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Queen e a Ficção Científica

Essa não é uma matéria comum por aqui, mas passei tempo demais sem poder combinar duas grandes paixões da minha vida: a ficção científica e a música da Queen, a maior e melhor banda que já existiu (comprovado cientificamente). Brincadeiras à parte, é curioso notar como os integrantes da banda foram inspirados e também conseguiram influenciar os gêneros da ficção científica e fantasia. 

Uma das características que melhor representa a Queen é a forma como cada membro carrega gostos e interesses diferentes, mas de alguma maneira consegue trazê-los organicamente para o repertório da banda. Freddie Mercury, Brian May, Roger Taylor e John Deacon já se arriscaram em diversos estilos musicais, e eu não estou exagerando quando digo que foram muitos.

Além do clássico hard rock e heavy metal casando com elementos de ópera e balé, músicas como The March of the Black Queen, Bohemian Rhapsody e Innuendo foram o máximo da experimentação, com assinaturas de tempo incomuns para as rádios. A banda também já brincou com o punk em Sheer Heart Attack (Freddie já chegou a se desentender com o cantor Sid Vicious), trocou os seus instrumentos padrões por guitarras espanholas, maracas e campana em Who Needs You, e eu não sei explicar o que acontece em Mustapha, onde Freddie Mercury canta inglês, árabe, persa e outra língua inventada. Faz parte da banda explorar novas loucuras para inserir em seus álbuns, e eu mencionei apenas os primeiros exemplos que me vieram na cabeça. 

Roger Taylor e Freddie Mercury nos bastidores
Roger Taylor e Freddie Mercury

Mas vamos ao que interessa. Mesmo que Queen seja o maior acontecimento da história da música (nem um pouco hiperbólico), esse é um site sobre ficção científica, e é hora de lembrar como esses dois mundos se encontram.

A primeira coisa que devemos notar é que os próprios integrantes da banda sempre tiveram um pé na ciência. O baterista Roger Taylor tem um diploma em biologia e o guitarrista, Brian May, possui um PhD em astrofísica. May chegou a colaborar com a NASA no projeto New Horizons, que tinha como um de seus objetivos fotografar e estudar Plutão. 

E como se isso não fosse o suficiente, a carreira solo dos dois é ainda mais ligada à ficção científica. Os dois primeiros álbuns de Roger Taylor foram intitulados Fun in Space (Diversão no Espaço) e Strange Frontier (Estranha Fronteira), enquanto May se envolveu em projetos musicais com nomes como Star Fleet (Frota Estelar) e 1984 (referência direta ao livro de George Orwell), sua primeira banda. 

Brian May e David J Eicher
Brian May e David J Eicher 

Seguindo uma linha cronológica, a primeira ligação da banda com o gênero está no álbum A Night At The Opera (1975).

Queen já havia criado uma narrativa de fantasia entre seus álbuns Queen (1973) e Queen II (1974), mas foi só com A Night at the Opera, título inspirado no filme de mesmo nome estrelado pelos Irmãos Marx, um grupo conhecido por várias comédias clássicas, que a banda teve sua primeira música com temática de ficção científica. 

Escrita e cantada por Brian May, a canção ´39 traz a banda inteira cantando em harmonia a história de um grupo de astronautas que embarca em uma viagem de um ano. Mas ao retornar, percebem que por conta da dilatação temporal, centenas de anos já se passaram. A música segue o ponto de vista desses astronautas, que agora percebem como todos que deixaram para trás estão velhos ou mortos.

Para contrastar a narrativa melancólica, May decide seguir com um arranjo folk, ao estilo das músicas skiffle, que mesclam jazz, blues e country. Nas apresentações ao vivo, Freddie Mercury geralmente cantava no lugar de May, que ficava ocupado no violão. Pessoalmente, prefiro a versão do álbum, mas esse ao vivo com Roger Taylor berrando é o que melhor representa a atmosfera da canção: 

O próximo exemplo não está em uma música, mas sim em uma ilustração. Além do álbum News of The World (1977) trazer hinos da banda, como We Will Rock e We are The Champions, a primeira coisa a chamar atenção é a sua arte de capa. 

A arte revela um robô gigante segurando a banda em suas mãos mecânicas e ensanguentadas, com uma expressão aparentemente triste. Para quem acha essa capa aleatória, ela tem a ver com a paixão do baterista Roger Taylor pelas clássicas revistas de ficção científica que você podia encontrar em qualquer banca na década de 1950 e 60.

A ilustração do robô gigante apareceu pela primeira vez na capa da revista Astounding Science Fiction, e a arte original foi feita por Frank Kelly Freas. O artista chegou a explicar a imagem, dizendo que ela representa um robô acidentalmente destruindo um ser orgânico, mas triste por não poder consertar. A edição da revista trazia a história The Gulf Between, do escritor Tom Godwin, sobre uma civilização futurista onde os robôs podem trabalhar como qualquer ser humano, mas devem seguir as regras sem questioná-las. 

24 anos depois do lançamento da revista, a banda contratou Freas para recriar a imagem, dessa vez trocando o humano da capa original pelos integrantes da banda. 

Agora podemos seguir para as trilhas sonoras. Por mais que Queen esteja presente em incontáveis filmes, não foram muitos para os quais eles prepararam uma trilha sonora original. A primeira delas foi para o filme Flash Gordon (1980), longa inspirado no herói das tiras de jornal criado por Alex Raymond.

Principal concorrente de Bucky Rogers, Gordon é um homem forte e corajoso, que acaba preso no planeta Mongo, comandado pelo tirano Ming. As histórias eram simples e logo se transformaram em uma ópera espacial maior e mais épica. Em questão de adaptações, Flash Gordon teve séries, animações e mais de um filme, mas o mais conhecido continua sendo a versão de 1980, que contava com a trilha sonora original feita por Queen. 

O álbum Flash Gordon (1981) tem uma arte de capa incrível e Brian May queria criar a música mais explosiva e heróica que imaginou. Além da faixa-tema, Flash’s Theme, o álbum trazia ótimas canções como The Hero e a melhor versão da Marcha Nupcial que você já ouviu. 

Foi durante a turnê desse álbum que Freddie Mercury inventou de se apresentar montado em cima dos ombros de Dart Vader. É engraçado quando você lembra que a letra da música Bycicle Race contém o verso “I don’t like Star Wars” (“Eu não gostou de Guerra nas Estrelas”).

O próximo álbum da banda seria Hot Space (1982), um dos mais arriscados. A ideia do baixista John Deacon em criar uma mistura de funk com disco não agradou os outros membros, mas seguiram com a proposta mesmo assim. O resultado foi um dos álbuns mais criticados da banda, mas ainda assim contendo faixas excelentes como Under Pressure

Não há referências sci-fi nas letras das canções, mas o clipe da música Calling All Girls, de Roger Taylor, é uma paródia do filme THX 1138 (1971), uma distopia escrita e dirigida por George Lucas antes de ficar conhecido com Star Wars. O videoclipe é considerado um dos mais raros da banda, mas finalmente começou a receber atenção ao aparecer em DVDs da banda e no seu canal do Youtube. 

Mas se Calling All Girls não fez sucesso, a banda conseguiu compensar isso com o lançamento do álbum The Works (1984), um dos seus mais vendidos. Além de ter músicas como Machines (Back to Human), uma das primeiras vezes que a banda decidiu usar sintetizadores, com o propósito de dar o ar futurista que o álbum pedia, a maior referência ao gênero está no videoclipe de Radio Gaga, música escrita por Roger Taylor.

Com visuais inspirados no clássico filme do expressionismo alemão, Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang, Queen estava de volta ao topo e decidiu gastar um pouco mais com esse vídeo, recriando cenários e a fotografia do filme. O clipe foi dirigido por David Mallet e não teve uma produção tão simples. 

Com o lançamento de uma versão restaurada do filme Metrópolis, a música Love Kills, de Freddie Mercury, foi usada. Em troca, ele recebeu a permissão para usar imagens do filme no clipe da banda, mas eles ainda tiveram que comprar os direitos de exibição do governo alemão. 

Cinco anos depois de Flash Gordon, a banda lança o álbum A Kind of Magic (1986). A arte de capa é horrível, mas esse acaba sendo um dos maiores sucessos da banda, incluindo a faixa-título, escrita por Roger Taylor. Esse também foi um lançamento inovador, porque além de ser o primeiro gravado digitalmente pela banda, traz faixas comuns ao lado de músicas originais criadas para o filme Highlander (1986), composições como Princes of the Universe, escrita por Mercury; One Year of Love, de Deacon; e Who Wants to Live Forever, de Brian May. 

A turnê do álbum foi a de maior sucesso da banda, rendendo apresentações memoráveis como as de Budapeste e do Estádio Wembley, em Londres. Os shows foram gravados em película 35mm e lançados em alguns dos DVDs e Blu-rays mais vendidos da música. 

A música Who Wants to Live Forever é uma das mais belas do catálogo da banda, mas seu clipe não foi tão impactante quanto o de Princes of the Universe, este aproveitando imagens e cenários de Highlander, tendo até a presença do ator principal, Christopher Lambert, recriando a batalha final do filme, com Freddie Mercury. 

Eu posso ter esquecido uma coisa ou outra, mas já valeu a pena passar esse tempo escrevendo sobre Queen, o que acabou sendo uma desculpa para passar o dia ouvindo todos os álbuns. 

Essa são algumas das principais ligações que você pode encontrar entre a banda e a ficção científica. Se eu esqueci de mencionar algo, deixe nos comentários. Até a próxima.

Vida Longa e Próspera. 🖖

E Deus Salve a Rainha! 👑

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UPLOAD | Um descanso para o corpo e a mente

Em um futuro de carros inteligentes e impressoras 3D capazes de replicar comida em segundos, a tecnologia mais cobiçada pela sociedade é uma realidade virtual onde você pode salvar a sua consciência antes de morrer e continuar sua segunda vida em hotéis de luxo. Acessível para poucos, o serviço Lakeview é o paraíso na terra (ou em um disco rígido), e Nathan Brown (Robbie Amell) acaba de chegar ao lugar, mesmo que não seja da maneira que imaginou.

Nathan é um jovem programador procurando por investidores, mas depois de sofrer um acidente de carro, recebe a chance de ser integrado ao serviço pós-vida digital. Relutante, acaba aceitando a oferta de sua namorada, Ingrid Kannerman (Allegra Edwards), rica o suficiente para pagar o procedimento. Agora, vivendo em uma realidade controlada por computadores, mesmo tendo um avatar físico e outras consciências com quem conversar, Nathan se sente mais sozinho do que nunca. Mas as coisas mudam quando ele conhece Nora Antony (Andy Allo), uma das atendentes trabalhando para manter Lakeview e seus clientes satisfeitos. 

Essa é a longa premissa de Upload, nova série original do serviço de streaming Amazon Prime Video. Criada por Greg Daniels, responsável por séries como The Office e Parks & Recreation (há referências das duas ao longo da temporada, incluindo uma participação especial), é difícil não encontrar similaridades entre a proposta de Upload e o episódio San Junipero, da terceira temporada do já popular Black Mirror. Mas o conceito de viver em uma realidade pós-vida adaptada não é algo novo para a ficção científica.

Upload

Temos autores como Philip K Dick, que já tocaram no assunto, explorando temas como consciência e livre-arbítrio, o que Upload faz de forma propositalmente superficial, já que pretende seguir uma abordagem mais leve e descontraída para um tópico tão complexo. É por isso que a execução dessa primeira temporada talvez seja tão similar ao de comédias como The Good Place, criada por Michael Schur, amigo de longa data de Daniels. 

O maior destaque positivo da série está na construção de mundo. Todos os elementos inseridos nesse possível ano 2023 não estão longe da realidade, mas tem algumas características exageradas para criar situações cômicas, como os aplicativos de namoro repetindo suas indicações ou drones de entrega jogando todas as embalagens de uma vez no mesmo ponto.

A realidade virtual de Lakeview é onde os roteiristas realmente brincam com a proposta da série e criam piadas envolvendo problemas cotidianos, como os usuários que não podem aproveitar o café da manhã fora do horário. Além disso, temos tramas incitadas por conta de problemas no sistema, sejam eles glitches, renderização incompleta ou a velocidade de fotogramas inconsistente, o que faz com que a comédia também tenha um propósito narrativo. 

Mas é exatamente na comédia que temos o primeiro tropeço. Com um enredo que tenta balancear comédia, drama, elementos de ficção científica e até uma subtrama envolvendo a misteriosa morte do protagonista, não sobra espaço para muitas risadas, e o ritmo acaba sofrendo por conta disso, deixando tudo mais inconsistente e sem direção. Em certo ponto, uma policial é esfaqueada e uma piada é inserida logo em seguida, mas essa rápida sequência acontece durante um dos momentos mais tensos e dramáticos do episódio. Esse é apenas um dos exemplos da execução fraca de Upload

Upload

Outro problema está no elenco, que não começou com o pé direito ao apresentar Robbie Amell como o protagonista, Nathan. Amell consegue ser charmoso, mas não entrega bem os diálogos mais cômicos, e quando se trata de drama, assisti-lo chorando pode ser um trauma completamente diferente (ele chega ao ponto de cobrir o rosto com um travesseiro para esconder a atuação).

Mas assim como humor, atuações entram em um território mais subjetivo, e é possível que alguém goste da atuação rígida e mecânica de Amell (eu não me aguentei). Também podem ser um incômodo coadjuvantes como Andrea Rosen, que interpreta a chefe do departamento de atendimento aos clientes; e Elizabeth Bowen, atuando como Fran Booth, uma parente de Nathan que decide investigar sua morte sem autorização alguma; essas duas extremamente caricatas e servindo apenas de alívio cômico. 

Com exceção do protagonista e esses coadjuvantes genéricos, sobra para atores como Andy Allo, interpretando a assistente Nora, a difícil tarefa de manter o público investido emocionalmente no drama principal. E é Allegra Edwards, no papel de Ingrid Kannerman, quem merece elogios por alternar naturalmente entre uma personagem caricata e extravagante para um lado mais humano e vulnerável. Essas duas são as maiores surpresas positivas do elenco, e é uma pena terem que atuar ao lado de pessoas como Robbie Amell. 

Upload tem vários problemas, alguns deles podem te tirar completamente da série, mas essa primeira temporada tem seus momentos e sabe se divertir com as regras do seu mundo. Pode não ser imperdível, mas pode te entreter caso não tenha algo melhor para assistir. 

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The Midnight Gospel | Adeus aos Sentidos

“Amor! A única coisa que minha armadura não aguenta”

Clancy comanda um podcast espacial chamado The Midnight Gospel, onde entrevista seres diversos de planetas em extinção. Com um simulador de multiversos, ele pode enviar um avatar com a sua consciência para estes planetas e gravar longas conversas, que podem ir de um simples questionamento sobre a legalização da maconha até uma viagem através dos sentidos, com debates sobre ética existencial e identidade. Mas para entender de verdade a proposta dessa nova animação da Netflix, que leva o mesmo nome do podcast de Clancy, é necessário conhecer um pouco dos bastidores.

Todos os episódios de The Midnight Gospel, a série, tem como destaque os diálogos, as entrevistas de Clancy, que na verdade são excertos retirados diretamente de um podcast real, o Duncan Trussell Family Hour. Duncan Trussell é um ator, comediante e dublador que costuma receber todo tipo de convidado em seu programa: celebridades como Dan Harmon, o criador de Community e Rick and Morty; o músico e professor espiritual, David Nichtern; ou até mesmo figuras como Damien Echols, condenado por homicídio em um famoso caso dos Estados Unidos onde três garotos foram mortos no que foi confirmado como um “ritual satânico”. Um dos exemplos faz uma ponta na animação, mas vou deixar você descobrir enquanto assiste.

A série é desenvolvida por Pendleton Ward, mais conhecido como o criador da animação Hora de Aventura. Mas deu para notar que a abordagem de The Midnight Gospel é restrita ao público adulto, principalmente por conta de toda a profanidade e violência. Mesmo que Hora de Aventura tenha momentos brilhantes de questionamentos envolventes, a nova produção de Ward segue uma linha mais voltada para as crises existenciais de Bojack Horseman, com uma dose do absurdismo encontrado em Rick and Morty

Nova serie da Netflix a animacao The Midnight Gospel

Mesmo que a maior parte dos diálogos venha das conversas de Trussell e seus convidados, há uma narrativa própria na série. Assistimos às tentativas de Clancy em conhecer melhor seus vizinhos, conseguir novas amizades, colecionar artefatos de suas viagens e lidar com os defeitos de sua máquina, que precisa ser lubrificada constantemente (a semelhança de seu simulador de multiversos com um órgão sexual feminino faz parte da linguagem mais infantil e do humor escatológico de Ward, que se estende pela temporada representado em todo tipo de excremento que lhe vem à cabeça). Mas Clancy também tem alguns segredos e parece estar fugindo para novos mundos na intenção de esquecer o seu. 

Considerando o formato, há uma estrutura base para a maioria dos episódios, colocando as entrevistas em primeiro plano, com uma animação de fundo que nem sempre parece estar conectada ao assunto das conversas entre o protagonistas e os seres que encontra no caminho, mas rende alguma piada visual engraçada ou cria um segundo debate que parece complementar de certa maneira o tema geral de um episódio. Como se não fosse o suficiente, sobra espaço para alguns números musicais aleatórios, algo que Ward trouxe de seus outros trabalhos, mas falaremos disso em breve. Parece loucura resumir tudo dessa maneira, mas é uma daquelas coisas que só seria capaz de explicar desenhando, confirmando como a animação pode ser um recurso narrativo tão poderoso. 

E por falar em animação, se você estiver acostumado com os desenhos de traço mais infantil dos trabalhos anteriores de Ward, aqui temos algo similar, mas carregado de sangue e vísceras, o que não distrai demais da construção de mundo louca e cheia de referências e piadas do cenário. As cores também são mais vibrantes e garantem uma viagem psicodélica, inclusive por conta da movimentação, com menos fotogramas, que causa certo estranhamento em algumas sequências. Se ainda não ficou claro, até mesmo a data oficial de lançamento da série acabou caindo em 20 de abril (brincadeira entre os usuários de maconha, que usam o termo 4:20); então, você não está sendo guiado em uma jornada louca como essa sem motivo – o universo pode ser aleatório, mas as intenções de Ward e Trussell não.

A louca e experimental serie The Midnight Gospel da Netflix

Como mencionei antes, a temporada conta com ótimas músicas originais, um compilado de rock, metal, jazz e folk, com algumas letras bobas e ridículas, mas um pouco assustadoras se você prestar atenção no que algumas estão dizendo. Não temos nada no nível de Hora de Aventura, mas se quiser versões mais estranhas de Marilyn Manson, Tom Waits ou Beck, não vai se decepcionar. 

Embora pareça, na superfície, uma novelização de conversas descontraídas sobre temas delicados como a relevância das religiões, os riscos de se apoiar na esperança, as limitações da criatividade ou outros diversos questionamentos desse nível (é muito mais do que isso), a série se aproveita da jornada emocional do protagonista para executar momentos tocantes e explorar dúvidas essenciais para cada um de nós. Não se deixe enganar por elementos como barcos carregados pela energia positiva de gatos ou unicórnios que vomitam sorvete, The Midnight Gospel é uma experiência única através do espaço e da alma. 

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Contos do Loop (Tales From The Loop, 1ª Temporada) | A nostalgia no futuro

O trabalho do autor e ilustrador sueco Simon Stålenhag tem sido fascinante por conta de suas artes conceituais onde elementos futuristas são inseridos em suas fotografias, criando um cotidiano rodeado por máquinas e arquitetura que parecem ter saído de uma obra de ficção científica. Sua arte foi parar em alguns livros, como Things From The Flood e The Electric State; e também chegou aos videogames, onde contribuiu para o incrível visual do jogo No Man’s Sky. Mas a sua criação mais influente ainda é o seu primeiro livro de fotografias, Tales From The Loop, que rendeu um jogo de RPG e acabou de ser adaptado para uma série pelo serviço de streaming da Amazon, o Prime Video

Inspirado nos livros de Stålenhag, que participa da série como roteirista e produtor executivo, Tales From The Loop conta com dez episódios e adaptação de Nathaniel Halpern, um dos responsáveis pela psicodélica e absurda série Legion, do canal FX. E uma das primeiras decisões a chamar atenção na série é o seu formato, que parece seguir uma linha mais antológica, o que não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada.

Seguimos a rotina dos habitantes de uma pequena cidade aparentemente pacata, mas localizada acima de uma instalação de pesquisa, onde se encontra uma máquina chamada The Loop, capaz de desvendar e explorar diversos mistérios do universo. Isso acaba afetando os habitantes, que experienciam situações inusitadas envolvendo inconsistências temporais, forças que desafiam as leis da física e outras coisas que poderiam ter saído de alguma obra de ficção científica.

Contos do Loop

Para observar a maneira como cada um é afetado pela máquina, a série carrega uma estrutura narrativa em que cada episódio segue o ponto de vista de um personagem diferente, mas todos acabam ligados de alguma maneira, não só por conta da cidade. Por isso que, ainda que pareça ser estabelecida como uma antologia, a história de Tales From The Loop adota uma linha narrativa que se complementa e, mesmo com o envolvimento de anomalias temporais, possui uma ordem cronológica, então indico que seja assistida em ordem.

Na maior parte da série, a trama gira em torno de duas famílias lidando com traumas diferentes, que sem saber, acabam conectadas por conta da máquina. É o máximo que posso dizer sem entregar mais detalhes, e vale a pena entrar de cabeça na série sem conhecimento prévio de alguns elementos porque ela traz revelações significativas, que ao contrário de outras produções do gênero, servem para construir um arco dramático mais importante que a própria ficção científica da cidade.

Essa preocupação diz bastante sobre a proposta da série, que usa de componentes retro futuristas e referências dos anos 70 e 80, além de menções a obras da cidade natal de Stålenhag, como o filme Mônica e o Desejo, do diretor sueco Ingmar Bergman, ilustrado na entrada de um cinema. Mas essas referências servem apenas para reforçar a ambientação e a belíssima direção de arte, deixando o drama dos personagens e o elemento humano como o principal objeto de estudo da série.

Enquanto alguns preferem simplesmente comparar a produção com sucessos como Stranger Things ou Black Mirror, considero Tales From The Loop algo próprio, com uma estrutura e atmosfera única, não só mais uma história sobre pequenas cidades afetadas por uma força misteriosa, o que é uma premissa bastante comum e pode ser vista desde o clássico Twin Peaks até a animação Gravity Falls. O importante não é a premissa, mas o que você faz com ela. 

Os arcos dramáticos fazem com que a série tenha um ritmo mais lento, uma experiência introspectiva, com momentos de silêncio e um tom mais melancólico. Há episódios em que a trama principal não envolve diretamente as famílias, ainda assim contribui para a construção daquele mundo.

Contos do Loop

Cada episódio tem um ponto de vista completamente diferente do anterior, mas todos complementam a temporada introduzindo peças para um quebra-cabeça maior: em Loop seguimos uma garota tentando encontrar sua mãe, em Echo Sphere é apresentado um orbe influenciado pela passagem de tempo, e em Enemies descobrimos uma história de origem que não só nos informa sobre o presente como desenvolve um enredo sobre pessoas tentando corrigir o passado.

Episódios como Parallel e Stasis são os que mais se distanciam da trama principal, mas ainda assim tem seu próprio charme, principalmente Parallel, que começa como uma história sobre realidades paralelas e se transforma em um drama mais íntimo. Esses dois arriscam afetar a estrutura geral da temporada, mas não abandonam a proposta principal da série.

É notável como tantos nomes talentosos acabaram envolvidos nesse projeto, como a atriz Rebecca Hall e o veterano Jonathan Pryce, além de ter Jodie Foster na direção de um dos episódios. E Shane Carruth pode não ser um nome conhecido da maioria, mas foi uma boa surpresa ver que ele tem uma participação especial no elenco, mesmo que pequena. Para quem não sabe, Carruth dirigiu alguns filmes independentes de ficção científica, como o complexo Primer e o excelente Upstream Color.

Jodie Foster dirigindo o episódio "Home"
Jodie Foster dirigindo o episódio “Home”

Para terminar a menção de pessoas que admiro envolvidas nesse projeto, até mesmo o compositor Philip Glass faz parte do episódio inicial da temporada, mas a trilha sonora dos outros episódios é feita por Paul Leonard-Morgan, e ele não fica pra trás com um arranjo que atribui uma sensação quase nostálgica para a fotografia adaptada de Stålenhag. 

Tales From The Loop é uma série que segue os moldes de outros grandes sucessos, mas se destaca na execução, apresentando mundos e personagens diversos sem depender de suas referências, explorando o que há de mais complexo na ficção científica, o ser humano.

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Vamos conversar sobre a primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard

SPOILER PARA A PRIMEIRA TEMPORADA INTEIRA

A confirmação de uma nova série no universo Jornada nas Estrelas costuma ser recebida como uma boa notícia, e parece que teremos várias opções para entreter os fãs da franquia, seja com novas temporadas de Discovery, um spin off sobre a Seção 31, ou a animação Lower Decks, focada nos membros da tripulação que costumam ser representados como coadjuvantes. Mas nenhuma dessas novidades chamou tanta atenção quanto o retorno de Jean-Luc Picard, um dos capitães mais adorados da franquia e protagonista da série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração (The Next Generation).

Interpretado por Patrick Stewart, Picard tinha a difícil tarefa de continuar o legado do carismático James T. Kirk (William Shatner) como o novo líder da franquia, o que conseguiu ao ponto de criar uma identidade forte o suficiente para dividir alguns fãs sobre qual seu capitão preferido. Outros personagens como Sisko, Janeway e Archer também assumiram o posto de capitão em seu próprio spin off derivado de Jornada nas Estrelas, mas o debate entre Kirk e Picard é recorrente. Ainda que Kirk seja importantíssimo para mim e sua “diplomacia de cowboy” tenha me divertido bastante, admito que Picard roubou meu coração com uma atitude menos extravagante e usando o discurso como a maior arma.

Há vários obstáculos no caminho de uma nova série estrelada por Picard, incluindo a necessidade de atrair uma audiência inédita para um personagem estabelecido, sem contar que os fãs já possuem uma série da franquia Jornada atualmente, Discovery, com uma abordagem mais dinâmica e voltada para a estética estabelecida por J.J. Abrams nos filmes da linha temporal Kelvin (criada para distinguir os filmes de Abrams, situados em uma “realidade alternativa”, dos clássicos da linha Prime). Isso pode ser um problema, já que uma série focada em Picard parece demandar um tratamento mais introspectivo, com atenção maior aos diálogos e as atuações, se nos basearmos na abordagem da série Nova Geração.

O resultado é um híbrido entre a ação rápida da timeline Kelvin e da série Discovery, com toques de A Nova Geração, dando espaço para pequenos momentos de reflexão e silêncio (pequenos mesmo, infelizmente). Talvez nem todos concordem com essa decisão, mas particularmente considero um compromisso necessário, desde que tenhamos um enredo e personagens consistentes.

Patrick Stewart e elenco na serie Star Trek Picard

Da mesma forma, Picard se beneficia dos avanços tecnológicos e o orçamento atual da televisão para entregar um visual cinematográfico, com uma câmera dinâmica, capaz de dar mais atenção aos detalhes, além de um tratamento melhor nas cores e uma estética limpa. Ao longo dos dez episódios tivemos coreografias mais elaboradas, não só nas empolgantes batalhas com Phasers, mas nos confrontos espaciais com a presença de novas naves e algumas naves clássicas remodeladas. É um pouco estranho ver tanta ação em volta de Picard, mas faz parte do compromisso mencionado no parágrafo anterior, então é compreensível.

Começamos a série com um Picard aposentado, conhecido como o ex-almirante que abandonou a federação para liderar uma frota de resgate depois do surgimento de uma supernova que acabou destruindo o planeta Romulus (uma ligação com os filmes da linha Kelvin). O que já era uma missão arriscada, logo transforma-se em tragédia depois de um grupo de sintéticos se rebelarem, causando a devastação do estaleiro de Utopia Planitia, localizada em Marte. Além de lidar com as repercussões de suas ações, Picard conhece Dahj, uma jovem procurando refúgio ao lado do ex-almirante, mas as coisas pioram quando ela é procurada por uma entidade misteriosa chamada Zhat Vash, organização secreta envolvida com a Tal Shiar, liderada por agentes romulanos. 

Ainda que tenha algumas vantagens em comparação à Nova Geração, Jornada nas Estrelas: Picard sofre em outros departamentos, principalmente no enredo e na estrutura narrativa, algo que a franquia costuma trabalhar com muito cuidado. Muitos fãs costumam colocar a culpa de algumas inconsistências do universo Trek no atual responsável pela franquia, o produtor executivo Alex Kurtzman, uma figura que esteve por trás dos filmes de J.J.Abrams e supervisiona todas as novidades envolvendo Jornada nas Estrelas.

Independente do responsável (vamos ser honestos, é o próprio Kurtzman), estou aqui para questionar alguns pontos da trama e elementos narrativos que poderiam ser melhor aproveitados ou simplesmente abandonados por completo, mas também devo dar crédito onde ele merece ser dado.

Patrick Stewart retorna como capitao na serie Star Trek Picard

Mais tripulantes, mais problemas

Patrick Stewart é uma figura forte o suficiente para sustentar a popularidade de uma série, mas precisamos aceitar que ele está mais velho e não pode estar sozinho em uma trama sobre exploração espacial, ainda mais uma cheia de ação como a franquia tem sido nos últimos anos (queira ou não). 

Para ajudá-lo, a série traz alguns personagens interessantes, como o sedutor capitão Christóbal Rios (Santiago Cabrera), a ex-membro da federação Raffi Musiker (Michelle Hurd), a ciberneticista Dra. Agnes Jurati (Alison Pill) e o romulano guerreiro Elnor (Evan Evagora). Além deles, temos o retorno de personagens estabelecidos, como Sete de Nove (a excelente Jeri Ryan), de Jornada nas Estrelas: Voyager; o borg Hugh (Jonathan Del Arco) e o andróide Data (Brent Spiner), mesmo que através de visões e flashbacks

Algumas dessas adições foram muito boas, introduzindo novos componentes que enriquecem o universo da franquia, como a personagem Rios, sua nave La Sirena e os vários tripulantes holográficos, cada um carregando um pouco da personalidade do capitão. O conceito de uma Holomatrix, com um “Holograma Médico de Emergência” (EMH), não é novidade, principalmente porque já tivemos o ótimo Doutor da nave USS Voyager, mas a interação do capitão com suas outras versões criou alguns dos momentos de alívio cômico mais genuínos na série, isso por conta da atuação de Cabrera. 

Raffi e Elnor são antigos conhecidos de Picard quando começamos a série, mas enquanto Raffi recebe uma subtrama pouco explorada envolvendo seu filho, com o qual não se comunica mais, Elnor é uma proposta atraente mas sem desenvolvimento algum (seu único propósito é surgir em cenas onde a ação é necessária, como um deus ex machina na maioria das vezes). 

Alison Pill e Patrick Stewart em Star Trek Picard

A Dra. Jurati é um caso mais complicado. Ela é a personagem mais passiva da temporada, geralmente reagindo e fazendo pequenos comentários tímidos, mas sua presença na aventura pareceu estranha desde o princípio. Com uma motivação fraca, a revelação de que ela estava infiltrada na missão de Picard para atrapalhar seus planos foi um dos pontos mais previsíveis da série. Para piorar, ela é responsável pela morte de Bruce Maddox, personagem pouco presente – mas importante – em Nova Geração; e mesmo depois de admitir o crime, termina a temporada como se nada tivesse acontecido, livre, leve e solta ao lado de seu novo namorado, Rios. Devo admitir que esse é um dos casais mais sem química que já vi, mas quem sou eu para julgar?

Vale mencionar aqui que algumas pessoas já estão incomodadas com uma rápida sequência em que Sete de Nove e Raffi parecem estar trocando carícias por alguns segundos, e mesmo que eu considere Raffi um pouco cliché (com sua atitude indiferente e piadas sarcásticas), convenhamos que a base de fãs de Jornada nas Estrelas conta com uma parcela pouco liberal, o que não faz sentido considerando o quanto a franquia lutou para derrubar preconceitos de gênero.

Alguns personagens ainda não foram mencionados, isso porque eles vão estar presentes em breve. Vamos continuar.

Desejo de morte

Ao tentar estabelecer um tom “sombrio” para Jornada nas Estrelas: Picard, a série tenta executar cenas com mais violência e sangue, o que nunca foi uma prioridade para a franquia, mas aparentemente consideram necessário que todos assistam a gráfica morte de Icheb, personagem presente em Voyager que teve um arco trágico como um ex-borg tentando se adaptar ao mundo e aprender como ser tão talentoso quanto sua líder, Sete de Nove.

É uma pena ver que aqui o reduziram a uma rápida cena em que tem seu olho arrancado e é deixado em uma mesa de cirurgia para morrer, uma conclusão deprimente para alguém que representava um pouco da visão otimista do futuro que fez a franquia ser tão adorada. E isso é tudo, Icheb foi arrastado de volta para Jornada com o único propósito de ser uma morte chocante o suficiente para motivar Sete de Nove a seguir em uma vingança que dura… um episódio.

Jeri Ryan como Sete de Nove em Star Trek Picard

E o extermínio de personagens já estabelecidos não se limita ao borg Icheb. Por algum motivo, Hugh também é morto em um confronto com uma das principais antagonistas da temporada, a romulana Narissa Rizzo (Peyton List). Hugh é um dos símbolos mais importantes para a história dos Borg, o primeiro do coletivo a adquirir uma identidade, destaque de mais de um episódio de Nova Geração, ele representa o que todos os borg podem ser. Infelizmente, em Picard ele serve como uma participação especial para agradar os fãs de longa data e fonte de explicação para algumas pontas soltas da trama, e no fim segue o mesmo rumo de Icheb, em uma morte menos violenta, mas igualmente desnecessária.

As críticas sobre a forma que a série parece “matar seus personagens” apenas como um recurso para impactar o público, tem sido uma preocupação desde o momento em que a Dra. Jurati mata Bruce Maddox no mesmo episódio em que ele foi introduzido.

Mas nem tudo é negativo. Tirando todas as mortes (nunca escrevi tanto a palavra morte, e nunca imaginei escrever em um texto sobre Jornada nas Estrelas) desnecessárias, a série teve uma saída inteligente para utilizar a personagem do tenente-comandante Data, aqui atuando como uma representação das frustrações de Picard e a memória de alguém que entendia e acreditava em sua integridade. A decisão de finalmente dar um descanso para a consciência de Data, que teve seu corpo destruído após se sacrificar no filme Jornada nas Estrelas: Nêmesis, foi um dos grandes acertos da temporada.

Antes de sair deste tópico, não vou deixar de mencionar a “morte” do próprio Jean-Luc Picard, que depois de sofrer por anos sabendo de sua inevitável síndrome cerebral (Irumodic Syndrome), acaba sucumbindo. Mas através de uma saída conveniente do roteiro, Picard sobrevive recebendo um “novo corpo” desenvolvido pelo Dr. Altan Inigo Soong, o filho de Noonian Soong, responsável pela criação de Data. Ainda não sei como me sinto sobre isso, então melhor mudar de assunto.

Eu, Borg?

Antes mencionei um problema com a estrutura narrativa da temporada, e não foi à toa. Além do desconforto de toda a violência desnecessária (já tivemos cenas pesadas na franquia, mas o olho arrancado de Icheb parece ter saído de algo como Jogos Mortais) e as mortes para chocar o público, Picard tenta inserir constantemente referências e easter eggs para os fãs de Nova Geração.

Não há problema algum nisso, eu mesmo adoro perceber alguma menção ao resto do universo de Jornada, seja nos diálogos ou no visual, mas parece que os produtores de Picard queriam demais introduzir de uma vez todos os elementos que fizeram do personagem tão famoso, entre eles a sua relação com os borg, uma parte essencial da história de Jean-Luc, mas que aqui se resume em um ponto solto da trama que realmente não se conecta com os demais.

Parte da primeira metade da temporada envolve Picard e sua nova equipe a procura da androide Soji (Isa Briones), que está localizada em um Cubo Borg abandonado chamado de Artefato, transformado em laboratório de pesquisa pelos romulanos. Eles estão usando o local para estudar os borg com a ajuda de Hugh.

Um dos romulanos é o misterioso Narek (Harry Treadaway), que rapidamente seduz Soji para investigá-la. Eles desenvolvem um relacionamento, mas Narek é constantemente alertado por sua irmã, Narissa, sobre a importância da missão e como não deve se distrair. A relação entre Narek e Narissa carrega um caráter quase incestuoso (isso pode ter a ver com a visão do produtor Alex Kurtman, explico mais pra frente) nunca justificado.

Quando Picard finalmente chega ao Artefato, tem uma rápida conversa com Hugh, mas logo precisa fugir por conta de Narissa, que está caçando Soji. A interação entre Picard e Soji é rápida e se limita ao cliché do “protagonista pedindo que alguém em apuros confie nele sem motivo algum”. Com a ajuda de Hugh, eles conseguem fugir para o planeta Nepenthe, onde Will Riker (Jonathan Frakes) e Deanna Troi (Marina Sirtis) moram. Hugh, Elnor e Sete de Nove permanecem no Artefato para tentar impedir Narissa de destruir os borg remanescentes que permanecem em descanso e desconectados do coletivo.

Sete de Nove tenta se comunicar com o Artefato e acordar os borg, mas eles são ejetados para o espaço por uma Narissa furiosa. Vendo que não há mais o que se fazer com o Artefato, a subtrama do cubo borg é abandonada e parece ter servido apenas para introduzir Narek e Soji, mas nenhum dos dois tem uma forte ligação com os borg, um é romulado e a outra é androide, então eles trabalharem no Artefato é apenas circunstancial. O retorno de Hugh não tem peso significativo na trama, nem sua morte é o suficiente para afetar o resto da história já que os próximos episódios correm para apresentar Coppelius, o planeta natal de Soji e os vários sintéticos do Dr. Altan Inigo Soong. 

Jeri Ryan como Sete de Nove na serie Star Trek Picard

Em Coppelius, mais subtramas envolvendo traição e conspiração tomam conta da maior parte da história, e agora que Narissa parece ter sido derrotada por Sete de Nove (depois de ser derrubada de uma altura que mataria qualquer um; mas não há limites para as formas mirabolantes na qual os roteiristas podem trazer personagens de volta), Narek aparentemente muda de lado e a irmã de Soji assume o posto de antagonista. 

O pior de dois mundos

Alex Kurtman é um problema. Não o considero uma ameaça para a popularidade da franquia, na verdade acho que Jornada nas Estrelas tem chegado com cada vez mais força para novos públicos, e é ótimo ver esse sucesso na TV. Enquanto alguns fãs reclamam sobre a representatividade de minorias e exigem menos foco em debates políticos, o que não faz sentido algum já que esses tópicos são praticamente intrínsecos da franquia (falamos sobre isso em outro texto), acredito que o maior problema enfrentado por Jornada está na narrativa.

Em entrevista para a Variety em 2019, o produtor executivo Alex Kurtman fez questão de mencionar como a série Game of Thrones o influenciou durante o desenvolvimento de Jornada nas Estrelas: Picard. Além das duas séries não parecerem semelhantes, seja por temas ou gênero, o sucesso da HBO carrega um tom mais sério e realista, o que não é novidade para Jornada, mas GOT preza por enredos carregados de conspiração, traição e reviravoltas. E é exatamente o que Kurtman procura para suas novas produções, tentando “subverter expectativas” (suas próprias palavras), não importa o quanto isso possa afetar negativamente a trama, a prioridade é surpreender à qualquer custo (agora são as minhas palavras).

“Ninguém reclama por ter que pagar para assistir Game of Thrones. Podemos fazer o mesmo” (Kurtman, 2019)

Pode não parecer, mas podemos ver algumas influências de Game of Thrones em Discovery e Picard, como a relação aparentemente incestuosa entre Narek e Narissa, claramente inspirada em Jamie e Cercei Lannister; até mesmo a sequência em que Lorca luta contra um guarda raivoso da Imperatriz Georgiu é bastante similar ao famoso combate entre Oberyn Martell e o Montanha na quarta temporada de GOT.

Não só a coreografia parece “pegar emprestado” alguns movimentos, como a motivação para o guarda estar tão nervoso envolve a morte de sua irmã pelas mãos de Lorca, assim como Martell procura vingança pelo Montanha ter matado a sua irmã. Como se já não fossem coincidências o suficiente, a conclusão da batalha em Discovery não surpreende quem já assistiu a de Game of Thrones. E esses são apenas alguns casos soltos.

Patrick Stewart em Star Trek Picard

Na mesma entrevista, Kurtman se orgulha por inserir elementos como nudez Klingon (esse assunto também não é novidade, e já tivemos casos onde a nudez foi um problema, principalmente na sexualização desnecessária de algumas personagens, como T´Pol em Enterprise) e palavrões: “Usamos a palavra ‘f*ck’, a propósito”.

O que acabei de mencionar não é exatamente um problema com a narrativa, mas um indício de como Discovery e Picard planejam “subverter as expectativas” do público através da violência, sexo e linguagem vulgar, e é assim que a narrativa é afetada negativamente, por dar destaque para o choque, deixando de lado o que realmente fez de Jornada nas Estrelas uma franquia única, com debates envolventes e questões que eram realmente levadas a sério, não só introduzidas com o propósito de surpreender todos com o quão corajosos eles são em colocar uma almirante da frota estelar ofendendo Picard com a palavra “Sheer Fucking Hubris” (algo como “Que arrogância de merda”) ou uma romulana perguntando para seu próprio irmão se ele “f*deu” outra personagem ¯\_(ツ)_/¯

Para onde vamos, afinal?

Jornada nas Estrelas nunca teve medo de tocar em assuntos delicados, debatendo política, racismo, gênero e o que fosse necessário. Isso era o suficiente para construir uma história envolvente, que fizesse o público realmente refletir sobre seu papel nessas questões. Mas é difícil termos uma conversa significativa e necessária quando a principal preocupação da franquia passa a ser a “subversão de expectativas” e a corrida para chegar na próxima reviravolta superficial.

O formato serializado de Picard pode ser um dos responsáveis por termos tantas revelações, mortes e mudanças no foco narrativo, isso porque ao contrário do formato clássico, onde cada episódio trazia uma história contida, agora temos dez episódios com um arco principal que precisa ser constantemente abastecido com intrigas e surpresas para manter o público investido. Talvez eu esteja atribuindo a culpa no formato com certo exagero, mas não é como se a afirmação não tivesse algum nível de veracidade. 

Jonathan Frakes, Patrick Stewart e Marina Sirtis em Star Trek Picard

E depois de tudo, parece que odiei Picard, mas fiz questão de ressaltar os aspectos positivos, principalmente nos primeiros parágrafos desse texto. Ainda há muito o que eu gostaria de mencionar por aqui, como as participações especiais, a forma como os vilões foram representados, as referências, entre outras coisas, e talvez eu volte a falar sobre Picard em outro momento. Por enquanto, vamos ficar na torcida para mais novidades sobre as futuras séries da franquia (estou ansioso para Lower Decks), e aproveite para comentar com as suas considerações sobre essa primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard.

Até a próxima.

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Cinema

El Hoyo (O Poço, 2019) | Uma alegoria pertinente e atual

Lançado originalmente em 2019, o longa espanhol El Hoyo foi comprado para distribuição mundial pelo serviço de streaming Netflix, chegando ao Brasil com o título O Poço em março de 2020. O filme é uma sátira política disfarçada de ficção científica e horror, o tipo de obra que chama bastante a atenção por conta de seu debate, um que veio a calhar por ser divulgado durante um contexto político e social delicado.

Em um futuro distópico, os prisioneiros são mantidos em um local chamado “O Poço”, uma prisão vertical dividida em diversos níveis, com cada andar habitado por dois detentos. Eles possuem apenas uma fonte de alimentação, uma plataforma flutuante que descende dos níveis superiores, com um enorme banquete que deve ser compartilhado por todos os andares, mas a comida nunca dura o suficiente e os níveis inferiores não tem o que comer.

Algumas pessoas podem se voluntariar para a prisão, e assim conhecemos Goreng (Ivan Massagué), um homem honesto em um mundo de corrupção. Antes de ser confinado, cada detento tem a chance de escolher um objeto para acompanhá-lo, e Goreng (Ivan Massagué) decide levar um livro, uma edição de Dom Quixote. Infelizmente, seu parceiro de cela carrega uma faca de cozinha, a mesma que usou no homicídio que o colocou ali. 

O Poço

As regras são simples: a comida desce todos os dias e você tem um tempo determinado para se alimentar; além disso, depois de um mês em um nível, você é realocado aleatoriamente para outro, e isso se repete até que sua sentença seja cumprida. Por mais provocante que seja assistir a jornada do protagonista e descobrir a mecânica do lugar, o que realmente sustenta o filme é o debate proposto pelos roteiristas David Desola e Pedro Rivero, uma alegoria sobre a natureza da ganância humana fomentada por um sistema que oprime e se beneficia do individualismo.

High Rise e Snowpiercer são os primeiros títulos que me vem em mente quando considero a premissa de O Poço, mas a produção espanhola segue na contramão por apresentar um olhar menos maniqueísta e conseguir executar uma obra de grande qualidade técnica com um orçamento bem menor que os exemplos mencionados. 

Outro elemento atraente é a direção de Galder Gaztelu-Urrutia, que precisou trabalhar com um orçamento modesto e o ambiente limitado das celas pequenas, mas ele foi capaz de entregar algumas sequências de tensão impressionantes, dando destaque para os diálogos, revelando as informações com calma e, mesmo que tenha se tornado um pouco didático no terceiro ato, consegue concluir o longa da melhor maneira possível, nos deixando no poder do que deve ser feito em seguida.

O Poço

Pode não agradar a todos avaliar um filme considerando o contexto político e social, mas nenhuma obra existe isoladamente, e é impossível negar os paralelos que podemos fazer entre o individualismo dos personagens do longa e a atitude de alguns cidadãos (e governos) durante a pandemia de Covid-19 (mais conhecida como Coronavírus), que já marcou o ano de 2020. 

Pertinente por sua crítica, sem deixar de entreter, O Poço é um daqueles filmes que aparece sem alarde e conquista aos poucos por conta das indicações de quem assistiu. Entre pelo debate e fique pelo ótimo enredo, simples e objetivo, mas essencial.

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Cinema

O Lagosta | Distopia da Rotina e Indiferença

Explorar alguns subgêneros da ficção científica pode ser atraente por conta dos diversos elementos e maneiras nas quais podemos aproveitá-los. Uma narrativa bastante popular é a distopia, geralmente classificada pela forma que apresenta um mundo similar ao nosso, mas desprovido das mesmas regras encontradas fora da obra, muitas vezes servindo como uma crítica de estruturas sociais, políticas ou religiosas.

É comum encontrar distopias onde um governo totalitário controla as ações de uma sociedade através da força militar, mas há também aquelas onde as pessoas são subjugadas mentalmente, sendo obrigadas a procurar conforto em uma situação desoladora, sofrendo com a angústia de se encaixar em regras que vão contra tudo que você é ou acredita. Podemos ver isso no filme O Lagosta (The Lobster), de 2015, dirigido por Yorgos Lanthimos. 

Em um futuro próximo, a solidão é proibida e as pessoas solteiras devem frequentar O Hotel, onde terão quarenta e cinco dias para encontrar um par romântico, ou são transformadas em um animal (de sua escolha) e abandonadas para lutar por suas vidas em um mundo aparentemente seguro, mas a hostilidade está onde menos se espera. Na trama, seguimos a estadia de David (Colin Farrell), ainda confuso com as regras, mas certo de que quer ser transformado em uma lagosta caso não encontre uma companheira. 

O Lagosta

“Lagostas vivem por mais de cem anos. Elas têm sangue azul, como os aristocratas, e permanecem férteis a vida inteira. Eu também gosto do mar. Sei nadar muito bem desde jovem”

A primeira característica a chamar atenção no filme é a direção de Lanthimos, conhecido por sátiras cheias de humor negro, como Dente Canino (2009) e o recente A Favorita (2018). Seus personagens apresentam uma indiferença com o mundo em volta, chegando a assumir um mesmo tom de voz, respondendo a uma cena de suicídio da mesma maneira trivial com a qual se pede um prato em um restaurante (“Agora há sangue e biscoitos em todo lugar”).

Assim como os personagens, a direção de arte de Thimios Bakatakis carrega uma bela fotografia de um mundo visualmente similar ao nosso, mas revelam o isolamento emocional de uma sociedade tentando se encaixar em padrões impossíveis, e podemos ver como o próprio filme assume uma imparcialidade com seus planos abertos e câmera estática, indicando uma interferência mínima no universo de David. 

Ainda que seja um mundo de desdém, o exílio social é repreendido ao ponto de ser ilegal, e assim temos a principal motivação dos personagens, todos procurando por um par romântico, independente de haver amor na equação, e em busca da aceitação, mesmo que obrigatória. É visível o desespero dos membros do Hotel, com um deles chegando a bater a própria cabeça em um criado-mudo para manter um sangramento nasal, isso porque a única companheira que lhe pareceu remotamente envolvente sofre da mesma coisa, e ter algo em comum é um dos maiores sinais de uma relação forte e longeva.

O Lagosta

Por conta dos objetivos claros e a aflição para encontrar alguém e ser reintegrado na sociedade novamente, esse é um mundo sem espaço para a ambiguidade, apenas a certeza. Em uma cena, David pergunta sobre a possibilidade de se registrar como bissexual, mas é informado que “de acordo com vários problemas operacionais”, o Hotel oferece apenas uma escolha entre heterossexual e homossexual. 

“Um lobo e um pinguim jamais poderiam sair daqui juntos. Seria absurdo. Pense nisso”

O Lagosta é um olhar absurdo, porém intrigante, sobre as relações humanas. Com cada nova tentativa de se aproximar de alguém, David descobre mais sobre ele mesmo e tudo o que vem abrindo mão para fazer parte de algo maior, abandonando sua própria identidade, e nenhum exemplo deixa isso mais claro que a cena final, onde o filme conclui nos deixando com um questionamento sobre nossas próprias escolhas e até onde vamos para mantê-las. 

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Séries Canal

Westworld | Adaptar é Necessário

Atenção: há spoilers das duas primeiras temporadas da série Westworld e do filme original que a inspirou. Leia por sua conta e risco, sabendo que esses prazeres violentos trazem fins violentos. 

Poucas adaptações atingem o sucesso em sua transição do cinema para as séries como Westworld, indo da ficção científica carregada de ação ao drama existencial. Similares em vários aspectos, as duas versões também divergem drasticamente em outros, o que traz de volta o eterno debate sobre a importância de adaptar um material para novos veículos e cenários sociais, mas para tal precisamos de contexto.

Westworld: Onde Ninguém tem Alma (título brasileiro) chegou aos cinemas em 1973, com roteiro e direção de Michael Crichton, um nome bastante respeitado pelos fãs de ficção científica, responsável por obras literárias como O Enigma de Andrômeda e O Parque dos Dinossauros, que logo viriam a ser adaptados para o cinema.

A obra trouxe um conceito intrigante, imaginando um parque de diversões interativo onde você pode criar a experiência de épocas diferentes, como viver os tempos do velho-oeste, por exemplo. Para isso, uma companhia chamada Delos preenche esses parques com robôs de aparência humana realista capazes de interagir com os visitantes, até mesmo de forma íntima. 

Ator Yul Brynner na versao original de Westworld Onde Ninguem tem Alma
Yul Brynner

O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, rendendo uma continuação, Futureworld (intitulado no Brasil como o desnecessariamente longo Mundo Futuro: Ano 2003, Operação Terra) em 1976, mas esse não contava com o envolvimento de Crichton. Para continuar a franquia, a primeira tentativa de levar a história para a TV aconteceu em 1980, com Beyond Westworld. Servindo como um spin off do filme original, a série foi rapidamente cancelada, tendo produzido apenas cinco episódios. 

Por um tempo, a animação do público para novo material da franquia diminuiu, até que em 2013 o canal por assinatura HBO confirmou uma nova série inspirada no filme, dessa vez comandado pelo casal Jonathan Nolan e Lisa Joy, com produção de J.J. Abrams, intitulada apenas Westworld. A estréia aconteceu em 2016, com uma temporada tão elogiada pela crítica quando o filme original, talvez até mais. E é por isso que pretendo debater um pouco os principais pontos divergentes entre o filme clássico e a adaptação seriada da HBO, que para muitos (incluindo o autor desse texto) consegue superar sua versão original em vários aspectos. 

A série começa com a vantagem de ter um orçamento visivelmente superior ao filme original. Enquanto o longa sofreu nas mãos do estúdio MGM para conseguir $1,25 milhões, a HBO arrecadou estimados $100 milhões para sua temporada de estréia. É curioso como mesmo dividindo igualmente o valor entre cada um dos dez episódios da série, ainda há um investimento maior que o do filme. Mas o valor da série não era apenas monetário, ela veio com uma equipe mais profissional (Crichton ainda era um diretor iniciante quando seu filme foi lançado), carregando uma direção de arte belíssima, assim como figurino e cenografia, sem contar a excelente música de Ramin Djawadi. 

Similaridades e Referências

É difícil resistir a tentação de colocar algumas referências ao material original em qualquer adaptação, e Westworld não é exceção. Uma das primeiras similaridades envolve a dupla de protagonistas do longa, Peter Martin (Richard Benjamin) e John Blane (James Brolin), que decidem se aventurar no mundo do velho oeste, mas enquanto Martin parece relutante em se entregar totalmente à experiência, Blane é um veterano confiante e ajuda seu amigo a aproveitar o lugar da melhor maneira. Esses dois possuem traços que podemos associar facilmente aos personagens William (Jimmi Simpson) e Logan (Ben Barnes) na versão da HBO, respectivamente.

A principal diferença na adaptação é que William tem uma ligação maior com Logan, sendo seu cunhado e possível herdeiro dos negócios da família, que possui investimentos no parque temático. Para criar uma conexão ainda maior, a versão mais velha de William, apelidada de Homem de Preto (Ed Harris), é uma clara referência ao principal antagonista do filme, o Pistoleiro, interpretado por Yul Brynner. Se no filme ele é um robô intimidador, na série passa a ser humano – mas não menos assustador.

Atores James Brolin e Richard Benjamin no filme Westworld Onde Ninguem Tem Alma
James Brolin e Richard Benjamin

Outro personagem importante para a série é Maeve, dona de um bordel chamado Mariposa. Também temos um bordel na versão cinematográfica, mas não com o mesmo nome, e ele é comandado por uma Miss Carrie, papel desempenhado por Majel Barrett, mais conhecida pela franquia Jornada nas Estrelas. Além de manter alguns personagens, mesmo que alterados, a série segue com o nome Delos para a companhia que financia e contribui para a criação de vários parques. 

Há muitas referências ao longo da produção da HBO, mantendo alguns conceitos e elementos, como a sala de customização, onde você deixa sua roupa para trás e assume um traje mais apropriado com a temática do parque de sua escolha. No filme, o momento em que os protagonistas trocam de roupa serve como um olhar mais mundano dos bastidores, enquanto a série transforma uma simples decisão entre a cor de um chapéu em desenvolvimento de personagem, prevendo a eventual mudança de caráter entre William e o Homem de Preto. 

Pequenos detalhes do filme foram usados na série, como a informação de que os robôs podiam ser identificados pela mão (no longa, elas entregam os robôs; na série isso é mencionado como “um problema antigo que a empresa não tem mais com suas criações”) ou a cena em que o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins), o criador do parque na versão para a TV, controla uma serpente com um comando de voz, espelhando uma sequência do filme em que John Blane é atacado pelo mesmo animal.

Por falar em Ford, a presença de Anthony Hopkins no elenco já é indício de algo grandioso, então é claro que seria uma oportunidade perdida não deixá-lo roubar um pouco a cena com longos monólogos e debates filosóficos com seu companheiro de trabalho, Bernard (Jeffrey Wright). Pelos nomes Ford e Bernard podemos ver também a forte influência da literatura, já que o nome dos dois foi tirado do clássico da ficção científica, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Anthony Hopkins e Jeffrey Wright na serie WESTWORLD, adaptacao do filme classico
Anthony Hopkins e Jeffrey Wright

Entrando em Westworld

Três parques são introduzidos no longa original e as temáticas são Medieval (no contexto europeu), Império Romano e, o principal, Velho Oeste, Westworld. Ainda que pareça pouco em comparação com a série (que já mencionou ter o dobro de parques), estamos falando de um filme de aproximadamente uma hora e meia, então a decisão foi desenvolver apenas os mundos Velho Oeste e Medieval, e mesmo assim, o Medieval pode ser considerado quase irrelevante no longa.

Depois de introduzido, tudo que fazemos no parque Medieval é seguir um casal em algumas cenas cômicas e sem conexão alguma com o drama dos verdadeiros protagonistas, Peter e John. É uma ótima proposta tentar nos colocar em novos mundos, mas o filme não parece saber como equilibrar as narrativas que realmente importam, e isso rende um ritmo bastante cansativo. 

O filme alterna entre esses dois parques, mas também dá um pouco de atenção aos bastidores, mostrando a equipe de pesquisa e vigilância em sua sala branca comandando tudo. Talvez mais dessa equipe e menos do mundo Medieval pudesse entregar uma trama objetiva e sem excesso de tramas desnecessárias.

Quanto à série, é mencionada a existência de mais de um parque, mas a primeira temporada sabe que os personagens são mais importantes, então ela dá atenção exclusiva ao Velho Oeste. É apenas em sua segunda temporada que Westworld arrisca revelar dois novos parques: Shogun World, inspirado no japão feudal; e The Raj, recriando a Índia dominada pelos ingleses.

Questionando a natureza das adaptações

Ator Ed Harris na serie Westworld da HBO
Ed Harris

Adaptar não é apenas mudar alguns nomes e referenciar o material original. A transição de um formato para outro pode se fazer necessária por vários motivos, talvez uma releitura completa de uma obra, ou apenas uma atualização contemporânea, em alguns casos chega a ser uma corrupção total do original para elaborar uma crítica, mas o que vejo em Westworld é um caso em que a adaptação serve para explorar de maneira diferente os elementos da versão anterior, podendo aprimorá-los, trazendo um debate maior e até mais relevante através de temas que o original poderia ter estabelecido. 

A adaptação da HBO altera e complementa algumas informações introduzidas no filme. Agora que termos como “sintético” e “inteligência artificial” fazem parte de nosso cotidiano, o que antes era conhecido como robô passa a ser chamado de Anfitrião, ou seja, essa é a denominação para os andróides prontos para receber os visitantes humanos, esses apelidados de Hóspedes. 

Por falar nos personagens, esse foi um dos maiores acertos da série. No filme temos o implacável Pistoleiro, muito bem interpretado por Yul Brynner, com uma presença forte capaz de causar tensão em qualquer ambiente. Mas Ed Harris não fica atrás com seu Homem de Preto, que além de intimidador é um homem perturbado pelos demônios do passado, tão comprometido com os mistérios de Westworld ao ponto de colocar sua vida e a de outros humanos em risco. 

Seguimos o ponto de vista de dois humanos com atitudes contrastantes na versão original, mas isso é deixado de lado assim que o longa se transforma em uma batalha entre os robôs defeituosos e eles. Na adaptação, os personagens tem características mais complexas, e assim observamos os dilemas existenciais de cada um, até mesmo dos Anfitriões, constantemente questionando sua realidade por conta de uma inteligência capaz de se adaptar (oferecimento de seu criador, Dr. Ford, fascinado pelas máquinas ao ponto de permitir que atinjam uma consciência própria). Isso não quer dizer que os episódios evitem sequências de ação, e essas são ótimas, mas a promessa da série é uma análise sobre a importância da identidade. 

Outro avanço em questão de elenco e personagens é a presença de mulheres em papéis que não sejam apenas o de uma esposa entediada ou prostituta, as duas únicas opções no filme, que ao menos dá algumas falas para Majel Barrett, interpretando uma dona de bordel. Enquanto isso, a série é praticamente protagonizada por mulheres, o destaque indo para a dupla Dolores (Evan Rachel Wood) e Maeve (Thandie Newton), duas androides em busca de uma narrativa própria, mas apresentando métodos distintos para atingir a liberdade.

James Marsden e Evan Rachel Wood na serie Westworld da HBO
James Marsden e Evan Rachel Wood

Em 1973, Michael Crichton dirigiu um filme cheio de conceitos envolventes e efeitos visuais impressionantes para a época, mas talvez Westworld tenha realmente mostrado seu verdadeiro potencial na transição para o formato seriado, onde os elementos do longa são explorados com mais atenção, e debates existenciais tomam conta de uma narrativa cada vez mais relevante para tempos em que um mundo similar ao de Westworld não parece tão ficção científica assim.

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Cinema Quadrinhos

Akira | Abrindo as portas para a animação japonesa

Uma das obras definitivas da animação japonesa, Akira foi lançado em 1988, uma adaptação do mangá homônimo de 1982, publicado originalmente na revista Young Magazine. O filme teve algumas vantagens na transição das páginas para a tela, a principal sendo o envolvimento do autor responsável pelo mangá, Katsuhiro Ôtomo, também assumindo a direção do longa. 

Dividido em seis volumes, seria impossível desenvolver todos os elementos do mangá para um filme de menos de duas horas. A solução foi aproveitar uma parcela do primeiro volume e pular diretamente para o último, o que pode afetar negativamente a execução da versão cinematográfica, mas falamos disso em breve.

Além disso, é curioso perceber que o material original foi concluído apenas em 1990, dois anos após o filme já ter feito um enorme sucesso no mercado japonês, deixando claro que a adaptação complementa o mangá e cria uma forma de narrativa transmidiática. Mesmo assim, ambas funcionam independentemente, e o foco desse texto é no filme de 1988, que abriu as portas para a invasão da animação japonesa no resto do mundo. 

Ambientado na futurista e pós apocalíptica Neo-Tokyo de 2019, seguimos Kaneda, o líder de uma gangue de motoqueiros. Eles representam a juventude punk de um país afetado pelas sequelas da guerra, opressão do estado, tensão política e o aumento da violência, esse último conta com a contribuição de Kaneda e seus companheiros.

Anime Akira um dos mais relevantes para o cinema japones

Depois de um confronto entre gangues, Tetsuo, amigo de infância e parceiro no crime de Kaneda, encontra uma figura misteriosa e é capturado por agentes de um projeto secreto do governo. Tetsuo acorda com dores de cabeça e descobre possuir habilidades psíquicas, mas ele logo se mostra mentalmente instável, sendo assim considerado uma ameaça para todos. 

Akira costuma ser creditado como o filme responsável por popularizar a animação japonesa em outros países, fazendo enorme sucesso na crítica e bilheteria ao redor do mundo, sendo um dos lançamentos mais rentáveis do ano. Tirando o investimento na divulgação da obra, o que pode ter chamado a atenção de outros públicos é a representação da juventude através de personagens carismáticos, ao mesmo tempo discutindo sua alienação e temas como corrupção e a crescente insatisfação da sociedade com seu governo. Também há o diferencial de explorar um país ainda assombrado pelos horrores da bomba atômica, então é fácil sentir a angústia e paranóia no ar.

O filme é marcante até na maneira como foi animado, trazendo mais fotogramas por segundo do que o normal, o que hoje não é surpresa alguma, mas foi uma escolha que apenas contribuiu para o filme, detalhando melhor alguns elementos das cenas e criando uma fluidez no desenho como poucos já viram. As cores também tiveram um papel importante na obra, e algumas precisaram ser criadas já que boa parte da trama se passa de noite ou em ambientes escuros.

Animacao Akira foi um marco do cinema japones

A deterioração na relação entre Kaneda e Tetsuo é o cerne dramático da obra, que pode ficar um pouco confusa na apresentação de alguns elementos, principalmente pela já mencionada solução de adaptar apenas o primeiro e sexto volumes do mangá. Você pode assistir e aproveitar a trama principal sem problemas, isso porque o foco não deixa de ser o embate entre os dois amigos de infância, mas qualquer um interessado em estudar os aspectos mais metafóricos do longa, talvez precise visitar o material original antes. 

Influente até hoje, inspirando desde jogos como The King of Fighters (o personagem K9999 é uma clara homenagem à Tetsuo) até cantores como o rapper Kanye West, que chegou a reproduzir sequências do filme no vídeo da música Stronger, Akira é um marco da animação e do cinema japonês, uma jornada com bastante ação e sangue ao som de uma trilha marcante e uma cidade cyberpunk viva e colorida, e como todo bom punk, sem respeito algum pelas regras. 

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Literatura

Messias de Duna | A fé pode ser manipulada e o conhecimento é perigoso

Frank Herbert provou seu poder narrativo com o épico Duna, um relato fictício sobre o planeta Arrakis e seus habitantes, explorando seu cotidiano, religião e economia. Para a continuação ele aproveita a liberdade de poder construir uma nova obra sem depender do formato mensal (originalmente, Duna foi distribuído em partes na revista Analog), mas ao invés de extrapolar nas páginas, desenvolve o livro mais “curto” da série, Messias de Duna.

A quantidade reduzida de página não diminui a importância do texto, que aborda os temas de forma mais densa, mas não os deixa de lado, isso porque há uma atenção maior ao desenrolar dos eventos que colocaram Paul Atreides no poder e as suas consequências, lembrando a grande crítica de Herbert aos líderes carismáticos e a crença cega de seus seguidores.

Mais de uma década se passou desde que Muad’Dib, Paul Atreides, ascendeu ao poder de Arrakis, sendo assim um nome respeitado e temido pelo império galáctico, comandando a distribuição de melange, a especiaria mais cobiçada do universo. O livro abre a oportunidade para debates políticos sobre o impacto do governo de Paul, e também observa os diversos pontos de vista de outras guildas e sociedades, como a organização Bene Tleilax, proeminente no enredo, introduzindo novas tramas e personagens intrigantes, como o Dançarino Facial Scytale.

“Como todos os sacerdotes, vocês logo aprenderam a chamar a verdade de heresia”. 

Além de todos os questionamentos políticos, Herbert examina a família Atreides com um olhar mais íntimo, com um Paul mais preocupado com seu legado e o futuro do planeta; e Alia, sua irmã, agora uma jovem inteligente e bela. Aqui podemos ter uma versão mais frágil dos dois, o que traz mais emoção para a obra, acusada por alguns de ser muito fria no seu primeiro volume quando se trata da interação entre os personagens.

Dunas

Com a expansão do universo de Duna, começamos a nos familiarizar com o passado, aprendendo mais sobre “A Idade de Ouro da Terra”, e alguns conceitos mais arriscados, como a criação dos gholas, o que resulta no retorno de um personagem importante do livro original. É difícil construir um mundo tão grande como esse e ao mesmo tempo desenvolver o drama dos personagens de maneira espontânea, mas Herbert não é qualquer escritor.

É claro que a quantidade de páginas acaba reduzindo alguns elementos importantes da obra, e isoladamente Messias de Duna não teria esse problema, mas como uma continuação direta de Duna, a falta de mais sequências envolvendo os fremen (habitantes naturais de Arrakis) e os vermes gigantes, ou até a ausência total de Lady Jessica, a mãe de Paul, aqui mencionada apenas através de diálogos, acabam sendo um ponto desconfortável na leitura, que pode ser afetada ao abandonar elementos tão essenciais para o sucesso da saga. 

Faz sentido termos uma concentração maior no avanço do império Atreides, mas terminamos com mais perguntas que respostas; e considerando que o livro seguinte, Filhos de Duna, volta a um formato de mais páginas, talvez fosse melhor transformar essas duas obras em uma só (o que aconteceu em alguns casos nos EUA, onde o segundo e terceiro volume foram lançados como um). 

Messias de Duna pode ser um livro pequeno, porém ainda carrega um universo gigantesco com questionamentos que poucos autores têm a coragem de trazer, comprometendo seu próprio protagonista, reforçando um líder imperfeito e tomando decisões impossíveis e arriscadas. Isso faz com que o próprio leitor encare com ceticismo a figura que Herbert criou, e assim somos deixados com uma crise de fé e sem saber em quem podemos confiar daqui para frente. 

Ficha Técnica:
Título Original: Dune Messiah (EUA, 1969)
Editora Aleph, 2012
Tradução de Maria do Carmo Zanini
216 Páginas.