Jerome Bixby é um dos nomes mais importantes para a história da ficção científica na TV, escrevendo roteiros para alguns episódios clássicos de Jornada nas Estrelas, como “Mirror, Mirror”, ou de Além da Imaginação, com o excelente “It’s a Good Life”. Bixby esteve envolvido em poucos projetos desde então, mas seu nome voltou a chamar atenção com a chegada de O Homem da Terra, um filme de baixo orçamento lançado em 2007, com direção de Richard Schenkman.
Com uma premissa bem simples, O Homem da Terra apresenta um grupo de professores em sua última reunião de despedida para um de seus amigos, John Oldman, que decidiu se aposentar. Antes que vá embora, Oldman tem uma confissão que pode mexer não só com a relação deles, mas com tudo em que acreditam.
O primeiro elemento a chamar atenção no filme é a sua direção. Por conta do orçamento modesto, Schenkman decidiu empregar duas câmeras digital Panasonic DVX100, uma das mais usadas por outras produções independentes (Império dos Sonhos, de David Lynch, foi uma delas), principalmente documentários ou séries no Youtube.
O resultado é um visual um pouco mais escuro e granulado, que pode distrair nos primeiros minutos, isso sem contar alguns problemas com a re-dublagem de algumas cenas, principalmente as tomadas noturnas e exteriores, que provavelmente deviam ser mais barulhentas e precisavam ser inseridas na pós produção. Ainda assim, essas distrações deixam de ser evidentes quando consideramos que a verdadeira conquista da obra está no elenco e no roteiro.
Com debates filosóficos e existencialistas sobre a história da humanidade, construção de memória e identidade em si, o roteiro de Bixby rouba toda a atenção, criando uma narrativa de ótimo ritmo, revelando aos poucos informações sobre o protagonista e cada um de seus companheiros, que passam a maior parte do filme sentados em sua sala, bebendo uísque em copos de plástico. Mesmo que a história contada por John Oldman seja fascinante o suficiente, um grande acerto do filme é seu elenco.
David Lee Smith interpreta o sereno professor John Oldman, e ele faz um bom trabalho em instigar não só os seus colegas, como o espectador. Mesmo que ele seja o protagonista, temos alguns nomes mais conhecidos dos fãs de ficção científica e horror, como John Billingsley, de Jornada nas Estrelas:Enterprise; Tony Todd, do clássico A Noite dos Mortos-Vivos e William Katt, da série Super-Herói Americano.
O Homem da Terra é um daqueles filmes lançados sem expectativa ou aclamação alguma, que logo virou uma obra cultuada por muitos fãs de ficção científica, fascinados pelos conceitos que o gênero pode abordar e os debates que ele carrega. Pequeno em tamanho, mas grande em conteúdo.
Para a última matéria do ano, decidi fazer a retrospectiva com produções sci-fi que conseguiram se destacar, positiva ou negativamente. Tivemos um ano com boas produções, talvez melhor que o anterior, e mesmo que alguns desastres tenham chegado às salas de cinema (ou no conforto da sua casa, com algum serviço de streaming), há mais vitórias que derrotas.
Antes de começar, vale mencionar que as obras destacadas (em negrito), boas ou não, correspondem ao gosto de quem escreve essa matéria. Vamos lá.
Os Desastres
Mesmo com boas produções, esse foi o ano em que a Netflix decidiu colocar em seu catálogo os filmes IO, com uma premissa genérica que desperdiça o tempo da atriz Margaret Qualley, e a comédia Fim do Mundo, que considera citar referências de outros filmes (melhores) constantemente e depender de humor barato, algo engraçado.
Mas saindo da Netflix, esses dois exemplos não chegam perto do desperdício de tempo e dinheiro chamado Cópias – De Volta à Vida, estrelado por Keanu Reeves.
O problema do filme não é ter todos os elementos mais batidos do mundo para a construção da trama (acidente de carro, corporação do mal…), mas sim não saber usá-los. Eu não vejo problema algum em ter um roteiro simples e direto ao ponto, mas se você não for consistente com cada uma das coisas que apresenta, o resultado é um produto vazio e tedioso.
Cópias erra em quase todos os aspectos, o primeiro deles sendo a direção de Jeffrey Nachmanoff, que não só depende demais de movimentos de câmera desnecessários, como o excesso do ângulo holandês (dutch angle para o pessoal internacional), presente em cenas onde não só destroem a tensão que o longa tenta construir, mas distraem pela maneira nada natural com a qual Nachmanoff aborda as cenas. Esse é mais um filme genérico e previsível que poderia ter sido lançado direto em algum streaming e ainda assim, não recomendaria.
Outra produção que não conseguiu convencer o público foi o retorno da franquia MIB: Homens de Preto, com o filme MIB: Homens de Preto – Internacional, estrelado por Tessa Thompson e Chris Hemsworth, a direção ficou por conta de F. Gary Gray, responsável pela comédia Friday (Sexta-Feira em Apuros, no Brasil), que parece não ter dado conta de uma franquia grande como essa. O desastre foi público e crítico, e o filme quase não apareceu nessa lista por ser tão esquecível.
E infelizmente, uma outra grande decepção veio estrelada pelo ex-protagonista de MIB, Will Smith. O ator não parece conseguir uma nova produção que carregue a aclamação do começo de sua carreira, mas ele continua tentando, e por isso se reuniu com o ótimo diretor Ang Lee, de O Tigre e o Dragão e As Aventuras de Pi, para um novo blockbuster de ação que prometia trazer de volta um sucesso de bilheteria e público para o ator.
Com Projeto Gemini, Ang Lee explora a velocidade de fotogramas (ou frame rate), e tenta gravar o filme em 120 quadros por segundo (ou fps), o que altera drasticamente a experiência, mexendo com o ritmo e a nitidez da imagem, deixando-a tão suave que chega a causar náusea em algumas pessoas. Os cinemas sequer tinham capacidade para passar essa versão do filme em todas as suas salas, então disponibilizou em outras versões, não só a comum, de 24 quadros, mas uma de 60.
Lee já chegou a lançar o filme A Longa Caminhada de Billy Lynn da mesma maneira; mas enquanto esse, um drama de guerra, se beneficia de uma filmagem mais realista por conta da narrativa crua, Projeto Gemini sofre por depender de sequências de ação exageradas e nem um pouco realistas, o que o aumento da quantidade de quadros deixa mais evidente, principalmente em uma absurda sequência envolvendo uma perseguição de motos que desafia várias leis da física.
Mas não é como se a quantidade de quadros fosse o verdadeiro problema de Projeto Gemini, que traz bons atores como Mary Elizabeth Winstead e Benedict Wong para interpretar um enredo repetitivo e previsível, sem contar que dessa vez Ang Lee parece estar mais cansado que nunca, com uma das direções mais sem identidade do ano.
Os Sucessos
Saindo das decepções, é hora de abordar o que deu certo esse ano, começando pela ação Alita: Anjo de Combate. Baseada no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio.
É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem alguém como Robert Rodrigues para comandar o projeto. Ele já se provou competente criando boas sequências de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.
Alita: Anjo de Combate
O filme conseguiu “se pagar” na bilheteria, mas não foi nada estrondoso, o que coloca em risco as chances de uma continuação. Mesmo com problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.
Dessa vez vou dar crédito à Netflix por ter distribuído algumas produções independentes muito boas. A primeira delas é I am Mother, um filme de menor escala e orçamento relativamente modesto, considerando o que costumam valer outros filmes de estúdios e diretores mais conhecidos.O filme tem a vantagem de poder criar cada um dos seus elementos com mais cautela e sem muita intromissão.
Esse é o primeiro longa do diretor Grant Sputore, mas ele faz um bom trabalho. Há espaço para algumas reviravoltas, o que muitos diretores parecem criar primeiro e montar o filme inteiro em cima delas, mas essa é uma obra onde o enredo e os personagens vem antes, e mesmo que traga algumas características “batidas” de narrativas sci-fi, uma execução limpa e objetiva sempre funciona. Ao lado da direção, a equipe de design merece elogios pela forma como apresentou o mundo do filme e montou o visual dos droides. Uma boa surpresa.
I Am Mother
Ao lado de I am Mother, tivemos uma aula de como fazer filmes de baixo orçamento com o ótimo Riqueza Tóxica. Lançado originalmente em 2018, o sci-fi independente só chegou ao Brasil em 2019, quando a Netflix decidiu distribuí-lo.
No meio de tanta coisa grande saindo nos cinemas, rendendo bilhões nas bilheterias, seja mais um filme da franquia Marvel ou Star Wars (basicamente, tudo Disney), é fascinante ver como uma obra menor, em escala e orçamento, consegue ser tão poderosa. Começando pela sua construção visual, que atingiu uma estética realista e distópica sem precisar do uso de tela verde. A maior parte das filmagens foi realizada em uma floresta conhecida da infância dos diretores, e um galpão precisou ser construído para que a equipe pudesse trabalhar perto do local.
É esse tipo de esforço que me faz apreciar ainda mais filmes assim, onde é visível a importância de ter sido gravado longe de um estúdio, com luz natural, contribuindo para a imersão daquele mundo. Tudo aqui é original: trajes espaciais, armas, ilustrações e até mesmo a poeira. Para que o filme tivesse sua própria identidade visual, os diretores passaram dias explorando maneiras diferentes de representar a poeira rosada que cobre a superfície de uma lua verde.
Riqueza Tóxica
Também foi em 2019 que o aclamado diretor Spike Lee produziu uma ficção científica. A Gente se Vê Ontem é o primeiro longa de Stefon Bristol, que tem alguns curtas no currículo e esteve envolvido nas filmagens de Infiltrado na Klan, onde provavelmente conheceu Spike Lee. A Gente Se Vê Ontem é baseado em um de seus curtas de mesmo nome, trazendo de volta a maior parte do elenco para a nova versão.
Esse é um filme carregado de temas pertinentes ao diretor e a comunidade negra, tendo a brutalidade policial como principal objeto de análise. Mas ainda que envolva críticas sociais e um dilema moral por parte dos seus protagonistas, seguimos com um tom leve, que lembra um pouco a sensação de estar assistindo apenas uma produção adolescente.
Os elementos de ficção científica ficam em segundo plano, mesmo que sirvam para impulsionar a trama. Isso não é um problema, já que o gênero abre as portas para incontáveis interpretações e é uma das melhores opções quando um roteiro precisa de uma alegoria construtiva. Aqui temos viagem no tempo e efeito borboleta para mostrar como a violência contra a comunidade negra não é uma casualidade, envolve uma mentalidade preconceituosa impregnada na sociedade.
A Gente se Vê Ontem
Mas a grande surpresa divulgada (mesmo que pouco) pela Netflix esse ano foi o maior sucesso de bilheteria da China nos últimos anos, a jornada espacial Terra à Deriva. Também lançado originalmente em 2018, o filme chegou ao Brasil apenas esse ano, e é um excelente trabalho que funciona em todos os níveis, com sequências de ação angustiantes na superfície e debates sobre culpa e arrependimento nos minutos derradeiros da humanidade.
Frant Gwo assina a direção. Mesmo com poucos filmes no currículo, faz um excelente trabalho. Além de encontrar um ótimo elenco (incluindo Mike Sui, que interpreta Tim e serve de alívio cômico. Felizmente, bem encaixado) e desenvolver alguns visuais impressionantes, Terra à Deriva é o tipo de obra que consegue construir drama envolvente no meio da ação incessante.
Terra à Deriva é uma adaptação do conto literário de mesmo nome do autor chinês Cixin Liu, que ficou conhecido por ter sido o primeiro de seu continente a receber o prêmio de Melhor Romance no Hugo Awards(com o seu “O Problema dos Três Corpos”). O filme foi feito com aproximadamente $50 milhões e tornou-se um sucesso rendendo quase $350 milhões de bilheteria apenas em seu país de origem.
Terra à Deriva
Continuando fora do mercado norte-americano, vale mencionar o misterioso drama brasileiro Divino Amor, sobre um futuro teocrático absurdo, mas nem um pouco impossível considerando a crítica que estão fazendo usando o paralelo da presença de uma “bancada evangélica” no congresso nacional. A atriz Dira Paes apresenta uma personagem que combina carisma e intimidação, mas é complexa o suficiente para entregar certa fragilidade.
Ainda que 2019 seja o ano de Bacurau, que tecnicamente entra em ficção científica por ser uma narrativa em um “futuro distópico”, Divino Amor explora mais o gênero, com sua ambientação de neon e construção de mundo mais futurista. Essa obra prova que o cinema brasileiro, além de inteligente em enfrentar os obstáculos que o próprio país coloca em sua frente, consegue ser original, independente do gênero.
Vale lembrar aqui que algumas obras provavelmente não chegarão aos cinemas ou serviços de streaming brasileiros, então decidi usar esse espaço para mencionar duas obras mais introspectivas, que receberam pouca atenção da bilheteria. A primeira é High Life, estrelada por Robert Pattinson, que tecnicamente é mais uma da lista lançada em 2018, em festivais, mas chegou aos serviços de mídia digital com certo atraso. Indo para o segundo exemplo, tivemos Lucy in the Sky, dirigido por Noah Hawley, responsável pelas séries Legion e Fargo.
Os dois filmes souberam explorar o formato um pouco melhor, ao contrário do que aconteceu em Projeto Gemini. Eles brincam com a estrutura e linguagem do cinema, e mesmo que a alternância na razão de aspecto em Lucy in the Sky distraia um pouco, não deixa de ser criativa. O enredo das duas obras segue uma premissa simples, mas se aproveita dos atores para entregar um estudo de personagem mais envolvente, seja a solidão do espaço sentida por Robert Pattinson em High Life, ou a solidão na Terra, por não estar mais no espaço, de Natalie Portman, como a protagonista em Lucy in the Sky.
A Grande Obra do Ano
É arriscado afirmar que uma obra de arte tenha se expressado melhor que outra. Na verdade, é impossível. Todos temos reações e impressões diferentes por conta de nossos gostos, mas existem conquistas técnicas e narrativas que ficam visíveis em um filme, e talvez Ad Astra: Rumo às Estrelas represente isso melhor que os outros filmes da lista.
Pouco pode ser dito sobre a proposta da obra sem entregar detalhes relevantes da trama, que apresenta sequências de ação impressionantes ao lado de um ritmo mais vagaroso. Isso pode soar como um contraste capaz de colocar a experiência do filme em risco, mas tudo funciona perfeitamente.
Ad Astra: Rumo às Estrelas
Seguindo uma trajetória contrária do que se espera de um filme grande como esse no atual contexto das salas de cinema, Ad Astra se distancia completamente de sucessos como Interestelar, de Christopher Nolan, e tem mais interesse em uma condução que ecoa melhor os longa-metragens de ficção científica do diretor russo Andrei Tarkovski, como Solaris ou Stalker.
Ad Astra é uma experiência diferente, a jornada solitária de um homem com um dilema universal. Aqui podemos ver como a humanidade conquistou a lua e até Marte, mas continua olhando para o céu na esperança de nova vida, esquecendo a que já possui.
O que achou da lista? Se concorda, discorda ou acha que faltou algo, é só deixar nos comentários.
2020 promete ser ainda mais agitado, com a chegada de filmes como O Homem Invisível, The Tomorrow War, o atrasado Chaos Walking, e a tão aguardada adaptação de Duna pelo diretor Denis Villeneuve. O problema agora é esperar.
Quando J.J. Abrams foi definido como o diretor de Star Wars: O Despertar da Força, de 2015, eu fiquei um pouco preocupado. Considero Abrams um diretor competente, mas apenas quando está responsável pelos elementos visuais, longe de roteiros, isso porque ele emprega uma técnica narrativa em suas produções que não me agrada nem um pouco, mas já vamos chegar nisso. Minha preocupação não era comigo mesmo, não sou muito apegado ao universo de Star Wars, mas com o rumo que a franquia poderia levar.
O Despertar da Força foi o retorno da série de filmes depois de uma década, e a pressão era grande em cima do estúdio, que tinha o trabalho de agradar todos depois da recepção amarga da trilogia de prequels (Episódios I, II e III), além de conquistar um novo público consumidor querendo seu próprio Star Wars. O estúdio precisava de alguém capaz de apelar para a nostalgia dos fãs mais antigos e renovar a space opera de George Lucas para uma nova geração, e não há nome mais apropriado para tomar conta dela que Abrams, responsável pelo remake de outra franquia espacial clássica, Star Trek, em 2009.
A abordagem de Abrams para Star Trek não foi das melhores, mas ao menos trouxe de volta o interesse pela franquia, e agora temos novamente uma série de sucesso pela CBS, Star Trek: Discovery, e spin offs já começaram a brotar. Na época, o próprio Abrams costumava admitir não ser um grande amante da série, sendo mais fascinado por Star Wars, então podemos imaginar que seu trabalho em Trek serviu como um currículo para a franquia que realmente gostava. Assim, a recepção de O Despertar da Força pelo público foi mais que positiva, arrecadando bilhões em bilheteria.
Com a confirmação da continuação, Os últimos Jedi, a direção ficou por conta de Rian Johnson, mais conhecido por seu filme Looper: Assassinos do Futuro, de 2012. Dessa vez, o público parece ter se dividido entre aqueles que sentiram falta da reverência ao material clássico de Abrams, e os impressionados pela subversão de Johnson, mostrando que a série pode seguir em frente e sobreviver com novas tramas, mas o que parece ter incomodado mesmo foram algumas decisões de elenco e execução de alguns personagens. Mas também já vamos chegar lá.
Para “consertar” a visão de Johnson e retornar para um longa que agrade mais o público, Abrams retorna para a direção e entrega A Ascensão Skywalker, que surpreendentemente acaba dividindo ainda mais os fãs, com uma metade feliz pelo retorno ao estilo J.J. Abrams, e outra incomodada pelo filme negar os eventos de Os últimos Jedi.
Essa é uma contextualização básica da recepção da nova trilogia de Star Wars, e agora que assisti tudo posso dizer o que realmente me incomoda na franquia, principalmente nos últimos anos. Vamos por partes:
A Caixa de Mistérios de J.J. Abrams
“Eu nunca fui bom com desfechos. Eu sei como começar uma história, mas terminar é difícil” (ABRAMS, 2019)
J.J. Abrams foi um dos palestrantes do famoso evento TED Talks em 2007, e foi durante sua apresentação que introduziu ao público um conceito que costuma chamar de “Caixa de Mistérios”, uma técnica narrativa onde “o mistério é mais importante que o conhecimento”. Seu processo consiste basicamente de pegar uma “questão fundamental”, que nos levará a um questionamento, e depois outro, e por aí vai. É uma boa tática para atrair o interesse do público, principalmente se você quiser convencer alguém de uma premissa, mas há um problema na técnica de Abrams, que fica tão interessado em criar suspense e mistérios, mas acaba esquecendo do resto, resultando em tramas mal executadas.
O seu trabalho como co-criador de Lost, ao lado de Damon Lindelof e Jeffrey Lieber, foi o primeiro a chamar atenção considerável do público. Cada temporada foi desenvolvida usando a “Caixa de Mistérios” de Abrams, e a recepção negativa de grande parte do público e crítica se dá por conta da conclusão da série, que parece ter amarrado suas pontas da maneira mais “conveniente” possível. Esse caso pode ser apenas uma coincidência, mas se estiver procurando um exemplo de péssimo uso da técnica do diretor, é só assistir Star Trek: Além da Escuridão.
Por mais que continue com o bom elenco do primeiro filme e seja uma aventura divertida e com boas sequências de ação, o enredo de Além da Escuridão poderia ser melhor resolvido sem todo o mistério que envolvia a verdadeira identidade de um personagem interpretado por Benedict Cumberbatch. Depois de tantas informações sobre bastidores, e considerando o repertório limitado de Abrams da franquia, as teorias sobre o personagem “secreto” de Cumberbatch revelaram o quão óbvia era a solução para o mistério. E mesmo que você não saiba quem ele é de antemão, o filme passa a sua maior parte escondendo a identidade do personagem, mas no fim isso não é algo que afete os temas do longa, vira apenas referência.
Com O Despertar da Força, Abrams teve a chance de brincar com sua “Caixa de Mistérios”, introduzindo novos personagens, uma protagonista com passado desconhecido, novos planetas, novos conflitos e obstáculos. Isso tudo funciona, e assim acabamos com um filme satisfatório, agradando os fãs de longa data e os recém chegados. Mas no fim, Abrams não assumiu riscos, apenas fez o que faz de melhor, estabelecer elementos da trama, só que isso não é o suficiente. Até mesmo Lawrence Kasdan, roteirista dos episódios V: O Império Contra-Ataca e VI: O Retorno do Jedi, foi chamado para tomar conta do argumento de O Despertar da Força, então as várias similaridades com os filmes clássicos, incluindo a trama sobre explodir a estrela da morte, não são coincidência.
O Controle de Qualidade de Kathleen Kennedy
George Lucas vendeu a sua empresa, LucasFilm, para a Disney em 2012. Com seu afastamento da franquia, Lucas indicou Kathleen Kennedy para o cargo de presidente da nova LucasFilm. Kennedy tem sido a voz de Star Wars na última década, e por mais que a mudança na liderança pareça uma boa ideia para alguns, descontentes com o próprio Lucas, nada mudou de verdade.
Star Wars costuma ser alvo de críticas recorrentes por suas tramas recicladas ou um universo “pequeno demais” onde todos parecem ser parentes. Essas críticas se aplicam exclusivamente ao filmes, isso porque a franquia se estende por livros, quadrinhos e séries de TV, mas uma das decisões da Disney, agora dona da LucasFilm, foi uma mudança total no que é considerado cânone.
Ignorar grande parte do universo expandido da série acabou limitando ainda mais a franquia, tornando-a refém dos dramas da família Skywalker, perdendo a chance de explorar novos personagens. Para piorar a situação, Kennedy desconsidera completamente qualquer material de Star Wars que não sejam os filmes, e usa isso como uma desculpa para mostrar como “é difícil achar novas ideias para a franquia”.
“Cada um desses filmes é particularmente difícil de fazer. Não há material original. Não temos quadrinhos. Não temos grandes romances. Não temos coisa alguma além de contadores de história apaixonados se unindo para falar sobre o que o próximo filme pode ser” (Kennedy, 2019)
Ainda que não esteja interessada em seguir um rumo diferente com a franquia, Kathleen Kennedy costuma elogiar constantemente o filme Os Últimos Jedi.
Episódio III: O Despertar da Força para Rian Johnson
Rian Johnson tomou conta da direção da continuação de O Despertar da Força, e entregou o polarizante Os Últimos Jedi, em 2017. Por mais que parte do público esteja indignada com a subversão de expectativa causada pelas decisões criativas de Johnson, mesmo sob o olhar das limitações da Disney e Kennedy, o filme foi um sucesso de bilheteria e crítica, reforçando o poder da franquia, mas isso não é o suficiente para os fãs.
O filme tinha a tarefa de continuar todos os pontos da trama deixados em aberto por J.J. Abrams, como a verdadeira identidade dos pais de Rey e seu encontro com Luke Skywalker, assim como os planos de Snoke e a Primeira Ordem. Para Johnson, a solução foi simplesmente acabar com todos os questionamentos e surpreender o público, positivamente ou não, mostrando o desprezo de Luke pelo seu próprio sabre de luz, revelando que os pais de Rey foram apenas catadores que a abandonaram, e tirando do caminho a ameaça de Snoke.
Com uma narrativa sobre a importância de fracassar e aprender a seguir em frente, Os Últimos Jedi não é bem recebido por uma grande parcela dos fãs, e o próprio J.J. Abrams mostrou seu descontentamento dizendo que não acha que as pessoas estejam interessadas em ir ao cinema para descobrir que nada importa.
Mesmo com uma boa bilheteria e crítica, a recepção do público fez com que Kennedy e Disney decidissem chamar J.J.Abrams de volta para dirigir o último filme da trilogia, A Ascensão Skywalker.
Eu tenho um mau pressentimento sobre isso, mas tudo será esclarecido no Episódio II deste texto, onde finalmente falamos do novo filme, mais bastidores e o que Star Wars, e a Disney, vem fazendo de errado.
Toda lista de “melhores da década” é uma tremenda responsabilidade, mas a década de 2010 foi bastante generosa com a ficção científica, então talvez a maior tarefa aqui seja escolher apenas aqueles que melhor representam o gênero nesses últimos anos.
Para começar, vou indicar apenas produções cinematográficas da década de 2010, e vale lembrar que isso não é um TOP 10, são indicações de obras que marcaram a ficção científica no cinema. Vamos lá!
A primeira coisa que as pessoas costumam ter em mente quando pensam em ficção científica é o futuro. Somos fascinados por interpretações diversas do que pode ser o nosso cotidiano em alguns anos, então eu separei algumas produções que falam sobre possibilidades e potencial humano, longas como os intrigantes Interestelar e Gravidade, que mostram como podemos nos comportar sob pressão, ou como a humanidade é capaz de alcançar novos horizontes, em Perdido em Marte. Mas se tem um filme que fez isso de um jeito único, esse é A Chegada.
Também podendo entrar na categoria de filmes de invasão alienígena, esse filme fala sobre a surpreendente chegada de visitantes de outro planeta. Mas não é tão simples assim porque tudo que querem é conversar, e a linguista Louise Banks (Amy Adams) precisa correr para descobrir como se comunicar com estes seres antes que seja tarde demais e o governo faça a única coisa que sabe fazer quando se sente intimidado.
Com um apelo visual de encher os olhos, mas não tão extravagante como os de Christopher Nolan em Interestelar, A Chegada conquista o destaque com uma abordagem muito mais humana e genuína. Com a direção mais sutil e delicada de Denis Villeneuve, que tem um excelente olho para construção de tensão e desenvolvimento da trama, revelando cada elemento com maestria, o filme consegue se elevar ainda mais com a atuação de Amy Adams, que entrega uma personagem realista e convincente o suficiente para te deixar apreensivo em cada uma de suas ações durante as interações com os visitantes. Ela traz o peso dramático necessário para que o filme se torne uma das melhores experiências que qualquer cinéfilo possa ter.
Na sequencia, outra coisa que sempre surge na cabeça de quem começa a pensar em ficção científica são os avanços tecnológicos ou, no caso, coisas como robôs, androides e ciborgues. Bem, essa não foi a melhor das décadas para o gênero, tivemos umas coisas bem ruins como Chappie ou O Agente do Futuro, mas felizmente sobram uma sequência surpreendentemente boa como o original, em Blade Runner 2049, ou o escolhido da vez: Ex_Machina.
Ainda que eu tenha adorado Blade Runner 2049, sem contar que o considero um enorme feito de Villeneuve (olha ele aí de novo), decidi escolher uma produção mais contida, sem necessidade de uma certa bagagem ou repertório. Por isso, por mais que eu adore todo o dilema e os questionamentos existenciais do agente K, nada me preparou para a surpresa que foi descobrir Ex_Machina.
Inventivo, pequeno em escala mas grande em enredo, também traz ótimos visuais, apesar do orçamento modesto. Alex Garland dirigiu um possível clássico do gênero sobre um jovem convidado para a casa de um gênio bilionário excêntrico e doido para apresentar sua mais recente criação: uma inteligência artificial avançada.
Além de todo o debate sobre a evolução humana e robótica, o filme conta com ótimos diálogos e um elenco de primeira, com nomes como Domhnall Gleeson e os iniciantes (pelo menos na época do lançamento) Oscar Isaac e Alicia Vikander, que não estavam tão em evidência em uma era pré Star Wars: O Despertar da Força e Tomb Raider: A Origem.
E se é para fazer pensar, o que o gênero faz como poucos por conta de todas as suas licenças poéticas, vamos então para o departamento da contemplação, com filmes que fazem você ficar por horas pensando no que acabou de ver, isso depois de já ter passado duas horas imerso em uma narrativa que muitas vezes é mais lenta e introspectiva, mas que diz bastante e é poderosa, seja em um simples elemento como a fotografia ou uma interpretação minuciosa.
Nessa década tivemos o maravilhoso The Whispering Star, de Sion Sono, que lembrava uma mistura de Kubrick com Tarkovski – um baita elogio -, o silencioso High Life e o complexoAd Astra: Rumo às Estrelas, chegando em 2019, bem próximo do fim da década. Mesmo com exemplos tão bons quanto esses, tem um filme que me fez gastar tanto tempo teorizando e procurando por novas pistas em toda cena possível que merece o destaque: Sob a Pele.
Dirigido por Jonathan Glazer, esse é um daqueles filmes que divide opiniões. De um lado, um grupo não está nem um pouco feliz com o ritmo lento e a forma como tudo é subjetivo demais, sem explicações. Do outro lado, o grupo que simplesmente adora quando um filme faz tudo isso, toma seu tempo, se beneficia do silêncio e cria um mundo estranho, mas intrigante, que ganha mais força quando nós podemos interpretá-lo de maneira única.
Na trama, Scarlett Johansson interpreta uma “figura feminina” que procura e convida homens desconhecidos para sua residência. O que eles não sabem é que ela os leva para outro lugar, um que se eu explicar demais pode estragar a surpresa, então assista sabendo que “coisas bizarras acontecem”. Sob a Pele é uma incrível obra com um visual distinto e criativo, um que você provavelmente já viu em muitas séries e filmes que viriam depois (só as cenas na escuridão eu vi de outro jeito em uns dois filmes e uma série famosa da Netflix que não vou mencionar mas você provavelmente já percebeu pela imagem abaixo).
Se você adora algo mais complexo e quer ficar totalmente imerso no que está assistindo, assim como os personagens do filme, essa é uma ótima escolha e um estímulo cerebral que pode ser prazeroso… ou uma dor de cabeça. Eu fico com a primeira opção.
Agora chega de ficar só no papo e vamos para a ação. Eu não coloquei filmes de super-heróis aqui, o que alguns consideram ficção científica, mas eu acho que merecem uma lista própria, então até adaptações dos quadrinhos como Dredd (que é ótimo) ficam fora da lista, mesmo sendo mais sci-fi do que os outros. Mesmo com exemplos como Ataque ao Prédio, Upgrade, No Limite do Amanhã e Círculo de Fogo, do queridíssimo Guilhermo Del Toro, nada é tão espetacular quanto testemunhar a loucura de Mad Max: Estrada da Fúria.
Planejado para ser uma sequência de perseguição contínua, George Miller, responsável pela trilogia Mad Max original, decidiu começar o projeto pelo storyboard e desenvolver o roteiro em cima dele. Este formato fez com que a trama fosse executada de forma dinâmica e o desenvolvimento de personagens fosse muito bem elaborado, dependendo de situações extremas ou raros momentos de descanso.
Toda a loucura da série e os momentos surreais são mantidos, agora com um orçamento maior, o que deu liberdade suficiente para termos um bando de percussionistas e um guitarrista louco por pirotecnia no meio da estrada (e acredite, neste filme faz sentido, TOTAL SENTIDO). Esqueça longos e desnecessários diálogos explicando a trama e nos lembrando constantemente o que está acontecendo em cena (como um outro diretor já mencionado aqui adora fazer), porque é através dos detalhes que Mad Max: Estrada da Fúria consegue nos conquistar.
Todos adoram uma boa distopia, e por isso a década trouxe Chris Evans tentando descobrir a saída de um sistema opressor em Expresso do Amanhã; a comédia sobre um atendente de telemarketing envolvido em uma guerra entre classes no hilário Sorry to Bother You; um grupo de cientistas liderado por Natalie Portman para desvendar uma anomalia, mas que acaba virando um thriller onde qualquer um pode morrer a qualquer momento, em Aniquilação (dirigido por Alex Garland, o mesmo de Ex Machina, dá pra ver que ele sabe o que está fazendo); ou a angústia de ver Mary Elizabeth Winstead aguentar a tortura mental e a dúvida do que pode acontecer se ela tentar fugir disso em Rua Cloverfield, 10.
Todas produções que você deveria assistir, mas se eu preciso indicar uma imperdível, fico com a trilogia do remake de Planeta dos Macacos.
Se você me dissesse há uma década que eu estaria torcendo e adorando uma franquia onde um bando de primatas em cima de cavalos e armados até os dentes iriam protagonizar um dos filmes mais envolventes do gênero, eu te chamaria de louco. Mas esse remake dos filmes clássicos da década de 1970 consegue se destacar com roteiro bem estruturado, direção competente e excelentes efeitos especiais. Esse último é praticamente fenomenal, com uma atenção aos detalhes gigantesca e realismo como poucas produções tem.
O primeiro filme da trilogia é dirigido por Rupert Wyatt, servindo para estabelecer o protagonista Caesar (Andy Serkis), o primata inteligente, e sua missão para manter a espécie viva. Mas foi na continuação, com Planeta dos Macacos: O Confronto, que o diretor Matt Reeves traz um tom mais sério e dramático para os filmes, com embates memoráveis e cenas de ação intensas. O terceiro e último filme, até o momento, é Planeta dos Macacos: A Guerra, que não tem o mesmo fôlego do anterior, mas ainda assim traz muito do que fez essa trilogia uma das melhores do gênero.
A ficção científica tem outra característica única, onde entra a parte “científica” do gênero, com todos os seus conceitos mirabolantes que fazem parte do mundo dos personagens. É hora de lembrar longas que se apoiam fortemente na subversão do que conhecemos das leis da física, como fizeram as obras A Outra Terra, Coherence, Looper ou O Predestinado. E por mais que alguns tenham problema com Christopher Nolan e sua direção mais objetiva, nenhum filme deixou o público tão apreensivo no cinema quanto A Origem.
Cobb (Leonardo DiCaprio) é um agente que utiliza sua perícia de investigação para roubar segredos corporativos diretamente dos sonhos de grandes magnatas e empresários. Não é todo filme que consegue entreter o público com uma premissa dessas. Mais improvável é como Nolan desenvolve ótimas cenas de ação e perseguição se aproveitando do conceito.
Nenhum dos personagens vai muito além de seus traços de personalidade básicos, com exceção do protagonista, mas o que faz o filme funcionar é como a narrativa é construída e executada sem perder fôlego, tendo que abordar várias tramas paralelas, linhas temporais e camadas de sonho. Parece o pesadelo de qualquer montador na ilha de edição, mas o resultado é um dos filmes mais aclamados pela crítica e público, debatido até hoje por todos que ainda estão na dúvida sobre a estabilidade daquele maldito peão!
Não seria justo fazer uma lista como essa sem incluir o nosso cinema nacional, que tem crescido nos últimos anos, mesmo com todos os obstáculos. Bem no fim da década tivemos o misterioso Divino Amor, de Gabriel Mascaro; um ano antes, foi lançada a comédia A Repartição do Tempo.
O nosso cinema é rico em cultura e, por conta de sua situação política, carregado de comentário social e críticas ao poder, e se eu puder escolher um diretor que representa essa batalha muito bem é Adirley Queirós, um gênero do cinema de Brasília, responsável por um dos melhores filmes da década, a ficção científica Branco Sai, Preto Fica.
A inspiração principal para o filme vem de um incidente da década de 1980, quando policiais invadiram um ginásio referência para os cidadãos chamado Quarentão, onde os jovens costumavam se divertindo fazendo um baile de música negra. A violência dos policiais resultou em várias pessoas machucadas, além de acabar amputando a perna de um dos moradores e deixar outro paralítico.
As duas vítimas assumem a responsabilidade de reviver o trauma atuando no filme, que procura uma forma de reparação ao apresentar uma trama na qual os dois descobrem uma maneira agressiva de se vingar do estado. Queirós usa arquétipos da ficção científica para fortalecer sua crítica e entrega uma obra sem igual.
A ficção científica também pode ser um gênero dramático e cheio de emoção, capaz de deixar um pouco da sua tecnologia em segundo plano e focar nas relações humanas, falando sobre a mais forte delas: o amor. Eu pensei bastante em destacar o subestimado Safety Not Garanteed, mas deixei para o fim uma das produções mais sensíveis dos últimos anos, dirigida por Spike Jonze, o colorido e melancólico Ela.
Joaquin Phoenix interpreta Theodore, um homem solitário que ainda não conseguiu lidar com o fim de sua relação com Catherine (Rooney Mara). Ele não tem muito o que fazer além de trabalhar e jogar videogames, mas sua rotina muda quando se apaixona por Samantha, um sistema operacional que parece preencher todas as suas necessidades, incluindo lhe fazer companhia. É claro que é fácil acabar se apaixonando pelo seu próprio celular quando Samantha é dublada por Scarlett Johansson, mas não é fácil para Theodore lidar com o que está por vir.
Se o elenco, que também conta com Amy Adams, já não te convenceu — e deveria, porque Phoenix é um dos melhores atores dos últimos anos — , Ela tem uma direção simples, mas belíssima, com um tom pastel que acalma e ao mesmo tempo transmite a insatisfação dos personagens.
É um futuro não tão distante, quase utópico em alguns elementos, e isso é destacado na construção de mundo, feita meticulosamente para parecer uma versão mais polida do nosso. A tecnologia é mais insinuante, sem extravagância, está nas estruturas, no design de produção, como o apartamento de Theodore. Tudo isso ao lado do bom enredo e música que elevam a obra como uma das melhores do gênero.
A ficção científica é a escolha perfeita para qualquer obra interessada em explorar o que somos e o que podemos ser. Não importa se estamos na vastidão do espaço ou lidando com a complexidade das nossas próprias emoções, esse é um gênero que está longe de perder fôlego, e essa década foi ótima para os fãs.
Quais foram os seus favoritos, e quais faltaram na lista? Deixe um comentário.
Uma década depois do cancelamento prematuro da série clássica em 1969, Jornada nas Estrelas atingiu um espaço onde jamais esteve antes, as salas de cinema. Star Trek: The Motion Picture (ou Jornada nas Estrelas: O Filme) foi uma produção cercada de elementos e decisões curiosas que deixaram alguns fãs confusos, mas a alegria de ver a Enterprise e sua tripulação de volta são o verdadeiro motivo para deixar todos ansiosos durante seu lançamento.
A produção já começou com o pé esquerdo, enfrentando vários problemas, como os atrasos causados pela reconstrução de alguns cenários e modelos da série que agora deveriam fazer parte de um filme com grande orçamento. Além disso, também havia o impasse envolvendo o elenco, como William Shatner e Leonard Nimoy, que tentavam se distanciar dos seus personagens, Kirk e Spock, respectivamente, mas acabaram aceitando participar do filme.
Situado quatro anos depois dos eventos do último episódio da série clássica, Turnabout Intruder, James T. Kirk é designado para a Enterprise mais uma vez, que precisa lidar com um objeto vindo em sua direção e acabou de destruir três naves Klingon. Kirk tenta reunir a sua tripulação enquanto conhece novos rostos, incluindo o atual capitão da nave, Decker, que agora precisa deixar seu posto para o veterano. Como se não fosse o suficiente, temos o surgimento de V’Ger, uma entidade misteriosa que pode botar a galáxia em risco.
A direção do longa ficou por conta de Robert Wise, conhecido por editar o clássico Cidadão Kane, de Orson Welles, e dirigir os musicais Amor, Sublime Amor e A Noviça Rebelde. Lendo os exemplos listados, você não imaginaria que ele fosse o diretor certo para um filme de Star Trek, mas Wise já tinha em sua filmografia outra ficção científica, O Enigma de Andrômeda, que dirigiu no começo da década de 1970. Ainda assim, ele realmente não era a pessoa certa considerando que não assistia a série, mas aceitou o desafio independente disso. Felizmente, Jornada nas Estrelas: O Filme tem vários méritos, para muitos por uma perspectiva técnica, mesmo que nem todos os fãs sejam apaixonados pela obra, que tem uma abordagem completamente diferente do que se esperava da franquia.
A primeira coisa que você nota no filme é o seu ritmo vagaroso. Uma das principais reclamações de alguns é a duração de algumas cenas, principalmente a famigerada tomada na qual Kirk reencontra a Enterprise, onde temos mais de cinco minutos da câmera explorando cada canto da nave, e estou falando apenas do exterior, e fica mais engraçado notar como no roteiro isso tomou apenas duas páginas.
A comparação mais óbvia que se pode fazer com outra obra é 2001: Uma Odisseia no Espaço, do diretor Stanley Kubrick. Isso não se dá apenas pelo ritmo, mas pelo tom, mais sério e contemplativo, e pelo apelo visual – por vezes o filme chega a executar cenas de tal maneira que fica impossível não comparar diretamente ao filme de Kubrick, como as tomadas das naves e estações espaciais em descanso no vazio do universo, a quase escassez de diálogos e até mesmo uma sequência onde Spock adentra a entidade V’Ger.
O filme contou com consulta técnica da própria Nasa e dos Institutos de Tecnologia da Califórnia e Massachusetts, sem contar o escritor Isaac Asimov, que usou seu vasto conhecimento sobre ficção científica para colaborar com conceitos que fossem não só acurados cientificamente, mas envolventes para o grande público, e isso fica visível quando assistimos a Enterprise sofrendo por passar em um buraco de minhoca desbalanceado, criando um efeito que faz a imagem da tripulação se dissolver aos poucos.
Além dos efeitos visuais de computação, o longa conta com mais de cem Matte Painting, uma técnica de pintura de cenários que pode distrair em algumas instâncias, mas é impressionante quando bem incorporado com as filmagens normais. Podemos ver a mais evidente delas no planeta Vulcano, quando Spock passa pelo ritual de kolinahr, ou em uma das várias tomadas da Enterprise. Essas pinturas combinam bem com o visual quase abstrato de algumas sequências, contribuindo com cores vibrantes e uma arquitetura incomum, criando uma atmosfera que distingue completamente esse filme dos outros da franquia.
Outro aspecto importante para a obra é a sua música. A composição épica de Jerry Goldsmith é tão poderosa que o próprio Gene Roddenberry decidiu utiliza-la como o tema de abertura de Next Generation, o primeiro spin off da série clássica (a animação de 1973 é uma continuação), estrelado por Patrick Stewart como o Capitão Picard. O diretor Robert Wise também foi um dos que adorou trabalhar ao lado de Goldsmith, chegando a dizer que foi uma das melhores colaborações de sua carreira.
Mas é claro que há problemas que não dá pra relevar, como a péssima escolha de figurino, que deixou o elenco tão desconfortável e nervoso a ponto de jamais voltarem a utilizar as peças em qualquer outro lançamento da franquia, mesmo que o traje dos engenheiros seja similar no filme seguinte, A Ira de Khan.
Saindo um pouco da parte técnica, o filme mostra uma relação um pouco mais fria entre os membros da Enterprise clássica, tirando ocasionais diálogos onde mostram como sentiram falta um do outro, ainda assim não há tantos momentos de intimidade e descontração como nos filmes por vir. Temos um foco maior na relação Kirk e Decker, o atual capitão da nave que acaba aceitando uma posição inferior por conta da influência de Kirk na Federação.
Essa mudança no comando cria um desconforto entre os dois, e acaba sendo o principal tema do longa, até que surja a figura de V’Ger, uma entidade que tomou o corpo da tenente Ilia, uma antiga paixão de Decker. Ao contrário dos filmes seguintes, onde Kirk lida com a passagem de tempo e sua relevância na frota estelar, Star Trek: The Motion Picture é uma batalha interna para afirmar sua própria liderança e confiança nos novos membros da tripulação.
Para os fãs da série clássica, há várias referências, desde alguns sons e trilhas e até diálogos que fazem menção a algum episódio específico, como quando McCoy menciona que “faz tempo que não ajuda no parto de um bebê”, uma piada com Friday’s Child, da segunda temporada. É curioso também como a existência de V’Ger criou várias teorias por conta da criação dos Borg, em Next Generation. Isso se dá por conta das similaridades entre os dois: É dito que V’Ger vem de “um planeta populado por máquinas vivas. Tecnologia avançada”, e ela menciona que seu propósito é apenas observar e compreender as coisas. Essas características podem facilmente serem confundidas com as dos Borg, e a linha de diálogo de Spock em que “qualquer tentativa de resistência seria inútil” acaba corroborando ainda mais para a teoria. Mas nada disso é confirmado.
Jornada nas Estrelas: O Filme acaba sendo a experiência mais próxima da proposta original de Roddenberry, com um foco na exploração e o maravilhamento diante de novas descobertas; o longa também possui mais representatividade (há uma cena em que Kirk conversa com a tripulação da nave e podemos ver várias formas de representação cultural, incluindo indígena, que nunca foi bem retratada na série clássica) e momentos de introspecção. Pode não ser o favorito de muitos, mas é um dos mais originais em todos os aspectos, e esse é apenas o primeiro filme de uma franquia longa e próspera.
Adirley Queirós é hoje uma das maiores referências do cinema de Brasília, cidade natal do diretor e cenário para todos os seus filmes. Corajoso em seus comentários, sem deixar de lado a eloquência, costuma traduzir sua experiência de vida crescendo na cidade-satélite Ceilândia para suas obras, debatendo questões arriscadas, mas pertinentes. Em ação desde 2005 com o curta Rap, O Canto da Ceilândia, foi apenas em 2014 que finalmente conquistou a atenção do público através de seu longa Branco Sai, Preto Fica.
A inspiração principal para o filme vem de um incidente da década de 1980, quando policiais invadiram um ginásio referência para os cidadãos chamado Quarentão, onde os jovens costumavam se divertindo fazendo um baile de música negra. A violência dos policiais resultou em várias pessoas machucadas, além de acabar amputando a perna de um dos moradores e deixar outro paralítico.
As duas vítimas, Marquim da Tropa e Shokito (depois chamado de Sartana), assumem a responsabilidade de reviver o trauma atuando no filme, que procura uma forma de reparação ao apresentar uma trama na qual os dois descobrem uma maneira agressiva de se vingar do estado, mesmo que esse tenha adquirido características mais fascista por conta da decisão do diretor em utilizar elementos de ficção científica para transformar a cidade em uma distopia, com direito a passaportes para transitar entre os distritos e guerras entre facções.
Queirós usa arquétipos da ficção científica para fortalecer algumas das suas críticas, chegando a inserir no filme o viajante temporal Dimas, que precisa reunir informações capazes de influenciar o futuro de 2073, no qual uma “vanguarda cristã” toma o poder do estado. Isso logo deixa evidente como a obra não se acanha em apontar culpados e ir direto aos seus alvos, o que o próprio diretor não tem vergonha de assumir, ostentando uma postura radical que talvez seja essencial para que possa provar seu ponto.
Para Queirós, o Quarentão foi um dos maiores polos de formação de identidade da cidade, e essa é uma das razões pela qual a polícia decidiu destruir o lugar, para perpetuar uma narrativa de segregação racial e social. Até mesmo o título, Branco Sai, Preto Fica, tem um duplo sentido para o diretor, no qual ele recebe um significado ligado diretamente a abordagem dos oficiais na década de 1980, mas também é uma forma de representar uma dívida histórica que não só o estado, mas o país precisa admitir.
O filme é uma mescla entre meta-documentário e ficção científica, o que em questão de enredo funciona bem, mas não é sempre que esses elementos casam perfeitamente na montagem. A proposta inicial do diretor era de fazer um documentário sobre os eventos no Quarentão, mas ao ver como a história começava a apresentar contornos mais fabulosos, abraçou a ficção científica, não só na distopia do texto, mas no visual, criando ambientes quase cyberpunk, mas com uma individualidade marginal, sem a glamourização tecnológica quase fetichizada de Hollywood, aqui enchendo um estúdio de gravação musical com fios e cabos elétricos espalhados ou mostrando a importância de uma instalação onde um dos personagens recicla e conserta próteses para a comunidade.
Ainda que Branco Sai, Preto Fica tenha um excelente trabalho fotográfico com a luz natural em contraste com os ambientes cobertos em metal distorcido, e saiba aproveitar o baixo orçamento como poucos (a nave interplanetária do viajante do tempo é apenas um contêiner, por exemplo), a mudança na abordagem original do diretor, de fazer um documentário, acaba se manifestando por conta da falta de interação entre alguns núcleos e o tom que pode destoar um pouco em alguns momentos.
Ainda assim, esse é um filme que merece ser exaltado pelas suas vitórias, a maior delas é contar uma história muitas vezes negligenciada, fazendo com que a sociedade use uma de suas armas mais poderosas, a arte, para acabar com a ascensão de uma mentalidade fascista, mesmo que literalmente.
Branco Sai, Preto Fica é atrevido e ao mesmo tempo melancólico, uma obra que divide opiniões mas não esquece de nos instigar constantemente.
Responsável por longas animados como Perfect Blue (Pâfekuto Burû, 1997), Tokyo Godfathers (Tôkyô Goddofâzâzu, 2003) e Millennium Actress (Sennen Joyû, 2001), Satoshi Kon é o meu diretor favorito quando se fala de animação japonesa.
É fundamental ressaltar a relevância de alguém como Hayao Miyazaki para a indústria, principalmente pela forma como popularizou o estúdio Ghibli, mas quando comecei a me interessar de verdade por cinema, o de Kon sempre falou mais comigo, considerando as premissas que envolvem temas complexos e absurdos, experimentando o formato de maneira única. O seu filme que melhor representa isso é Paprika (Papurika, 2006), o último longa que dirigiu, considerado por muitos a sua obra máxima.
Adaptado da obra literária homônima, lançada originalmente em 1993 por Yasutaka Tsutsui, Paprika é um filme cheio de conceitos instigantes, utilizando thriller, ação e ficção científica para contar a história da psicóloga Atsuko Chiba (dublada por Megumi Hayashibara), tentando ajudar seus pacientes, mesmo que ilegalmente, com uma máquina capaz de adentrar os seus sonhos. Para não ser reconhecida, Chiba cria um alter-ego chamado Paprika, uma figura capaz de caminhar pelo mundo subconsciente sem problema.
Um de seus pacientes é o detetive Toshimi Konakawa (Akio Ôtsuka), que sofre de um pesadelo recorrente sobre um caso não resolvido. Realidade e sonho entram em colapso enquanto Chiba, Konakawa e o doutor Kohsaku Tokita (Tôru Furuya), parceiro de pesquisa de Atsuko, tentam deter uma recente ameaça cada vez mais poderosa.
Se a premissa parece familiar, é porque você provavelmente já assistiu A Origem (2010), de Christopher Nolan, com um conceito bem similar ao de Paprika, tendo até algumas sequências inspiradas no longa animado. Proposital ou não, podemos ver o excelente trabalho de Satoshi Kon na representação visual dos sonhos, e esse é apenas um dos aspectos que faz desse filme tão bom.
Como já foi salientado pelo finado (porém maravilhoso) canal do Youtube, Every Frame a Painting, Kon é um mestre na edição, aproveitando o formato animado para executar cenas impossíveis em live action, com uma montagem dinâmica onde nossas concepções sobre a realidade são constantemente questionadas, seja pela experimentação com a perspectiva, a composição ou simplesmente nas representações mais oníricas do filme.
No ano de seu lançamento, Paprika recebeu mais elogios da crítica por seu apelo estético, mas há espaço para um bom desenvolvimento de personagens, revelando suas intimidades e maiores medos, o que podemos ver na “amizade” de Chiba com Tokita, ou na ansiedade do detetive Konakawa. É curioso ver como Chiba também interage com Paprika, por vezes parecendo que o alter ego adquiriu consciência própria, o que cria um questionamento sobre a verdadeira natureza de sua relação. Essa parte da obra chega perto de algo que Philip K Dick faria, o que faz sentido considerando que Satoshi Kon era um grande fã do escritor.
Outra coisa interessante, mais voltada para a animação em si, é a atenção aos detalhes de Kon, atribuindo pequenos maneirismos em seus personagens, como as expressões de Paprika e o jeito como Konakawa imita o diretor Akira Kurosawa enquanto conversa com a protagonista em uma sala de cinema — essa parte é uma das minhas favoritas.
Eu estava constantemente tentando me aprofundar no meu subconsciente, o que é bem difícil quando você está completamente consciente (Satoshi Kon)
Além de todos os elogios ao trabalho visual de Kon, não posso deixar de mencionar a belíssima composição musical pop e techno de Susumu Hirasawa, que combina muito bem com a explosão de cores e elementos inseridos na tela (em certo ponto, temos eletrodomésticos e brinquedos antropomórficos desfilando no meio da rua enquanto executivos engravatados saltam de prédios com um sorriso no rosto e a protagonista sobrevoa observando tudo isso de sua nuvem — parece bizarro, e é).
O roteiro pode não se destacar por seus debates políticos e sociais, que estão lá na superfície mas nunca chegam a ser parte essencial da trama (obviamente, o roteiro não tinha essa obrigação ou intenção), talvez por estar mais envolvido em inserir elementos misteriosos para que o público possa interpretar assistindo o filme mais de uma vez, como as borboletas azuis presentes ao longo da obra.
Paprika é, acima de tudo, uma experiência espetacular, de impacto visual como poucos filmes conseguem, e mesmo que seu enredo não seja tão claro em alguns aspectos, assistir a jornada de Chiba e sua equipe é algo que todo fã de cinema e animação precisa fazer. Muitos cineastas já tentaram interpretar o real e o sonho em sua própria maneira, como David Lynch, Christopher Nolan ou Terry Gilliam, mas nenhum deles parece ter se divertido tanto com as possibilidades da sétima arte como Satoshi Kon, que se foi aos 48 anos, em 2010, com uma filmografia pequena, mas inesquecível.
A ficção científica tem a vantagem de utilizar sua ambientação, aproveitando o vazio do espaço, para executar sequências de introspecção e/ou catarse emocional dos seus personagens. Em Ad Astra, seguimos o astronauta Roy McBride (Brad Pitt) em uma missão secreta envolvendo o desaparecimento de seu pai, H. Clifford McBride (Tommy Lee Jones), considerado um herói por seus projetos em busca de novas formas de vida em outros planetas.
Pouco pode ser dito sobre a proposta da obra sem entregar detalhes relevantes da trama, que apresenta sequências de ação impressionantes ao lado de um ritmo mais vagaroso. Isso pode soar como um contraste capaz de colocar a experiência do filme em risco, mas por conta da tensão e os obstáculos envolvendo as leis da física fora de nosso planeta, algo como um carro saindo do curso em uma atmosfera diferente ou um capacete quebrado podem ser o seu fim. É claro que há circunstâncias onde o diretor precisa brincar um pouco com as regras para que a trama siga um caminho mais envolvente, mas isso pode ser perdoado, já que esse é um filme sobre a procura de nossa própria humanidade, e James Gray, diretor do longa, também responsável por obras como Z: A Cidade Perdida, acerta em cheio na execução.
Seguindo uma trajetória diferente do que se espera de um filme grande como esse no atual contexto das salas de cinema, Ad Astra se distancia completamente de sucessos como Interestelar, de Christopher Nolan, e tem mais interesse em uma condução que ecoa melhor os longa-metragens de ficção científica do diretor russo Andrei Tarkovski, como Solaris ou Stalker, mas não nas tomadas que destacam a beleza da natureza (ainda que a fotografia mais transparente de Ad Astra seja belíssima, feita por Hoyte Van Hoytema – talvez a maior semelhança de Gray com Nolan, já que ambos trabalharam com Hoyte para capturar o visual de seus filmes), e sim em sua composição e temas, abordando a solidão e o vazio existencial do protagonista.
Esse debate existencial talvez seja a maior força do filme, onde até o que parece mais absurdo, como piratas espaciais ou uma sequência envolvendo primatas raivosos, funciona perfeitamente para contribuir com o desenvolvimento do protagonista, que começa a obra agindo de maneira fria e pouco expressiva (resultado de um rigoroso treinamento e avaliações psicológicas), mas aos poucos revela suas verdadeiras intenções, medos e arrependimentos.
O comportamento de Roy McBride, papel muito bem desempenhado por Pitt, um ator ótimo para personagens mais contidos, é um estudo sobre a nossa tendência em manter a distância dos outros. Em certo ponto do filme, assistimos um flashback do astronauta sendo deixado por sua esposa, interpretada por Liv Tyler, o que pode ser lido como uma simples entrega de informação desnecessária, mas aqui se transforma em uma das peças que contribui para um complexo quebra-cabeça sobre as nossas emoções, mais uma vez servindo mais a favor dos temas da obra do que apenas da trama.
Além de Tyler, o elenco conta com Donald Sutherland e Ruth Negga, dois atores de peso, infelizmente com pouco tempo em tela e papéis que, nesse caso, acabam tendo a responsabilidade de avançar a trama, que em momento algum promete focar em alguém além de Roy. Tommy Lee Jones retorna, depois de ter atuado em 2017 na péssima comédia Apenas o Começo; e mesmo que por vezes esteja presente em forma de gravações deixadas para trás pelo personagem, sua imagem é essencial para o crescimento do protagonista e o grande comentário final da obra.
Ainda que o roteiro possua alguns diálogos pouco impressionantes, considerando a importância da narração de Pitt ao longo do filme, a obra se destaca por seus temas, boas atuações, excelente direção e impecável música de Max Richter (compositor da magestral On The Nature Of Daylight). James Gray se arrisca questionando nossa história e introduzindo alguns elementos bastante pontuais sobre religião que representam um pouco do possível futuro no qual nos encontraremos e na relação do ser humano com seus ídolos, seja ele a imagem de Deus ou um pai ausente, aproximando o divino e o paterno.
Ad Astra é uma experiência diferente, a jornada solitária de um homem com um dilema universal. Aqui podemos ver como a humanidade conquistou a lua e até Marte, mas continua olhando para o céu na esperança de nova vida, esquecendo a que já possui.
O francês Pierre Boulle pode não ser um dos escritores mais conhecidos pelos leitores de ficção científica, principalmente por não se considerar um autor do gênero, mas seu trabalho merece reconhecimento, não só em âmbito literário, mas cinematográfico. Ele é responsável pelo roteiro do aclamado filme A Ponte do Rio Kwai, baseada em seu próprio romance de mesmo nome, mas é claro que nada chamou tanto a atenção quando seu trabalho em O Planeta dos Macacos. Com propostas e desenvolvimento de trama similares, não há grandes diferenças entre as versões das páginas e a das telas, com exceção, claro, da grande reviravolta final.
Talvez a maior diferença na abordagem narrativa entre os dois seja a sua estrutura. Enquanto o filme parte direto para a jornada do protagonista, o livro primeiro nos introduz a dois viajantes espaciais, um casal em lua de mel, que encontra uma garrafa à deriva na escuridão do espaço, mas dentro dela há uma mensagem, um diário escrito pelo jornalista Ulysse Mérou. Assim, nos situamos na narrativa principal, lendo os relatórios de Ulysse sobre uma aventura a trezentos anos-luz da Terra, a caminho da estrela Betelgeuse, em um planeta bastante similar ao nosso, com exceção de seus habitantes, uma sociedade constituída de macacos que podem falar como nós. O curioso é que neste planeta, também encontramos humanos, mas que regrediram de alguma forma e assumem o papel de animais daquele planeta.
O texto de Boulle é dinâmico e constrói os personagens, assim como suas intrigas políticas, eximiamente. A sagacidade dos diálogos e o desenvolvimento orgânico da trama faz a leitura da obra uma experiência agradável. Quando Ulysse Mérou e seus companheiros de viagem, o cientista Antelle e o jovem físico Arthur Levain, descem para a superfície de Soror, como decidiram chamar o planeta por conta de uma semelhança geográfica com a Terra, Boulle narra o primeiro contato com paciência, revelando aos poucos as informações que logo chocariam os personagens. Antelle e Arthur logo deixariam a história, o que nos deixa com os símios, principalmente o casal de cientistas Zira e Cornelius, e o respeitado ministro da ciência, Dr. Zaius. Logo, também acompanhamos de maneira pontual a humana Nova, incapaz de comunicação verbal, mas interesse romântico de Ulysse.
Na contramão de sua primeira adaptação cinematográfica, em 1968, na qual Zaius torna-se o antagonista principal e os comentários sobre armamento nuclear são o tópico mais relevante para a conjuntura da época, a obra literária tem mais interesse em evidenciar nossa arrogância, com a proposta de refletir sobre o ciclo da humanidade, principalmente na forma como as sociedades acabam obsoletas.
Os símios do livro são o reflexo mais cristalino de nossa própria realidade, não importa em qual planeta ou ano, o que alguns podem ler como uma interpretação mais pessimista do autor. Ulysse encontra-se constantemente espantado ao confrontar as coincidências daquele mundo com o seu, observando a hierarquia entre os primatas e como eles se separam em gêneros, com os gorilas, orangotangos e chimpanzé tendo diferentes funções e responsabilidades na comunidade.
“O planeta inteiro é governado por um conselho de ministros, à frente do qual está um triunvirato, compreendendo um gorila, um orangotango e um chimpanzé […] Não se misturam à massa; não são vistos nas manifestações populares, mas são eles que dirigem a maioria das grandes empresas.”
Lançado originalmente em 1963, a obra de Boulle continua atual, isso se pudermos relevar a representação feminina quase previsível pela mídia da década, onde as mulheres por vezes serviam mais como um prêmio pelos feitos heróicos do protagonista ou apenas um interesse amoroso sem personalidade. No livro temos Nova, a “parceira” de Ulysse, incumbida da exclusiva tarefa de reagir aos estímulos do protagonista. É intrigante como, em contraste, a cientista símia Zira, tenha um papel bem mais ativo e chegue a ser talvez minha personagem favorita da versão literária.
É óbvio que eu não deixaria de falar das reviravoltas encontradas no livro e no filme, completamente diferentes. Se no filme temos Charlton Heston (George Taylor, protagonista com um nome norte-americano, ao contrário do francês Ulysse) na praia, berrando e amaldiçoando a humanidade depois do que acabou de presenciar, o livro não fica atrás e entrega duas incríveis revelações que transformam a leitura de quem já assistiu o filme em uma nova experiência. Por mais que Rod Serling, um dos roteiristas da versão cinematográfica, tenha feito um trabalho impecável de adaptação, fica fácil entender quem prefira a saída mais irônica de Boulle.
“Estou cansado de viver preso, mesmo na mais confortável das jaulas, mesmo aos seus cuidados.”
Como mencionei a distinção entre o nome dos protagonistas, também vale mencionar como os dois possuem personalidades nem um pouco parecidas. De um lado, Ulysse é um jornalista arrogante e ocasionalmente hipócrita, enxergando o pedantismo de Zeius, mas não o seu, à medida que George Taylor configura a imagem do homem musculoso e carismático com um charuto sempre acesso, isso até o momento em que os perde, junto de suas roupas.
O Planeta dos Macacos é uma das leituras mais envolventes para qualquer um interessado em ficção científica ou apenas uma boa aventura, com personagens marcantes e um enredo excepcional. Entra para a lista de clássicos indispensáveis do gênero.
Ficha Técnica: Título Original: La planète des singes Editora Aleph, 2015 Tradução de André Telles Arte de Pedro Inoue 216 Páginas, Posfácio de Bráulio Tavares e entrevista com o autor.
MINHA PAIXÃO HÁ DE BRILHAR NA NOITE NO CÉU DE UMA CIDADE DO INTERIOR COMO UM OBJETO NÃO IDENTIFICADO NÃO IDENTIFICADO (CAETANO VELOSO)
Considerando
o cenário no qual o cinema brasileiro se encontra, desvalorizado por
uma boa parcela do público e sendo atacado constantemente por forças
políticas utilizando motivos talvez mais arbitrários do que se possa
admitir, é admirável como a sétima arte resiste entregando filmes
marcantes como Bacurau.
Co-escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, Bacurau é o sucessor de Aquarius,
outra obra de Mendonça envolta em debates políticos por conta de um
protesto contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, realizado
pela equipe criativa durante o Festival de Cannes em 2016. Ainda que a
obra tivesse alguma ligação com a “memória seletiva” do nosso país, ela
não era tão evidentemente ferrenha em sua crítica ao atual momento
político como é Bacurau.
“Daqui
alguns anos” a pequena cidade de Bacurau sofre com a perda de
Carmelita, uma das figuras mais importantes do lugar. Tentando seguir em
frente, os habitantes continuam enfrentando a falta de recursos
básicos, como água. Mas as coisas começam a realmente ficar estranhas
quando percebem que aquela comunidade desapareceu do mapa e algo
perigoso pode estar se aproximando do lugar.
Esse é o tipo de filme que não é estragado de forma alguma se pontos específicos da trama são revelados, mas vale a pena tentar assistir a obra sem repertório algum por conta da maneira como os diretores brincam com o cinema de gênero, inserindo elementos de western, fantasia e até um pouco de ficção científica. Os trailers tentaram entregar menos informação possível, então quem assiste o filme sem saber do que se trata pode acabar achando mais divertido se surpreender com os rumos tomados por ele. Eu não costumo ter problemas com coisas como spoilers, mas minha confusão inicial na primeira meia hora de sessão foi recompensada da melhor maneira possível, então acho justo indicar que assista sem saber do que realmente se trata. Por isso, tento deixar essa crítica voltada na maior parte aos temas e a condução geral de Mendonça e Dornelles.
Não é difícil encontrar paralelos entre a situação dos cidadãos de Bacurau e o que o nordeste vem passando nas mãos do atual governo, mas o filme não foca apenas na negligência e a ignorância evidente de pessoas que procuram diminuir uma classe já afetada, ele vai além. Nos últimos anos, temos visto um aumento assustador de pessoas procurando legitimar um passado lastimável para justificar um comportamento agressivo e arrogante, sem contar aquelas que acreditam estar inseridas em um grupo privilegiado da sociedade, mas no fim estão sendo usadas como todos os outros.
Os
personagens interpretados por Karine Teles e Antonio Saboia são
apresentados como dois forasteiros de propósito duvidoso, mas algumas
características envolvendo sua naturalidade e o desejo de fazer parte do
núcleo antagônico do filme deixam clara a intenção dos diretores em
exibir um país onde alguns de seus habitantes não hesitam em entregá-lo
de bandeja para o exterior (no caso, a América do Norte e a Europa) pela
chance de serem vistos como “iguais”. É uma lástima reconhecer que
sequências como esta são as menos fantasiosas do longa.
Em contraste ao comportamento “insatisfeito” dos brasileiros inseridos no grupo dos forasteiros, podemos ver como a pequena comunidade exibe com orgulho seu modesto museu e mantém suas tradições, praticando capoeira e tomando suas substâncias psicotrópicas sem problema.
“Ele só sai de noite. Ele é bravo!”
Ainda sobre o elenco, Udo Kier é a grande surpresa. O veterano alemão assume o papel de liderar o núcleo antagonista, e o pouco que posso dizer é que ele opera em um nível mais sério que seus companheiros, por vezes caracterizados de maneira um pouco caricata, como no caso dos personagens de Brian Townes ou Julia Marie Peterson; mas por estarmos diante de um exercício do diretor em explorar o cinema de gênero, com ecos que vão de John Carpenter a Paul Verhoeven, essa abordagem é mais que bem-vinda.
Na
comunidade de Bacurau encontra-se todo tipo de habitante, e nós
conhecemos personagens cativantes, como Pacote, interpretado por Thomas
Aquino; ou Lunga, de Silvero Pereira. Os dois são homens fortes do
cotidiano violento, fazendo o que for necessário pelo seu povo. É
pertinente que Mendonça também traga de volta alguns atores com quem já
colaborou, como Bárbara Colen e Sônia Braga. Colen pode ser vista como a
protagonista do longa, mas é toda a população de Bacurau que forma o
coração da obra. A atriz tem a tarefa de carregar uma interpretação mais
contida e calma, o que funciona bem em contraste com a personagem de
Braga, a enfermeira Domingas, outro desempenho excelente da atriz, que
vai na contramão do que realizou em Aquarius, apresentando aqui uma
mulher mais arisca e frágil.
A direção de Mendonça e Dornelles respeita todos os gêneros que pretendem experimentar, com um pouco da atmosfera voltada para o suspense e o terror e a montagem de ação faroeste, com transições e fusões simples, mas eficazes. O filme também é bastante sensorial, como na tomada aérea inicial ao som de “Não Identificado”, na voz de Gal Costa, onde esbarramos em um satélite e encaramos a geografia do estado. Outro tópico que vale menção é o uso da violência, que pode criar um debate arriscado sobre o que os diretores querem passar de verdade, mas essa é uma obra de reação bastante simbólica, não há arma mais poderosa que conhecer a própria história, o que faz de escolas e museus abrigos impenetráveis. Podemos ver como Bacurau protesta e faz questão de manter viva a nossa identidade, sem esquecer daqueles que morreram para protegê-la.