Megalópolis é um dos projetos mais ambiciosos da carreira de Francis Ford Coppola. Um filme interessado em debater o declínio do império estadunidense e da indústria Hollywoodiana utilizando como paralelo a história do império romano, assim como algumas de suas figuras mais conhecidas. Megalópolis acompanha a jornada de César Catalina (Adam Driver), um inventor genial que percebe como sua civilização está à beira do colapso. Assim ele pretende reconstruir a cidade de Nova Roma usando um material transformador chamado megalon. Mas para que consiga atingir sua utopia tecnológica, precisa ir contra a elite, os políticos e a mídia, tudo isso com a ajuda de Júlia (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito Cícero (Giancarlo Esposito), que obviamente odeia essa ideia.
Considerando todos os obstáculos que Coppola teve pra fazer esse filme, o debate sobre a importância de imaginar uma utopia se faz pertinente por conta da situação atual do sistema estadunidense, uma conversa que o diretor estende para a indústria de cinema e a forma como o lucro costuma estar acima da criatividade por conta de um monopólio de estúdios conservadores que prezam por repetição de fórmulas e a falta de interesse em assumir riscos.
O conceito de utopia é sempre frágil porque a maioria de suas interpretações costuma imaginar um mundo no qual conflitos são inexistentes, algo que já foi erroneamente atribuído a narrativas como Jornada nas Estrelas, onde há uma sociedade mais igualitária que abandonou alguns conceitos individualistas do passado, porém ainda há bastante conflito social, político e econômico, já que eles precisam de um sistema funcional. A única diferença é que os conflitos são resolvidos muitas vezes através de diálogos, deixando a força bruta como último recurso, algo que obviamente varia de acordo com a versão de Jornada nas Estrelas que estamos explorando.
Falo isso porque Coppola parece ser o tipo de pessoa que cresceu acreditando nesse ideal de sociedade que ele considera utópica, mas nunca parou para realmente questionar os contextos dessa sociedade, sejam eles políticos, econômicos ou religiosos. Existe esse conceito de tratar a utopia como um método de vida, não como algo que se atinge de verdade, e o filme menciona algo parecido com isso quando temos a cena do Cesar respondendo perguntas e dizendo que a utopia está em desejar um futuro melhor, ela está nesse cenário de discussão e debate produtivo. O diretor entende essa ideia, mas também fica cego pela própria visão otimista, mas bastante inocente e equivocada, de que para atingirmos essa utopia bastam apenas discursos bonitos e uma vontade de mudança que seria capaz de resolver todos os problemas do mundo. Isso fica visível na forma como constroi seu Megalópolis, um filme cheio de boas intenções e muitos pontos positivos, mas que no geral se perde na essência do que ele mesmo considera um futuro melhor. Isso é algo que vou abordar novamente daqui a pouco.
Todo o apelo visual, que tem sido um dos aspectos mais elogiados do longa, é algo que eu gostei na superfície, mas tenho minhas ressalvas quanto ao uso dele dentro da narrativa geral. Não dá pra negar que Coppola fez um esforço descomunal para conseguir construir algumas das composições desse filme, com a quantidade de técnicas de transição e colagens que são belíssimas, ou quando usa split screens para representar essa profusão de ideias na mente visionária do protagonista, com a tela se dividindo em três partes ou mais em uma apresentação de imagens em alta velocidade, o que dá essa sensação de que os pensamentos do protagonista são difíceis de acompanhar.
Ainda que seja lindo de ver e a fotografia conte bastante quando é considerada isoladamente, nem todas as ideias se conectam para criar uma coesão temática, com exceção de algumas tomadas mais estáticas que casam bem com o drama de alguma personagem, como quando mostram o prefeito Cícero sendo engolido pelas areias do tempo, quase como um Ozymandias vendo seus feitos se esvaindo para dar lugar a outra figura mais poderosa. Esse tipo de representação visual é constante, e Coppola não é nada sutil ou econômico na quantidade de referências e alusões à figuras histórias – obviamente o foco maior são nos paralelos com o império romano, desde a cidade de Nova Roma sendo utilizada no lugar de Nova York, o nome da maioria das personagens principais e alguns pontos da trama que envolvem muita traição e conflitos de poder.
Admito não me incomodar com a falta de sutileza nesses casos que mencionei, acho até que o filme abraça bem o absurdo e ridículo, como quando faz sua crítica exibindo símbolos de um discurso neofascista, muito deles através da personagem de Shia LaBeouf, que está bem confortável em um papel mais excêntrico, do jeito que ele gosta. Também há toda a sequência em que Júlia segue o carro de César para descobrir seus segredos, e no caminho temos uma das minhas cenas favoritas, com as estátuas em ruínas representando a decadência do sistema e símbolos estadunidenses de justiça e moral.
Normalmente gosto desse tipo de comentário mais explícito, ainda mais quando vem representado com visuais tão impactantes, mas tem horas que Megalópolis precisar “pegar na mão do espectador” de forma didática ao ponto de incomodar; seja com os vários interlúdios com frases esculpidas em mármore ou a narração da personagem de Lawrence Fishburne. Quando você tira a camada de metáfora, não sobra muito para se aproveitar do enredo, mas pelo menos os visuais e as personagens mantêm essa proposta teatral de Coppola, com diálogos artificiais e atuações mais caricatas.
Aqui funciona pra mim, como acontece com os trejeitos farsescos do protagonista interpretado pelo Adam Driver, um ator que tem feito parte de outros projetos ambiciosos de outros grandes diretores, com o Ferrari, de Michael Mann; Silêncio, de Scorsese e O Homem que Matou Dom Quixote, de Terry Gilliam. Por vezes carismático, outras intimidador, a personalidade do César de Adam Driver que se espelha muito no próprio Coppola, o que ao mesmo tempo traz essa metalinguagem interessante, mas também é um nível de vaidade absurda considerando o quanto ele trata esse protagonista como um gênio incompreendido, e as coisas pioram quando debatemos as intenções da personagem.
O elenco tem nomes grandes em papeis coadjuvantes, como Jon Voight e Dustin Hoffman, mas o que importa mesmo é assistir Aubrey Plaza se divertindo como uma repórter sensacionalista procurando causar o caos em cada cena que aparece. O maior desperdício da história está no potencial da personagem de Julia Cícero, a filha do prefeito, interpretada por Nathalie Emmanuel. Sua relação com César recebe bastante espaço, e eles possuem uma boa dinâmica, mas não parece ter o mesmo peso que outros núcleos dramáticos, sem contar a forma como Julia precisa representar uma figura de enorme importância para César, mas quando isso precisa ser colocado à prova, é difícil acreditar nessa mudança na dinâmica entre eles. No começo, a conexão entre Júlia e Caesar é algo pragmático e temos que acreditar que há peso nessa relação.
Abri esse texto lembrando como esse filme é ambicioso, e Coppola tem essa fama de investir nos seus projetos e arriscar, independente de um resultado desastroso de bilheteria ou uma experiência ruim de filmagem. Se você assistir os bastidores caóticos de Apocalypse Now ou como ele tentou revolucionar a indústria com O Fundo do Coração, um dos meus filmes favoritos, sabe que ele vai fazer o impossível para conseguir passar sua visão para o projeto. E no fim eu gosto de Megalópolis como uma ideia do que é possível ser feito no cinema, uma expressão crua e genuína de um diretor entregando tudo que ele acredita, como se fosse seu manifesto sobre a importância de se colocar a arte como uma necessidade humana. Coppola imagina o futuro com um otimismo inabalável, mas meu maior problema com Megalópoles, e porque considero ele um épico equivocado, está na forma como ele esconde nessa camada de idealismo uma ideologia bem mais conservadora e individualista através de seu protagonista.
Infelizmente, vou me repetir falando de Matrix Resurrections por aqui, mas são dois filmes com ideias e até apelo visual similares, ambos debatendo esse conceito de arte e indústria. A utopia de Coppola se faz pela destruição do antigo e reconstrução total, ao contrário dos ideais de diretoras como as Wachowski, que veem uma necessidade na restauração do antigo e uma construção do novo que funcione para todos, não apenas um grande gênio com todas as respostas. Por vezes a visão de Megalópolis parece cínica e mais limitadora na sua forma de expressar essa necessidade por mudança, que ele vê como algo que deve ser respondido por um indivíduo excepcional, enquanto Matrix Resurrections vê a salvação do mundo em declínio como um esforço coletivo, com esperança nas pessoas que conseguem se unir, ainda que oprimidas por um sistema mais poderoso que elas.
Muito dessa visão de Coppola fica clara no texto que fecha o longa. Não chega a ser um grande spoiler, mas é o tipo de coisa que se espera de alguém que vende um conceito subjetivo como liberdade de expressão e criatividade, mas que ainda vê a resposta para uma civilização avançada por uma ótica estadunidense, chegando ao ponto de terminar a obra com uma mensagem que serve para representar o futuro da humanidade, mas é basicamente uma releitura do juramento à bandeira dos Estados Unidos. Mesmo com todos os meus problemas com o enredo e o debate mal aproveitado do filme, Megalópolis é uma experiência que não se vê todos os dias e eu valorizo o risco que o diretor tomou. Eu respeito a proposta geral que Coppola tentou trazer com seu projeto de paixão, assim como o elenco e os visuais que já fazem valer a pena assistir o filme outra vez no futuro, mas não respeito a forma como ele executa algumas de suas ideias.
Em 2020 tivemos o lançamento de Dois minutos além do infinito, uma pérola da ficção científica independente que chamou atenção em festivais e depois conseguiu uma visibilidade maior no Brasil quando chegou no catálogo do streaming Max (finada HBO Max). Primeiro longa do diretor Junta Yamaguchi, o filme conta a história de um grupo de amigos tentando entender como uma TV passou a exibir imagens do futuro, especificamente dos próximos dois minutos. É uma obra de apenas uma hora e dez minutos, mas bem esperta no formato, brincando com a câmera que está constantemente flutuando no ambiente como o ponto de vista do espectador confuso que vai descobrindo as informações junto das personagens, e -quase- tudo realizado em plano sequência, um chamariz que geralmente não me impressiona, mas nesse filme se destaca por conta da complexidade da cadeia de eventos, então filmar um filme de anomalia temporal em um formato que ignora as convenções da edição cinematográfica é algo bem criativo.
Para seu segundo filme, Yamaguchi mantém a temática de viagem no tempo, repetindo alguns elementos para criar um tipo de conexão entre as obras. Enquanto Dois minutos além do infinito se passa no pequeno restaurante do protagonista, River (lançado em 2023, mas ainda sem título ou data de lançamento no Brasil) é ambientado numa típica pousada ryokan chamada Fujiya, em Kyoto. Assistimos a atendente Mikoto (Riko Fujitani) interagindo com os seus colegas de trabalho e hóspedes do hotel; tudo parece um dia normal, porém ela tem a sensação de um déjà vu quando se vê repetindo uma mesma conversa com seu patrão.
Logo o que era estranho fica pior quando Mikoto se vê constantemente voltando dois minutos no passado, a partir do mesmo ponto, na frente do rio Kibune, paralelo ao estabelecimento. Para piorar a situação, outros funcionários e hóspedes passam a relatar eventos bizarros, como uma bebida quente que nunca atinge a temperatura certa ou um mingau que não termina mesmo que você coma o prato inteiro. Todos estão presos no mesmo loop temporal, e a cada dois minutos o tempo volta para o mesmo ponto de partida, felizmente com suas memórias intactas, sendo essa a única vantagem que as pessoas têm para bolar um plano e sair dessa prisão temporal.
Yamaguchi estrutura o longa de uma forma similar ao seu filme anterior, dessa vez tendo um ambiente diferente e mais exploração do espaço, que além de maior em escala é bem mais complexo por conta da quantidade de escadas, corredores e cômodos nos quais a câmera precisa transitar para estabelecer a posição de cada personagem dentro do loop temporal. O que ajuda bastante é a evolução das ferramentas do diretor, que fez o filme anterior em seu smartphone, mas aqui ele tem uma câmera digital e um orçamento maior, então há mais possibilidades e um trabalho melhor no tratamento visual, ainda que o tratamento de cores não seja perfeito e em alguns momentos o branco fica mais estourado, mas é coisa pequena considerando que o foco do longa está nessa noção de movimento.
Por conta da natureza da narrativa de loop temporal o filme consegue escapar até de possíveis erros de continuidade, principalmente aqueles envolvendo a neve em volta da pousada, que está sempre mudando de forma, mas com cada nova instância de linha temporal reiniciada o clima é tratado como uma personagem na trama principal. Por falar nisso, enquanto o primeiro longa do diretor estava mais focado na cadeia de eventos, sem muito desenvolvimento das personagens, aqui temos personagens com dramas mais claros e melhor desenvolvidos, principalmente o da protagonista, Mikoto, que está em sua própria batalha interna contra o tempo e sua inevitabilidade. Além da atriz Riko Fujitani, quase todo o elenco de Dois minutos além do infinito retorna para River, como Gôta Ishida, Masashi Suwa e Munenori Nagano.
O filme é quase inteiramente formado por planos sequências que se limitam à regra de dois minutos, assim retornando para o ponto inicial com um corte seco. O mais divertido é assistir as personagens passando pelos mesmos eventos ou procurando maneiras diferentes de alterar sua realidade. O mais impressionante é ver como Yamaguchi consegue cronometrar a duração das tomadas com a distribuição das personagens no cenário e o enquadramento da câmera. Se você já assistiu o filme anterior do diretor, em alguns momentos é esperado que sinta como se estivesse assistindo uma versão em maior escala da mesma história, muito mais por conta das batidas da trama do que a história em si, o que não atrapalha e até cria uma conexão temática entre as obras – talvez indício de que teremos mais um filme pra formar a trilogia de anomalia temporal?
Se Dois minutos além do infinito revelou Junta Yamaguchi como um nome para se prestar atenção quando falamos de narrativas de ficção científica envolvendo viagem temporal, em River ele consegue se superar na escala e construção de suas personagens, com mais um filme divertido e criativo sobre a iminência do tempo e a importância da memória.
Costumo defender bastante o cinema de Yorgos Lanthimos, um diretor singular que tem recebido cada vez mais popularidade desde que começou a produzir seus longas na língua inglesa, com o ótimo O Lagosta (2015), e passou a chamar cada vez mais atenção com obras como O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017) e o excelente A Favorita (2018). Ainda assim, nem todos gostam da sua abordagem específica, de humor seco, interrompido por momentos de comédia pastelão ou quando faz piada com barreiras de linguagem e comunicação entre suas personagens. Com o lançamento de Pobres Criaturas, Lanthimos parece tentar equilibrar isso com uma crítica social mais escancarada, sem tanta ambiguidade quanto seus longas anteriores, o que funciona até certo ponto.
Adaptação do romance homônimo de Alasdair Gray, Pobres Criaturas é – na superfície – uma das incontáveis releituras de outro romance essencial para a ficção científica, o influente Frankenstein, de Mary Shelley. Em Pobres Criaturas, o cientista é o próprio monstro, o Dr. Godwin Baxter (Williem Dafoe), genial ao ponto de conseguir trazer de volta à vida a jovem Bella Baxter (Emma Stone), que pulou de uma ponte e deixou para trás um passado misterioso, porém ruim o suficiente para que a fizesse abandoná-lo. Por conta de seu procedimento heterodoxo, o cérebro e corpo de Bella não estão sincronizados da forma correta, isso faz com que ela seja seu experimento mais desafiador, e ao mesmo tempo que a jovem tenta compreender o básico das interações humanas, também passa a lidar com as ameaças da sociedade civilizada e suas regras, o que não a impede de explorar tudo que deseja, desde os prazeres da comida e do conhecimento à libertação sexual.
Os roteiros costumam ser o elemento do cinema de Lanthimos que chamam mais a atenção, principalmente em premiações, mas ele parece ter percebido com seu filme anterior, A Favorita, que o seu triunfo está em combinar enredos peculiares com um elenco de qualidade. Ao entregar um material cheio de personagens extravagantes para um bom ator, é difícil desviar o olhar de suas caricaturas envolventes, como o dramático personagem Duncan Wedderburn, de um Mark Ruffalo que sabe alternar entre um bobalhão cômico e um homem intimidador sem deixar um dos dois de lado. Enquanto isso, Willem Dafoe está na sua zona de conforto, sendo um cientista excêntrico de ações questionáveis, mas se todo ator fosse tão bom em seu feijão com arroz quanto Dafoe, o mundo seria melhor.
Portanto, não há chances de Pobres Criaturas funcionar sem Emma Stone e sua Bella, seguindo o clássico tropo do “peixe fora da água”, mas não deixando sua personagem se limitar a reagir ao mundo à sua volta, ela também interage e molda sua própria realidade através de sua incapacidade de assimilar os costumes conservadores da época. A ambientação vitoriana com toques de anacronismo e segmentos com visuais mais oníricos e vibrantes são uma decisão estética inteligente, sem contar a música original de Jerskin Fendrix, um espetáculo à parte que colabora para a sensação geral do cinema de Lanthimos, com uma harmonia dissonante construída através do som de órgão de tubos, gaitas e vozes alteradas no sintetizador – é o tipo de trilha sonora que se destaca, mas nunca rouba a atenção do filme, contribui para a atmosfera geral.
Contudo, todos os elementos assumem uma identidade ainda maior em contraste com a personalidade da protagonista e a interpretação de Emma Stone, que sempre foi uma atriz carismática, mas teve um ano marcante com a constrangedora e genial série The Curse e se estabeleceu como a melhor parceria possível para os filmes de Lanthimos, o que tem dado certo desde A Favorita.
Ao mesmo tempo que Pobres Criaturas parece ser o ápice das idiossincrasias de Lanthimos, o que normalmente seria o tipo de exagero suficiente para me conquistar, o filme também sofre por tentar cobrir mais território do que seria capaz. Há muitos temas levantados que o enredo deixa de lado ou decide ignorar por tratar como uma piada, como acontece com os segmentos em que a protagonista passa a se interessar por certo assunto, mas nunca a vemos desenvolver esse tipo de interesse além do que foi mencionado. Em certo ponto a protagonista diz estar em uma conversa com um “teor circulatório”, e não há descrição melhor para a trama, que segue uma proposta similar à de outro filme do diretor, O Sacrifício do Cervo Sagrado, ambos sobre histórias morais, ao ponto de lembrar uma fábula na sua estrutura; mas enquanto Cervo Sagrado se entende melhor com o material e mantém seu mistério em uma narrativa concisa, Pobres Criaturas dá repetidas voltas para alcançar um ponto que já tinha alcançado anteriormente, o que fica mais evidente no terceiro ato, criado quase puramente para “explicar” o que já estava claro considerando os atos de Bella e os embates com seus parceiros românticos.
A experiência de Pobres Criaturas torna-se completa por conta das decisões estilísticas do diretor combinadas com grandes atuações, como as de Emma Stone e William Defoe, que se entregam ao personagem ao ponto de parecerem intrinsecamente parte do cinema de Lanthimos. Ainda que tenha seus tropeços, nada anula o nosso fascínio em assistir Bella Baxter em sua incansável jornada de descoberta sexual e existencial.
Poor Things – USA, Reino Unido, Irlanda, Hundria 2023 Direção de Yorgos Lanthimos Roteiro de Tony McNamara, adaptado do livro de Alasdair Gray Atuações de Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef… Música de Jerskin Fendrix 2h e 21 minutos
Quando Mark Fisher disse que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, talvez não imaginasse que a essa ideia fosse chegar ao ponto de ser interpretada através de uma ficção científica sobre invasão alienígena. Ainda que essa seja a proposta na superfície, os debates sobre manipulação midiática e a arte como mercadoria são alguns dos que melhor representam a ideia de Fisher sobre a ideologia imperialista e o capitalismo tardio. Assistimos em Landscape With Invisible Hand uma tentativa de representar a figura da elite burguesa através de uma raça alienígena chamada Vuvv, e que ideia melhor do que desapossá-los de sua humanidade (se é que possuem alguma).
Anos no futuro, os humanos ainda estão se ajustando à nova ordem mundial imposta por alienígenas que pretendem “livrar as pessoas de suas atitudes barbáricas” através de seu controle. Com tecnologia avançada, os invasores tomam conta de toda a esfera política e econômica do planeta, fazendo com que os humanos não tenham mais trabalhos e precisem se adaptar ao estilo de vida alienígena. Um jovem artista, Adam Campbell, decide ganhar algum dinheiro com transmissões ao vivo para os alienígenas, que são fascinados pela cultura humana, principalmente o conceito de “amor”, o que faz com que Adam passe a divulgar cada momento do seu namoro com Chloe, recebendo vários seguidores. Mas quando a relação dos dois passa a esfriar, o casal precisa lidar com a reação dos seus fãs extraterrestres.
Embora Landscape With Invisible Hand chame a atenção pelo apelo técnico, desde a mixagem de som criativa que desenvolve a linguagem física dos aliens, até um design de produção e de personagens bastante incomuns, o que mais se destaca é o debate no centro de todos os principais eventos da trama. Há um paralelo óbvio, porém bem construído entre a dominação alienígena e os processos ideológicos que lentamente (por vezes, nem tão lento assim) tomam conta de um grupo ou sociedade geral, no caso o planeta inteiro. A grande crítica anticapitalista é trabalhada através de temas próprios da narrativa do longa, como a incapacidade dos aliens em “amar”, ou o estabelecimento de um sistema predatório e competitivo entre os humanos, que mesmo sem trabalhos regulares, precisam pagar as contas de algum jeito. Isso faz com que o paralelo com a nossa realidade se torne um pouco mais previsível à primeira vista, mas não deixa de ser eficaz.
Outros temas essenciais da obra envolvem a hiper vigilância pelas redes sociais e o a propaganda ideológica da indústria cultural de países como os Estados Unidos. Há um ponto da história em que um dos alienígenas passa a replicar um comportamento “assimilado” por uma série de TV com alto teor fundamentalista, ou seja, tudo que aprendem dos humanos vêm da propaganda, assim nos tornamos reféns do nosso próprio sistema (mais uma vez). E aqui entra o eterno debate sobre a “importância da arte” e a identidade humana, que o filme também desenvolve muito bem, mesmo sendo um pouco óbvia a intenção, o que não atrapalha a experiência de forma geral.
A interação dos atores com os efeitos especiais dos alienígenas também é um obstáculo a ser superado, e por conta da decisão que representa os seres extraterrestres de forma mais foto realista, a imagem é mais grotesca em movimento, com um visual pegajoso, tentáculos barulhentos e uma cavidade bucal que mais se assemelha com nádegas do que qualquer outra coisa. Esse absurdo cômico pode ser encontrado no longa anterior do diretor Cory Finley, o excêntrico drama Puro-Sangue (Thoroughbreds, 2017), e agora a comédia permanece, mas dá mais espaço para a ficção científica no comando da trama geral.
Asante Blackk e Kylie Rogers podem ter a química necessária para o pontapé narrativo, mas a dupla de atores não consegue se sustentar com a mesma força quando a história exige que sigam subtramas distintas. Blackk ainda tem momentos de destaque, mas a personagem de Kylie e seu núcleo dramático nunca deixa de ser coadjuvante, como uma ideia reserva caso a principal não funcione. Graças ao enredo e montagem delicada, a dupla de atores nunca chega a virar um problema, e mesmo assim há uma enorme compensação no elenco com a presença da interpretação mais contida de Josh Hamilton e a excelente Tiffany Haddish, que está um nível acima, não só pela personagem mais envolvente, mas também a carisma da atriz.
Landscape With Invisible Hand pode passar despercebido por grande parte do público, a não ser que seja distribuído no país por algum serviço de streaming capaz de popularizá-lo, ainda assim é uma narrativa inventiva com paralelos entre uma invasão alienígena e o atual estado da super vigilância por monopólios sem supervisão, a forma como o capitalismo transforma a arte em pura mercadoria e a comoditização da nossa própria humanidade.
Landscape with Invisible Hand – USA, 2023 Direção de Cory Finley Roteiro de Cory Finley e M. T. Anderson Atuações de Tiffany Haddish, Asante Blackk, Kylie Rogers e Josh Hamilton Música de Michael Abels 1h e 45 minutos
Os irmãos Strugatsky são uma dupla de autores soviéticos que podem não ser tão populares na ficção científica quanto um Asimov ou Philip K Dick, mas tem grande influência no gênero, não só pela narrativa de seus livros, mas pelas adaptações que eles já renderam pra TV e cinema. Talvez a obra mais conhecida deles seja a novela Piquenique na Estrada, que se transformou no filme Stalker, um clássico do diretor Andrei Tarkovski. Outras traduções pro cinema que se destacam são filmes como Os Dias de Eclipse, que foi dirigido pelo Aleksandr Sokurov e traz muita experimentação dele, também tivemos a distopia É Difícil ser um Deus, que chegou a ser adaptado mais de uma vez. Todos possuem algum elemento de ficção científica, seja alteração da realidade por um acidente espacial, ou um mundo que os alienígenas invadiram, mas logo abandonaram. Já o longa Hotel do Alpinista Morto é uma obra que traz, além do scifi, o mistério de uma narrativa investigativa, com uma atmosfera absurda e única que pode agradar qualquer fã de Twin Peaks ou Arquivo X.
O cinema da União Soviética era gigante, a maioria vindo do lado russo, mas pouco se fala sobre as produções que saíram da Estônia, ainda mais quando prestamos atenção na ficção científica. A maioria dos filmes do gênero eram curtas, e por isso Hotel do Alpinista Morto se destaca como – provavelmente – o único longa de ficção científica do país. Mesmo sendo único, o filme consegue ser uma obra-prima que compensa essa ausência e representa muito bem o potencial do cinema soviético, e por isso virou um clássico do leste europeu.
Como já mencionei, o filme é baseado em uma obra homônima da dupla Arkady e Boris Strugatsky, mas ao contrário de outros livros mais populares deles, que eram mais voltados pra ficção científica filosófica e introspectiva, Hotel do Alpinista Morto carrega um mistério mais voltado para o thriller policial, ainda que continue sendo, em essência, um scifi mais cabeça.
A trama acompanha o oficial Glebsky, que parte em uma missão urgente envolvendo um resort isolado entre montanhas congeladas chamado hotel do alpinista morto, que levou esse nome exatamente por conta de um acidente com um aventureiro que morreu ao cair de um penhasco, uma memória sempre presente por conta do enorme quadro na entrada do hotel, representando o homem morto. Quando chega no local, o oficial percebe eventos e pessoas estranhas, mas não faz ideia de qual crime deve solucionar. Antes que pudesse ir embora e desistir do caso, Glebsky fica preso no local por conta de uma avalanche que corta as conexões do lugar com o resto do mundo, e é nesse cenário que a investigação começa de verdade, quando vítimas surgem e eventos misteriosos passam a acontecer, fazendo com que todos os hospedes virem suspeitos.
E você pode estar se perguntando onde entra a ficção científica nisso tudo!?
Parte da surpresa do filme envolve exatamente o elemento scifi, o que pode dar uma dica do que está por vir. Costumo evitar entregar spoilers muito grandes da trama, a não ser que seja necessário. Aqui é difícil estragar a experiência revelando detalhes da história porque esse filme é muito mais sobre a própria jornada do que a conclusão. Ainda assim, ele tem uma baita conclusão, do tipo que deixa uma certa ambiguidade em elementos estabelecidos no começo, mas deixa outros aspectos bem claros para o espectador, incluindo uma cena de quebra da quarta parede que explica muita coisa e deixa ainda mais interessante essa experimentação do diretor.
Então, o filme tecnicamente entrega muito do que está por vir logo no começo, e foi uma boa decisão, porque com certeza muita gente poderia assistir esse filme e chegar na parte que ele abraça total a ficção científica e dizer algo do tipo: “Nossa, mas isso veio do nada”. Felizmente, isso é bem executado e quando o grande mistério é revelado, já não parece mais tão aleatório introduzir conceitos mais inesperados.
Enquanto Stalker é dirigido por Tarkovsky e se apoia mais em um debate existencialista, aqui temos a direção de Grigori Kromanov, e ele procura uma abordagem com comentários mais voltados para questões sociais e políticas. Claro que os dois filmes têm uma mistura de tudo isso, mas o diferencial do filme de Kromanov é a mescla de gêneros, experimentação na técnica e o excelente trabalho de fotografia, figurino e som.
O longa carrega muito da estética que viria a ser mais popular nos anos 80, principalmente no figurino e cenário, com cores contrastantes e aquela pegada psicodélica que deixa tudo mais bizarro, em combinação com a fotografia obscura do hotel, com muitas sombras e o uso de espelhos pra criar mais confusão nessa atmosfera misteriosa – uma técnica que vimos ser bastante utilizada em outra indicação aqui do canal, o pouco conhecido, mas bastante influente, Mundo Por um Fio.
Tão importante quanto o trabalho de direção de arte é a música. A trilha sonora de Sven Grünberg também tem bastante presença, carregada de sintetizadores que lembram algo no nível das melhores bandas de música eletrônica, sem contar um pouco das composição que bandas como a Goblin fez para os filmes do Dario Argento.
Grande parte da magia desse filme está nessa parte técnica, como a edição fragmentada de algumas sequencias que deixa uma montagem mais confusa, com a intenção de enganar o espectador e fazer você se perguntar sobre o que acabou de ver. Por isso esse é o tipo de longa que vale a pena assistir mais de uma vez, mas não só pela estética, também por todos os temas que ele levanta, principalmente considerando o período em que foi lançado, mesmo que a ambientação também seja um pequeno mistério. Através do protagonista temos muitos debates sobre as contradições da justiça e os limites da lei, com um personagem que acredita estar fazendo o certo em seguir as regras, mas não avalia suas próprias questões morais sobre os eventos bizarros do hotel.
Esse pode ser uma das poucas referências do cinema de gênero da Estônia, mas consegue ser um clássico da ficção científica, que pode ser um pouco difícil de encontrar pra assistir, mas é uma experiência que merece imersão total e uma tela grande com a direção de arte belíssima e o som estalando com a trilha do Grünberg no talo. Uma inesquecível pérola scifi que não pode ser ignorada.
Não tente entender a história. Apenas continue contando-a.
O cinema de Wes Anderson tem algumas marcas registradas tão evidentes que já chegaram a viralizar ou virar piada até entre quem nunca assistiu um filme do diretor. Muitas pessoas resumem a linguagem dele em personagens excêntricos e uma fotografia colorida com bastante atenção em uma composição simétrica, até mesmo a tipografia das legendas dos seus filmes viraram referência para trends das redes sociais. Por mais que muito disso seja engraçado e real, e ele use mesmo essas técnicas, essa é uma leitura mais limitada de todos os seus aspectos técnicos, já que ele tem um ritmo cômico mais específico, e a direção dos atores envolve mais humor corporal do que lembram.
Nos seus últimos filmes, Wes Anderson parece estar cada vez mais confortável com essa linguagem, dando muito mais atenção para precisão técnica, ao ponto de ignorar qualquer tipo de naturalismo em seu cinema para abraçar completamente o meta-comentário, que ele tem trabalhado por anos, e tem ficado mais forte desde O Grande Hotel Budapeste, e com seu novo filme isso tem se mostrado um elemento ainda mais importante para ele.
Asteroid City é ambientada em uma versão retro futurista dos anos 1950, e conta duas histórias paralelas, uma delas sendo a encenação de uma peça sobre eventos bizarros em uma convenção de ciências na fictícia Asteroid City, a outra sobre os bastidores da criação dessa mesma peça. A peça nos apresenta o protagonista Augie Steenbeck, um fotógrafo de guerra levando seu filho para a convenção de ciências. Nos bastidores, assistimos o ator que interpreta Augie tento dúvidas sobre sua personagem e os rumos da produção.
Trazendo muito do que já é esperado de Anderson, o filme tem um grande triunfo na exploração do conceito de estrutura narrativa, e a brincadeira do diretor em estar constantemente movendo a câmera para reenquadrar um plano é sempre divertido, assim como quando provoca o espectador com as mudanças na razão de aspecto, alternando a tela widescreen e colorida que representa a peça entre o preto e branco e a configuração do tamanho das telas das TVs da década.
Asteroid City está rodeado de boas propostas, com temas que podem ir desde alegorias à pandemia, até comentários mais sarcásticos sobre o papel dos Estados Unidos nas guerras e a exploração atômica. Contudo, a decisão de Anderson em abandonar o seu lado mais realista e se entregar ao surreal pode arriscar um pouco a efetividade de um possível arco dramático para as personagens, assim como o enredo, que está cheio de boas ideias, mas não parece saber conectá-las de uma forma mais coesa. Criativo, com certeza, mas os testes do diretor com o conceito de narrativa correm o risco de comprometer o lado mais emocional por uma virtuosidade na sua própria linguagem que é admirável, mas não parece estar completamente refinada.
Ainda falta algum elemento em Asteroid City para que ele pareça menos artificial em sua apresentação, e com certeza essa experimentação narrativa de Anderson tem todo seu mérito e merece atenção do mesmo jeito, principalmente o uso de técnicas diferentes, incluindo animação em stop motion (em uma das melhores sequencias do longa) ou adesão aos conceitos de outras mídias, mas não consigo deixar de imaginar o quão poderoso poderia ser esse filme se ele também fosse um pouco mais delicado com alguns núcleos dramáticos e tramas que poderiam render grandes momentos de reflexão, e por isso as melhores cenas acabam sendo as de pequenas interações entre esses “atores” sobre suas vidas e como enxergam seus personagens.
Em certo ponto do filme é reforçada a ideia de que “Não tente entender a história. Apenas continue contando-a”, o que seria um ótimo conselho direto do diretor para o espectador, se a história não se empenhasse tanto para passar essa ideia, ao invés de simplesmente tentar contar uma história mais simples.
Asteroid City (2023) Direção de Wes Anderson Roteiro de Wes Anderson e Roman Coppola Atuações de Scarlett Johansson, Jason Schwartzman, Tom Hanks, Bryan Cranston, Jeffrey Wright, Edward Norton, Maya Hawke, Sophia Lillis… 1h 45 min.
Por mais que alguns de seus detratores tentem limitar o cinema nacional à narrativas de drama genérico ou comédia caricata, o nosso cinema é bem mais rico do que isso, e uma das provas está no trabalho de diretores como Adirley Queirós, de obras como Branco Sai, Preto Fica e Era uma Vez Brasília, dois longas que além de serem um olhar crítico da vida periférica em Brasília em relação ao centro politico do país, também são duas obras que exploram um gênero que, infelizmente, tem sido pouco explorado no nosso cinema, a ficção científica. Em outro texto, falo melhor de Branco Sai, Preto Fica, e a importância de sua análise sobre violência, trauma e brutalidade policial, mas também a forma como mescla comentário social com elementos do gênero especulativo, incluindo na trama um viajante do tempo para investigar a sociedade que tem oprimido a população preta.
Indo para Era uma Vez Brasília, temos um olhar que pode até soar completamente pessimista na superfície, muito por conta dessa ambientação que traz uma certa ansiedade existencial por conta do tema principal que explora. O filme tem outra mescla interessante de ficção científica e drama político, contando a história de um agente intergaláctico que recebe a missão de vir para a Terra matar o presidente Juscelino Kubitschek em 1959, mas a personagem acaba se perdendo durante sua viagem temporal e cai na Ceilândia de 2016, no Distrito Federal, quando o país está prestes a presenciar o golpe de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff.
Seria possível criar um paralelo entre esses dois filmes, que evidenciam o caos iminente a caminho de um país que se permitiu flertar com o fascismo, e o próximo longa de Queirós, Mato Seco em Chamas, que representa o país tomado pelo bolsonarismo, além de trazer um questionamento sobre as chances de um recomeço, mesmo em um sistema completamente quebrado.
Codirigido entre Joana Pimenta e Adirley Queirós, Mato Seco em Chamas é mais uma obra que representa a periferia de Ceilândia, em Brasília. Na trama, as irmãs Chitara e Léa lideram uma gangue feminina que consegue roubar petróleo de um oleoduto, refiná-lo e transformar em combustível para os motoqueiros da favela Sol Nascente. Em um presente (ainda mais) distópico, com toques de recolher e barreiras físicas se formando entre as classes sociais, a gangue de gasolineiras cria uma fortaleza em sua refinaria improvisada e precisa se defender de possíveis ataques de qualquer um que queira acabar com sua operação.
Com uma ambientação que, mais uma vez, mescla gêneros como faroeste e ficção científica, fica fácil referenciar esse filme como um “Mad Max” brasileiro, mas isso seria apenas a superfície. Mato Seco em Chamas se utiliza bastante do formato documental e cria uma linha temporal que alterna entre essa narrativa ficcional de ação e uma experimentação documental que explora as histórias das mulheres do presídio Colméia, com depoimentos das próprias ex-presidiárias, que agora interpretam as gasolineiras da ficção. Assistimos as mulheres em sua jornada de redescoberta por identidade depois do aprisionamento, lidando com um Brasil cada vez mais difícil de reconhecer.
“Procuramos mulheres que tinham uma história que trazem uma melancolia, cujos rostos e corpos são marcados por essa história de liberdade e aprisionamento. Uma geração inteira que foi encarcerada e tem o sentimento de não saber se está no presente, passado ou futuro. Você vai para a prisão e o que para você é um dia, para o resto do mundo são anos. É quase coisa de ficção-científica. O tempo é relativo” (Joana Pimenta)
É uma combinação docu-ficção que poderia ser confusa ou artificial na mão de outro diretor sem a mesma sensibilidade, mas Pimenta e Queirós constroem uma narrativa poderosa que faz com que o real e o ficcional passem a ser um só, não só por conta da vivência das atrizes, mas a liberdade criativa em cima do roteiro, aberto ao improviso, o que faz com que as suas protagonistas tragam a realidade em diálogos e atuações autênticas, seja em momentos de descontração, falando de comida ou sexo, mas também – e principalmente – quando retrata a revolta das mulheres contra forças opressoras. Na ficção, elas têm o poder, comandam a distribuição de combustível e tem grande influência no local, embora ainda enfrentem a ascensão da extrema direita durante manifestações de apoio a um verdadeiro criminoso e os milicianos, aqui representados por um grupo de fanáticos controlando drones, de tocaia em um camburão cheio de monitores, luzes e discursos de um “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Realmente, ficção e realidade ficam cada vez mais difíceis de distinguir.
Em complemento a forte atuação das mulheres, principalmente a dinâmica entre Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva e Andreia Vieira, o filme se aproveita de uma câmera estática e um excelente tratamento de cores para representar a favela como um território rico em cultura, mas também a eterna tensão com a possibilidade de uma invasão da força miliciana. A música também tem um papel importante, tanto que o título vêm de uma canção da Banda Muleka 100 Calcinha (ninguém tem mais criatividade que grupos de Forró e Tecnobrega na hora de criar esses nomes), e o longa alterna entre a diversão e extravagância dos bailes de rua com os hinos da igreja, outra figura essencial para deixar clara essa transição pelo qual as personagens passam.
Mato Seco em Chamas traz debates que tem sido essenciais para compreender o Brasil de hoje, desde críticas ao sistema carcerário até a ascensão do fascismo, e cada elemento fortalece a narrativa geral, que mesmo tendo a ficção científica em segundo ou terceiro plano, conta a história dessas mulheres com vidas que viajam entre passado e futuro. Com atuações impressionantes, um enredo orgânico construído em cima de uma crítica política pesada, o longa ficará marcado para sempre na cabeça de muitos por conta dos depoimentos das personagens e o retrato assustador do que foi e continua sendo o pior lado do conservadorismo no país. Na superfície, o sentimento é de tristeza, mas também a possibilidade de mudança, muito disso representado na poderosa cena final do longa. Talvez tão iminente quanto foi o bolsonarismo, é a revolta que nos obriga a derrubá-lo.
2022 foi um dos anos em que eu menos assisti filmes, mas não deixei de lado a ficção científica. De forma geral, foi um ano bem positivo pro gênero, na TV tivemos a estreia de Ruptura, a conclusão de The Expanse e finalmente uma produção de Star Wars que eu gostei. Quanto ao cinema, esse foi um ano bem diverso, com obras originais marcantes, franquias clássicas se renovando com sucesso (prey) – outras nem tanto (jurassic) – e produções independentes que chamaram bastante a atenção.
Como faço todo ano, esse é meu ranking de todos os filmes de ficção científica que assisti em 2022, os piores e os melhores! Com as mesmas regras de sempre. Primeiro, entra aqui todo filme que foi lançado originalmente em 2022, seja no cinema, plataforma de streaming ou festival. Ou seja, tem filme aqui com a data de 2020, mas porque só chegou nas salas do Brasil após dois anos, ou filmes que podem estar agendados para 2023, mas foi exibido em algum festival e eu consegui assistir, então antecipo logo por aqui.
Como vou destacar apenas as obras que valem a pena algum comentário, vamos direto pras menções desonrosas, aqueles filmes que eu não consegui terminar de tão ruim, ou só evitei assistir mesmo.
E também mencionar rapidamente os que eu deixei de lado porque não consegui assistir por falta de tempo ou acesso ao material.
Na lista do que NÃO assisti ainda, ficam filmes como Cryo, Deus, Lola, Next Exit, Rubikon, The Antares Paradox e Viking.
Esses são os que eu não pude ver por falta de acesso ou não deu tempo mesmo. Tem apenas dois filmes que comecei e larguei, e acho que ninguém vai se importar muito com eles, que são Don’t Worry Darling, aquele desastre da Olivia Wilde, e o caça-níquel de nostalgia Jurassic World Dominion, que eu só tentei ver pela Laura Dern, mas não aguentei o núcleo do Chris Pratt e os diálogos feitos por um algoritmo.
Ah, e como é de costume, eu não incluo filmes de super-herói porque eles viraram meio que um gênero próprio, então não tem Pantera Negra, Batman ou Adão Negro, por mais que sejam bons ou ruins, eles só não entram porque não fazem parte do meu corte particular pra lista.
Dito isto, vamos finalmente para o que vale, a lista de Assistidos de 2022, em ordem de pior para melhor.
O que não falta do cinema de horror são filmes em que algum brinquedo, no caso um boneco ou boneca, se torna o principal objeto de construção de suspense, seja ele um assassino que tomou conta do “corpo” de um boneco através de magia ou só a manifestação de algum mal maior. Podemos colocar nessa lista filmes como Annabelle, Gritos Mortais ou Boneco do Mal, mas provavelmente a figura mais popular desse subgênero acabou sendo Chucky, da franquia Brinquedo Assassino, que até o momento conta com sete filmes originais, um reboot e uma série de TV que já está indo para a terceira temporada. Esses são apenas os mais populares que me vieram à cabeça, portanto fica o questionamento sobre M3GAN, produção do estúdio Blumhouse, dirigido por Gerard Johnstone.
Cady (Violet McGraw) perde os pais em um acidente de carro e precisa se ajustar à nova vida morando com sua tia, Gemma (Allison Williams), uma engenheira trabalhando em uma grande empresa de tecnologia. Ambas têm dificuldades para lidar com o trauma, mas Gemma tenta se aproximar da sobrinha desenvolvendo um projeto ambicioso que vai agradar a pequena Cady, além de ajudar a melhorar a imagem da engenheira com o seu chefe de trabalho impaciente. Assim surge Megan, uma boneca com inteligência artificial que promete impressionar investidores, assim como fazer companhia para Cady. Contudo, o protótipo de Megan passa a ter um comportamento estranho e pessoas próximas de Gemma e Cady são assassinadas.
À primeira vista, M3GAN apresenta um elemento que poderia destacá-la entre os filmes listados anteriormente. Ter a boneca título como uma inteligência artificial quebra um pouco com a expectativa de terror envolvendo uma história de origem mais mística, sem o elemento “amaldiçoado” que filmes desse tipo carregam, e isso faz com que ela entre em um território mais familiar da ficção científica. Para ser justo, não vamos esquecer que o próprio Chucky recebeu esse tratamento “científico” em seu reboot de 2019, aquele com a voz do Mark Hamill e sem o envolvimento de Don Mancini, o criador da personagem. Então, por mais que não seja o padrão, também não estou dizendo que Gerard Johnstone fez a coisa mais original do mundo.
Mantendo o sistema Blumhouse de produção e lançamento, a proposta inicial de M3GAN é ser um longa de orçamento pequeno (considerando outros lançamentos do circuito), mas eficaz, com a principal função de atrair o público com uma história competente e personagens marcantes o suficiente para render sequencias. A estratégia tem tido sucesso nos últimos anos, e M3GAN mantém a linha do estúdio de produções pequenas, mas intrigantes, e já rendeu bilheteria o suficiente para que os custos fossem pagos. Porém, por seguir esse caminho devem-se acatar limitações além do orçamento, como renunciar à certas liberdades criativas por conta da decisão de manter uma faixa etária mais abrangente (o diretor mencionou a possibilidade de uma versão sem cortes, mas esse texto foca exclusivamente em seu lançamento original).
Levando em conta a proposta de M3GAN em funcionar mais como um evento e entrada de franquia, o filme tem sucesso completo em conquistar público com todo o marketing da boneca, principalmente depois de um clipe curto de Megan dançando viralizou rápido. Embora seja uma vitória para o estúdio, o filme poderia ter trabalhado melhor alguns pontos narrativos, com uma trama melhor trabalhada, sem tantas repetições e decisões óbvias ao ponto de deixar o enredo previsível. A direção de Johnstone também não chama atenção, é o típico filme encomendado por estúdio, mais controlado pelos produtores, como Jason Blum e o nosso arroz de festa favorito do terror, James Wan.
No fim, o que mantém o público entretido é a dinâmica entre as personagens e uma história que pode ter sido contada milhares de vezes, mas diverte com a abordagem cômica, quase satírica, que algumas cenas carregam – convenhamos, esse filme sabe exatamente o que é e como as pessoas reagirão à ele. Allison Williams finalmente encontrou sua própria franquia de terror para estrelar, e Violet McGraw acaba carregando a maior parte do drama, felizmente ela também é a atriz mais empenhada em transmitir uma emoção menos caricata, como acontece com o comediante Ronny Chieng, que está mais exagerado atuando como o antagonista coorporativo aqui do que em qualquer uma de suas apresentações de stand-up.
Não espere do longa algo além do que promete em suas campanhas virais, e quer saber? Isso é ótimo, acabo respeitando bem mais um filme que sabe o que quer e executa de forma clara do que uma bagunça pretensiosa que acaba ficando mais confusa do que complexa. M3GAN diverte e intriga, tem potencial para uma franquia provocante e capaz de experimentar bem mais agora que deu certo com o público (nem tanto com a crítica, como deu pra ver, mas não acredito que estejam se importando com isso), o único problema é que esse tipo de sucesso deixa cada vez mais clara a intenção de uma produtora como a Blumhouse em continuar na sua zona de conforto.
Para a alegria de muitos fãs, a adaptação do clássico de Frank Herbert, Duna, pelo diretor Denis Villeneuve, foi indicado ao Oscar 2022 em dez categorias. Enquanto gravo esse vídeo, a premiação ainda não aconteceu, então não sabemos todas as categorias que o filme pode ter vencido, MAS já é um grande feito e vitória para um gênero que costuma ser geralmente ignorado em grandes premiações mais prestigiosas. Ainda assim, admito que não estou otimista demais porque, tirando categorias técnicas e raros casos de roteiro e atuação, nunca tivemos um filme de ficção científica ganhando o principal prêmio de Melhor Filme do Ano nos Oscars.
Por mais que a premiação tenha sofrido com uma queda de audiência nos últimos anos, muito disso por conta da péssima administração nos bastidores do que o interesse do público, ela ainda tem um grande impacto na indústria cinematográfica e influência no público geral. O que tem de estúdio por aí que esperou alguma indicação ou vitória no Oscar pra finalmente anunciar seu filme nem dá pra contar.
Mas ainda que tenha esse obstáculo de audiência, os Oscars continuam sendo uma premiação de prestígio e muitos produtores consideram a validação por parte da academia um grande feito. É por isso que filmes de herói, como Marvel e DC, vivem procurando formas de serem indicados. Não vou entrar no mérito de filmes de arte ou não, ou em todo o problema da Disney monopolizando as salas de cinema, mas é curioso como filmes de herói conseguem uma bilheteria estratosférica, mas nunca são reconhecidos pelos Oscars, sendo que eles devem representar a indústria e, queira ou não, os filmes de herói fizeram bastante sucesso.
Você pode não gostar dos filmes de boneco, eu mesmo tenho meus problemas com alguns deles – talvez mais com o sistema do que os filmes em si -, mas convenhamos que desde que O Cavaleiro das Trevas recebeu 8 indicações, mas não foi sequer indicado Melhor Filme, dava pra ver como a premiação era mais parcial com esse tipo de filme. Tudo bem que o filme levou de Melhor edição de Som e entregou a vitória póstuma pro Heath Ledger como ator coadjuvante, mas por mais que eu tenha gostado de Quem quer ser um Milionário?, e o Danny Boyle é um dos meus diretores favoritos, é difícil não aceitar que O Cavaleiro das Trevas acabou sendo o filme que ditou o tom de várias obras – não só de herois, mas de ação – dos anos seguintes. É só lembrar a fase de entrevistas com diretores que prometiam um filme “realista e sombrio”.
É curioso como Birdman, um filme que comenta a indústria de super heróis, foi aclamado pelas premiações e venceu o prêmio de Melhor Filme – enquanto Logan, obra que também procura analisar o próprio gênero enquanto apresenta uma despedida bem construída através de uma narrativa western, e tem algumas das melhores atuações das carreiras de Hugh Jackman e Patrick Stewart, recebeu apenas uma indicação de roteiro adaptado. Talvez se o filme fosse vendido como um longa em plano sequência, como foi Birdman, talvez animasse mais a galera votante do Oscar, que adora um chamariz narrativo ou nostalgia pela antiga hollywood e a segunda guerra mundial – não duvido nada que alguns conservadores até sintam saudade desse último, MAS seguindo em frente.
Voltando para a ficção científica, temos o caso de Argo, que venceu a categoria principal em 2013. O enredo apresenta uma história de ficção científica dentro da história principal, um drama político sobre um agente da CIA em uma operação para resgatar reféns norte-americanos no Irã. É curioso como dentro da narrativa a ficção científica contribuiu para ajudar os agentes em uma missão arriscada, mas o filme só levou o prêmio mesmo porque o gênero estava em segundo plano, o que venceu foi o drama político. No mesmo ano tivemos A Viagem, das irmãs Wachowski, um filme que dividiu bastante as críticas e o público, mas ele é bem melhor que O Lado Bom da Vida, então podia ter roubado o espaço dele na categoria – se bem que todo mundo sabe que o vencedor moral daquele ano foi Django Livre.
A História da Ficção Científica no Oscar
Quando a gente para pra perceber alguns filmes clássicos da ficção científica que não receberam indicações na categoria principal, dá pra perceber a clara indiferença da academia por filmes de gênero. Na maioria das vezes, são lembrados apenas nas categorias de efeitos especiais ou maquiagem.
Duas adaptações de obras de um dos pais da ficção científica moderna, H.G.Wells, se tornaram um marco do gênero no cinema, mas nas premiações da academia receberam apenas um prêmio, na mesma categoria, de Melhores Efeitos Especiais – o primeiro sendo para A Guerra dos Mundos de 1953, e no começo da década seguinte, A Máquina do Tempo, de 1960. Hoje os dois filmes são considerados essenciais para quem tem o interesse em conhecer melhor a ficção científica no cinema, e é uma pena não terem sido reconhecidos por uma instituição que deveria entender sobre a sétima arte. Planeta Proibido, outro clássico da época, também recebeu o prêmio na mesma categoria, mas é triste lembrar que O dia em que a Terra Parou não foi lembrado em categoria alguma.
Mas isso foi algo mais recorrente na década de 1950, as décadas seguintes foram diferentes, obviamente.
Só que não.
Nos anos seguintes tivemos uma sequência de filmes sendo reconhecidos em outras categorias, mas continuaram vencendo apenas em efeitos especiais, e em raros casos, em direção de arte. É como se a Academia nem tivesse os assistido – o que é uma possibilidade considerando alguns vencedores na história do Oscar – e parece que eles só viam ficção científica como uma desculpa para diretores colocarem aliens e naves na tela.
Na década de 1960, Viagem Fantástica venceu em direção de arte e efeitos visuais e em 1969, Planeta dos Macacos conseguiu um prêmio honorário por maquiagem para John Chambers – o que, vamos considerar, é pouco para um filme tão importante quanto esse. O roteiro é do Rod Serling, criador de Além da Imaginação, em um dos seus melhores trabalhos, e ele merecia ao menos ter sido indicado.
No mesmo Oscar de Planeta dos Macacos tivemos uma das obras primas de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço. Ele conseguiu indicações em algumas categorias importantes, como “direção”, “roteiro” e “direção de arte”, e com certeza merecia vencer em todas, mas como você já deve estar imaginando, o filme venceu apenas uma categoria. Efeitos visuais.
O próprio Stanley Kubrick, um dos diretores mais conhecidos e reverenciados da indústria, também é um dos menos premiados nos Oscars, e nunca levou uma estatueta por melhor direção. A única que recebeu, em toda sua carreira, foi a de efeitos visuais em Odisseia no Espaço.
É ainda mais decepcionante lembrar que Kubrick conseguiu quebrar parte da maldição do scifi nos oscars com Laranja Mecânica, em 1971. A obra foi indicada em direção, roteiro, edição, e finalmente, em melhor filme. Foi a primeira vez que uma ficção científica teve a chance de receber o principal prêmio da noite.
E é claro que perdeu.
Mas pelo menos neste ano o grande ganhador foi Operação França, então Laranja Mecânica não perdeu para um filme qualquer.
Em seguida, chegamos na década de 70, e a mesma coisa: todos receberam apenas prêmios de efeitos visuais. Isso aconteceu com Fuga do Século 23, e até o Alien de Ridley Scott. Já Contatos Imediatos do Terceiro Grau, um dos clássicos do Spielberg, conseguiu várias indicações, em “atriz coadjuvante”, “direção”, “direção de arte”, “som”, “edição”, “efeitos visuais” e “trilha sonora original”, mas só venceu em edição de som. Também, seria um crime se perdesse nessa categoria.
Isso começou outra tendência. Além de premiar scifi com efeitos visuais, os Oscars passaram a colocar o gênero na categoria de som o tempo todo.
Na década de 80, isso aconteceu com Aliens: O Resgate, Robocop e De Volta para o Futuro. Quanto à Blade Runner, ele esteve presente nas categorias de efeitos visuais e direção de arte, mas saiu de mãos vazias.
Entre os anos 70 e 80, apenas dois filmes se destacaram ao ponto de receber indicações em categorias principais, incluindo a de melhor filme: mais um do Spielberg, o charmoso e divertido E.T. e um tal de Star Wars, que não fez muito sucesso.
E.T. foi indicado em diversas categorias, como direção, roteiro, direção de arte e edição, e venceu melhor som, edição de som, efeitos visuais (obviamente) e trilha sonora.
Já Star Wars foi em ator coadjuvante, direção e roteiro, vencendo em vários, como direção de arte, figurino, som, edição, efeitos visuais, trilha sonora e um prêmio especial por efeitos sonoros.
Como eu disse, os dois também receberam indicações de Melhor Filme, mas infelizmente, não venceram.
Depois disso, houve um espaço de quase 30 anos sem qualquer filme de ficção científica indicado na categoria principal. Não é como se tivesse faltando bons filmes do gênero.
A década de 90 teve algumas obras incríveis, que até receberam indicações, mas aquelas que você já esperava. Vingador do Futuro em efeitos visuais, O Exterminador do Futuro 2 com som, maquiagem e o obrigatório de efeitos visuais, e Homens de Preto também levando a estatueta por maquiagem. O maior esnobado dessa vez sendo Jurassic Park, que até venceu em tudo que foi indicado, nas categorias de “som” e, se prepare… “efeitos visuais”. Mas considerando que era um filme do Spielberg, um queridinho da academia, é estranho o filme não ter sido reconhecido como deveria.
“Ah, Roberto, para de reclamar, ele ganhou uns três Oscars”.
“Estamos falando de uma premiação em que Shakespeare Apaixonado levou 7 estatuetas e disse que Green Book é o melhor filme do ano, ganhando de filmes bem melhores que ele, você acha que apenas 3 vitórias é o suficiente para um filme que nos trouxe Jeff Goldblum sem camisa?” [jeff goldblum]”
Esse padrão de premiar a ficção científica nas mesmas categorias evidencia a falta de vontade da Academia em reconhecer filmes de gênero, não só scifi, mas horror e comédia, que até hoje são ignorados, mesmo que horror já tenha recebido certo amor dos Oscars quando Silêncio dos Inocentes fez a limpa em todas as categorias principais, merecidamente. É a galera aqui do scifi que nunca recebe um carinho.
Esse é um fenômeno que foi apelidado de sci fi gueto, ou o gueto da ficção científica. Ele reflete um preconceito que algumas obras de ficção científica sofrem por parte de muitas pessoas, que desmerecem o potencial de uma produção pelo simples fato dela possuir características do gênero. Hoje nem tanto, mas já foi bastante comum termos críticos e acadêmicos negligenciando a ficção científica por considerá-la uma forma de arte inferior. Uma das maiores evidências disso são aquelas pessoas que continuam usando os termos “alta” e “baixa” literatura, colocando apenas clássicos literários com foco no drama como um tipo de “alta qualidade”, criada para atrair aqueles interessados em arte. Enquanto obras de gênero, como ficção científica, horror e fantasia, são apenas entretenimento, sem o mesmo peso.
O curioso dessa história toda é que diversas obras de gênero são constantemente incluídas em listas de “alta literatura” ou como clássicos essenciais, mas nunca são mencionados como ficção científica.
1984 de George Orwell está em quase todas as listas de leitura obrigatória, mas raramente é lembrado que ela é tecnicamente uma ficção científica, já que se utiliza a distopia como recurso narrativo. Alguns acreditam que por ser mais carregado em comentário político, a obra deve ser colocada em prateleiras de alta literatura, não misturada com histórias sobre naves e aliens, sendo que esses dois elementos são apenas uma parte minúscula do que o gênero tem. Uma pena ver que a Octavia Butler faz uma distopia ainda mais atual e assustadora em Parábola do Semeador, mas não recebe a atenção merecida porque é jogada em prateleiras de ficção científica.
Muito dessa ideia do scifi se resumir em naves, lasers e alienígenas vem das revistas pulp, que existem desde o fim de 1800, mas eram dominadas por terror e suspense. O formato consistia de uma revista acessível, bem barata, com histórias curtas e voltado para um público jovem, com foco na ação e aventura, onde se popularizaram personagens como Buck Rogers e John Carter.
A ficção científica passou a dominar as revistas mesmo em meados da década de 1920, principalmente com a chegada da revista Amazing Stories, que introduziu para o mundo autores que logo viraram referência no gênero, como Isaac Asimov e Ursula K Le Guin. E com a chegada de outras revistas, como Astounding Science Fiction e Isaac Asimov’s Magazine, ainda mais nomes hoje essenciais do gênero foram surgindo, como Philip K Dick e Frank Herbert. O Brasil teve sua própria revista, com material melhor, mas inspirada nas clássicas pulp, que foi o caso da Magazine de Ficção Científica, com material selecionado por Jeronymo Monteiro, conhecido como o pai da ficção científica no Brasil.
Mesmo tendo autores que seriam respeitados por obras como Duna ou O homem do Castelo Alto, a ficção científica foi, por décadas, considerada apenas entretenimento para o público jovem, sem poder passar disso. Mesmo que hoje o conceito do scifi guetto e preconceito literário seja algo mais conhecido entre os leitores, ele ainda existe. Até autores do gênero, como a Margaret Atwood, afirmam veemente que não querem ser considerados escritores de ficção científica, e vem com aquele papo de ficção especulativa e um monte de regras pra evitar se misturar com a galera que gosta de navinhas, sendo que ela adora uma distopia ou universo pós apocalíptico, né. Ela ficou mais flexível sobre o assunto com o passar dos anos, mas ainda assim, prefiro seguir a Ursula K Le Guin, que sabe se divertir e abraçar o gênero sem nojinho. [fazer algum fancam com a margaret atwood]
É curioso como tantas pessoas ignoram o gênero, mas colocam algumas obras como essenciais para a literatura, sem jamais mencionar que são scifi. Isso costuma acontecer muito com Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451 e O Conto da Aia, sempre chamados apenas de “distopias”, e tem Frankenstein, que só é lembrado como “horror”, e o belo Flores para Algernon, que vivia nas prateleiras de “drama”, principalmente nos Estados Unidos.
Vale mencionar que esse debate do scifi guetto é diferente em lugares como China, Japão e partes da Europa, onde o gênero é mais abraçado, por isso rende até algumas obras bem mais criativas do que diversos clássicos dos Estados Unidos.
Quando falamos de cinema, muitos atores e diretores aclamados acabam ignorados por se envolverem com filmes de gênero. O próprio Boris Karloff, reconhecido por muitos como um dos melhores atores da sua época, quando começou a interpretar seu memorável Frankenstein, raramente recebia o reconhecimento que merecia, muito disso pelo simples fato de estar carregado de maquiagem e interpretando um monstro.
O mesmo acontece hoje com Andy Serkis, que mesmo tendo impressionado o público com sua interpretação como Gollum, em Senhor dos Anéis, ou Caesar, em Planeta dos Macacos, nunca foi reconhecido nas categorias de atuação. A desculpa é que ele trabalha com captura de movimentos, mas os computadores capturam a atuação dele, então o argumento é completamente falho, principalmente quando notamos a diferença entre seus personagens, e entre outros atores conhecidos por captura de movimento, como Benedict Cumberbatch interpretando Smaug, ou o Bill Nighy em Piratas do Caribe, como Davy Jones.
O próprio James Cameron, que sempre faz um sucesso incrível de bilheteria, é conhecido por seus trabalhos de ficção científica, produzindo ou dirigindo obras como Alita, Exterminador do Futuro, Aliens: O Resgate e o gigantesco Avatar, mas só foi reconhecido pela academia quando lançou seu drama, o épico Titanic, único de sua carreira que venceu o prêmio de Melhor Filme.
Esse assunto é maior do que você imagina, talvez eu faça um roteiro inteiro só sobre isso, debatendo preconceitos entre os próprios leitores do gênero, não só autores e críticos, mas isso é um debate para outro dia.
As Chances de Mudança
Com a virada do século, a ficção científica continuou presa nas mesmas indicações e vitórias de décadas anteriores. Interstellar e Blade Runner 2049 receberam indicações em som e design de produção, mas levaram a previsível estatueta de efeitos visuais, com Blade Runner recebendo também a de direção de arte para o Roger Deakins, finalmente.
Como mencionei antes, E.T. foi o último filme do gênero a receber uma indicação na categoria principal, e isso aconteceu no começo da década de 80. Foram quase 30 anos depois que finalmente tivemos outra ficção científica concorrendo em Melhor Filme: em 2009, uma rara indicação dupla, com Avatar e Distrito 9. O filme de Blomkamp não venceu qualquer estatueta, mas o sucesso de James Cameron levou direção de arte, efeitos visuais e design de produção, deixando pra trás direção, edição, trilha sonora, mixagem e edição de som, e a chance de uma vitória em Melhor Filme.
Nos anos seguintes, a ficção científica passou a comparecer mais vezes entre os indicados da categoria principal. Podemos atribuir isso a algumas mudanças nos bastidores da academia, como a entrada de novos membros, principalmente depois de toda a controvérsia sobre a premiação não possuir diversidade o suficiente em sua lista de votantes.
Isso aconteceu em 2010 com Inception, de Christopher Nolan, e em 2013 tivemos mais uma dose dupla, com o tenso Gravidade, de Alfonso Cuarón,e o melancólico Ela sendo indicados para o prêmio de Melhor Filme. Como deu pra notar pelo padrão que esse vídeo mostra, nenhum dos dois venceu, e eu aceitei as derrotas, mas até hoje me dói como A Chegada perdeu em 2016. Pelo menos foi para Moonlight, que é um ótimo filme, mas eu queria que Denis Villeneuve tivesse levado bem mais por Arrival do que por Duna.
E por falar nele, finalmente chegamos ao grande questionamento desse vídeo: será que Duna leva o Oscars 2022 de Melhor Filme?
Como esse vídeo deve ser lançado ANTES da premiação de 2022, essa parte pode ter um efeito diferente dependendo do vencedor da categoria principal. Se Duna vencer, esse vídeo pode ser um documento para registrar o momento histórico de Duna, ou para evidenciar um problema na indústria que, infelizmente, persiste.
Mas quanto às chances de Duna nos Oscars, eu admito que talvez tenhamos um déjà vu da premiação de 2015, quando Mad Max: Estrada da Fúria era a nossa maior chance de ter um scifi levando o prêmio para cara.
Assim como Duna, Mad Max foi indicado em 10 categorias, e eles dividem algumas, como edição, figurino, maquiagem e penteado, direção de arte, design de produção e, para a surpresa de ninguém, efeitos visuais.
Há algumas diferenças. A primeira sendo a categoria de som. Antes tínhamos mixagem e edição de som, mas aparentemente os membros da academia não sabem a diferença entre os dois, já que os mesmos filmes sempre eram indicados nas duas, então hoje temos apenas uma categoria chamada “som”, que engloba edição e mixagem. Se você quiser, pode considerar que Duna foi indicado em 11 categorias, já que duas foram unidas no último ano. E além dessa, Duna tem uma chance bem grande de levar a estatueta por melhor trilha sonora original pelo trabalho do Hans Zimmer.
A maior diferença entre os dois é que Duna tem uma indicação para melhor roteiro adaptado, o que Mad Max não recebeu. Embora seja ótimo, é uma pena como Duna não recebeu uma indicação por direção. Enquanto George Miller foi lembrado, pelo menos indicado, como melhor diretor, Denis Villeneuve ficou de fora. É sempre estranho ver quando um filme está concorrendo ao prêmio principal da noite, mas a pessoa que o fez não está. Isso aconteceu em Argo, que venceu de melhor filme, mas o diretor, Ben Affleck, sequer foi indicado. Se formos seguir esse padrão, talvez seja uma chance para Duna em melhor filme, mas acho pouco provável. É uma pena, mas se isso acontecer, não será uma surpresa.
Erros dos Oscars
A Academia nunca teve a intenção de reconhecer filmes de gênero, e mesmo com mudanças consideráveis nos bastidores, acho pouco provável termos Duna levando o principal prêmio da noite. Não falo isso só pelos outros indicados serem muito bons e merecedores, mas na forma como os Oscars, que deveriam compreender as tendências da indústria, parecem completamente perdidos. Eu sempre penso desse jeito: quem mais poderia ter feito Mad Max daquele jeito se não George Miller?
A definição de “melhor” é subjetiva, mas deveria seguir algum tipo de exigência. Seria ótimo se os Oscars premiassem filmes por sua identidade, seu diferencial. Em 2019 tivemos Pantera Negra, que claramente não é um filme perfeito, poucos são, mas se o compararmos com o vencedor, The Green Book, vale a pena a pergunta: qual dois dois realmente causou um impacto cultural? Não falo de bilheteria, mas de influência.
Eu mesmo concordo com as colocações do Scorsese sobre o cinema de herói estar dominando as salas e tirando outras obras do lugar – e nem vem com papo de oferta e demanda porque não é assim que a distribuição cinematográfica funciona. Mas, convenhamos que Pantera Negra foi um sucesso por motivos que vão além de ser um filme de herói da Marvel, foi uma produção quase inteiramente realizada por uma minoria que foi representada por décadas da pior maneira possível pela indústria. Ao invés de celebrar essa mudança dando o prêmio para Pantera Negra, os Oscars decidiram dar a estatueta para um filme sobre um homem branco ensinando como um homem negro deveria se comportar.
Eu sei, é uma forma meio reducionista de falar do filme, mas convenhamos que ele também não foi feito pelas pessoas mais bem intencionadas do mundo.
Esse não é o primeiro, nem o último caso da Academia premiando alguém que claramente não era o favorito no bolão de alguém. Voltamos para o George Miller, que fez o excelente Estrada da Fúria, um filme que marcou o ano e continua memorável por conta de suas sequências de ação frenéticas, boas atuações, com uma excelente Charlize Theron interpretando Furiosa, e a direção poderosa de Miller, que na época tinha 70 anos, mas com mais fôlego que qualquer diretor jovem de hoje no seu melhor dia.
Você lembra quem venceu no lugar dele? Spotlight: Segredos Revelados.
Spotlight foi um bom filme, teve excelentes atuações e é um drama muito bem feito, mesmo que alguns resumam apenas como “uma obra importante”, o que quer dizer nada em essência. Mas é só isso, um bom filme, que merece completamente todos os elogios, e não digo que não mereceu o prêmio, mas vamos parar pra pensar. Qual desses dois parecia algo novo, criativo e, principalmente, qual deles você lembra?
Estou sendo completamente subjetivo, é claro, mas a premiação também é, e só um desses filmes foi comentado o ano inteiro, continua sendo debatido e está com uma continuação aguardada em andamento. E o mais importante, Mad Max: Estrada da Fúria parecia diferente, o tipo de filme que só o George Miller poderia fazer, tem sua marca em cada segundo, cada fotograma. Você bate o olho e reconhece.
Já Spotlight, esse pode ser confundido facilmente com outros dramas do gênero, como Todos os Homens do Presidente ou The Post: A Guerra Secreta. Quando falamos de Estrada da Fúria, ele nem pode ser confundido com outros Mad Max, e são do MESMO diretor.
A Ficção Científica nos Oscars?
É decepcionante ver como os Oscars são a noite mais aclamada na temporada de premiações, mas é uma das que menos reconhecem os filmes que melhor representam o cinema de sua época. Duna pode não ser perfeito, e se perder na premiação é compreensível, há filmes ótimos para levar no seu lugar, mas a Academia já teve diversas chances de reconhecer a ficção científica em filmes que podemos considerar os destaques daquele ano. Como acontece na literatura, ainda há um enorme preconceito por parte de crítica e público quando se fala de obras de gênero, e essas pessoas perdem a chance de conhecer produções incríveis que podem divertir e emocionar tanto quanto aquelas consideradas de “alta qualidade”, com um enorme diferencial de envolver ocasionalmente uma viagem no tempo, realidade alternativa ou inteligência artificial tomando consciência e controlando a humanidade.
Se a gente parar para pensar, talvez as tentativas de evitar naves e aliens seja apenas medo de se divertir com algo novo. Porque é para isso que serve a ficção científica, fugir do que é óbvio e explorar novas possibilidades.