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O Horror Cósmico de H.P. Lovecraft e suas Influências

“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”

Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples. 

Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?

Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:

“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.

Arte de Andree Waliin sobre o Mito de C´tchullu
Arte de Andree Waliin

Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.

Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas. 

Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.

Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança. 

Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta. 

O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.

O escritor Alan Moore
Alan Moore

A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.

Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.

Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde

No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível. 

Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.

Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.

Filme O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter

Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.

O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.

Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.

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VÍDEO: A Vastidão da Noite (The Vast of Night) | Um suspense simples, mas eficaz

Distribuído pelo serviço de streaming Amazon Prime Video, A Vastidão da Noite (The Vast of Night, 2019), explora uma noite na pequena cidade fictícia de Cayuga, onde um apresentador de rádio e uma operadora de telefone captam uma frequência misteriosa e decidem investigar, mas esse é só o primeiro dos absurdos que a noite separou para eles.

O filme já está disponível no Prime Video, mas infelizmente não tem recebido a atenção merecida, então decidi trazer uma rápida crítica para indicar essa obra independente e cheia de estreantes na equipe, mas muito bem executada.

Assista o vídeo:

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O Guia do Mochileiro das Galáxias | Uma obra confortavelmente absurda

Apenas um autor foi capaz de compreender a verdade por trás da vida, do universo e tudo mais. Infelizmente, ele nunca divulgou a descoberta, estava ocupado demais com a data limite para entregar seus projetos. Douglas Adams é o alquimista responsável pelo melhor, ou pelo menos o mais popular, casamento entre comédia e ficção científica da literatura. 

Desenvolvido originalmente como um programa de rádio para a BBC em 1978, O Guia do Mochileiro das Galáxias foi traduzido para várias mídias, tendo uma adaptação seriada em 1981 e um longa-metragem de 2005, mas foi através de sua “trilogia” de cinco livros que a história teve uma vida mais longa, e foi onde o autor dedicou a maior parte da sua carreira. Com uma proposta absurda e uma execução ainda mais louca, Douglas Adams criou um fenômeno literário e um marco da cultura pop. 

Há tantos elementos essenciais para a obra que fica difícil poder sintetizar uma simples premissa, mas eu vou tentar. Tudo começa com Arthur Dent, um britânico infeliz e entediado que faz uma enorme descoberta: a Terra está para ser destruída por uma raça alienígena, os Vogons, que pretende tirar o planeta do caminho para construir uma supervia intergalática. Mas Dent é salvo da destruição por Ford Prefect, outro alienígena infiltrado no planeta para estudar os humanos e registrar as suas observações no “Guia do Mochileiro das Galáxias”, a mais bem-sucedida enciclopédia jamais publicada pelas editoras de Ursa Menor. 

Arthur Dent e Trilliam, na versão cinematográfica de 2005
Arthur Dent e Trilliam, na versão cinematográfica de 2005

Assim, acompanhado de Ford e levando consigo apenas o roupão de banho que estava vestindo, Arthur segue em uma jornada espacial, conhecendo figuras cada vez mais excêntricas. Uma delas é Zaphod Beeblebrox, o presidente do Governo Imperial Galáctico que acabou de roubar a nave Coração de Ouro, equipada com um gerador de improbabilidade infinita, um conceito tão bizarro que precisou de um capítulo próprio para ser definido. Com ele, viajam a humana Tricia McMillan, apelidada de Trillian, e um depressivo Marvin, o “andróide paranóico”.

Como deu para notar, a proposta do autor não é apenas uma sátira dos elementos narrativos da ficção científica, como também é uma grande piada com o cotidiano da vida na Terra, usando do bom e velho humor britânico para expressar da forma mais trivial possível a importância de coisas como toalhas, poesia alienígena ou o número 42. Douglas Adams tira inspiração de dois grandes patrimônios culturais para os ingleses, a ciência de Doctor Who e a comédia do grupo Monty Python, dois projetos com o qual ele já chegou a colaborar com seus textos. 

Mesmo brincando com o gênero, alguns conceitos de Douglas para a obra acabam reforçando sua habilidade de construir mundos loucos, porém consistentes. Idéias como o peixe-babel, um aparelho auditivo que traduz qualquer língua através das ondas sonoras, é um dos exemplos que mostra como o autor não só usa a ciência como alvo das piadas, mas procura uma maneira inteligente de introduzi-la na narrativa. O que ele faz de brincadeira, muitos escritores sequer fazem questão de salientar em suas histórias, e isso é mais um indício de como a comédia pode ser um excelente recurso para elaborar uma crítica, mesmo que a principal intenção seja fazer o público rir.

Douglas Adams o criador de Guia do Mochileiro das Galaxias
Douglas Adams

Por mais que os personagens de Guia sejam memoráveis e divertidos, a escrita de Douglas brilha mais quando está construindo as situações cômicas na qual insere esses personagens, mas o autor não entrega, e nem parece ter a intenção, uma carga dramática eficaz. Se por um lado é impossível parar de rir com a narrativa, a leitura pode ser comprometida pela forma que negligencia entregar arcos dramáticos mais complexos para seus personagens. É compreensível que Adams queira usar seu livro mais como uma análise bem humorada de figuras políticas, da burocracia do cotidiano ou o absurdo e aleatoriedade da existência, mas desenvolver melhor seus personagens poderia deixar a obra ainda mais completa.

O Guia do Mochileiro das Galáxias pode não levar a sério os próprios questionamentos que levanta, mas a diversão está em apenas levantar essas perguntas, que nem sempre passam pela nossa cabeça, mas depois de ler o primeiro livro da série, jamais desaparecem. Toda a trilogia de cinco carrega seus pontos positivos e negativos, mas a jornada é tão rápida, divertida e despretensiosa que você só quer voltar para o início de novo e aproveitar o texto de Douglas Adams, o melhor no que faz.

Assista a resenha em vídeo:

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Vamos conversar sobre a primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard

SPOILER PARA A PRIMEIRA TEMPORADA INTEIRA

A confirmação de uma nova série no universo Jornada nas Estrelas costuma ser recebida como uma boa notícia, e parece que teremos várias opções para entreter os fãs da franquia, seja com novas temporadas de Discovery, um spin off sobre a Seção 31, ou a animação Lower Decks, focada nos membros da tripulação que costumam ser representados como coadjuvantes. Mas nenhuma dessas novidades chamou tanta atenção quanto o retorno de Jean-Luc Picard, um dos capitães mais adorados da franquia e protagonista da série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração (The Next Generation).

Interpretado por Patrick Stewart, Picard tinha a difícil tarefa de continuar o legado do carismático James T. Kirk (William Shatner) como o novo líder da franquia, o que conseguiu ao ponto de criar uma identidade forte o suficiente para dividir alguns fãs sobre qual seu capitão preferido. Outros personagens como Sisko, Janeway e Archer também assumiram o posto de capitão em seu próprio spin off derivado de Jornada nas Estrelas, mas o debate entre Kirk e Picard é recorrente. Ainda que Kirk seja importantíssimo para mim e sua “diplomacia de cowboy” tenha me divertido bastante, admito que Picard roubou meu coração com uma atitude menos extravagante e usando o discurso como a maior arma.

Há vários obstáculos no caminho de uma nova série estrelada por Picard, incluindo a necessidade de atrair uma audiência inédita para um personagem estabelecido, sem contar que os fãs já possuem uma série da franquia Jornada atualmente, Discovery, com uma abordagem mais dinâmica e voltada para a estética estabelecida por J.J. Abrams nos filmes da linha temporal Kelvin (criada para distinguir os filmes de Abrams, situados em uma “realidade alternativa”, dos clássicos da linha Prime). Isso pode ser um problema, já que uma série focada em Picard parece demandar um tratamento mais introspectivo, com atenção maior aos diálogos e as atuações, se nos basearmos na abordagem da série Nova Geração.

O resultado é um híbrido entre a ação rápida da timeline Kelvin e da série Discovery, com toques de A Nova Geração, dando espaço para pequenos momentos de reflexão e silêncio (pequenos mesmo, infelizmente). Talvez nem todos concordem com essa decisão, mas particularmente considero um compromisso necessário, desde que tenhamos um enredo e personagens consistentes.

Patrick Stewart e elenco na serie Star Trek Picard

Da mesma forma, Picard se beneficia dos avanços tecnológicos e o orçamento atual da televisão para entregar um visual cinematográfico, com uma câmera dinâmica, capaz de dar mais atenção aos detalhes, além de um tratamento melhor nas cores e uma estética limpa. Ao longo dos dez episódios tivemos coreografias mais elaboradas, não só nas empolgantes batalhas com Phasers, mas nos confrontos espaciais com a presença de novas naves e algumas naves clássicas remodeladas. É um pouco estranho ver tanta ação em volta de Picard, mas faz parte do compromisso mencionado no parágrafo anterior, então é compreensível.

Começamos a série com um Picard aposentado, conhecido como o ex-almirante que abandonou a federação para liderar uma frota de resgate depois do surgimento de uma supernova que acabou destruindo o planeta Romulus (uma ligação com os filmes da linha Kelvin). O que já era uma missão arriscada, logo transforma-se em tragédia depois de um grupo de sintéticos se rebelarem, causando a devastação do estaleiro de Utopia Planitia, localizada em Marte. Além de lidar com as repercussões de suas ações, Picard conhece Dahj, uma jovem procurando refúgio ao lado do ex-almirante, mas as coisas pioram quando ela é procurada por uma entidade misteriosa chamada Zhat Vash, organização secreta envolvida com a Tal Shiar, liderada por agentes romulanos. 

Ainda que tenha algumas vantagens em comparação à Nova Geração, Jornada nas Estrelas: Picard sofre em outros departamentos, principalmente no enredo e na estrutura narrativa, algo que a franquia costuma trabalhar com muito cuidado. Muitos fãs costumam colocar a culpa de algumas inconsistências do universo Trek no atual responsável pela franquia, o produtor executivo Alex Kurtzman, uma figura que esteve por trás dos filmes de J.J.Abrams e supervisiona todas as novidades envolvendo Jornada nas Estrelas.

Independente do responsável (vamos ser honestos, é o próprio Kurtzman), estou aqui para questionar alguns pontos da trama e elementos narrativos que poderiam ser melhor aproveitados ou simplesmente abandonados por completo, mas também devo dar crédito onde ele merece ser dado.

Patrick Stewart retorna como capitao na serie Star Trek Picard

Mais tripulantes, mais problemas

Patrick Stewart é uma figura forte o suficiente para sustentar a popularidade de uma série, mas precisamos aceitar que ele está mais velho e não pode estar sozinho em uma trama sobre exploração espacial, ainda mais uma cheia de ação como a franquia tem sido nos últimos anos (queira ou não). 

Para ajudá-lo, a série traz alguns personagens interessantes, como o sedutor capitão Christóbal Rios (Santiago Cabrera), a ex-membro da federação Raffi Musiker (Michelle Hurd), a ciberneticista Dra. Agnes Jurati (Alison Pill) e o romulano guerreiro Elnor (Evan Evagora). Além deles, temos o retorno de personagens estabelecidos, como Sete de Nove (a excelente Jeri Ryan), de Jornada nas Estrelas: Voyager; o borg Hugh (Jonathan Del Arco) e o andróide Data (Brent Spiner), mesmo que através de visões e flashbacks

Algumas dessas adições foram muito boas, introduzindo novos componentes que enriquecem o universo da franquia, como a personagem Rios, sua nave La Sirena e os vários tripulantes holográficos, cada um carregando um pouco da personalidade do capitão. O conceito de uma Holomatrix, com um “Holograma Médico de Emergência” (EMH), não é novidade, principalmente porque já tivemos o ótimo Doutor da nave USS Voyager, mas a interação do capitão com suas outras versões criou alguns dos momentos de alívio cômico mais genuínos na série, isso por conta da atuação de Cabrera. 

Raffi e Elnor são antigos conhecidos de Picard quando começamos a série, mas enquanto Raffi recebe uma subtrama pouco explorada envolvendo seu filho, com o qual não se comunica mais, Elnor é uma proposta atraente mas sem desenvolvimento algum (seu único propósito é surgir em cenas onde a ação é necessária, como um deus ex machina na maioria das vezes). 

Alison Pill e Patrick Stewart em Star Trek Picard

A Dra. Jurati é um caso mais complicado. Ela é a personagem mais passiva da temporada, geralmente reagindo e fazendo pequenos comentários tímidos, mas sua presença na aventura pareceu estranha desde o princípio. Com uma motivação fraca, a revelação de que ela estava infiltrada na missão de Picard para atrapalhar seus planos foi um dos pontos mais previsíveis da série. Para piorar, ela é responsável pela morte de Bruce Maddox, personagem pouco presente – mas importante – em Nova Geração; e mesmo depois de admitir o crime, termina a temporada como se nada tivesse acontecido, livre, leve e solta ao lado de seu novo namorado, Rios. Devo admitir que esse é um dos casais mais sem química que já vi, mas quem sou eu para julgar?

Vale mencionar aqui que algumas pessoas já estão incomodadas com uma rápida sequência em que Sete de Nove e Raffi parecem estar trocando carícias por alguns segundos, e mesmo que eu considere Raffi um pouco cliché (com sua atitude indiferente e piadas sarcásticas), convenhamos que a base de fãs de Jornada nas Estrelas conta com uma parcela pouco liberal, o que não faz sentido considerando o quanto a franquia lutou para derrubar preconceitos de gênero.

Alguns personagens ainda não foram mencionados, isso porque eles vão estar presentes em breve. Vamos continuar.

Desejo de morte

Ao tentar estabelecer um tom “sombrio” para Jornada nas Estrelas: Picard, a série tenta executar cenas com mais violência e sangue, o que nunca foi uma prioridade para a franquia, mas aparentemente consideram necessário que todos assistam a gráfica morte de Icheb, personagem presente em Voyager que teve um arco trágico como um ex-borg tentando se adaptar ao mundo e aprender como ser tão talentoso quanto sua líder, Sete de Nove.

É uma pena ver que aqui o reduziram a uma rápida cena em que tem seu olho arrancado e é deixado em uma mesa de cirurgia para morrer, uma conclusão deprimente para alguém que representava um pouco da visão otimista do futuro que fez a franquia ser tão adorada. E isso é tudo, Icheb foi arrastado de volta para Jornada com o único propósito de ser uma morte chocante o suficiente para motivar Sete de Nove a seguir em uma vingança que dura… um episódio.

Jeri Ryan como Sete de Nove em Star Trek Picard

E o extermínio de personagens já estabelecidos não se limita ao borg Icheb. Por algum motivo, Hugh também é morto em um confronto com uma das principais antagonistas da temporada, a romulana Narissa Rizzo (Peyton List). Hugh é um dos símbolos mais importantes para a história dos Borg, o primeiro do coletivo a adquirir uma identidade, destaque de mais de um episódio de Nova Geração, ele representa o que todos os borg podem ser. Infelizmente, em Picard ele serve como uma participação especial para agradar os fãs de longa data e fonte de explicação para algumas pontas soltas da trama, e no fim segue o mesmo rumo de Icheb, em uma morte menos violenta, mas igualmente desnecessária.

As críticas sobre a forma que a série parece “matar seus personagens” apenas como um recurso para impactar o público, tem sido uma preocupação desde o momento em que a Dra. Jurati mata Bruce Maddox no mesmo episódio em que ele foi introduzido.

Mas nem tudo é negativo. Tirando todas as mortes (nunca escrevi tanto a palavra morte, e nunca imaginei escrever em um texto sobre Jornada nas Estrelas) desnecessárias, a série teve uma saída inteligente para utilizar a personagem do tenente-comandante Data, aqui atuando como uma representação das frustrações de Picard e a memória de alguém que entendia e acreditava em sua integridade. A decisão de finalmente dar um descanso para a consciência de Data, que teve seu corpo destruído após se sacrificar no filme Jornada nas Estrelas: Nêmesis, foi um dos grandes acertos da temporada.

Antes de sair deste tópico, não vou deixar de mencionar a “morte” do próprio Jean-Luc Picard, que depois de sofrer por anos sabendo de sua inevitável síndrome cerebral (Irumodic Syndrome), acaba sucumbindo. Mas através de uma saída conveniente do roteiro, Picard sobrevive recebendo um “novo corpo” desenvolvido pelo Dr. Altan Inigo Soong, o filho de Noonian Soong, responsável pela criação de Data. Ainda não sei como me sinto sobre isso, então melhor mudar de assunto.

Eu, Borg?

Antes mencionei um problema com a estrutura narrativa da temporada, e não foi à toa. Além do desconforto de toda a violência desnecessária (já tivemos cenas pesadas na franquia, mas o olho arrancado de Icheb parece ter saído de algo como Jogos Mortais) e as mortes para chocar o público, Picard tenta inserir constantemente referências e easter eggs para os fãs de Nova Geração.

Não há problema algum nisso, eu mesmo adoro perceber alguma menção ao resto do universo de Jornada, seja nos diálogos ou no visual, mas parece que os produtores de Picard queriam demais introduzir de uma vez todos os elementos que fizeram do personagem tão famoso, entre eles a sua relação com os borg, uma parte essencial da história de Jean-Luc, mas que aqui se resume em um ponto solto da trama que realmente não se conecta com os demais.

Parte da primeira metade da temporada envolve Picard e sua nova equipe a procura da androide Soji (Isa Briones), que está localizada em um Cubo Borg abandonado chamado de Artefato, transformado em laboratório de pesquisa pelos romulanos. Eles estão usando o local para estudar os borg com a ajuda de Hugh.

Um dos romulanos é o misterioso Narek (Harry Treadaway), que rapidamente seduz Soji para investigá-la. Eles desenvolvem um relacionamento, mas Narek é constantemente alertado por sua irmã, Narissa, sobre a importância da missão e como não deve se distrair. A relação entre Narek e Narissa carrega um caráter quase incestuoso (isso pode ter a ver com a visão do produtor Alex Kurtman, explico mais pra frente) nunca justificado.

Quando Picard finalmente chega ao Artefato, tem uma rápida conversa com Hugh, mas logo precisa fugir por conta de Narissa, que está caçando Soji. A interação entre Picard e Soji é rápida e se limita ao cliché do “protagonista pedindo que alguém em apuros confie nele sem motivo algum”. Com a ajuda de Hugh, eles conseguem fugir para o planeta Nepenthe, onde Will Riker (Jonathan Frakes) e Deanna Troi (Marina Sirtis) moram. Hugh, Elnor e Sete de Nove permanecem no Artefato para tentar impedir Narissa de destruir os borg remanescentes que permanecem em descanso e desconectados do coletivo.

Sete de Nove tenta se comunicar com o Artefato e acordar os borg, mas eles são ejetados para o espaço por uma Narissa furiosa. Vendo que não há mais o que se fazer com o Artefato, a subtrama do cubo borg é abandonada e parece ter servido apenas para introduzir Narek e Soji, mas nenhum dos dois tem uma forte ligação com os borg, um é romulado e a outra é androide, então eles trabalharem no Artefato é apenas circunstancial. O retorno de Hugh não tem peso significativo na trama, nem sua morte é o suficiente para afetar o resto da história já que os próximos episódios correm para apresentar Coppelius, o planeta natal de Soji e os vários sintéticos do Dr. Altan Inigo Soong. 

Jeri Ryan como Sete de Nove na serie Star Trek Picard

Em Coppelius, mais subtramas envolvendo traição e conspiração tomam conta da maior parte da história, e agora que Narissa parece ter sido derrotada por Sete de Nove (depois de ser derrubada de uma altura que mataria qualquer um; mas não há limites para as formas mirabolantes na qual os roteiristas podem trazer personagens de volta), Narek aparentemente muda de lado e a irmã de Soji assume o posto de antagonista. 

O pior de dois mundos

Alex Kurtman é um problema. Não o considero uma ameaça para a popularidade da franquia, na verdade acho que Jornada nas Estrelas tem chegado com cada vez mais força para novos públicos, e é ótimo ver esse sucesso na TV. Enquanto alguns fãs reclamam sobre a representatividade de minorias e exigem menos foco em debates políticos, o que não faz sentido algum já que esses tópicos são praticamente intrínsecos da franquia (falamos sobre isso em outro texto), acredito que o maior problema enfrentado por Jornada está na narrativa.

Em entrevista para a Variety em 2019, o produtor executivo Alex Kurtman fez questão de mencionar como a série Game of Thrones o influenciou durante o desenvolvimento de Jornada nas Estrelas: Picard. Além das duas séries não parecerem semelhantes, seja por temas ou gênero, o sucesso da HBO carrega um tom mais sério e realista, o que não é novidade para Jornada, mas GOT preza por enredos carregados de conspiração, traição e reviravoltas. E é exatamente o que Kurtman procura para suas novas produções, tentando “subverter expectativas” (suas próprias palavras), não importa o quanto isso possa afetar negativamente a trama, a prioridade é surpreender à qualquer custo (agora são as minhas palavras).

“Ninguém reclama por ter que pagar para assistir Game of Thrones. Podemos fazer o mesmo” (Kurtman, 2019)

Pode não parecer, mas podemos ver algumas influências de Game of Thrones em Discovery e Picard, como a relação aparentemente incestuosa entre Narek e Narissa, claramente inspirada em Jamie e Cercei Lannister; até mesmo a sequência em que Lorca luta contra um guarda raivoso da Imperatriz Georgiu é bastante similar ao famoso combate entre Oberyn Martell e o Montanha na quarta temporada de GOT.

Não só a coreografia parece “pegar emprestado” alguns movimentos, como a motivação para o guarda estar tão nervoso envolve a morte de sua irmã pelas mãos de Lorca, assim como Martell procura vingança pelo Montanha ter matado a sua irmã. Como se já não fossem coincidências o suficiente, a conclusão da batalha em Discovery não surpreende quem já assistiu a de Game of Thrones. E esses são apenas alguns casos soltos.

Patrick Stewart em Star Trek Picard

Na mesma entrevista, Kurtman se orgulha por inserir elementos como nudez Klingon (esse assunto também não é novidade, e já tivemos casos onde a nudez foi um problema, principalmente na sexualização desnecessária de algumas personagens, como T´Pol em Enterprise) e palavrões: “Usamos a palavra ‘f*ck’, a propósito”.

O que acabei de mencionar não é exatamente um problema com a narrativa, mas um indício de como Discovery e Picard planejam “subverter as expectativas” do público através da violência, sexo e linguagem vulgar, e é assim que a narrativa é afetada negativamente, por dar destaque para o choque, deixando de lado o que realmente fez de Jornada nas Estrelas uma franquia única, com debates envolventes e questões que eram realmente levadas a sério, não só introduzidas com o propósito de surpreender todos com o quão corajosos eles são em colocar uma almirante da frota estelar ofendendo Picard com a palavra “Sheer Fucking Hubris” (algo como “Que arrogância de merda”) ou uma romulana perguntando para seu próprio irmão se ele “f*deu” outra personagem ¯\_(ツ)_/¯

Para onde vamos, afinal?

Jornada nas Estrelas nunca teve medo de tocar em assuntos delicados, debatendo política, racismo, gênero e o que fosse necessário. Isso era o suficiente para construir uma história envolvente, que fizesse o público realmente refletir sobre seu papel nessas questões. Mas é difícil termos uma conversa significativa e necessária quando a principal preocupação da franquia passa a ser a “subversão de expectativas” e a corrida para chegar na próxima reviravolta superficial.

O formato serializado de Picard pode ser um dos responsáveis por termos tantas revelações, mortes e mudanças no foco narrativo, isso porque ao contrário do formato clássico, onde cada episódio trazia uma história contida, agora temos dez episódios com um arco principal que precisa ser constantemente abastecido com intrigas e surpresas para manter o público investido. Talvez eu esteja atribuindo a culpa no formato com certo exagero, mas não é como se a afirmação não tivesse algum nível de veracidade. 

Jonathan Frakes, Patrick Stewart e Marina Sirtis em Star Trek Picard

E depois de tudo, parece que odiei Picard, mas fiz questão de ressaltar os aspectos positivos, principalmente nos primeiros parágrafos desse texto. Ainda há muito o que eu gostaria de mencionar por aqui, como as participações especiais, a forma como os vilões foram representados, as referências, entre outras coisas, e talvez eu volte a falar sobre Picard em outro momento. Por enquanto, vamos ficar na torcida para mais novidades sobre as futuras séries da franquia (estou ansioso para Lower Decks), e aproveite para comentar com as suas considerações sobre essa primeira temporada de Jornada nas Estrelas: Picard.

Até a próxima.

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Westworld | Adaptar é Necessário

Atenção: há spoilers das duas primeiras temporadas da série Westworld e do filme original que a inspirou. Leia por sua conta e risco, sabendo que esses prazeres violentos trazem fins violentos. 

Poucas adaptações atingem o sucesso em sua transição do cinema para as séries como Westworld, indo da ficção científica carregada de ação ao drama existencial. Similares em vários aspectos, as duas versões também divergem drasticamente em outros, o que traz de volta o eterno debate sobre a importância de adaptar um material para novos veículos e cenários sociais, mas para tal precisamos de contexto.

Westworld: Onde Ninguém tem Alma (título brasileiro) chegou aos cinemas em 1973, com roteiro e direção de Michael Crichton, um nome bastante respeitado pelos fãs de ficção científica, responsável por obras literárias como O Enigma de Andrômeda e O Parque dos Dinossauros, que logo viriam a ser adaptados para o cinema.

A obra trouxe um conceito intrigante, imaginando um parque de diversões interativo onde você pode criar a experiência de épocas diferentes, como viver os tempos do velho-oeste, por exemplo. Para isso, uma companhia chamada Delos preenche esses parques com robôs de aparência humana realista capazes de interagir com os visitantes, até mesmo de forma íntima. 

Ator Yul Brynner na versao original de Westworld Onde Ninguem tem Alma
Yul Brynner

O filme foi um sucesso de crítica e bilheteria, rendendo uma continuação, Futureworld (intitulado no Brasil como o desnecessariamente longo Mundo Futuro: Ano 2003, Operação Terra) em 1976, mas esse não contava com o envolvimento de Crichton. Para continuar a franquia, a primeira tentativa de levar a história para a TV aconteceu em 1980, com Beyond Westworld. Servindo como um spin off do filme original, a série foi rapidamente cancelada, tendo produzido apenas cinco episódios. 

Por um tempo, a animação do público para novo material da franquia diminuiu, até que em 2013 o canal por assinatura HBO confirmou uma nova série inspirada no filme, dessa vez comandado pelo casal Jonathan Nolan e Lisa Joy, com produção de J.J. Abrams, intitulada apenas Westworld. A estréia aconteceu em 2016, com uma temporada tão elogiada pela crítica quando o filme original, talvez até mais. E é por isso que pretendo debater um pouco os principais pontos divergentes entre o filme clássico e a adaptação seriada da HBO, que para muitos (incluindo o autor desse texto) consegue superar sua versão original em vários aspectos. 

A série começa com a vantagem de ter um orçamento visivelmente superior ao filme original. Enquanto o longa sofreu nas mãos do estúdio MGM para conseguir $1,25 milhões, a HBO arrecadou estimados $100 milhões para sua temporada de estréia. É curioso como mesmo dividindo igualmente o valor entre cada um dos dez episódios da série, ainda há um investimento maior que o do filme. Mas o valor da série não era apenas monetário, ela veio com uma equipe mais profissional (Crichton ainda era um diretor iniciante quando seu filme foi lançado), carregando uma direção de arte belíssima, assim como figurino e cenografia, sem contar a excelente música de Ramin Djawadi. 

Similaridades e Referências

É difícil resistir a tentação de colocar algumas referências ao material original em qualquer adaptação, e Westworld não é exceção. Uma das primeiras similaridades envolve a dupla de protagonistas do longa, Peter Martin (Richard Benjamin) e John Blane (James Brolin), que decidem se aventurar no mundo do velho oeste, mas enquanto Martin parece relutante em se entregar totalmente à experiência, Blane é um veterano confiante e ajuda seu amigo a aproveitar o lugar da melhor maneira. Esses dois possuem traços que podemos associar facilmente aos personagens William (Jimmi Simpson) e Logan (Ben Barnes) na versão da HBO, respectivamente.

A principal diferença na adaptação é que William tem uma ligação maior com Logan, sendo seu cunhado e possível herdeiro dos negócios da família, que possui investimentos no parque temático. Para criar uma conexão ainda maior, a versão mais velha de William, apelidada de Homem de Preto (Ed Harris), é uma clara referência ao principal antagonista do filme, o Pistoleiro, interpretado por Yul Brynner. Se no filme ele é um robô intimidador, na série passa a ser humano – mas não menos assustador.

Atores James Brolin e Richard Benjamin no filme Westworld Onde Ninguem Tem Alma
James Brolin e Richard Benjamin

Outro personagem importante para a série é Maeve, dona de um bordel chamado Mariposa. Também temos um bordel na versão cinematográfica, mas não com o mesmo nome, e ele é comandado por uma Miss Carrie, papel desempenhado por Majel Barrett, mais conhecida pela franquia Jornada nas Estrelas. Além de manter alguns personagens, mesmo que alterados, a série segue com o nome Delos para a companhia que financia e contribui para a criação de vários parques. 

Há muitas referências ao longo da produção da HBO, mantendo alguns conceitos e elementos, como a sala de customização, onde você deixa sua roupa para trás e assume um traje mais apropriado com a temática do parque de sua escolha. No filme, o momento em que os protagonistas trocam de roupa serve como um olhar mais mundano dos bastidores, enquanto a série transforma uma simples decisão entre a cor de um chapéu em desenvolvimento de personagem, prevendo a eventual mudança de caráter entre William e o Homem de Preto. 

Pequenos detalhes do filme foram usados na série, como a informação de que os robôs podiam ser identificados pela mão (no longa, elas entregam os robôs; na série isso é mencionado como “um problema antigo que a empresa não tem mais com suas criações”) ou a cena em que o Dr. Robert Ford (Anthony Hopkins), o criador do parque na versão para a TV, controla uma serpente com um comando de voz, espelhando uma sequência do filme em que John Blane é atacado pelo mesmo animal.

Por falar em Ford, a presença de Anthony Hopkins no elenco já é indício de algo grandioso, então é claro que seria uma oportunidade perdida não deixá-lo roubar um pouco a cena com longos monólogos e debates filosóficos com seu companheiro de trabalho, Bernard (Jeffrey Wright). Pelos nomes Ford e Bernard podemos ver também a forte influência da literatura, já que o nome dos dois foi tirado do clássico da ficção científica, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Anthony Hopkins e Jeffrey Wright na serie WESTWORLD, adaptacao do filme classico
Anthony Hopkins e Jeffrey Wright

Entrando em Westworld

Três parques são introduzidos no longa original e as temáticas são Medieval (no contexto europeu), Império Romano e, o principal, Velho Oeste, Westworld. Ainda que pareça pouco em comparação com a série (que já mencionou ter o dobro de parques), estamos falando de um filme de aproximadamente uma hora e meia, então a decisão foi desenvolver apenas os mundos Velho Oeste e Medieval, e mesmo assim, o Medieval pode ser considerado quase irrelevante no longa.

Depois de introduzido, tudo que fazemos no parque Medieval é seguir um casal em algumas cenas cômicas e sem conexão alguma com o drama dos verdadeiros protagonistas, Peter e John. É uma ótima proposta tentar nos colocar em novos mundos, mas o filme não parece saber como equilibrar as narrativas que realmente importam, e isso rende um ritmo bastante cansativo. 

O filme alterna entre esses dois parques, mas também dá um pouco de atenção aos bastidores, mostrando a equipe de pesquisa e vigilância em sua sala branca comandando tudo. Talvez mais dessa equipe e menos do mundo Medieval pudesse entregar uma trama objetiva e sem excesso de tramas desnecessárias.

Quanto à série, é mencionada a existência de mais de um parque, mas a primeira temporada sabe que os personagens são mais importantes, então ela dá atenção exclusiva ao Velho Oeste. É apenas em sua segunda temporada que Westworld arrisca revelar dois novos parques: Shogun World, inspirado no japão feudal; e The Raj, recriando a Índia dominada pelos ingleses.

Questionando a natureza das adaptações

Ator Ed Harris na serie Westworld da HBO
Ed Harris

Adaptar não é apenas mudar alguns nomes e referenciar o material original. A transição de um formato para outro pode se fazer necessária por vários motivos, talvez uma releitura completa de uma obra, ou apenas uma atualização contemporânea, em alguns casos chega a ser uma corrupção total do original para elaborar uma crítica, mas o que vejo em Westworld é um caso em que a adaptação serve para explorar de maneira diferente os elementos da versão anterior, podendo aprimorá-los, trazendo um debate maior e até mais relevante através de temas que o original poderia ter estabelecido. 

A adaptação da HBO altera e complementa algumas informações introduzidas no filme. Agora que termos como “sintético” e “inteligência artificial” fazem parte de nosso cotidiano, o que antes era conhecido como robô passa a ser chamado de Anfitrião, ou seja, essa é a denominação para os andróides prontos para receber os visitantes humanos, esses apelidados de Hóspedes. 

Por falar nos personagens, esse foi um dos maiores acertos da série. No filme temos o implacável Pistoleiro, muito bem interpretado por Yul Brynner, com uma presença forte capaz de causar tensão em qualquer ambiente. Mas Ed Harris não fica atrás com seu Homem de Preto, que além de intimidador é um homem perturbado pelos demônios do passado, tão comprometido com os mistérios de Westworld ao ponto de colocar sua vida e a de outros humanos em risco. 

Seguimos o ponto de vista de dois humanos com atitudes contrastantes na versão original, mas isso é deixado de lado assim que o longa se transforma em uma batalha entre os robôs defeituosos e eles. Na adaptação, os personagens tem características mais complexas, e assim observamos os dilemas existenciais de cada um, até mesmo dos Anfitriões, constantemente questionando sua realidade por conta de uma inteligência capaz de se adaptar (oferecimento de seu criador, Dr. Ford, fascinado pelas máquinas ao ponto de permitir que atinjam uma consciência própria). Isso não quer dizer que os episódios evitem sequências de ação, e essas são ótimas, mas a promessa da série é uma análise sobre a importância da identidade. 

Outro avanço em questão de elenco e personagens é a presença de mulheres em papéis que não sejam apenas o de uma esposa entediada ou prostituta, as duas únicas opções no filme, que ao menos dá algumas falas para Majel Barrett, interpretando uma dona de bordel. Enquanto isso, a série é praticamente protagonizada por mulheres, o destaque indo para a dupla Dolores (Evan Rachel Wood) e Maeve (Thandie Newton), duas androides em busca de uma narrativa própria, mas apresentando métodos distintos para atingir a liberdade.

James Marsden e Evan Rachel Wood na serie Westworld da HBO
James Marsden e Evan Rachel Wood

Em 1973, Michael Crichton dirigiu um filme cheio de conceitos envolventes e efeitos visuais impressionantes para a época, mas talvez Westworld tenha realmente mostrado seu verdadeiro potencial na transição para o formato seriado, onde os elementos do longa são explorados com mais atenção, e debates existenciais tomam conta de uma narrativa cada vez mais relevante para tempos em que um mundo similar ao de Westworld não parece tão ficção científica assim.