensão em meados da década de 1960. Na televisão pode-se ver entrevistas com celebridades, estudiosos e até mesmo autores de ficção científica como Kurt Vonnegut e Arthur C Clarke — não vou mentir, fiquei feliz ao ver isso, mesmo que apenas por alguns segundos. Vale mencionar aqui também a representação de Buzz Aldrin por Corey Stoll, ele acerta os maneirismos e dá uma versão um pouco mais caricata do astronauta que serve de alívio cômico diversas vezes.
Dessa vez, Damian Chazelle tenta se arriscar um pouco mais na direção, com os planos fechados, por exemplo, que deixam os ambientes já apertados ainda mais angustiantes. Mas quando estamos no espaço e o homem pode dar seus primeiros passos, a câmera se afasta e revela a imensidão do inexplorado. Aqui eu devo mencionar como o filme toma seu tempo e respeita o silêncio, não só por questão de realismo e obediência das leis da física mas por conta do fascínio (nosso e dos personagens).
Seja na terra ou na lua, o filme tem um tratamento visual primoroso, com aquele aspecto mais granulado da imagem, comum da gravação em película, que é bom e ajuda na textura e a aparência estética da década na qual o filme se passa. Ao lado do diretor de arte, Linus Sandgren, Chazelle usou o mais comum 35mm na maior parte do filme, mas para as tomadas espaciais preferiu o efeito IMAX do 70mm. O resultado é uma experiência sensorial marcante.
O Primeiro Homem mostra que Damian Chazelle pode sair de sua zona de conforto e que filmes sobre exploração espacial ainda tem potencial para novas narrativas.
“Espaço, a fronteira final… estas são as viagens da nave estelar Enterprise, em sua missão de cinco anos para a exploração de novos mundos, pesquisando novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.
Esta era a chamada na abertura de cada episódio de Jornada nas Estrelas. Situada no século 23, a série traz uma visão otimista do futuro, onde a humanidade consegue viver em harmonia. Os conflitos da série são encontrados nas missões que a frota estelar precisa cumprir durante seus cinco anos de exploração.
Representando a frota estelar e servindo como cenário principal para a série, temos a nave USS Enterprise NCC — 1701, que acomoda a tripulação comandada pelo capitão James T. Kirk, interpretado por William Shatner. Ao seu lado, Gene Roddenberry, o criador da série, fez questão de inserir personagens que representassem a importância dos movimentos por igualdade racial tomando conta dos noticiários da época, indo contra a maioria dos estereótipos da televisão e do cinema até o momento.
Kirk tem ao seu lado companheiros como o escocês Montgomery Scott, o engenheiro chefe interpretado por James Doohan, e o doutor McCoy, interpretado por DeForest Kelley. Isso sem contar o favorito de todos, o oficial de ciências, Spock, imortalizado por Leonard Nimoy.
Ao visitar o período histórico em que Jornada nas Estrelas se encontrou durante sua exibição, em meio à Guerra fria e o agravamento dos conflitos raciais nos Estados Unidos, fica mais fácil compreender a motivação e a decisão de Gene Roddenberry em usar seu produto para gerar um debate político e social.
A série original é até hoje conhecida por quebrar várias barreiras culturais. Em uma época em que as mulheres eram representadas na mídia televisiva como personagens unidimensionais e com as características de uma dona de casa ou apenas interesse amoroso de outro personagem, a atriz Nichelle Nichols conseguiu se destacar em um papel onde sua personagem, Uhura, não apenas tinha o cargo de tenente em uma nave estelar, como era negra e serviu para mostrar a importância da representatividade.
Outras etnias tiveram seu espaço, como a personagem do nipo-americano George Takei, o oficial Hikaru Sulu, ou o russo Pavel Chekov, interpretado por Walter Koening. É importante lembrar que escolher um personagem russo no auge da guerra fria foi uma das várias decisões arriscadas de Roddenberry. Com a evolução do programa e sua extensão para spin-offs, ainda mais presenças étnicas foram inseridas no universo da franquia.
“Há uma ditado chinês: ´Que você viva em tempos interessantes´.
Nós tivemos isso na década de sessenta, e temos isto agora também, talvez nunca deixemos de ter. São tempos extremamente caóticos. Foi uma base muito forte para apoiarmos nossas metáforas e dramas. Acho que nossos roteiristas conseguiram capturar isso muito bem. Se sensibilizavam bastante com o que acontecia na época, e tentavam colocar tudo o que conseguiam em um século diferente, que ainda assim lidava com questões que nos acometiam na época”. (NIMOY, 1991)
Os tripulantes da frota estelar representavam um futuro igualitário que servia de comentário para debater um mundo cada vez mais dividido. A série interage com os acontecimentos mais marcantes da década de 60, como a guerra do Vietnã e o avanço dos movimentos feministas e black power (empoderamento negro). Enquanto a segregação racial fazia parte do cotidiano e muitos estabelecimentos chegavam até a não aceitar que negros usassem o mesmo banheiro e restaurante que os brancos, Jornada nas Estrelas teve a coragem de acrescentar Uhura ao elenco.
Inteligente, independente e talentosa, Uhura mostra que não é só mais uma personagem estereotipada da época. Desde o seu nome, proveniente da palavra suaíliUhuru, que significa “liberdade”.
Em The Gamesters of Triskelion, da segunda temporada, Uhura chega a travar uma batalha corporal para defender seus companheiros. Com esta cena podemos fazer uma alusão aos movimentos feministas em ascensão na época, que se sentiriam muito mais representados por uma personagem que consegue se defender sozinha sem precisar do apoio de um “homem forte” atuando como herói para uma “donzela em perigo”.
Outro episódio, Plato´s Stepchildren pode ter alguns dos momentos mais ridículos da série, como Kirk e Spock dançando e recitando trechos de Alice Através do Espelho, chegando ao ponto de termos que ver Kirk fingindo ser um cavalo. Tudo isto fazia parte da trama do episódio, onde um grupo de seres super-inteligentes utilizava seus poderes psicocinéticos para controlar as ações da tripulação, criando uma forma de teatro para entretenimento de seu povo. Mas não foi por estas ações que o episódio foi lembrado. Foi nele que tivemos o primeiro beijo inter-racial da televisão norte americana, protagonizado por Kirk e Uhura. E por mais que tenha sido influenciado por controle mental, o beijo continua sendo um grande feito quando lembramos da época em que esta cena aconteceu e como repercutiu, chegando a ser cortado durante a exibição em alguns cantos do sul do país.
A personagem era querida pelos fãs. Nichols recebia várias cartas de reconhecimento e ofertas para atuar em outras produções, incluindo peças na broadway. Mesmo adorada, a série não era um sucesso de público (isso de acordo com a emissora) e a atriz considerou sair da série para fazer algo diferente com a carreira. Roddenberry tentou convencê-la do contrário e pediu para que ela pensasse um pouco mais a respeito disso. A atriz só resolveu aceitar continuar na série depois de encontrar o ativista político Martin Luther King em uma festa beneficente.
“Eu estava nesta festa e em algum ponto fui chamada para conversar com um fã […] Procurei por ele no salão, mas no meio do caminho me deparo com este rosto famoso, com um enorme sorriso. Naquele momento, seja quem fosse meu fã, ele teria que esperar. Era o doutor Martin Luther King, meu líder. Então ele diz: “Sim, senhorita Nichols, eu sou seu maior fã””(NICHOLS, 2010).
Nichols também conta que ao confessar para King a vontade de sair da série, sua primeira reação foi ficar surpreso e inconformado com a possibilidade.
“Ele olha sério para mim e diz: ´Você não pode […] Não entende o que isso significa? Pela primeira vez na televisão nós somos vistos como devemos ser vistos todos os dias. Como inteligentes e belas pessoas que podem cantar, dançar, mas que também podem ir para o espaço, serem advogados, professores. Não víamos isso na TV até agora […] Uma porta foi aberta para que o mundo nos veja. Se você sair, ela pode ser fechada´”.
A representatividade em Jornada nas Estrelas foi forte o suficiente para impactar a decisão da carreira de muitas pessoas ao longo dos anos. A atriz Whoopi Goldberg assistia a série quando criança e ficou tão impressionada que imaginou um dia estar na série. Quando A Nova Geração (1987–1994), o primeiro spin-off de Jornada nas Estrelas chegou, a atriz fez questão de pedir um papel no elenco, o que acabou conseguindo. E a sua personagem, Guinan, era uma convidada recorrente.
Outro exemplo de sucesso inspirado na série é o da primeira astronauta negra da NASA, Mae Jemison. Também fã da série, é interessante como anos depois ela também conseguiu uma participação na Nova Geração, em 1993, no episódio Second Chances.
“Tenente Uhura talvez tenha sido a primeira mulher que nós encontrávamos na televisão toda semana que trabalhava em um campo técnico, isso era animador. Sem contar que ela era afrodescendente, me deu uma sensação de que estava assistindo algo diferente” (JEMISON, 1994)
Não eram apenas as mulheres e os negros com pouco espaço para papéis desempenhados de forma adequada. Uma das práticas mais comuns de muitos programas, principalmente os norte-americanos, envolvia a total descaracterização de outras culturas. E mais uma vez Roddenberry encontrou uma forma de comentar sobre isso ao inserir o personagem interpretado pelo asiático George Takei, o biofísico Sulu.
Assim como fez com Uhura, Roddenberry procurava um nome forte que representasse não só uma parte da ásia, mas todo o continente, então decidiu nomear seu personagem como uma referência ao mar de Sulu, situado entre a Malásia e as Filipinas. De acordo com Takei (2004):
“Gene costumava dizer que a nave Enterprise serve como uma metáfora para a nave Terra. Toda a força da nave estava em sua diversidade. Ele queria que esta diversidade refletisse na escolha do elenco […] Sua maior dificuldade foi encontrar um nome para mim, pois todo nome asiático é bastante específico. Tanaka é japonês, Kim é coreano, Wong é chinês […] Ao olhar para o mapa encontrou o mar de Sulu. A água do mar costuma tocar todo o litoral, e foi assim que ele me nomeou”
Depois de tudo que os Estados Unidos passaram após a Segura Guerra, principalmente com os ocorridos em Pearl Harbor, o preconceito contra asiáticos era evidente nas produções televisiva e no cinema. Mesmo assim, Sulu acabou se tornando um dos favoritos do público sem precisar apelar para os estereótipos que costumavam tomar conta do cotidiano. O mesmo aconteceu com outro personagem, o alferes Chekov, interpretado por Walter Koening.
Chekov foi acrescentado ao elenco apenas na segunda temporada, mas não demorou muito para conquistar o público. Por ter uma clara descendência soviética, muitos consideram o personagem uma resposta de Roddeberry à Guerra Fria. Além disso, por ser um tripulante mais jovem, serviu para atrair o público da mesma faixa etária.
Com uma tripulação que até hoje é um dos melhores exemplos de diversidade em uma série de televisão, só faltava um bom roteiro, que não só fosse envolvente para o espectador casual ou o fã de ficção científica, mas que tivesse um forte impacto intelectual. Para o criador da série, a arte envolve comentário (RODDENBERRY, 1993), e o de Jornada nas Estrelas continua relevante e deveria ser assistido por todos, não importa qual spin-off ou filme, a franquia sempre terá em sua essência o respeito, a tolerância e a diversidade. Tudo começou com a oficial-chefe de comunicações da Enterprise, Uhura, ajudando todos a ir onde nenhum homem jamais esteve.
Cary Joji Fukunaga impressionou o público e fez seu nome ao dirigir os episódios da primeira temporada da excelente série antológica True Detective(2014 — ). Com todo o crédito que recebeu, decidiu dirigir o longa Beasts of No Nation um ano depois, que foi distribuído pela Netflix. Em Maniac, ele reprisa sua parceria com o serviço de streaming, dessa vez ao lado de Patrick Sommerville (da série The Leftovers), e tem tudo para dar certo com um elenco premiado e grande orçamento.
A premissa não desrespeita o título da série. Uma companhia farmacêutica promete resolver os problemas das pessoas no futuro de uma vez por todas, mas por enquanto ainda precisa realizar alguns testes. Owen Milgrim (Jonah Hill) e Annie Landsberg (Emma Stone) fazem parte de um dos grupos inscritos no experimento. A dupla, que nunca se conheceu antes, agora está mais conectada do que imagina… e isso é o máximo que posso dizer sem entrar em detalhes.
Ao contrário dos protagonistas da série, Hill e Stone já são conhecidos de longa data, desde a comédia de 2007, Superbad: É Hoje, então dá para notar a química entre os dois. Sua relação é um dos pontos altos da série. Owen é um personagem contido, carrega uma tristeza no olhar, e mesmo que não seja a sua melhor performance, Jonah Hill ainda assim convence quando precisa passar a sensação de uma pessoa letárgica e desmotivada (tenho lido comentários sobre ele estar atuando mal e sem “vontade”, mas discordo desse ponto. Acredito que ele entrega exatamente o que seu personagem pede, só não chega a fazer algo excepcional como Stone, que costuma se jogar de cabeça nos seus papéis). Por seu histórico com comédias, as cenas que envolvem quebra de tensão ou apenas um pouco de humor mesmo, são onde ele brilha. Mas é Emma Stone quem realmente rouba a cena com sua atitude insubordinada. Sua personagem, Annie, é mais impulsiva e impaciente, e Stone exibe isso perfeitamente com sua atuação expressiva, quase caricata em alguns momentos, mas de um bom jeito. Explicarei isso mais à frente.
Além da dupla, o elenco também é bom e há alguns personagens que acabam se destacando, por bem ou por mal. Sally Field e Justin Theroux são os nomes mais veteranos. Theroux é o clássico estereótipo do cientista louco crente no modelo de que os fins justificam os meios. Field não tem o espaço que merece, mas o pouco que faz já é o suficiente. Os dois se envolvem em um arco que infelizmente não é envolvente. Há uma subtrama que lembra algo saído de uma obra de Douglas Adams, envolvendo um computador depressivo, mas as circunstâncias e a execução não convencem porque a série nunca admite sua faceta cômica, apenas flerta com ela em algumas instâncias.
O enredo de Maniac é instigante, assim como seus temas, mas a série também tem suas conveniências e um problema no estabelecimento de tom, pelo menos nos primeiros episódios. De começo somos apresentados ao mundo da série, uma ambientação charmosa com a estética “futurista” (aspas porque não é exatamente o futuro, é mais como uma versão do presente, mas mais estilizada) de uma década de 1990 alternativa à nossa. Podemos ver pequenos robôs espalhados pelas ruas fazendo o serviço sanitário, um amigo de Annie joga xadrez com um coala de pelúcia (o amigo perde) e um serviço de anúncios ambulante é uma boa saída para ganhar uma grana extra. É claro que estamos lidando com uma série de ficção científica, mas os elementos encontrados aqui são incorporados de forma natural, sem alarde, como se não estivesse chamando atenção para o fato de que esta é uma narrativa do gênero.
Talvez essa timidez em apresentar suas partes mais “bizarras”, deixando mais para frente na temporada, seja o que atrapalhou um pouco o ritmo dos primeiros episódios. Primeiro focamos no drama pessoal dos protagonistas, depois somos apresentados aos cientistas e só depois entramos de verdade na trama principal. Essa montagem linear seria bem recebida se a série soubesse administrar melhor todas as suas subtramas. Temos tantas séries recentes com linhas temporais fragmentadas, como Westworld (2016 — ), Legion (2017 — ) ou Twin Peaks: The Return (2017), então já estamos acostumados com o formato, não custa arriscar um pouco.
Apesar desses pequenos deslizes, a experiência de assistir Maniac é original. A direção de arte é belíssima e rica em detalhes e referências divertidas, como a logo da companhia farmacêutica que tem uma fonte parecida com a da empresa de informática IBM. Além disso, a série traz uma alusão ao filme Um Estranho no Ninho (1975) ao criar um termo para um tipo específico de paciente do experimento. Não é nada que chame muita atenção, mas é uma daquelas coisas que mostra como a série se esforça para inserir suas menções em uma maneira que sirva à trama e não apenas para que você aponte para a tela e fique feliz por ter pego uma referência.
Fukunaga surpreende mais uma vez. Sua lente anamórfica ajuda nas cenas exteriores, dando a sensação de espaço e profundidade que contribuem para um visual mais cinematográfico. As mudanças entre a nossa realidade e a mente dos personagens envolvem camadas cada vez menos realistas e mais parecidas com um filme de gênero (daí a atuação caricata que mencionei. Eu disse que ia explicar), então a decisão de Fukunaga apenas ajudou a série. Em um instante ele parece emular a tensão de filmes como A Origem (2010), de Christopher Nolan, mas em outro você é jogado no meio de um plano sequência cheio de ação. Essa última técnica já é quase uma marca registrada de Fukunaga, que orquestrou uma das melhores cenas da televisão da última década em True Detective.
Maniac começa devagar, mas o ritmo e a qualidade sobem gradativamente e você se pega cada vez mais curioso sobre a jornada de Owen e Annie. Nada é perfeito, claro, e a série pode não agradar todos por conta de seu tom inconsistente. Mas se você procura uma experiência quase cinematográfica, com ótimas atuações e uma trama atraente, acho que essa é pra você.
Qual a função da ficção científica? Você pode debater que o necessário para uma história ser considerada sci-fi é ter uma ambientação futurista e servir como entretenimento, ter muita ação e situações criativas. Não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada para uma forma literária tão rica em elementos e tremendo potencial narrativo. Neste debate, não faltam vozes levantando várias opiniões sobre a função da ficção científica.
Entre tantas possibilidades, a que mais me intriga é o uso da liberdade poética quando falamos sobre o futuro e suas diversas representações. Alguns se aproveitam da ferramenta para especular ou alertar sobre o que está por vir, mas nem sempre estamos falando literalmente sobre o futuro. Recentemente, li pela primeira vez o livro “A Mão Esquerda da Escuridão”, de Ursula K Le Guin, lançado originalmente em 1969 (a versão que li foi a edição da editora Aleph, de 2015), e me deparo com a seguinte citação, logo na introdução da obra:
A Ficção científica não prevê; descreve […] Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas. O trabalho do romancista é mentir.
De acordo com Le Guin, o autor de uma obra sci-fi não está aqui para te dizer que tipo de carro voador estaremos usando no futuro ou o quão bizarra será a nossa vestimenta, mas sim refletir sobre seu contexto social e político de uma forma diferente, muitas vezes através de alusões e metáforas bem elaboradas.
A premiada série televisiva The Handmaid´s Tale utiliza um futuro distópico onde as mulheres perderam a maior parte de seus direitos e servem apenas para o prazer masculino. Essa premissa sozinha já poderia ser considerada uma boa ficção científica, mas a onda cada vez maior de notícias sobre a violência contra a mulher faz com que esta não seja apenas uma proposta narrativa, mas uma crítica feroz sobre a condição humana.
Na série temos um regime totalitário, com enorme poder baseado em medo, e quando você lembra de todas as obras do gênero em que um sistema político como este é um elemento saliente da trama, como em O Homem do Castelo Alto ou 1984, percebe que elas estiveram o tempo todo refletindo o momento que seu país estava vivendo. As principais obras de Kurt Vonnegut (Cama de Gato, Matadouro 5), por exemplo, são um “relato” sobre o que o autor passou em meio aos tempos sombrios da segunda guerra, só que ele nunca trata isso como uma autobiografia, está mais para uma terapia onde o cliente não usa seu nome verdadeiro e todos os traumas vividos são recriados de forma pouco similar. Acredito que essa seja uma analogia menos complicada do que os autores fazem quando planejam uma obra destas.
Qualquer coisa levada a seu extremo lógico torna-se deprimente, quando não cancerígena.
Agora, vamos voltar para A Mão Esquerda da Escuridão. Na obra, Genly Ai é um emissário da Terra, enviado para Gethen com o propósito de convidá-los para uma união entre povos em um sistema coletivo chamado Ekumen. Em Inverno, como é chamado o planeta pelos próprios habitantes de Gethen por conta da baixa temperatura, o protagonista nota a maior diferença entre os nativos e ele: ao contrário do que acontece em seu próprio planeta, a sociedade de Inverno é constituída de indivíduos sem sexo definido. E por conta de seus preconceitos e questionamentos inapropriados, Genly passa por várias provações e pode não conseguir completar sua missão, sem contar que corre risco de vida por estar ali.
O enredo do livro é muito bom, cheio de pequenos detalhes e maneiras inteligentes de desenvolver a narrativa bastante descritiva de Le Guin (ainda que isso também possa ser considerado um ponto negativo por conta do ritmo de leitura, que sofre com alguns trechos mais longos e extenuantes, mas vamos focar nos temas do livro), mas é na hora de debater gênero e o comportamento humano que a obra brilha.
Em Gethen, não há discriminação de gênero, já que todos desempenham o mesmo papel em momentos diferentes da vida. Através do Kemmer, um período no qual os habitantes do planeta desenvolvem órgãos sexuais e sentem atração física pelo companheiro, podemos ver como vários questionamentos envolvendo a forma de nos relacionarmos são levantados.
Um homem deseja que sua viralidade seja reconhecida, uma mulher deseja que sua feminilidade seja apreciada, por mais indiretos que sejam esses reconhecimentos ou essa apreciação. Em Inverno, isso não vai existir. Julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa.
É claro que Le Guin não é a única abordando temas voltados ao debate de gênero. Li recentemente um texto de James Davis Nicoll (o link fica aqui e no fim dessa matéria) e ele fala sobre a fixação de autores de ficção científica com premissas envolvendo planetas com uma população predominantemente, quando não completamente, de um único gênero. O que deixa as coisas um pouco complicadas é que na maioria dos casos temos a ausência do que seria o representante do sexo oposto sendo tratada como uma forma de alívio, é como se a presença de um ser “diferente de você” se transformasse em um enorme inconveniente. Preferimos viver alienados, porém confortáveis, ao invés de aprender com próximo.
Outro costume de alguns romancistas é simplesmente esquecer que o outro gênero existe. Como diz Nicoll, “a falta do outro gênero nem ao menos tem a intenção de dizer algo com isso, o autor apenas não se importou em incluir qualquer personagem do tipo, nem como coadjuvante […] Talvez o exemplo mais curioso seja o de Andre Norton, que lançou um livro (Plague Ship) sem qualquer mulher na história, mesmo sendo a própria escritora uma mulher”.
Não vou entrar em território de representatividade agora, mesmo sendo outro que precisa estar sempre em pauta, mas não podemos negar como muitos fãs de ficção científica e a comunidade nerd estão incluídos na parcela que não quer ver alguém do sexo oposto ganhando qualquer espaço na área de entretenimento, seja cinema, televisão ou quadrinhos. É só ver as reações negativas (e prematuras) à escolha de elenco nos últimos filmes da franquia Star Wars, isso sem contar que não são só comentários sexistas atacando as mulheres do filme, você encontra até xenofobia e racismo, e a pior parte é que não precisa procurar por muito tempo.
Em A Mão Esquerda, temos leituras diferentes para a forma que o sexo funciona. Talvez haja um gênero, e este seja próprio de Gethen; talvez três gêneros: masculino, feminino e neutro. Mas depois de conversar com um amigo que entende do assunto mais do que eu (vamos deixar claro que meu departamento é o de debate sobre a narrativa, estou apenas abrindo aqui os temas apresentados) e passou recentemente por uma transição importantíssima e de enorme impacto para sua vida. De acordo com ele, “os personagens parecem estar entre fluído e agênero. O que não deixa as coisas claras é a parte do acasalamento, porque se enquadra um pouco no cenário interssexual. Parece que Ursula quis intercalar essas três premissas”.
Independente das intenções da autora, o importante é notar como Inverno não faz distinção de sexo e com isso tem uma mente completamente diferente da nossa. É interessante notar como a abordagem de um tema abre a possibilidade para tantos outros debates relevantes, como o da cultura do estupro, outro que infelizmente tornou-se parte do nosso cotidiano.
Considere: não existe sexo sem consentimento, não existe estupro. Como ocorre com todos os mamíferos, o coito só pode ser realizado por convite e consentimento mútuo; do contrário, não é possível. A sedução certamente é possível mas deve ser tremendamente oportuna. Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva. Na verdade, pode-se verificar que toda a tendência ao dualismo que permeia o pensamento humano é muito reduzida, ou alterada, aqui em Inverno.
Ainda assim, o proprio povo de Gethen tem seus preconceitos com a forma que Genly Ai se comporta e como as coisas funcionam com a espécie do emissário, isso somado ao estranhamento dos habitantes com a cor “escura” da pele do protagonista, mas o livro não dá tanto destaque para essa parte, então talvez seja um assunto melhor desenvolvido em uma matéria sobre outra obra onde isso seja predominante (sinta-se livre para indicar alguma nos comentários). Fica clara a intenção de Ursula ao mostrar como todos temos nossos próprios conceitos pré-estabelecidos e medo do que não compreendemos. No entanto, o livro também traz uma inesperada amizade que mostra dois lados com ideais diferentes, mas através de diálogos profundos e momentos para questionamentos existenciais, Ursula nos mostra a essência do que é ser um indivíduo que contempla seu mundo com fascínio, sem deixar que a incerteza tome conta da razão.
Talvez seja o que a ficção científica tem de melhor: criar empatia. Exploramos tantos mundos e espécies alienígenas; especulamos, estrapolamos e apostamos sobre o futuro; questionamos o sistema e tudo que há de estranho à nossa volta, mas o mais interessante da experiência é questionar a nós mesmos. Com “A Mão Esquerda da Escuridão”, Ursula K Le Guin conquistou vários prêmios, além da atenção de incontáveis fãs do gênero, por isso seu nome é tão poderoso.
Eu sei que não existe uma única resposta para a minha pergunta inicial, mas é essa a graça. Todos podem se interessar por sci-fi por incontáveis motivos, e expandir sua mente para debates e territórios que você nunca imaginou conhecer é um deles.
Talvez essa seja a função da ficção científica: abrir sua mente.
Luz é a mão esquerda da escuridão e a escuridão, a mão direita da luz. Dois são um, vida e morte, unidas como amantes no kemmer, como mãos entrelaçadas, como o fim e a jornada
“A Mão Esquerda da Escuridão”, de Ursula K. Le Guin
Editora Aleph, 2015
296 páginas
Tradução de Susana Alexandria
Quero agradecer Lorrana Côrtes e Gabriel Carvalho, por terem me ajudado. Sem vocês esse texto seria um desastre.
Sion Sono tem me surpreendido bastante nos últimos anos. Além de aparentemente estar correndo atrás do título de diretor mais laborioso do mercado japonês (ainda falta muito para derrotar um peso pesado como Takashi Miike, mas é só não desistir), Sono tem entregado obras cada vez mais conceituais, como a sua ficção científica, The Whispering Star.
Ao contrário de seus trabalhos mais conhecidos, como Suicide Club (Jisatsu Sâkuru, 2001) ou o “peculiar” Riaru Onigokko (2015), também chamado de “Tag”, que rodou pela internet por conta de uma cena envolvendo um ônibus sendo cortado ao meio, um bando de adolescentes decapitados e vacas ao vento (eu não estou mentindo), The Whispering Star é um caminho diferente dos longas cheios de violência e ação frenética da qual está habituado. Aqui temos uma criação mais introspectiva e Sono se aproveita mais do silêncio do que a histeria coletiva de algumas produções do passado.
The Whispering Star é estrelado por Megumi Kagurazaka, que interpreta Yoko, uma androide com a tarefa de fazer entregas em pontos distintos da galáxia. Em sua jornada, encontra novos lugares, rostos e reflexões sobre a vida, o universo e tudo mais — esse tipo de coisa. Na contramão de filmes que seguem essa linha mais contemplativa, Sono não entrega grandes descobertas e reviravoltas, o filme parece mostrar a angústia da protagonista como algo do passado, talvez ela esteja acostumada com o isolamento e por ser um personagem desprovido de emoções em sua concepção, a sensação de ambiguidade permeia o filme.
Yoko registra seu histórico de viagem e passa a maior parte do tempo em sua nave, uma das peculiaridades visuais do filme, já que o interior do veículo é constituído de móveis e utensílios típicos de uma cozinha tradicional, é como se ela estivesse viajando no espaço com sua própria casa. Essa intenção de confundir a percepção de tempo e espaço é comum no cinema de Sono, e só depois de passarmos os primeiros minutos observando uma cozinha que temos o movimento da câmera revelando um painel de controle e um vidro que separa o “cômodo” das estrelas do lado de fora.
O longa também tem espaço para alguns momentos de graça, como a forma que manifesta a passagem de tempo, fazendo piada com a situação da protagonista e o absurdo de esperar quase um ano para fazer um chá porque preferiu esperar o gotejar da torneira. Essas decisões e o ritmo mais lento traçam algumas comparações com clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), mas os minutos de meditação da personagem e o encontro esporádico com personagens solitários em pontos distintos do espaço deixam tudo com uma atmosfera que lembra mais algo que Andrei Tarkovsky faria em Solaris (1972).
The Whispering Star pode ser um pouco difícil de digerir, ainda mais se estiver acostumado com algo mais imediato e cheio de “ação”. É abstrato em sua abordagem e fala pouco com palavras, mas se você fica na jornada e se sentir confortável, encontra algumas belíssimas composições e conceitos visuais que revelam muita coisa e podem dar pistas do que aconteceu com o resto das pessoas. Um homem com uma lata de alumínio como calçado faz várias conexões, mas com um jogo de sombras bem simples, o filme cria uma cena poderosa que entrega uma das melhores ideias de Sono até hoje.
Pode ser um filme pouco conhecido, na verdade eu nem vejo alguém falando sobre ele, mas para os amantes da ficção científica, como eu, que adora algo mais melancólico e reflexivo, The Whispering Star é indispensável.
Ah, e se você também segue a filmografia do Sono, não se preocupe; Ele não abandona seu estilo por conta desse filme e um ano depois está de volta com Anchiporuno (2016), e esse tem toda a loucura que você poderia pedir, além de ser um ótimo filme, o que não costuma ser surpresa no caso de um diretor habilidoso como ele.
No momento em que escrevo esse texto, a segunda temporada de Westworld já acabou há uma semana e minha crise existencial começa a tomar conta. Eu tenho o costume de ficar ansioso para um novo episódio de uma série que gosto, mas quando a série é Westworld, eu transformo as coisas em um evento: deixo tudo pronto e coloco o celular no modo silencioso. Isso tudo porque eu conto os minutos para ver Dolores chutando bundas, Bernard lutando contra sua programação, Maeve em sua busca, Hector representando o Brasil (vai, Santoro!) e a equipe do parque tentando descobrir o que está acontecendo. Pode ser um sintoma da ansiedade? Pode. Mas eu gosto de pensar que seja porque essa série é uma das melhores que eu já assisti.
A primeira grande diferença desta temporada para a primeira é o protagonista. Se antes tivemos Dolores (Evan Rachel Wood) em sua descoberta pessoal e fomos apresentados aos elementos mais importantes do parque, desta vez o destaque é Bernard (Jeffrey Wright) e sua forma de lidar com a recente descoberta de que também é um dos anfitriões. Esse ponto de vista contribui para um jeito diferente de seguir com a trama e mostra como Westworld se sustenta muito bem mesmo colocando todo o peso dramático principal em outra pessoa.
Podemos ver a força dos personagens da série, assim como Akecheta, interpretado por Zahn McClarnon, um excelente ator de expressões sutis que já tinha roubado minha atenção na segunda temporada da série Fargo, e agora ele protagoniza o meu episódio favorito de Westworld. E se formos falar em atuação, ainda tenho que colocar nessa conversa as maravilhosas Tessa Thompson e Thandie Newton. Newton, que interpreta a ex-cafetina, Maeve, é uma atriz capaz de carregar um núcleo inteiro nas costas independente de eu ter gostado ou não dele — para deixar logo aqui, eu não gostei. Mas espera um pouco que eu vou explicar.
Eu não perderei tempo tentando convencê-los do talento dos veteranos Ed Harris e Anthony Hopkins, então hora de seguir em frente e entrar em detalhes no que eu considero pontos positivos e negativos.
O primeiro enorme positivo já foi mencionado: as atuações. Cada ator, pelo menos com um papel mais relevante na trama, é excepcional em tudo que faz. Essa série tem algumas das melhores atuações que eu já vi em uma produção para a televisão, ficando atrás apenas de coisas do nível de Twin Peaks ou Os Sopranos. Mas nesse departamento encontra-se o primeiro negativo, que são alguns personagens e o arco narrativo que recebem.
Como eu disse, se você recebeu um papel importante na trama, ótimo, mas nem todos tiveram esse privilégio, e quem mais sofreu com isso foi o núcleo de Maeve. A personagem é uma das mais envolventes e com uma das motivações mais fortes da série, mas ao deixá-la com um grupo de coadjuvantes completamente desnecessários prejudicou bastante sua jornada nessa temporada.
Ao seu lado temos Armistice (Ingrid Berdal) e Hector (Rodrigo Santoro), os únicos que realmente tem uma razão honesta para estar ali, mas o retorno de figuras pouco interessantes como Lutz (Leonardo Nam) e Sylvester (Ptolemy Slocum), a dupla de funcionários do parque, não contribuiu para muito além de reações ao que nós, o público, já estamos descobrindo sozinho. Eles servem de alívio cômico por alguns segundos, mas não dura muito tempo porque nenhuma de suas piadas chega na hora certa. Além deles, o roteirista Lee Sizemore (Simon Quarterman) até serve como uma força de contenção para Maeve, mas isso apenas em teoria, porque na prática ele é resumido naquele personagem que serve apenas para entregar informações mastigadas que a série talvez tenha medo de você não captar sozinho.
Como se essa quantidade de gente já não fosse suficiente, Maeve ainda carrega com ela a jovem Hanaryo (Tao Okamoto), uma anfitriã do parque oriental, Shogunworld. Tirando o fato dela carregar uma espada e um arco e flechas, não sei muito mais como apresentá-la.
A maioria desses integrantes do clubinho da Maeve foi tão mal aproveitado que depois de alguns episódios, foram simplesmente abandonados da trama e surgiram novamente apenas no último episódio, do mesmo jeito que foram deixados antes. Se isso não foi uma desculpa esfarrapada para deixar de desenvolver alguns coadjuvantes, não sei o que é.
Aliás, dois novos parques foram introduzidos. Shogunworld, focado no período feudal japonês, é belíssimo, com todas as cores que compõem o oriente de forma única; O Raj, com a temática indiana, tem pouquíssimo espaço em tela, mas parece carregar muito mistério e ação. É uma pena que os dois precisem ficar apenas em segundo plano por conta da importância do parque principal, mas é compreensível.
Um aspecto significativo da apresentação de um novo parque foram as rimas visuais e narrativas, que foram constantes. O discurso de Hector e a forma como ele anuncia sua chegada na primeira temporada, ao som de “Paint it, Black”, da banda Rolling Stones, é reproduzido fielmente na segunda, por um outro personagem que serve a mesma função de Hector e tem o mesmo propósito. Na cena, Lee Sizemore explica que ele gostava de repetir algumas coisas, mas vai além disso, esses momentos espelhados deixam tudo mais impactante, mostram o contraste e ao mesmo tempo as similaridades entre esses dois mundos, com um visual e disciplina diferentes, mas dores e ambições partilhadas.
Também vemos isso com Akecheta e sua esposa. O oitavo episódio, intitulado Kiksuya, mostra como o personagem atinge a consciência e tenta alertar seus companheiros de tribo. A cena em que ele reencontra sua esposa depois de ter visto tanta coisa, nos dá uma sensação de tristeza bem maior do que a esperada, e isso talvez seja por estarmos vendo mais uma vez o reencontro de William com Dolores, na primeira temporada, mas com personagens diferentes. Ao contrário de Will, que usou sua dor para transformar-se no temido Homem de Preto, Akecheta justifica porque o foco da série está nos anfitriões. Esse artifício narrativo pode ter um resultado vazio nas mãos de uma equipe criativa incompetente, o que felizmente não é o caso aqui.
Tal qual a primeira temporada, Westworld continua trabalhando com as linhas temporais desconjuntadas. Hoje, com tantas séries fazendo isso (Legion e Twin Peaks dançaram em cima do formato que nem loucos), e a própria Westworld já tendo feito, fico me perguntando se essa decisão ainda é relevante ou serve para melhor contar a jornada nos personagens. Um pouco de confusão é ótimo, eu mesmo adoro quando todas as peças do quebra cabeça chegam para mim com calma, sem alarde, até que eu finalmente tenha aquele choque de realização do que acabei de perceber. Mas talvez o excesso de pequenas linhas temporais fora de ordem pareça mais uma decisão artística apenas por estilo e não uma razão para construir uma narrativa mais eficiente. A externalização de certos pontos-chave da trama por Bernard ou Lee, por exemplo, mostram como as vezes menos é mais.
Passando rapidamente pelos arcos principais, mesmo com o destaque para Akecheta e Maeve, e o foco principal em Bernard e o conflito com seu criador, Dolores continua um peão importante para o jogo, ainda que ela não se considere apenas uma peça e sim a resposta para tudo. Sua relação com Teddy (James Marsden) é afetada por conta da missão, e é um núcleo que parece se distanciar um pouco dos outros no começo, mas depois volta aos trilhos (quase literalmente).
Essa segunda temporada dividiu algumas opiniões, sendo longa e confusa para uns, mas contemplativa e inteligente para outros. Talvez um pouco de cada. No fim, principalmente botando a temporada inteira em perspectiva, Westworld mostra como continua poderosa e, ao contrário do que alguns também andam dizendo, não perdeu seu fôlego. Jonathan Nolan e Lisa Joy criaram um espetáculo de encher os olhos com visuais que só o orçamento da HBO permite, isso e a habilidade de deixar sua mente formigando com diálogos impecáveis e um dos enredos mais intrigantes da TV atual.
Que venha logo a terceira temporada, porque essa série tem um potencial gigantesco em mãos, assim como o próprio Ford demonstra em sua última cena, apontando para o horizonte enquanto se despede de Bernard.
“É naquela linha impossível, onde as ondas conspiram para retornar. Um lugar onde talvez nós voltaremos a nos encontrar”.
Se tem um diretor que eu defendo com todas as forças é John Carpenter. Ao lado de Sam Raimi, ele fez alguns dos filmes que eu mais tenho ligação emocional, seja por nostalgia mesmo ou o charme despretensioso deles. Estranho que até hoje eu nunca tinha assistido Eles Vivem em sua totalidade. Era sempre um pedaço aqui e ali no TCM (acho), mas nunca de cabo a rabo. Então, como esse ano decidi fazer pequenos textos sobre todos os filmes do gênero sci-fi (e derivados) que assisto, seja a primeira vez ou não, pensei em começar com um que eu sempre deixei na lista e nunca assisti.
Eles Vivem foi lançado em 1988. Carpenter já tinha lançado obras como Os Aventureis do Bairro Proibido e O Enigma de Outro Mundo, então acho bem engraçado como ele parece ter decidido um caminho bem mais orgânico para Eles Vivem. No fim, ele acabou com aquela pegada mais, por falta de palavra melhor, trash. Mas daqueles bons, e quando digo bons quero dizer do tipo que parecem ter sido feitos com amor, e não por uma equipe sem imaginação tentando se tornar cult com um filme que foi claramente pensado para ser adorado por ser ridículo, como Birdemic ou até mesmo algumas continuações de Sharkanado (e eu gosto de Sharkanado, que fique anotado).
Eles Vivem está mais para a franquia Evil Dead, com seu humor e situações absurdas que extrapolam tudo com uma rapidez inimaginável. Além disso, tem os diálogos que parecem ser todo composto de frases de efeito e falas sem sentido, mas que casam com o momento. É como se fosse um The Room (o do Tommy Wiseau, não confunda com a Brie Larson prisioneira, porém Oscarizada), mas aqui a trama é mais clara e menos poluída de subtramas desnecessárias.
O filme segue o operário Nada (é o nome dele mesmo), interpretado pelo finado Roddy Piper (descanse em paz, amigão), que encontra um par de óculos pretos capaz de revelar informações segredas que nós, humanos comuns, não vemos. Onde percebemos um outdoor de lingerie, os óculos revelam um outdoor sem imagem, apenas com um texto que resume a mensagem principal do anúncio, como “Você foi feito para reproduzir e ter filhos”. Ao olhar em volta, Nada percebe que não são é só a publicidade, mas as pessoas, pelo menos a maioria delas, na verdade é uma versão cadavérica do que deveriam ser (ver a foto de destaque da matéria).
A crítica é bem óbvia, e já vimos isso em vários lugares. “Estamos sendo consumidos pelo que consumimos”. Sabe como é, esse tipo de coisa. O diferencial é que Carpenter sabe disso e brinca constantemente com o formato, satirizando e jogando a mensagem na nossa cara, para depois sair correndo e filmar sequencias insanas de tiroteio incensante, piadas mal feitas (propositalmente), romance, amizade, e tudo que você espera em um filme, só que da maneira mais boba possível. Você tem que entender a proposta primeiro, senão fica difícil aguentar mais de cinco minutos de dois caras se espancando em um beco por um motivo idiota. Se você já gosta de coisas do tipo, como as obras que mencionei anteriormente, vai se sentir em casa. Se é do tipo sério, que precisa de explicação e uma história mais dramática, provavelmente não vai passar dos primeiros dez minutos.
É uma obra divertidíssima, rápida e dinâmica, com personagens engraçados e uma trama louca que agrada qualquer fã de um cinema mais independente e sujo, coisa que eu amo de coração. Indico fortemente.
Com narrativas muito bem construídas, confinando tópicos intrigantes e personagens envolventes. Não foi muita surpresa que Arrival, o seu lançamento de 2016, tenha me conquistado, mas não só pela qualidade técnica (que sempre é mais do que competente) e sim por trazer um frescor para um gênero muitas vezes surrado, que sofre na mão de outros diretores que tentam se levar muito mais a sério do que deveriam, entupindo seus trabalhos com camadas de elementos complexos em uma narrativa vazia.
Arrival é estrelado por Amy Adams, que interpreta a linguista Louise Banks. Após o inacreditável e o repentino surgimento de enormes figuras no céu e a possibilidade de uma visita extraterrestre em diferentes extremos do planeta, Louise é convocada pelo governo norte americano para estudar as novas formas de vida e analisar seu meio de comunicação, para que tudo seja resolvido da maneira mais pacífica possível.
O que Villeneuve entrega é um dos melhores filmes do ano, com um roteiro provocativo, que na superfície pode abordar vários tópicos recorrentes da parte “científica” do gênero, mas decide focar sua atenção na parte emocional. É este aspecto que o diretor tenta tocar, em algum nível, na maioria de suas obras, seja com o drama familiar no meio de todo o mistério de Os Suspeitos (2013) ou com o medo recorrente de sucumbir para seus pontos fracos em meio a toda “confusão” de O Homem Duplicado (2013). Em Arrival, temos uma protagonista reservada, completamente envolvida com seu trabalho, mas ao mesmo tempo passando por conflitos internos (os quais não vou entrar em detalhes para não comprometer a experiência de quem assistir pela primeira vez).
O que Villeneuve faz com o drama pessoal de seus personagens e a trama geral é criar uma ligação direta, um meio de mostrar como tudo se comunica e avança de acordo com as ações de cada indivíduo da história. Isso pode ser encontrado em outras obras, mas o roteiro de Arrival não apenas flui muito bem como possui uma harmonia entre todas as suas partes que poucos filmes conseguem atingir, principalmente no cinema atual, que deve ser feito e entregue cada vez mais rápido.
Ambientação também é algo importante. Se alguns filmes traziam visuais com panoramas incríveis e efeitos de tirar o fôlego, Villeneuve troca tudo isso por algo menor. Por mais que ainda tenha que se entregar aos truques digitais para criar peças importantes, o filme depende muito mais da direção firme e concentrada com a colaboração da cinematografia de Bradford Young e a música de Jóhann Jóhannsson, que compõe um de seus melhores trabalhos, cheio de urgência e impacto durante as cenas de maior tensão, mas com uma melancolia incômoda envolvendo toda a obra. É um sentimento forte importantíssimo para o longa, e ele pode passar um tempo com você depois de sair do filme.
A velocidade com a qual Villeneuve trabalha é impressionante e talvez uma das razões para ter sido confirmado em dois remakes de grandes clássicos da ficção científica: Blade Runner 2049 e Duna. Ambos carregam enorme peso, com Blade Runner (1982) sendo a adaptação de Ridley Scott do livro de Philip K Dick, um dos maiores clássicos da ficção científica; Já Duna nada mais é do que o projeto impossível de adaptar os livros de Frank Herbert, um sonho do diretor Alejandro Jodorowski que nunca foi para frente (vale muito a pena dar uma assistida no documentário Duna de Jodorowski (2013), que conta a jornada do diretor chileno em busca da equipe perfeita para o filme perfeito). Vale lembrar que Duna teve uma adaptação por David Lynch em 1984, mas este foi um fracasso.
Assim como Ridley Scott, Villeneuve parece ser o novo nome em evidência para os fãs de ficção científica. Talvez seja cedo para dizer se ele fará ou não um bom trabalho com estes dois projetos, mas se depender do que recebemos até agora, as coisas parecem estar indo muito bem e por enquanto não encontro formas de me preocupar. Arrival é um trabalho maravilhoso, e por favor, vamos reconhecer a atuação de Amy Adams.