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Bliss: Em Busca da Felicidade (2021) | Quantas realidades somos capazes de suportar?

Mike Cahill é um daqueles diretores com poucos trabalhos no currículo, isso porque ele costuma ter uma visão bem definida do que pretende colocar em seus filmes, a maioria deles sendo narrativas com elementos de ficção científica, mas indo além disso, com uma atenção maior para o componente humano. Seu primeiro longa, A Outra Terra (Another Earth, 2011), uma produção independente com conceitos criativos envolvendo o surgimento de um novo planeta idêntico ao nosso, e um enredo com temas bem estabelecidos sobre redenção. Cahill continuou sua combinação de ficção científica carregada de drama e debates íntimos sobre a condição humana em O Universo no Olhar (I, Origin 2014), onde trouxe um elenco maior e uma proposta mais ambiciosa, sem contar que repetiu a sua parceria com a excelente Brit Marling, atriz que também ficou conhecida por seu trabalho escrevendo o roteiro da série The OA (cancelada cedo demais após apenas duas temporadas).

Então, para aumentar ainda mais a escala, o diretor trouxe Bliss: Em Busca da Felicidade (apenas Bliss no original), com um elenco principal de rostos conhecidos e uma narrativa sobre… bem, sobre tópicos familiares para os fãs de ficção científica, mas que podem ser considerados spoilers pesados. Então, para essa crítica, deixarei os spoilers separados em uma categoria própria, assim você pode ler antes e depois de assistir ao filme. Vamos ao que interessa:

Greg Wittle e seus pensamentos

Salma Hayek e Owen Wilson no filme Bliss Em Busca da Felicidade Disponivel na Amazon Prime Video

Preso em um trabalho monótono e sem saída, Greg Wittle (Owen Wilson) passa a maior parte de seu tempo desenhando e imaginando novos mundos onde pode descansar sua mente e não precisa lidar com seu recente divórcio ou a dificuldade para se conectar com os filhos. Mas depois de ser demitido, ou quase, Greg conhece Isabel Clemens (Salma Hayek), uma mulher misteriosa e convencida de que o mundo à sua volta não passa de uma simulação. Mesmo relutante, ele decide ouvir a mulher e ver até onde ela acredita em sua teoria, mas não demora para que Greg comece a perceber padrões e coincidências na conspiração que Isabel criou sobre sua realidade.

Antes mesmo de assistir ao filme, a primeira coisa que me pareceu estranha foi a decisão de ter Owen Wilson e Salma Hayek como os personagens principais. São dois atores competentes, cada um já teve sua parcela de ótimos filmes (Owen com Meia Noite em Paris e Salma com Frida) e alguns desastres (Owen em Gênios do Crime e Salma em Gente Grande), mas nunca os imaginei protagonizando um filme desses. E talvez eu nunca tenha pensado nisso por um motivo, porque a dupla não consegue oferecer tudo que seus personagens precisam em algumas partes.

Salma até consegue um bom trabalho alternando entre uma pessoa extravagante e intimidadora, indo para uma personagem mais contida; mas Wilson mantém seu tom ao longo do filme, e não é como se ele estivesse apenas mantendo a consistência de um personagem com ansiedade. Ele é constantemente bombardeado por novas revelações e, mesmo quando chega em um ponto de completa realização pessoal, nunca parece deixar isso claro. Mas há a chance de tudo isso estar ligado à temática da obra, o que eu não descarto, mas ainda assim não vejo como uma justificativa forte o suficiente.  

O que Cahill faz é entregar uma ambiguidade entre realidade e fantasia, revelando sequências absurdas, mas ao mesmo tempo contrabalanceando com pequenos momentos capazes de estabelecer de forma “objetiva” o que estamos vendo, e mesmo assim, não há certeza (talvez consistência seja uma palavra melhor) em qualquer uma das duas perspectivas. Em certo ponto, assistimos Greg se livrar de um grupo de criminosos de uma forma que literalmente desafia as leis da física, mas o próprio enredo do longa estabelece que isso pôde ser realizado por conta de um produto que, aparentemente, Isabel é uma das poucas pessoas capazes de conseguir. Ao mesmo tempo que o filme define uma regra para seus eventos mais absurdos, ele também apresenta uma terceira camada, quase como uma incerteza causada pela própria regra que estabeleceu. 

Esse é o tipo de abordagem que eu espero de um diretor como Shane Carruth (do independentíssimo Primer; e o menos independente, mas também menos conhecido Upstream Color), que também adora se aproveitar de narrativas especulativas ou fantasiosas para criar um drama maior através de metáforas e símbolos (falarei deles mais pra frente). Mas enquanto Carruth abraça completamente o abstrato, o que talvez fizesse mais sentido para a ambiguidade que Bliss tenta propor, Cahill chega a flertar com sequências oníricas e jogos de câmera que tentam representar a confusão dos personagens, mas a tentativa de conciliar o drama do protagonista com a dúvida causada pela trama deixa a verdadeira proposta do filme mais óbvia do que o necessário, e em certo ponto surge a sensação de estarmos assistindo um truque de mágica longo demais porque, em algum momento no meio do caminho, acabamos descobrindo como o truque é feito. 

Ao Regresso Infinito: Os Temas e as Referências de Bliss

(Spoilers, pule para a Conclusão se quiser evitá-los)

Salma Hayek e Owen Wilson em uma pista de patinacao no filme Bliss em busca da felicidade Disponivel na Amazon Prime Video

Por mais que na superfície a proposta caminhe em um território fantasioso, não demora para ficar claro que estamos lidando com um roteiro que utiliza a ficção científica de forma simbólica, um pano de fundo para debater tópicos mais delicados, nesse caso, o vício. Na primeira cena podemos ver Greg tomando pílulas controladas, e pelo que seu diálogo indica, elas acabaram. Além disso, o protagonista sofre ao tentar manter-se limpo das drogas, mas acaba tendo uma recaída ao encontrar Isabel, que o induz a tomar cristais capazes de fazê-lo “acordar da falsa realidade em que vive”.

Por mais que o filme aparente criar uma certa estabilidade na forma como suas sequências mais surreais são apresentadas, o diretor nunca nos deixa sozinhos tempo o suficiente com nossos pensamentos. A intenção é clara e tudo com o que ficamos é a incerteza sobre as regras daquele mundo e a percepção de realidade do protagonista, mas quando essa dúvida é rapidamente deixada de lado (logo na cena em que os dois são liberados da prisão, podemos ver a entrada para um centro de reabilitação), o filme continua com sua estrutura de procurar nos deixar (desnecessariamente) em uma área mais nebulosa, alternando entre a jornada de Greg e o desespero de sua filha em ajudá-lo.

Outro tema bastante explorado por Bliss é o argumento da regressão infinita, envolvendo uma batalha entre nosso conhecimento e crenças, e assim Greg está constantemente questionando sua realidade, mas ao mesmo tempo, tentando justificá-la. Em uma cena-chave temos uma personagem interpretada pelo divulgador científico Bill Nye, que menciona a expressão “Turtles all the way down”, que é basicamente uma das principais representações desse conceito, envolvendo uma tartaruga apoiada no casco de outra tartaruga, e depois outra, e por aí vai. Essa ideia do constante retorno, da tentativa de justificar algo com um argumento que apenas dificulta a compreensão do que foi estabelecido originalmente é uma que já foi interpretada em outras mídias, como em It: A Coisa, de Stephen King, ou os livros da série Discworld, de Terry Pratchett. 

E já que estou mencionando participações especiais (Bill Nye interpreta uma personagem, mas é basicamente ele), uma que me pegou de surpresa foi a do filósofo Slavoj Zizek, que aqui está em um de seus monólogos sobre ideologia social, mas como um holograma na “verdadeira realidade” apresentada por Isabel. Na cena, ele menciona como talvez o conceito de inferno não seja tão ruim quanto dizem, e continua com seus maneirismos, o que foi bem divertido de ver, sem contar que ele não poderia fazer uma ponta no filme sem mandar um de seus “And so on”.

Conclusão

O envolvimento de Cahill no projeto me deixou animado para o que esse filme pudesse ser, e o fato de ele estar por trás do roteiro fez com que tudo parecesse ainda mais seguro. Por mais que os temas sejam genuinamente interessantes, é a forma como o filme trabalha seus símbolos que realmente me fez considerar esse um de seus trabalhos mais fracos. Ainda há muito o que ser aproveitado aqui, como a trama principal da filha de Greg o procurando pela cidade, ou a perseguição nos minutos finais, mas a tentativa de transformar uma narrativa especulativa em uma metáfora para assuntos mais delicados não terminou bem, e ficamos com uma execução rasa e previsível para o que poderia ser um estudo de personagem bem mais envolvente. 

Não desistirei de Mike Cahill tão fácil, mas talvez seja hora dele lembrar porque seus filmes menores foram tão queridos, e não foi pelo elenco mais famoso ou um maior orçamento, mas pela forma inteligente com que conduzia seu enredo. 

“Bliss: Em Busca da Felicidade” está disponível na Amazon Prime Video

Trailer:

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Missão Planeta Terra (Spaceship Earth, 2021) | Ainda há chance para um futuro otimista?

Poucos projetos são tão ambiciosos quanto absurdos como Biosphere 2, uma empreitada comandada por um grupo de artistas engajados em desenvolver uma comunidade capaz de conscientizar as pessoas sobre os desastres ambientais do planeta, e para isso idealizaram uma redoma gigante que abrigava uma réplica do ecossistema terrestre. Em setembro de 1991, com a ajuda do investimento milionário de um herdeiro da indústria do petróleo, uma equipe de oito pessoas entrou na redoma, onde viveriam por dois anos, para poder testar a possibilidade do ser humano sobreviver no espaço. O que parecia a premissa de uma obra de ficção científica tornou-se um dos eventos mais comentados da década, principalmente com o envolvimento da imprensa, que além de observar cada passo da equipe, também começou a questionar suas intenções e o aspecto de culto em volta dos membros – a maior parte deles sem qualquer conhecimento científico – e seu líder carismático, John Allen.

O documentário, dirigido por Matt Wolf, conta com entrevistas de quase todos os envolvidos no projeto original e constrói uma linha temporal que apresenta, em sua maior parte de forma bem linear, o encontro desse grupo de artistas duas décadas antes do evento, quando ainda eram apenas hippies em moradia coletiva, até o dia em que seu grande projeto foi posto em ação. Por mais envolvente que seja a primeira metade do longa, onde conhecemos melhor cada membro do projeto, o que realmente chama a atenção do espectador são os obstáculos encontrados pela equipe assim que entram na Biosphere 2. O problema está na demora para o filme realmente abordar a proposta principal, que chega quase na metade da duração, e infelizmente não explora o suficiente do isolamento social, o que além de extremamente atual durante tempos de Covid-19, era facilmente a parte mais interessante de todo o documentário.

Fotografia com os oito integrantes do projeto Biosphere 2, que estão no documentario Missão Planeta Terra, disponivel na Netflix.

Algumas das filmagens de arquivo são muito boas, mostrando a equipe em sua rotina de trabalho, cuidando das plantações e animais, mas também seu momento de lazer, tentando cozinhar utilizando o mesmo alimento por dias. E as coisas se complicam quando diversos contratempos começam a surgir, então seria uma boa decisão se tivéssemos mais disso, mas sem comprometer o que foi introduzido anteriormente. Não é como se houvesse pouco conteúdo para ser explorado, já que apenas nos minutos finais o longa decide debater as consequências do projeto, que foi parar nas mãos de pessoas com uma intenção completamente diferente da originada pelo grupo, e isso já seria suficiente para mais uma hora de rodagem. Uma montagem mais dinâmica poderia ter ajudado no ritmo e na divisão da linha temporal, mas mesmo que seja uma oportunidade perdida, o que temos é o suficiente para compreender a missão de John Allen e seus seguidores.

Independente da estrutura, Missão Planeta Terra vai além de uma jornada previsível sobre um grupo de idealistas tentando mudar o mundo com sua atitude positiva e trabalho em equipe para ter seus sonhos despedaçados por ganância corporativa. O que Matt Wolf procura está na forma como nossas ambições se tornaram cada vez menores, e nosso pessimismo tem se tornado algo quase recorrente. Em certo ponto do documentário, um dos entrevistados diz não culpar a imprensa e seus questionamentos, isso porque logo temos uma figura que representa o verdadeiro antagonista do longa, e sua atitude é apenas um reflexo de porque temos menos empreitadas como essa. 

John Allen e sua equipe podem não ter sido as pessoas ideais para o projeto, mas o filme não tenta julgá-los ou os responsabilizar completamente por todos os problemas. Assim, ficamos com uma sensação quase melancólica de como somos rápidos em julgar tudo de forma cínica quando poderíamos contribuir para uma melhora significativa. É triste ver como nosso fascínio pela exploração espacial e o futuro da humanidade foram rapidamente tomados por um pessimismo tão grande, mas será que ainda há espaço para qualquer otimismo ou estamos apenas esperando pelo fim?

Pessoas observando os membros do projeto Biosphere 2 no documentario Missao Planeta Terra disponivel na Netflix

Esse pode ser um documentário simples e bem objetivo em sua proposta, mas ainda assim vale a pena a indicação por conta dos temas que consegue explorar e os entrevistados, que entregam alguns comentários relevantes sobre a situação, criando um paralelo com sua situação e os últimos anos tomados por uma pandemia, o que também afetou profundamente nossas vidas.

Missão Planeta Terra está disponível na Netflix

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Nova Ordem Espacial (Seungriho, 2021) | Encontrando a humanidade nos destroços

No ano de 2092 o planeta Terra está morrendo cada vez mais rápido, tomado por toda a poluição e o caos de outros desastres, sejam eles naturais ou não. Uma grande corporação, conhecida pela sigla de UTS, consegue desenvolver uma colônia espacial habitável, mas ela não está disponível para todos. Assim, grande parte da população precisa descobrir uma maneira de sobreviver em plataformas e outros ambientes menos favoráveis, como a tripulação da Victory, uma nave coletora de lixo. Tentando sobreviver com o pouco que ganham em suas missões, Tae-Ho (Song Joong-Ki), a Capitã Jang (Kim Tae-ri), Tiger Park (Jin Seon-Kyu) e o robô Bubs (dublado por Yoo Hae-jin) encontram um enorme obstáculo quando acabam acidentalmente em posse de um andróide infantil perigoso, que tem poderes misteriosos e pode se transformar em uma arma de destruição em massa.

Em uma decisão desesperada para conseguir algum dinheiro, a tripulação da Victory aproveita o enorme interesse de todos na criança e se arrisca em um território dominado por criminosos do mercado negro, agentes do governo e até uma organização secreta conhecida por tomar medidas drásticas contra seus inimigos. Mas não é como se a equipe fosse tão amadora assim, isso porque Tae-Ho já serviu como comandante da Guarda Espacial, Park escapou da Terra e de uma sentença de morte por liderar um cartel de drogas e o robô Bubs largou suas atividades como militar para seguir seu sonho de uma pele orgânica. Mas dos quatro, a mais perigosa é Jang, que deixou de lado sua carreira como oficial do Pelotão das Forças Especiais para criar sua própria organização pirata e planejar o assassinato de James Sullivan (Richard Armitage), o presidente da UTS. 

Personagens e Elenco

Atores Jin Seon-Kyu, Yoo Hae-jin e Song Joong-Ki investigando uma nave perdida no filme Nova Ordem Espacial

A premissa de Nova Ordem Espacial (Seungriho, no original) tem diversos elementos interessantes, e por mais que a proposta também pareça um pouco derivada de outros filmes do gênero, ela acaba fazendo bastante sentido com o drama dos personagens, essa sim, a verdadeira força do enredo. Com um elenco carismático, cada membro da Victory possui uma característica básica muito bem estabelecida, então quando o longa precisa oscilar entre drama e comédia, tem um resultado bastante natural. Tae-ri e Seon-Kyu seguem a fórmula de capitã durona e brutamontes de grande coração, respectivamente, e por mais que Bubs renda algumas piadas engraçadas por conta de seu humor mais arrogante, é Joong-Ki quem fortalece o núcleo dramático do filme, com seu Tae-Ho que consegue ir de um líder cheio de lábia para um perdedor atrapalhado, mas quando o roteiro depende da subtrama de um passado traumático para a personagem, o ator aproveita cada momento de introspecção e catarse emocional.

Embora tenha acertado em cheio com seu elenco principal, que por vezes chega a lembrar um pouco a dinâmica entre os caçadores de recompensa do anime Cowboy Bebop (excelente obra, estou devendo um texto sobre ela), não é em todas que se ganha, e o filme está dividido em dois núcleos narrativos: o eixo espacial e o micro-universo da colônia da UTS, essa segunda sem metade do impacto de seu contraposto espacial. Por um lado foi uma decisão esperta colocar um elenco que realmente representasse algumas nações, como incluir atores norte-americanos ou latinos no papel de personagens da respectiva nacionalidade, mas ainda que tenham conseguido um ator competente como Richard Armitage (mais conhecido por interpretar Thorin na trilogia O Hobbit) para interpretar o principal antagonista, também há quase um desinteresse em desenvolvê-lo além do estereótipo de vilão com um claro complexo messiânico de salvar a humanidade na típica abordagem “os fins justificam os meios”. Com exceção de sua voz, não sobra muita coisa para o vilão usar como ferramenta de intimidação. 

Apesar de ter elogiado o núcleo espacial, seria injusto deixar de mencionar alguns tropeços nessa parte, mas eles são mais questão de oportunidades desperdiçadas do que problemas estruturais. Quando o longa decide se dedicar à novas subtramas (apenas mencionadas rapidamente através de diálogos anteriormente) na sua segunda metade de rodagem, há uma sensação de que outras tramas foram comprometidas, mas poderiam render bem mais do que o superficial. Foi um ponto alto do filme tentar criar um dilema na personagem de Tae-Ho, que precisa escolher entre um passado incerto e a possibilidade de uma redenção por conta de novas oportunidades, mas isso roubou um pouco do espaço que poderia ser dado para a subtrama do robô Bubs, que comenta a importância de sua operação para que finalmente possa ter a liberdade de assumir sua identidade de gênero por completo, interna e externamente. É um elemento pouco aproveitado do roteiro, que nos últimos minutos da obra perde um pouco do impacto já que passou grande parte do filme de lado para priorizar outras histórias. 

Efeitos visuais se destacam

A atriz Kim Tae-ri atuando como a capitã da nave Victory no filme Nova Ordem Espacial disponível na Netflix

Quando saímos um pouco do debate sobre as personagens, podemos focar um pouco na parte técnica. A direção fica por conta de Sung-hee Jo, e ele tem a chance de experimentar bastante com os efeitos especiais, o que ele faz nas tomadas de perseguição e batalha espacial, com direito a naves passando por enormes estruturas fazendo manobras impossíveis, mas bem criativas para uma sequência de ação. É esperado que um filme como esse tenha um ritmo dinâmico, e é o que acontece, mas também é preciso tomar cuidado para que essa necessidade por visuais impactantes não contribua para uma poluição visual desnecessária. Se por um lado é divertido assistir toda a ação no meio dos detritos espaciais, em alguns momentos o espectador pode ficar um pouco perdido na geografia da cena, sem saber quem é quem. Felizmente, isso acontece pouco. Mas quando se trata dos segmentos onde a ação exige um combate corpo a corpo, a câmera tremida e a montagem picotada não são o suficiente para esconder uma coreografia fraca. Em certo ponto, temos uma perseguição seguida por uma cena de ação com tantos cortes desnecessários que distraem ao ponto de incomodar. 

Nova Ordem Espacial é uma ficção científica que parece não ter muito para oferecer de início, mas logo conquista com efeitos especiais bem feitos e um elenco carismático ao ponto de fazer com que você esqueça o enredo batido. Produção coreana, esse filme me lembrou um pouco o recente Terra à Deriva, uma produção chinesa que também chamou bastante a atenção por conta de seu elenco e efeitos visuais, tanto que acabou se tornando uma das maiores bilheterias da história do país. Depois de sofrer um adiamento por conta da pandemia de COVID-19, com a adição de Nova Ordem Espacial no catálogo da Netflix, talvez esse filme ganhe mais atenção.

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O Céu da Meia-Noite (2020) | George Clooney retorna ao espaço (ou quase).

Com uma filmografia competente, George Clooney já provou há um bom tempo que não é apenas o rosto bonito que começou a chamar a atenção por sua participação na série E/R (no Brasil conhecido por Plantão Médico), criada por Michael Crichton, o mesmo responsável por Parque dos Dinossauros e O Enigma de Andrômeda. Clooney logo começou a pegar papéis mais desafiadores e se destacar em filmes como E Aí, Irmão, Cadê Você, o que o deixou cada vez mais famoso e interessado em dirigir seus próprios filmes. Admito não ser fã da maior parte de seu trabalho por trás da câmera, mesmo considerando Boa Noite e Boa Sorte um ótimo filme, e é por isso que quando soube do lançamento da ficção científica O Céu da Meia-Noite, fiquei interessado no que ele poderia fazer em um território no qual já atuou, mas nunca dirigiu.

Adaptação do livro Good Morning, Midnight, de Lilly Brooks-Dalton, O Céu da Meia-Noite é ambientado em um futuro pós apocalíptico, no qual parte da humanidade foi extinta por conta de um cataclismo misterioso. Enquanto todos planejam uma evacuação do planeta, o cientista Augustine (Clooney) decide ficar para trás e cuidar da base de pesquisa no Ártico, onde trabalha sozinho procurando por possíveis planetas habitáveis.

Sem saber dos eventos que acabaram de acontecer na Terra, a astronauta Sully (Felicity Jones) e sua tripulação estão retornando para casa depois de sua missão de exploração espacial, o que obriga Augustine a tentar avisá-los, mas para isso ele precisa enfrentar os riscos do Ártico, além de cuidar de uma criança deixada para trás durante a retirada do planeta. 

A atriz Felicity Jones no filme O Ceu da Meia Noite

Vamos tirar logo do caminho o que realmente funciona nessa obra, que é todo o apelo visual. Mais uma vez colaborando com Clooney na direção de arte está Martin Ruhe, com um bom olho para composição de algumas sequências de tensão bem arquitetadas, principalmente as tomadas espaciais, que podem evidenciar o CGI, mas há movimentos de câmera “impossíveis” que conseguem diminuir a sensação de estranhamento, exatamente por compreender que a melhor maneira de filmar uma cena inteira com uso pesado de efeitos visuais seria simplesmente trabalhá-la quase completamente na pós-produção.

Mas isso entra mais no departamento de efeitos visuais, que fez o trabalho mais consistente e sem exageros, apenas uma atenção maior para coisas como a textura do casco das naves, por exemplo. Isso pode parecer pouca coisa, mas faz uma enorme diferença em alguns filmes e evita tirar completamente o espectador da experiência.  

Ainda sobre a direção de arte, por mais bonita, essa também cai em um problema bem comum de filmes do gênero, que é uma fotografia quase monótona, com estruturas e um visual limpo demais, quase sem identidade. Parece algo contraditório, mas é uma pena ver filmes com a possibilidade de explorar visuais bem mais criativos por conta de sua premissa de ficção científica, mas não parecem ter a coragem de seguir isso até o fim – ou seja, visuais bem feitos de um ponto de vista técnico, mas sem uma personalidade capaz de dar uma voz única para o filme; o que não é uma obrigação, mas faz falta quando os visuais são o elemento de maior destaque da obra.

Quanto ao enredo de Martin L. Smith, imaginei que ele fosse trabalhar a premissa batida de O Céu da Meia-Noite com uma execução tão boa quanto a que fez em outros roteiros, como o do inventivo Operação Overlord. O conceito do cientista solitário em procura de humanidade e redenção, toda a ambientação pós apocalíptica de cataclismas ou astronautas explorando possíveis planetas para habitar são alguns dos elementos mais comuns do gênero, o que é totalmente válido aqui, mas se você não procura sair de uma estrutura formulaica, ficamos apenas com um filme previsível e a sensação de estarmos assistindo uma colagem de outras obras bem melhores que poderíamos estar vendo no lugar (Não gosto de fazer muitas comparações quando faço uma crítica, mas A Chegada, Ad Astra e o próprio Gravidade, onde Clooney atuou, são exemplos de filmes que abordam temas similares, porém com melhor atenção ao drama, essencial para narrativas como essa).

George Clooney estrela a FC Ceu da Meia Noite
George Clooney

Por falar no drama, há um sério problema de caracterização dos personagens, que mesmo mencionando e até mostrando pequenos vislumbres de suas vidas passadas, não conseguem carregar peso algum. Com exceção de Augustine, interpretado por um Clooney abatido, o resto dos personagens não parecem possuir algo além de características básicas e arquétipos, como “o pai que sente falta da família” ou “a jovem inexperiente”. Até mesmo Felicity Jones, que estava grávida durante as gravações e pôde adaptar isso em sua personagem, não recebe muito com o que trabalhar, e na maior parte da rodagem do filme parece apenas entediada e confusa.

Essa falta de personagens melhor definidos fica difícil de ignorar quando o terceiro ato decide se apoiar em um desenvolvimento mais emotivo, que ao invés disso, acaba soando melodramático. Também não ajuda o fato do longa dividir-se em dois núcleos dramáticos, que mesmo ligados de forma direta, não trazem paralelos capazes de fortalecer seus temas principais, o que cria um ritmo inconsistente enquanto alterna entre essas duas linhas narrativas. Como se não fosse o suficiente, quando o filme realmente procura uma conexão na esperança de entregar um final surpreendente e enternecedor, somos deixados com uma reviravolta tão previsível que seria mais inesperado se ela não existisse.

Talvez Clooney precise continuar assistindo mais alguns filmes do gênero como referência (desde que fique longe da versão norte-americana de Solaris, também estrelada por ele). O Céu da Meia-Noite busca uma abordagem introspectiva e tocante, mas o resultado acaba sendo uma experiência cansativa e uma ficção científica cheia de escolhas óbvias, que não procura fugir da fórmula, mas também não se esforça o suficiente para se destacar.

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O Horror Cósmico de H.P. Lovecraft e suas Influências

“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”

Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples. 

Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?

Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:

“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.

Arte de Andree Waliin sobre o Mito de C´tchullu
Arte de Andree Waliin

Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.

Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas. 

Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.

Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança. 

Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta. 

O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.

O escritor Alan Moore
Alan Moore

A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.

Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.

Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde

No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível. 

Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.

Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.

Filme O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter

Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.

O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.

Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.

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VÍDEO: A Vastidão da Noite (The Vast of Night) | Um suspense simples, mas eficaz

Distribuído pelo serviço de streaming Amazon Prime Video, A Vastidão da Noite (The Vast of Night, 2019), explora uma noite na pequena cidade fictícia de Cayuga, onde um apresentador de rádio e uma operadora de telefone captam uma frequência misteriosa e decidem investigar, mas esse é só o primeiro dos absurdos que a noite separou para eles.

O filme já está disponível no Prime Video, mas infelizmente não tem recebido a atenção merecida, então decidi trazer uma rápida crítica para indicar essa obra independente e cheia de estreantes na equipe, mas muito bem executada.

Assista o vídeo:

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Queen e a Ficção Científica

Essa não é uma matéria comum por aqui, mas passei tempo demais sem poder combinar duas grandes paixões da minha vida: a ficção científica e a música da Queen, a maior e melhor banda que já existiu (comprovado cientificamente). Brincadeiras à parte, é curioso notar como os integrantes da banda foram inspirados e também conseguiram influenciar os gêneros da ficção científica e fantasia. 

Uma das características que melhor representa a Queen é a forma como cada membro carrega gostos e interesses diferentes, mas de alguma maneira consegue trazê-los organicamente para o repertório da banda. Freddie Mercury, Brian May, Roger Taylor e John Deacon já se arriscaram em diversos estilos musicais, e eu não estou exagerando quando digo que foram muitos.

Além do clássico hard rock e heavy metal casando com elementos de ópera e balé, músicas como The March of the Black Queen, Bohemian Rhapsody e Innuendo foram o máximo da experimentação, com assinaturas de tempo incomuns para as rádios. A banda também já brincou com o punk em Sheer Heart Attack (Freddie já chegou a se desentender com o cantor Sid Vicious), trocou os seus instrumentos padrões por guitarras espanholas, maracas e campana em Who Needs You, e eu não sei explicar o que acontece em Mustapha, onde Freddie Mercury canta inglês, árabe, persa e outra língua inventada. Faz parte da banda explorar novas loucuras para inserir em seus álbuns, e eu mencionei apenas os primeiros exemplos que me vieram na cabeça. 

Roger Taylor e Freddie Mercury nos bastidores
Roger Taylor e Freddie Mercury

Mas vamos ao que interessa. Mesmo que Queen seja o maior acontecimento da história da música (nem um pouco hiperbólico), esse é um site sobre ficção científica, e é hora de lembrar como esses dois mundos se encontram.

A primeira coisa que devemos notar é que os próprios integrantes da banda sempre tiveram um pé na ciência. O baterista Roger Taylor tem um diploma em biologia e o guitarrista, Brian May, possui um PhD em astrofísica. May chegou a colaborar com a NASA no projeto New Horizons, que tinha como um de seus objetivos fotografar e estudar Plutão. 

E como se isso não fosse o suficiente, a carreira solo dos dois é ainda mais ligada à ficção científica. Os dois primeiros álbuns de Roger Taylor foram intitulados Fun in Space (Diversão no Espaço) e Strange Frontier (Estranha Fronteira), enquanto May se envolveu em projetos musicais com nomes como Star Fleet (Frota Estelar) e 1984 (referência direta ao livro de George Orwell), sua primeira banda. 

Brian May e David J Eicher
Brian May e David J Eicher 

Seguindo uma linha cronológica, a primeira ligação da banda com o gênero está no álbum A Night At The Opera (1975).

Queen já havia criado uma narrativa de fantasia entre seus álbuns Queen (1973) e Queen II (1974), mas foi só com A Night at the Opera, título inspirado no filme de mesmo nome estrelado pelos Irmãos Marx, um grupo conhecido por várias comédias clássicas, que a banda teve sua primeira música com temática de ficção científica. 

Escrita e cantada por Brian May, a canção ´39 traz a banda inteira cantando em harmonia a história de um grupo de astronautas que embarca em uma viagem de um ano. Mas ao retornar, percebem que por conta da dilatação temporal, centenas de anos já se passaram. A música segue o ponto de vista desses astronautas, que agora percebem como todos que deixaram para trás estão velhos ou mortos.

Para contrastar a narrativa melancólica, May decide seguir com um arranjo folk, ao estilo das músicas skiffle, que mesclam jazz, blues e country. Nas apresentações ao vivo, Freddie Mercury geralmente cantava no lugar de May, que ficava ocupado no violão. Pessoalmente, prefiro a versão do álbum, mas esse ao vivo com Roger Taylor berrando é o que melhor representa a atmosfera da canção: 

O próximo exemplo não está em uma música, mas sim em uma ilustração. Além do álbum News of The World (1977) trazer hinos da banda, como We Will Rock e We are The Champions, a primeira coisa a chamar atenção é a sua arte de capa. 

A arte revela um robô gigante segurando a banda em suas mãos mecânicas e ensanguentadas, com uma expressão aparentemente triste. Para quem acha essa capa aleatória, ela tem a ver com a paixão do baterista Roger Taylor pelas clássicas revistas de ficção científica que você podia encontrar em qualquer banca na década de 1950 e 60.

A ilustração do robô gigante apareceu pela primeira vez na capa da revista Astounding Science Fiction, e a arte original foi feita por Frank Kelly Freas. O artista chegou a explicar a imagem, dizendo que ela representa um robô acidentalmente destruindo um ser orgânico, mas triste por não poder consertar. A edição da revista trazia a história The Gulf Between, do escritor Tom Godwin, sobre uma civilização futurista onde os robôs podem trabalhar como qualquer ser humano, mas devem seguir as regras sem questioná-las. 

24 anos depois do lançamento da revista, a banda contratou Freas para recriar a imagem, dessa vez trocando o humano da capa original pelos integrantes da banda. 

Agora podemos seguir para as trilhas sonoras. Por mais que Queen esteja presente em incontáveis filmes, não foram muitos para os quais eles prepararam uma trilha sonora original. A primeira delas foi para o filme Flash Gordon (1980), longa inspirado no herói das tiras de jornal criado por Alex Raymond.

Principal concorrente de Bucky Rogers, Gordon é um homem forte e corajoso, que acaba preso no planeta Mongo, comandado pelo tirano Ming. As histórias eram simples e logo se transformaram em uma ópera espacial maior e mais épica. Em questão de adaptações, Flash Gordon teve séries, animações e mais de um filme, mas o mais conhecido continua sendo a versão de 1980, que contava com a trilha sonora original feita por Queen. 

O álbum Flash Gordon (1981) tem uma arte de capa incrível e Brian May queria criar a música mais explosiva e heróica que imaginou. Além da faixa-tema, Flash’s Theme, o álbum trazia ótimas canções como The Hero e a melhor versão da Marcha Nupcial que você já ouviu. 

Foi durante a turnê desse álbum que Freddie Mercury inventou de se apresentar montado em cima dos ombros de Dart Vader. É engraçado quando você lembra que a letra da música Bycicle Race contém o verso “I don’t like Star Wars” (“Eu não gostou de Guerra nas Estrelas”).

O próximo álbum da banda seria Hot Space (1982), um dos mais arriscados. A ideia do baixista John Deacon em criar uma mistura de funk com disco não agradou os outros membros, mas seguiram com a proposta mesmo assim. O resultado foi um dos álbuns mais criticados da banda, mas ainda assim contendo faixas excelentes como Under Pressure

Não há referências sci-fi nas letras das canções, mas o clipe da música Calling All Girls, de Roger Taylor, é uma paródia do filme THX 1138 (1971), uma distopia escrita e dirigida por George Lucas antes de ficar conhecido com Star Wars. O videoclipe é considerado um dos mais raros da banda, mas finalmente começou a receber atenção ao aparecer em DVDs da banda e no seu canal do Youtube. 

Mas se Calling All Girls não fez sucesso, a banda conseguiu compensar isso com o lançamento do álbum The Works (1984), um dos seus mais vendidos. Além de ter músicas como Machines (Back to Human), uma das primeiras vezes que a banda decidiu usar sintetizadores, com o propósito de dar o ar futurista que o álbum pedia, a maior referência ao gênero está no videoclipe de Radio Gaga, música escrita por Roger Taylor.

Com visuais inspirados no clássico filme do expressionismo alemão, Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang, Queen estava de volta ao topo e decidiu gastar um pouco mais com esse vídeo, recriando cenários e a fotografia do filme. O clipe foi dirigido por David Mallet e não teve uma produção tão simples. 

Com o lançamento de uma versão restaurada do filme Metrópolis, a música Love Kills, de Freddie Mercury, foi usada. Em troca, ele recebeu a permissão para usar imagens do filme no clipe da banda, mas eles ainda tiveram que comprar os direitos de exibição do governo alemão. 

Cinco anos depois de Flash Gordon, a banda lança o álbum A Kind of Magic (1986). A arte de capa é horrível, mas esse acaba sendo um dos maiores sucessos da banda, incluindo a faixa-título, escrita por Roger Taylor. Esse também foi um lançamento inovador, porque além de ser o primeiro gravado digitalmente pela banda, traz faixas comuns ao lado de músicas originais criadas para o filme Highlander (1986), composições como Princes of the Universe, escrita por Mercury; One Year of Love, de Deacon; e Who Wants to Live Forever, de Brian May. 

A turnê do álbum foi a de maior sucesso da banda, rendendo apresentações memoráveis como as de Budapeste e do Estádio Wembley, em Londres. Os shows foram gravados em película 35mm e lançados em alguns dos DVDs e Blu-rays mais vendidos da música. 

A música Who Wants to Live Forever é uma das mais belas do catálogo da banda, mas seu clipe não foi tão impactante quanto o de Princes of the Universe, este aproveitando imagens e cenários de Highlander, tendo até a presença do ator principal, Christopher Lambert, recriando a batalha final do filme, com Freddie Mercury. 

Eu posso ter esquecido uma coisa ou outra, mas já valeu a pena passar esse tempo escrevendo sobre Queen, o que acabou sendo uma desculpa para passar o dia ouvindo todos os álbuns. 

Essa são algumas das principais ligações que você pode encontrar entre a banda e a ficção científica. Se eu esqueci de mencionar algo, deixe nos comentários. Até a próxima.

Vida Longa e Próspera. 🖖

E Deus Salve a Rainha! 👑

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Cinema

El Hoyo (O Poço, 2019) | Uma alegoria pertinente e atual

Lançado originalmente em 2019, o longa espanhol El Hoyo foi comprado para distribuição mundial pelo serviço de streaming Netflix, chegando ao Brasil com o título O Poço em março de 2020. O filme é uma sátira política disfarçada de ficção científica e horror, o tipo de obra que chama bastante a atenção por conta de seu debate, um que veio a calhar por ser divulgado durante um contexto político e social delicado.

Em um futuro distópico, os prisioneiros são mantidos em um local chamado “O Poço”, uma prisão vertical dividida em diversos níveis, com cada andar habitado por dois detentos. Eles possuem apenas uma fonte de alimentação, uma plataforma flutuante que descende dos níveis superiores, com um enorme banquete que deve ser compartilhado por todos os andares, mas a comida nunca dura o suficiente e os níveis inferiores não tem o que comer.

Algumas pessoas podem se voluntariar para a prisão, e assim conhecemos Goreng (Ivan Massagué), um homem honesto em um mundo de corrupção. Antes de ser confinado, cada detento tem a chance de escolher um objeto para acompanhá-lo, e Goreng (Ivan Massagué) decide levar um livro, uma edição de Dom Quixote. Infelizmente, seu parceiro de cela carrega uma faca de cozinha, a mesma que usou no homicídio que o colocou ali. 

O Poço

As regras são simples: a comida desce todos os dias e você tem um tempo determinado para se alimentar; além disso, depois de um mês em um nível, você é realocado aleatoriamente para outro, e isso se repete até que sua sentença seja cumprida. Por mais provocante que seja assistir a jornada do protagonista e descobrir a mecânica do lugar, o que realmente sustenta o filme é o debate proposto pelos roteiristas David Desola e Pedro Rivero, uma alegoria sobre a natureza da ganância humana fomentada por um sistema que oprime e se beneficia do individualismo.

High Rise e Snowpiercer são os primeiros títulos que me vem em mente quando considero a premissa de O Poço, mas a produção espanhola segue na contramão por apresentar um olhar menos maniqueísta e conseguir executar uma obra de grande qualidade técnica com um orçamento bem menor que os exemplos mencionados. 

Outro elemento atraente é a direção de Galder Gaztelu-Urrutia, que precisou trabalhar com um orçamento modesto e o ambiente limitado das celas pequenas, mas ele foi capaz de entregar algumas sequências de tensão impressionantes, dando destaque para os diálogos, revelando as informações com calma e, mesmo que tenha se tornado um pouco didático no terceiro ato, consegue concluir o longa da melhor maneira possível, nos deixando no poder do que deve ser feito em seguida.

O Poço

Pode não agradar a todos avaliar um filme considerando o contexto político e social, mas nenhuma obra existe isoladamente, e é impossível negar os paralelos que podemos fazer entre o individualismo dos personagens do longa e a atitude de alguns cidadãos (e governos) durante a pandemia de Covid-19 (mais conhecida como Coronavírus), que já marcou o ano de 2020. 

Pertinente por sua crítica, sem deixar de entreter, O Poço é um daqueles filmes que aparece sem alarde e conquista aos poucos por conta das indicações de quem assistiu. Entre pelo debate e fique pelo ótimo enredo, simples e objetivo, mas essencial.

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Cinema

O Lagosta | Distopia da Rotina e Indiferença

Explorar alguns subgêneros da ficção científica pode ser atraente por conta dos diversos elementos e maneiras nas quais podemos aproveitá-los. Uma narrativa bastante popular é a distopia, geralmente classificada pela forma que apresenta um mundo similar ao nosso, mas desprovido das mesmas regras encontradas fora da obra, muitas vezes servindo como uma crítica de estruturas sociais, políticas ou religiosas.

É comum encontrar distopias onde um governo totalitário controla as ações de uma sociedade através da força militar, mas há também aquelas onde as pessoas são subjugadas mentalmente, sendo obrigadas a procurar conforto em uma situação desoladora, sofrendo com a angústia de se encaixar em regras que vão contra tudo que você é ou acredita. Podemos ver isso no filme O Lagosta (The Lobster), de 2015, dirigido por Yorgos Lanthimos. 

Em um futuro próximo, a solidão é proibida e as pessoas solteiras devem frequentar O Hotel, onde terão quarenta e cinco dias para encontrar um par romântico, ou são transformadas em um animal (de sua escolha) e abandonadas para lutar por suas vidas em um mundo aparentemente seguro, mas a hostilidade está onde menos se espera. Na trama, seguimos a estadia de David (Colin Farrell), ainda confuso com as regras, mas certo de que quer ser transformado em uma lagosta caso não encontre uma companheira. 

O Lagosta

“Lagostas vivem por mais de cem anos. Elas têm sangue azul, como os aristocratas, e permanecem férteis a vida inteira. Eu também gosto do mar. Sei nadar muito bem desde jovem”

A primeira característica a chamar atenção no filme é a direção de Lanthimos, conhecido por sátiras cheias de humor negro, como Dente Canino (2009) e o recente A Favorita (2018). Seus personagens apresentam uma indiferença com o mundo em volta, chegando a assumir um mesmo tom de voz, respondendo a uma cena de suicídio da mesma maneira trivial com a qual se pede um prato em um restaurante (“Agora há sangue e biscoitos em todo lugar”).

Assim como os personagens, a direção de arte de Thimios Bakatakis carrega uma bela fotografia de um mundo visualmente similar ao nosso, mas revelam o isolamento emocional de uma sociedade tentando se encaixar em padrões impossíveis, e podemos ver como o próprio filme assume uma imparcialidade com seus planos abertos e câmera estática, indicando uma interferência mínima no universo de David. 

Ainda que seja um mundo de desdém, o exílio social é repreendido ao ponto de ser ilegal, e assim temos a principal motivação dos personagens, todos procurando por um par romântico, independente de haver amor na equação, e em busca da aceitação, mesmo que obrigatória. É visível o desespero dos membros do Hotel, com um deles chegando a bater a própria cabeça em um criado-mudo para manter um sangramento nasal, isso porque a única companheira que lhe pareceu remotamente envolvente sofre da mesma coisa, e ter algo em comum é um dos maiores sinais de uma relação forte e longeva.

O Lagosta

Por conta dos objetivos claros e a aflição para encontrar alguém e ser reintegrado na sociedade novamente, esse é um mundo sem espaço para a ambiguidade, apenas a certeza. Em uma cena, David pergunta sobre a possibilidade de se registrar como bissexual, mas é informado que “de acordo com vários problemas operacionais”, o Hotel oferece apenas uma escolha entre heterossexual e homossexual. 

“Um lobo e um pinguim jamais poderiam sair daqui juntos. Seria absurdo. Pense nisso”

O Lagosta é um olhar absurdo, porém intrigante, sobre as relações humanas. Com cada nova tentativa de se aproximar de alguém, David descobre mais sobre ele mesmo e tudo o que vem abrindo mão para fazer parte de algo maior, abandonando sua própria identidade, e nenhum exemplo deixa isso mais claro que a cena final, onde o filme conclui nos deixando com um questionamento sobre nossas próprias escolhas e até onde vamos para mantê-las. 

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Akira | Abrindo as portas para a animação japonesa

Uma das obras definitivas da animação japonesa, Akira foi lançado em 1988, uma adaptação do mangá homônimo de 1982, publicado originalmente na revista Young Magazine. O filme teve algumas vantagens na transição das páginas para a tela, a principal sendo o envolvimento do autor responsável pelo mangá, Katsuhiro Ôtomo, também assumindo a direção do longa. 

Dividido em seis volumes, seria impossível desenvolver todos os elementos do mangá para um filme de menos de duas horas. A solução foi aproveitar uma parcela do primeiro volume e pular diretamente para o último, o que pode afetar negativamente a execução da versão cinematográfica, mas falamos disso em breve.

Além disso, é curioso perceber que o material original foi concluído apenas em 1990, dois anos após o filme já ter feito um enorme sucesso no mercado japonês, deixando claro que a adaptação complementa o mangá e cria uma forma de narrativa transmidiática. Mesmo assim, ambas funcionam independentemente, e o foco desse texto é no filme de 1988, que abriu as portas para a invasão da animação japonesa no resto do mundo. 

Ambientado na futurista e pós apocalíptica Neo-Tokyo de 2019, seguimos Kaneda, o líder de uma gangue de motoqueiros. Eles representam a juventude punk de um país afetado pelas sequelas da guerra, opressão do estado, tensão política e o aumento da violência, esse último conta com a contribuição de Kaneda e seus companheiros.

Anime Akira um dos mais relevantes para o cinema japones

Depois de um confronto entre gangues, Tetsuo, amigo de infância e parceiro no crime de Kaneda, encontra uma figura misteriosa e é capturado por agentes de um projeto secreto do governo. Tetsuo acorda com dores de cabeça e descobre possuir habilidades psíquicas, mas ele logo se mostra mentalmente instável, sendo assim considerado uma ameaça para todos. 

Akira costuma ser creditado como o filme responsável por popularizar a animação japonesa em outros países, fazendo enorme sucesso na crítica e bilheteria ao redor do mundo, sendo um dos lançamentos mais rentáveis do ano. Tirando o investimento na divulgação da obra, o que pode ter chamado a atenção de outros públicos é a representação da juventude através de personagens carismáticos, ao mesmo tempo discutindo sua alienação e temas como corrupção e a crescente insatisfação da sociedade com seu governo. Também há o diferencial de explorar um país ainda assombrado pelos horrores da bomba atômica, então é fácil sentir a angústia e paranóia no ar.

O filme é marcante até na maneira como foi animado, trazendo mais fotogramas por segundo do que o normal, o que hoje não é surpresa alguma, mas foi uma escolha que apenas contribuiu para o filme, detalhando melhor alguns elementos das cenas e criando uma fluidez no desenho como poucos já viram. As cores também tiveram um papel importante na obra, e algumas precisaram ser criadas já que boa parte da trama se passa de noite ou em ambientes escuros.

Animacao Akira foi um marco do cinema japones

A deterioração na relação entre Kaneda e Tetsuo é o cerne dramático da obra, que pode ficar um pouco confusa na apresentação de alguns elementos, principalmente pela já mencionada solução de adaptar apenas o primeiro e sexto volumes do mangá. Você pode assistir e aproveitar a trama principal sem problemas, isso porque o foco não deixa de ser o embate entre os dois amigos de infância, mas qualquer um interessado em estudar os aspectos mais metafóricos do longa, talvez precise visitar o material original antes. 

Influente até hoje, inspirando desde jogos como The King of Fighters (o personagem K9999 é uma clara homenagem à Tetsuo) até cantores como o rapper Kanye West, que chegou a reproduzir sequências do filme no vídeo da música Stronger, Akira é um marco da animação e do cinema japonês, uma jornada com bastante ação e sangue ao som de uma trilha marcante e uma cidade cyberpunk viva e colorida, e como todo bom punk, sem respeito algum pelas regras.