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AI: Inteligência Artificial | Spielberg, Kubrick e a Fada Azul

Spoilers!!!

Talvez o longa mais polarizante do currículo de Steven Spielberg seja AI: Inteligência Artificial, de 2001. Alguns consideram um ótimo trabalho de um diretor mais que competente que conseguiu unir sua técnica com a de outro realizador de visão única, mas no outro canto do ringue ficamos com quem considera este um trabalho sem imaginação e desnecessário. Eu aposto meu dinheiro no primeiro grupo e vou dizer porquê. Mas antes, contexto:

Assim como muitos diretores, Stanley Kubrick deixou alguns projetos em aberto antes de sua morte, em 1999. Além do roteiro para uma possível megaprodução sobre a vida de Napoleão, foi revelado um novo projeto que o traria de volta para a ficção científica (onde já realizou clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica), sobre a jornada de um robô para tornar-se um garoto de verdade. Mas a ideia não chegou a sair do papel e várias anotações e artes conceituais foram deixadas para trás, até que Steven Spielberg, por mais inesperado que pareça, decidiu continuar a visão de seu amigo.

Os dois possuem uma filmografia completamente diferente, seja em linguagem cinematográfica ou sensibilidade. Como levantou o site AV Club: “Temos o filosófico ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ de Kubrick em um lado, e o emocional ‘Contatos Imediatos do Terceiro Grau’ de Spielberg em outro; ou o cínico ‘Nascido Para Matar’ contra o patriótico ‘O Resgate do Soldado Ryan’. Se tivermos que escolher um, seria uma duvida entre um analista da condição humana e um humanista”. Ainda assim, os diretores eram fãs um do outro, o que não deixa de ser curiosa a decisão de Kubrick em deixar seu projeto final nas mãos de Spielberg. A resposta é mais simples do que se imagina, e está na própria carreira deles. O filme tinha todos os elementos para uma boa ficção científica, mas precisava de um que seria essencial; se você tem uma história onde seu protagonista é um robô que anseia pela humanidade, há uma necessidade por uma carga emocional que o público está acostumado a conseguir em obras como E.T.: O extraterrestre ou Jurassic Park, realizados pela mesma pessoa. Por isso, considero essa a melhor decisão possível.

Baseado no conto de Brian Aldiss, Supertoys Last All Summer Long(“Superbrinquedos Duram o Verão Inteiro”, lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2001), AI: Inteligência Artificial nos apresenta David, uma criança robô criada por uma equipe de cientistas com a promessa de desenvolver a primeira inteligência artificial capaz de “amar” seu administrador. Monica e Henry Swinton decidem “adotar” David ao descobrir que seu filho possui uma doença aparentemente incurável. A família consegue conviver mesmo com o comportamento robótico do mecha, mas as coisas ficam complicadas quando o filho do casal é liberado do hospital e volta para testar e se vingar de David por ter tomado seu lugar.

A primeira decisão certeira de Spielberg foi contratar Haley Joel Osment, provavelmente o ator mirim mais requisitado naquele ano, depois de ter agradado público e crítica ao estrelar longas como O Sexto Sentido (1999) e A Corrente do Bem (2000). Osment era diferente da maioria dos atores de sua idade, se destacando por conseguir executar papéis complexos de maneira convincente, tanto que chegou a ser uma das pessoas mais novas a concorrer ao Oscar. E não é como se o resto do elenco ficasse devendo, já que tinha nomes como Jude Law e William Hurt. Com um diretor comprometido em apresentar narrativas e personagens memoráveis, o maior desafio de Spielberg seria trazer a visão do amigo para a luz, sem perder sua identidade.

Steven Spielberg e Haley Joel Osment revisando o roteiro

AI possui três atos bastante distintos. O primeiro tem foco total no cotidiano familiar, introduzindo David e seu antagonista, o filho biológico dos Swinton, Martin. Aqui fica aparente a fidelidade ao visual e atmosfera de Kubrick que Spielberg tenta manter. A claustrofobia de cenas simples como um jantar em família é sentida mesmo na grande casa. Os corredores estão sempre vazios, o silêncio predomina, e mesmo com a chegada de Teddy, um robô na forma de ursinho de pelúcia, a diferença é pequena.

Neste momento, a composição fotográfica é centralizada — como era comum de Kubrick. Temos ângulos incomuns, porém uma direção de arte limpa e uma câmera mais estática, com poucos movimentos, mas geralmente reveladores, como quando Monica tenta preparar um café e David observa no canto da mesa, ou no reflexo causado por ele atrás de um vidro. O ponto de vista inicial vem de Monica: é ela quem seguimos, e isso serve para termos um pouco de sua perspectiva deste mundo antes que a humanidade torne-se definitivamente apenas espectadores da jornada de David, assim como todos nós assistindo.

Cena AI

Essa abordagem atravessa o filme, mas deixa de ser a regra assim que chegamos no segundo ato, resultado de uma atitude difícil tomada pela mãe, por conta das competições entre David e Martin, que ficam cada vez mais perigosas. É um dos momentos mais dramáticos do filme e o desespero do robô é tão realista que a mãe não consegue segurar o choro.

A estrutura narrativa de AI lembra a de Nascido Para Matar, outro filme de Kubrick com um primeiro ato em poucas localidades, mais fechado, que força uma abertura para o mundo real em sequencia. Aqui saímos da casa sufocante dos Swinton para um mundo de sucata e neon. Deixamos os humanos para trás e é a hora dos mechas tomarem conta da trama.

É neste mundo que David, acompanhado de Teddy, encontra Gigolo Joe, um mecha adulto (interpretado por Jude Law) que trabalha usando suas ferramentas de sedução. Somos apresentados ao personagem de maneira inusitada, quando ele foge da cena de um crime que não cometeu. Isso faz com que os dois parem em um ferro-velho, no meio de outros de sua espécie, abandonados ou escondidos. A partir de agora Spielberg nos entrega alguns dos visuais mais impressionantes do filme, com uma fotografia mais suja e planos abertos, reveladores como os de Kubrick, mas em escala, como o balão que surge no horizonte e ilumina a noite. É curioso como esse balão parece replicar a famosa imagem da lua usada pelo diretor em E.T.- O Extraterrestre, que mais tarde viria a ser a logo da produtora de Spielberg, Amblin.

Cena E.T.

Durante o segundo ato podemos ver uma mudança na abordagem do filme, que expande seu próprio universo, mostrando outros mecha e sua relação — nada boa — com os humanos. Fica claro que a partir de agora estamos lidando com a linguagem de Spielberg, um ritmo mais rápido e orgânico. É claro que a cena de um sintético com a fisionomia e a voz do comediante Chris Rock sendo atirado de um canhão como uma bola não é o que você espera em um momento tão desesperador para David, então eu dou ponto para o time que não gosta do filme por essa parte.

Não demora para visitarmos Rogue City, o centro de luxúria e cobiça, mas também de tecnologia e informação. É a parte mais extravagante do filme não só em questão de espetáculo visual e uso de efeitos especiais. Alguns consideram isso uma forma de Spielberg tomar conta do filme e deixar as coisas mais grandiosas do que o necessário, mas esse é um dos vários casos onde ele apenas seguiu o que Kubrick já tinha planejado. De acordo com o próprio artista conceitual, Chris Baker, que esteve envolvido no projeto desde o início: “Se eu fizesse a cidade hoje, seria um pouco mais sutil. Eu teria evitado que fosse excessivamente feminina. Talvez mesclar tudo para que não fosse tão óbvio”. Não sabemos se Kubrick traria essa sutileza, mas a ideia era dele e tudo que seu amigo fez foi seguir com ela. No fim, tivemos uma direção de arte mais que competente e alguns ambientes incríveis.

Após consultar uma enciclopédia holográfica, David esbarra na fábula de Pinóquio e fica mais empenhado em descobrir como se tornar um garoto de verdade. Até aqui eram notáveis as ligações metafóricas do filme com o conto do brinquedo de madeira, mas é a partir deste instante que Inteligência Artificial assume por completo sua missão de realizar os desejos de David, mesmo que eles não venham da forma que desejou.

Cena Inteligência Artificial

E assim chegamos no polêmico terceiro ato, que afastou tantas pessoas e aparentemente destruiu suas experiências. David e Teddy encontram a fada azul (na verdade, uma estátua sobrevivente das ruínas da civilização), a mesma que concebeu o desejo de Pinóquio e o transformou em uma criança de verdade. David faz seu pedido e espera ao lado de seus companheiros, na esperança de que em algum momento a fada os ouça.

Anos, décadas e séculos se passam e eles não saíram dali. A superfície da água agora é gelo, a humanidade não parece ter sobrevivido, mas os circuitos das personagens continuam funcionais. Os dois são acordados por figuras que conseguem fazer uma leitura de tudo que David presenciou em sua vida. Logo descobrimos estar na presença de um grupo de mechas, em uma versão muito mais avançada (SIM, são mechas! Não são alienígenas, como alguns pensam até hoje). Diante da ânsia do pequeno garoto sintético, eles decidem realizar seu último desejo, de passar mais um dia com sua mãe. É tudo uma simulação, mas David não se importa. Ele pode falar, andar e tocar, e assim passa horas brincando em sua antiga casa, com sua mãe, como se ele fosse um menino de verdade. Assim, ele pode ser desligado tendo uma sensação de paz. E se vai.

Todo o terceiro ato do filme é considerado por alguns como desnecessário e fantasioso demais. O próprio autor do livro original, Brian Aldiss, não estava feliz com a motivação envolvendo Pinóquio. Então, por que Spielberg fez isso? A obra poderia ter terminado assim que David encontra a fada. Este poderia ser um final lógico, mesmo que desolador.
A imagem do mecha no fundo do mar é prevista no primeiro ato, quando David afunda na piscina dos Swinton. Mas a intenção de Spielberg é ser o menos convencional possível, ir além do que se espera. Pode soar óbvio, e é por isso que, de acordo com Spielberg, o próprio Kubrick queria ultrapassar esta barreira e revelar um desfecho satisfatório para David, um que envolvia aproveitar o que nunca conseguiu, abraçando aquela realidade como ninguém. Ficamos com um momento de catarse, e a atuação de Osment ajuda muito nisso. É uma sequencia mais calma, de doçura e alegria, mas que também traz uma sensação conflitante quando percebemos o quão depressivo e desesperador foi para David nunca ter isso e como ele dedicou sua existência procurando por um sentimento que agora está perdido em um futuro congelado.

Spielberg fez o máximo que pôde para manter o visual e a narrativa de Kubrick, isso sem deixar de lado sua própria habilidade para desenvolver personagens e drama realistas, e é uma tarefa ainda mais difícil fazer isso em uma trama com pouco elemento humano. Inteligência Artificial tem seus defeitos, como o ritmo inconsistente e a falta de uma música mais memorável de alguém tão talentoso como John Williams (responsável pela trilha sonora do filme), mas ainda é um longa com vários pontos positivos e um debate intrigante sobre a condição humana através de uma perspectiva incomum. Estou do lado que considera Spielberg a escolha certa para o projeto, e também acredito que ele tenha sido um bom amigo no fim.

Ator AI
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Alita: Anjo de Combate | A Nova Experiência de Robert Rodrigues

Independente do que ache sobre a filmografia de Robert Rodrigues, não podemos negar que ele tenta se reinventar algumas vezes. Eu comecei a seguir o diretor há muito tempo, quando ainda era criança e morava em frente à locadora da rua. Ao lado de Sam Raimi e Quentin Tarantino, ele estava na capa da maioria das fitas que eu alugava. O Mariachi, seu primeiro filme, é um sólido começo com uma história divertida e uma identidade forte. Não demorou muito para ele começar sua amizade com Tarantino e desenvolver o ótimo longa sanguinário Um Drink No Inferno, em 1996.

Rodrigues nunca chegou a ser um dos meus diretores favoritos, mas era aquele nome que eu seguia por instinto, como se fosse um hábito involuntário. E se você notar, provavelmente já assistiu algumas obras dele, mesmo sem saber. Depois de sua fase trash pistoleira, Rodrigues seguiu um rumo completamente diferente e dirigiu o longa infantil Pequenos Espiões, em 2001. Foi a primeira vez que o diretor atingiu um público maior, obviamente por conta de ter feito um filme mais acessível para toda a família (que rendeu mais três continuações em sua mão).

Ele passou por uma fase morna, sem grandes lançamentos, focando em curtas e documentários. Mas em 2005, comandou Sin City: A Cidade do Pecado, uma adaptação cinematográfica da HQ de Frank Miller bastante fiel à atmosfera e o estilo narrativo do quadrinista. Rodrigues mais uma vez envolvia-se com um projeto original e seu nome voltou a ser lembrado. O longa foi bem recebido pela crítica e recebeu vários elogios sobre sua abordagem com uma fotografia estilizada de preto e branco que parece ter saído direto das páginas do quadrinho noir.

Com Sin City, Rodrigues lentamente voltava ao seu mundo de sujeira e crime, mas o retorno foi real apenas quando, ao lado de Tarantino, desenvolveu Grindhouse, uma homenagem dos diretores ao movimento da década de 60/70, no qual dois filmes eram exibidos em sequencia durante as sessões, geralmente de obras trash com um pouco de gore. Grindhouse consistia de À Prova de Morte (de Tarantino)e Planeta Terror (de Rodrigues). Depois disso, o diretor fez dois longas para Machete e uma continuação para Sin City, mas nada que tenha impressionado.Finalmente, em 2019 tivemos Alita: Anjo de Combate, um projeto que esteve em desenvolvimento há mais de uma década nas mãos de outro diretor: James Cameron; mas sabemos como ele acabou ficando ocupado por conta de Avatar, então confiou em Rodrigues para seguir com o filme. Cameron continuou como produtor e assina como um dos roteiristas, ao lado de Laeta Kalogridis.

Cameron e Rodrigues

Baseado no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio. É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem Rodrigues para comandar o projeto. Ele já provou conseguir criar boas sequencias de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.

O maior desafio do filme foi manter a promessa de deixar Alita visualmente parecia com a figura que saiu de um mangá, com os olhos gigantes e tudo. Felizmente, Cameron é um gênio quando se fala de efeitos visuais, então mais uma vez conseguiu arranjar uma maneira de executar sua ideia. A captura de movimentos da personagem, através da atriz Rosa Salazar, foi um sucesso e impressiona como deu certo quando poderia facilmente ter caído em território de vale da estranheza. É claro que nem toda colaboração de Cameron é necessária, como sua presença nos roteiros, que são a parte mais fraca do longa. Toda a trama de Alita é divertida e traz bons momentos de personagens, mas alguns diálogos podem beirar o cliché (há instâncias onde não só beira, como se joga completamente neles) e a segunda metade do filme já chega com o conflito interno principal da protagonista resolvido, então perdemos um pouco do interesse no drama dos personagens.

Ao lado de Salazar, o elenco conta com Christoph Waltz (que já trabalhou com Tarantino e provavelmente foi uma indicação), Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein e Keean Johnson. Waltz e Johnson tem a maior presença e servem, respectivamente, como uma figura paterna e um interesse amoroso. Connelly e Ali estão pagando a reforma da cozinha, mas ainda assim se dedicam, mesmo com a atuação caricata necessária para seus papéis antagônicos. Skrein, como sempre, parece se divertir independente do orçamento do filme.

Outra contribuição de Cameron foi o 3D. Particularmente, tenho uma raiva do uso excessivo de 3D em filmes, e é óbvio que a técnica é usada até hoje para aumentar o preço dos ingressos no cinema, mas aqui ele é bem atribuído. Sequencias de ação, como as do torneiro de Motorball, e algumas batalhas entre Alita e outros ciborgues se beneficiaram da técnica, utilizando profundidade nos personagens para criar um senso de espaço melhor. Essa noção de espaço é também um ponto positivo para um filme onde batalhas de CGI acontecem constantemente. Pode-se perceber a dimensão da cidade onde o filme se passa, e a importância dada aos espaços que introduz. Há um bar onde os caçadores de recompensa se encontram para beber e se gabar de seus feitos, nesta sequencia temos a introdução de alguns conceitos e personagens que mostram como aquele mundo pode ser explorado no futuro.

Alita

Alita: Anjo de Combate se despede confiante, com um gancho para uma possível sequencia. Até o momento, o filme se pagou na bilheteria, mas não foi nada estrondoso. Ainda que tenha seus problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação, que talvez seja a primeira competente envolvendo a de um anime feito pelos norte-americanos. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.

Robert Rodrigues se encontra mais uma vez no holofote, com um filme que mescla seu olhar para ação e desenvolve o início para o que pode ser uma franquia divertida e despretensiosa, mas carregada de conceitos e efeitos visuais que funcionam muito bem e tem a chance de continuar experimentando sem medo, talvez com um roteiro melhor e uma ameaça mais original.

Ficha Técnica
Título Original: Alitta: Battle Angel (2019)
Direção: Robert Rodrigues
Roteiro: James Cameron e Laeta Kalogridis
Baseado na obra de Yukito Kishiro
Elenco: Rosa Salazar, Christoph Waltz, Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein, Keean Johnson

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Ghost in The Shell | Sussurros sobre Identidade

Masamune Shirow lançou em 1991 o mangá The Ghost in The Shell, com temas e personagens complexos que merecem ser conhecidos, mas a obra só ficou realmente conhecida e aclamada pela crítica depois de sua adaptação cinematográfica, em 1995, dirigida por Mamoru Oshii.

Ghost in the Shell (Kôkaku Kidôtai no original; O Fantasma do Futuro no Brasil) não é apenas uma referência em animação ou no subgênero cyberpunk, é uma grande obra da sétima arte. Seus elementos narrativos e os temas carregados de debate existencial criam um longa que pode ser assistido e dissecado várias vezes, e felizmente isso não se torna uma tarefa cansativa por conta do incrível trabalho de direção de arte que desenvolveu alguns dos visuais mais impressionantes que você vai ver em qualquer anime.

Motoko Kusanagi é uma ciborgue à serviço do Setor 9, um departamento de inteligência “responsável pela segurança nacional” (sem contar todas as outras funções que são confidenciais), com liberdade para atuar de forma violenta, se necessário. Motoko utiliza, além de sua inteligência, armas e seu próprio corpo aprimorado para capturar qualquer figura que possa ser considerada uma ameaça, seja física ou virtual. Ao lado de seus parceiros de trabalho, Batou e Togusa, Kusanagi procura pelo Mestre dos Fantoches, uma inteligência artificial (mesmo que ela não se considere e o conceito seja um pouco mais complexo do que isso) que anda cometendo atos terroristas com um objetivo ainda incerto.

Ghost in The Shell (ou GITS)é carregado de símbolos. Um dos principais é a própria cidade, um ambiente futurista modelado a partir de Honk Kong. Oshii aproveita o neon e a arquitetura, no entanto insere elementos menos deslumbrantes, como os escombros do que ficaram para trás em alguma catástrofe natural. A cidade respira, quase como um personagem próprio, mas não de forma alegre, aqui a solidão está em cada composição, com as pessoas em movimento constante e as construções gigantes e restritas. O filme representa isso através de uma sequencia de imagens apresentadas em um ritmo inalterado e a ausência dos sons daquele universo — o que temos é a excelente música de Kenji Kawai, uma melodia tribal com uma percussão e voz quase estarrecedora que não saem da cabeça.

Motoko e Batou em ação.

Mamoru Oshii já esteve envolvido em outras produções como esta, cheias de conceitos e visuais enigmáticos, como Angel´s Egg, de 1985. Em GITS ele abre debates de cunho filosófico, com temas como homogeneidade e consciência. Motoko é uma personagem tão complexa quanto o enredo da animação. A agente tem o costume de mergulhar e arrisca morrer por conta de alguma falha do sistema, mas ainda assim continua nadando, e são nestes momentos em que temos uma das rimas visuais mais poderosas do filme, quando a ascensão de Motoko à superfície é um espelho do seu nascimento, logo na cena de abertura, sendo erguida do tanque aquático onde foi projetada. A personagem diz que ali ela sente “medo, frio e solidão, mas também esperança”.

O filme abre uma conversa intensa sobre mente e corpo, mas o que mais preocupa Motoko é sua identidade: “Acho que ciborgues tem uma tendência paranoica sobre sua origem. As vezes suspeito não ser quem sou”. Ainda que a nossa individualidade esteja em questão, o filme não deixa de mostrar a importância da diversidade em uma sociedade que não consegue distinguir o real do artificial, e isso fico bem claro na forma de Togusa, o oficial da força policial que é admitido na missão de Motoko e Batou por sua particularidade: ao contrário de seus companheiros, Togusa não possui aprimoramentos que passam do superficial, ele é o mais “humano” da equipe. A experiência de cada ser vivo é uma contribuição para a consciência coletiva, as diferenças são uma vantagem, todos temos uma maneira única de ser e lidar com as coisas.

O que é verdade para um grupo também é verdade individualmente. Quando se é especialista demais, torna-se fraco.

A obra também aborda a parte mais assustadora da mente através do Mestre dos Fantoches. Um de seus primeiros atos é brincar com a realidade de suas vítimas, como o lixeiro que acredita estar fazendo tudo por sua mulher e filha, mas descobrimos que ele é solteiro e nunca foi pai. O Mestre dos Fantoches fez com que sua vítima aceitasse uma realidade que não era a sua. Os conceitos de realidade e consciência se confundem e isso faz com que todos fiquem ainda mais preocupados com o que o antagonista pode fazer.

Ghost In The Sell

Ghost in the Shell é uma das animações mais influentes do cinema japonês, ecoando em outras mídias e formatos, seja na abordagem de temas ou visuais, como podemos ver no cinema com Matrix (1999)ou nas séries, com Westworld (2016 — Atual). Há muito para ser dissecado de cada diálogo ou da direção de arte, seja detalhes mais óbvios ou pequenas rimas que fazem o constante retorno ao filme uma experiência cada vez melhor.

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Retrospectiva 2018: a ficção científica no cinema

Todo fim de ano temos um dos rituais mais divertidos para pessoas com mania de catalogação como eu, que é fazer as listas de melhores e piores do ano. Admito que não tive o melhor histórico de leitura sci-fi, mas isso por conta da quantidade e não qualidade. Em questão de séries até que as coisas foram bem, mas também fiquei um pouco atrasado em algumas temporadas. Já no cinema, consegui assistir bastante coisa e listarei aqui alguns lançamentos que podem ser interessantes dar uma chance, outros que decepcionaram e alguns que foram genuinamente bons.

Muitas continuações, obviamente. Nunca vamos nos livrar das franquias, então para trazer um pouco de positividade para a conversa, o jeito é torcer para que sejam boas. O Predador marcou o retorno de Shane Black à franquia (ele atuou no original de 1987 e agora dirige o seu próprio filme no universo dos caçadores alienígena) e Jurassic World: Reino Ameaçadocontinua o retorno dos dinossauros, desta vez pelas mãos de J.A. Bayona. Não é como se estivéssemos precisando dessas franquias, mas pelo menos nenhuma foi tão desnecessária quando The Cloverfield Paradox.

Depois do sucesso do primeiro Cloverfield: Monstro (2008), dirigido por Matt Reeves, o produtor J.J.Abrams teve a ideia de expandir o universo do filme. Rua Cloverfield, 10 (2016), lançado quase uma década depois e comandado por Dan Trachtenberg, é uma continuação mais restrita e em menor escala, focando mais no drama dos personagens do que a perseguição e destruição causada pela criatura da série. Foi um sucesso de crítica e surpreendeu muita gente que não sabia como este filme seria conectado ao mundo da obra original. E é aqui que entra a parte curiosa: Rua Cloverfield, 10 não foi imaginado como um filme de franquia, este seria um longa independente com outro nome, mas como a produção era promissora, o estúdio decidiu comprar os direitos, modificar um pouco o roteiro e inserir umas cenas extra para dizer que esta era uma continuação oficial. Pelo menos funcionou e é um filme envolvente e tenso, o que não pode ser dito de Cloverfield Paradox.

Este terceiro longa fez o completo oposto do seu antecessor. Ao invés de comprar um filme pequeno e bem construído, o estúdio decidiu ir com algo mais ambicioso. Paradox nos levaria ao espaço, para descobrir mais sobre a origem da criatura que invadiu nosso planeta. O problema é que o elenco não parece feliz por estar ali, o enredo é mal elaborado e tudo parece uma confusão de várias tramas descartadas de outros filmes, isso porque a montagem não ajuda nem um pouco. O resultado foi um desastre de crítica e a reação negativa fez com que o filme fosse lançado diretamente no serviço de streaming da Netflix, sem sequer ganhar uma estréia nos cinemas.

The Cloverfield Paradox

A tática de despejar uma produção que não tem chance de sucesso na Netflix acabou se tornando comum este ano, infelizmente — e não só com obras sci-fi, tivemos também Mowgli, de Andy Serkins, por exemplo, que não pareceu agradar o público teste (quando vamos acabar com esse tipo de avaliação?). Mas as vezes não é questão de uma reação negativa da crítica, talvez seja uma preocupação do estúdio em não conseguir arrecadar o suficiente por conta de uma produção mais densa e complexa, como foi o caso de Aniquilação, de Alex Garland.

Garland é responsável por Ex Machina (2014), um dos lançamentos independentes mais notáveis dos últimos anos, e por conta disso recebeu o convite para dirigir a adaptação cinematográfica da obra literária homônima de Jeff VanderMeer, sobre um grupo de cientistas em uma jornada para investigar uma misteriosa área que sofreu intervenção alienígena e o ainda mais misterioso retorno do marido de Lena, uma bióloga renomada que parte para a zona com as outras mulheres para descobrir o que está acontecendo.

A premissa lembra um pouco Stalker (1979), mas Aniquilação se diferencia pela forma que trata seus personagens, um grupo formado apenas por mulheres, e a execução tem mais ação que longos monólogos. Além disso, o elenco é formado por ótimas atrizes como Natalie Portman, Tessa Thompson e Jennifer Jason Leigh. O destaque vai para a forma como o Garland desenvolve o drama entre seus personagens e debate os temas de maneira orgânica na narrativa (sem trocadilho).

Aniquilação

Além de adaptações, o ano trouxe remakes, como Fahrenheit 451, que não foi muito bem recebido mesmo com um elenco de qualidade. Uma Dobra no Tempo foi outra adaptação que deixou muitos ansiosos por conta da aclamação pelo material original, mas o maior destaque este ano foi Ready Player One, que marcou o retorno de Steven Spielberg para o território que o próprio ajudou a construir, o de blockbusters.

O livro de Ernest Cline conta a história de Wade, um dos participantes do maior jogo virtual do mundo, o Oasis. Depois da morte do criador do jogo, o gênio programador Halliday, começa a corrida para descobrir onde está escondido o easter-egg que pode mudar o mundo, não só o virtual. A história tem essa premissa básica e passa a maior parte do tempo inserindo incontáveis referências ao mundo da cultura pop, o que pode ser um ponto negativo para alguns, mas felizmente temos a habilidade de alguém como Spielberg na direção da adaptação cinematográfica, o que faz com que os personagens de jogos, quadrinhos, filmes, séries e animações consigam interagir e servir para a narrativa sem parecer apenas menções vazias.

Ainda que no fim seja um pouco cansativo ver o mar de referências e algumas conveniências de roteiro, Spielberg traz um visual deslumbrante e efeitos especiais detalhados que mantém a atenção do público. É uma aventura divertida e descompromissada, e não há problema nisso.

Ready Player One

Seguindo o caminho de produções originais, o serviço de streaming Netflix (olha ele aí de novo) lançou vários filmes do gênero, infelizmente a maioria foi mal recebida pela crítica. ExtinçãoTitã e Anon passaram despercebidos. Uma pena ter que incluir também Mudo nesta lista, isso porque Duscan Jones é um diretor competente que já provou saber fazer uma boa ficção científica de baixo orçamento com Lunar (2009).

Saindo da Netflix, alguns lançamentos são um pouco mais difíceis de encontrar, como I Think We´re Alone Now, o segundo longa dirigido por Reed Morano, que é mais conhecida por seu trabalho na série The Handmaid´s TaleI Think We´re Alone Now é uma daquelas histórias clássicas de pessoa solitária depois de algum evento dizimar uma parte da humanidade, mas não demora muito para que um novo personagem seja introduzido e faça o protagonista questionar tudo. O filme tem a ótima direção de arte de Morano e conta com Peter Dinklage e Elle Fanning no elenco, mas não se sustenta por conta de um enredo que não parece saber onde ir, com execução confusa e uma conclusão abrupta.

Outros que ainda nem tem data para lançamento no Brasil são Upgrade e Sorry to Bother You. O primeiro é um longa de baixo orçamento com uma direção que encontra maneiras criativas de executar suas cenas de ação em uma trama envolvendo um chip capaz de atribuir habilidades incríveis ao seu portador. Chegando no segundo, dirigido pelo rapper Boots Riley, da banda The Coup, temos este que é facilmente o filme mais absurdo do ano, sobre um atendente de telemarketing que descobre uma maneira diferente de melhorar seu serviço — o que depois o coloca em várias situações inquietantes, porém divertidas para o público. Uma mistura de elementos do gênero guiado por uma força afro-punk que entrega cada linha de diálogo ou ação de personagem como um soco. Esse filme parece uma versão longa metragem de algum episódio da aclamada série Atlanta, e tem até o ator Lakeith Stanfield como protagonista, que interpreta Darius no sucesso do canal FX.

Sorry to Bother You

Mas saindo da tristeza que é ver alguns filmes não conseguindo ver a luz do dia no nosso país, vale lembrar que este foi o ano em que Kin conseguiu estar em algumas salas e ganhar relativo reconhecimento. E sei que o relativo aqui quer dizer pouca coisa mas pelo menos esteve em algumas salas por alguns dias e isso já é uma vitória. O filme sobre um jovem que encontra uma arma alienígena e decide usa-la para combater os traficantes que perseguem seu irmão é uma obra bem objetiva e sem muitos floreios narrativos, o que seria aceitável se não fossem incluídas tantas peças no quebra-cabeça do universo do filme no terceiro ato, o que deixa uma conclusão um pouco aleatória.

O Primeiro Homem também estreou de forma tímida por aqui. Dirigido por Damian Chazelle, mais conhecido por seus filmes com temática musical como Whiplash (2014) e La La Land (2016), aqui ele visita o momento histórico da corrida espacial que levou o homem à lua. O diferencial do longa está no fato de que, surpreendentemente, não temos muitos filmes com um foco na vida pessoal do astronauta Neil Armstrong. Mesmo não tendo sido um sucesso de bilheteria, é um retrato íntimo e bem construído da família do astronauta e a ansiedade pelo iminente.

Fechando essa lista temos dois grandes sucessos entre o público: Bird Box e Um Lugar Silencioso.

Os dois tem uma premissa similar envolvendo a privação de algum sentido. Bird Box, de Susanne Bierfaz com que seus personagens mantenham os olhos vendados por conta de criaturas que causam uma reação mortal por conta de seu visual assustador (que não nos é apresentado). Já Um Lugar Silencioso, de John Krasinski (que também estrela a obra), lida com uma invasão de criaturas assassinas que possuem uma audição perfeita, então os humanos precisam formular maneiras cada vez mais elaboradas de seguir suas vidas sem manifestar som. Saindo disso, os dois longas seguem caminhos completamente diferentes, com personagens e tramas distintas, mas mantendo o tom de suspense e horror que atravessa a história.

Bird Box tem as mesmas vantagens de Um Lugar Silencioso. Boa premissa e um elenco de qualidade. Enquanto o primeiro filme acaba dando destaque quase exclusivo ao personagem de Sandra Bullock, a protagonista, o segundo consegue equilibrar melhor o foco entre todos os personagens. O longa de Krasinski também tem uma enorme atenção aos detalhes. Durante uma cena de jantar, por exemplo, a família só conversa em linguagem de sinais e come sua comida utilizando folhas e materiais que não fazem barulho, jogam Banco Mobiliário trocando as peças de plástico por bolinhas feitas de lã, enchem a estrada de areia fofa e andam descalços para poder se locomover. Krasinski dedica tempo para explicar as mudanças que a família precisou fazer com o passar do tempo, o que pode ser considerado desnecessário por muitos diretores (infelizmente acontece mais do que se imagina), mas é esse tipo de coisa que nos mantém investidos e acreditando na história.

Susanne Bier também apresenta seu universo, mas não parece saber muito o que fazer com a direção, deixando a ambientação comum demais, sem uma identidade visual e firmeza na construção de suas cenas. É um pouco mecânico, mas Sandra Bullock ajuda a passar por estes momentos por conta de uma atuação competente.

Como mencionei anteriormente, há uma dedicação maior em dar importância para cada personagem em Um Lugar Silencioso. Cada um tem uma função e uma forma diferente de lidar com um trauma em comum. Não que Bird Box não tenha seus próprios méritos, é claro, mas se eu tiver que escolher um filme que represente um bom soft sci-fi com um pouco de horror, personagens memoráveis e uma construção de mundo através de um olhar mais apurado na direção, a obra de Krasinski marcou esse ano como uma das melhores.

Um Lugar Silencioso

E aí, anotou todos? 
Deixe nos comentários algum que deveria estar aqui e diga quais você viu e quais quer ver. Concorde ou discorde, o importante é manter o debate saudável.

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Lista: Os Melhores Filmes Sci-Fi da Década (2000)

Vamos voltar um pouco.

Depois de ter feito uma lista de mesmo nome para os anos 2010, ficou claro que outra sobre a década anterior seria feita — é só ver a quantidade de bons filmes lançados nessa época. Então, sem muita enrolação, vamos começar. A década de 2000 trouxe algumas coisas que receberam uma reação bem negativa da crítica, como o criminoso remake de Solaris (2002), estrelado por George Clooney, ou o deplorável A Reconquista (2000), que redefiniu tudo que conhecemos sobre John Travolta ou ângulo holandês.

Falando assim nem parece que foi a mesma década que teve ótimas obras como Sunshine: Alerta Solar (2007), de Danny Boyle; ou a adaptação dos quadrinhos de Alan Moore (que o próprio não aprova, mas foi um sucesso de público), a distopia V de Vingança (2005). Até mesmo Michael Bay decidiu diminuir um pouco sua paixão por filmes espalhafatosos e dirigiu A Ilha(2005), uma ficção científica bem intrigante que surpreendeu alguns. Tudo bem que na segunda metade do filme as coisas começam a realmente parecer um filme do Michael Bay que todos conhecemos, mas ninguém é perfeito. Bem, talvez a exceção seja Filhos da Esperança (2006), que é considerado por muitos o melhor da época e uma das melhores obras já lançadas para o gênero no cinema.

Em um futuro onde as mulheres não podem mais ter filhos e a última pessoa a nascer acabou de morrer, Theo Faron (interpretado por Clive Owen) recebe a missão de tomar conta e transportar uma jovem grávida que corre incontáveis riscos em um mundo em caos. Com um excelente enredo, atores comprometidos e a ambiciosa direção de Alfonso Cuarón, Filhos da Esperança é uma obra indispensável que dialoga com temas impactantes de maneira honesta e inteligente.

Filhos da Esperança

Os anos 2000 foram bons para pequenas produções. Mesmo sem o orçamento dos filmes mencionados anteriormente conseguiram certa notoriedade e respeito entre a crítica e o público, como o melancólico e desesperador A Estrada (2009) ou o claustrofóbico Lunar (2009). Mas se tem um filme que conseguiu aclamação em quase todo festival que foi e agora é considerado um cult do gênero, temos que reconhecer Primer (2004).

Dirigido por Shane Carruth, Primer é provavelmente o filme mais complexo da lista. E quando digo isso não quero desmerecer a narrativa ou decisão estética de qualquer outro (ainda mais por Primer não ter um apelo visual impressionante), a verdade é que esse filme foi escrito da maneira mais crua possível, os termos técnicos não são explicados em ponto algum, a ciência é contada por quem entende para quem entende e nós ficamos ali tentando entender o que eles estão falando. Mas essa é a parte fácil,depois de um tempo você consegue entender a premissa, mas aí entra a trama envolvendo viagem temporal, traição e conspiração. É nessa hora que se deve prestar toda a atenção que você tiver em sua mente. Eu nem me atrevo tentar falar demais do enredo (assisti o filme há quase dez anos pela primeira vez e toda vez que assisto acho que entendi apenas metade), mas saiba apenas que é uma jornada de um grupo de amigos engenheiros que se arrisca em um projeto e acabam criando uma máquina do tempo. Alguns podem achar que é apenas um filme-conceito, mas há um drama pessoal bem desenvolvido, mesmo que não seja o foco.

Carruth viria a dirigir novamente mais de uma década depois, com Upstream Color (2013), mas quem esperava que ele fosse deixar as coisas mais mastigadas para atrair um público maior acabou se enganando. 

nota: aproveitei esse espaço para mencionar o filme já que esqueci de inseri-lo na lista de melhores dos anos 2010 ¯\_(ツ)_/¯

A Estrada

Já que estamos nessa de baixo orçamento, vale lembrar dos found-footage, a técnica que virou mania entre estúdios que querem lucrar em cima de um formato que economiza bastante no orçamento graças ao uso “amador” da câmera (maldito seja, Bruxa de Blair, a culpa é sua!). Dois grandes sucessos saíram desse formato: Cloverfield (2008) e Distrito 9 (2009). Enquanto Cloverfield mescla elementos de terror e cinema catástrofe e rendeu uma ótima continuação (pena que houve mais uma que não deve ser mencionada), quem merece um destaque aqui é Distrito 9, não apenas por ser uma ficção científica inteligente com comentários políticos bem inseridos e efeitos especiais de qualidade, mas por ter lançado a carreira de Neill Blomkamp, que depois trouxe longas como Elysium (2013) e Chappie (2015) — não que estes estejam sequer no mesmo nível de seu primeiro filme, mas todos tem a mesma estética futurista.

Em Distrito 9 uma nave pousa na África do Sul e uma raça alienígena é recebida pela população. Anos depois, as pessoas estão cada vez menos seguras do que os visitantes podem estar fazendo, então o que antes era um campo de refugiados agora serve como uma instalação militar intitulada Distrito 9. No meio de tudo isso, um funcionário do governo é mandado para lá com o intuito de expulsar os visitantes, mas como é de se esperar, as coisas não dão certo. Adorado por muitos, esse filme marcou a década passada e agradou até aqueles que não gostam de ficção científica.

Distrito 9

Enquanto anotava os filmes para a lista notei que a década passada fez muito bem também para Steven Spielberg, que teve três obras sci-fi bem recebidas, elas são Minority Report: A Nova Lei (2002), Guerra dos Mundos (2005) e o controverso A.I. Inteligência Artificial (2001), que eu vou defender agora e depois vou defender um pouco mais em um artigo dedicado ao filme.

Inteligência Artificial seria o próximo projeto de Stanley Kubrick, sobre um sintético em forma de garoto que deseja se tornar um menino de verdade (é basicamente Pinocchio, só que mais triste). Kubrick esteve em conversas com Spielberg e fez o pedido para que o Steven terminasse o filme caso a tecnologia ainda não estivesse do jeito que ele quer. Perfeccionista como sempre, Kubrick nunca esteve feliz o suficiente e depois foi tarde demais para poder fazer algo. Depois de sua morte, Spielberg partiu na missão de realizar o filme. Reuniu um ótimo elenco, efeitos especiais muito bons para a época e deu seu próprio toque no roteiro, o que considero uma boa decisão. Kubrick, sendo meticuloso, queria que seus filmes tivessem o visual mais impecável possível, mas Spielberg tinha uma atenção para os personagens que poucos tem até hoje. Para ele há uma necessidade em criar algo cativante, não apenas belo para os olhos, mas para o coração.

Essa mistura de Kubrick com Spielberg é uma boa ideia e mesmo que alguém possa considerar os estilos conflitantes, ainda é um filme cheio de momentos emocionantes. Tem uma cena envolvendo um sintético do Chris Rock sendo lançado por um canhão? Sim! Mas isso dura alguns segundos e não atrapalha em forma alguma a narrativa. E você provavelmente deve estar pensando no final, envolvendo alienígenas que leem mentes… ou no verdadeiro final, onde na verdade não são alienígenas e sim outros sintéticos mais evoluídos que conseguiram ler a base de dados do protagonista. Falaremos sobre isso com mais detalhes no futuro.

A.I. - Inteligência Artificial

Eu sei que essa última colocação provavelmente irritou alguém, por isso vamos para as animações, que são várias. Tendo isso em mente, vai ficar difícil escolher apenas uma opção para representar essa categoria, isso porque tivemos obras memoráveis como Wall-E (2008), Planeta do Tesouro (2002) e Atlantis (2001), todos da Disney/Pixar. Mas do outro lado do oceano surgiram animes excelentes como A Garota que Conquistou o Tempo ( Toki o kakeru shôjo, 2006) e o brilhante Paprika ( Papurika, 2006), que inspirou filmes como A Origem, de Christopher Nolan (sério, tem muios paralelos e referências visuais diretas), e foi o último longa do gênio Satoshi Kon, antes de morrer por conta de um câncer. Ele tem outro que poderiam entrar nessa lista, Millennium Actress ( Sennen joy, û2001), mas como ele e Paprika tem uma proposta similar, fiquei com o mais impressionante.

Paprika envolve o roubo de uma máquina que permite que seu usuário entre nos sonhos alheios. Com a ajuda da terapeuta Chiba Atsuko, um detetive pode evitar que um plano desastroso tome conta do mundo real ao atravessar a barreira dos sonhos. E eu paro por aqui sem dar mais detalhes porque vale a pena descobrir cada pedaço desse mundo e ficar fascinado com os visuais e a montagem incrível de Satoshi Kon.

Paprika

Indo para algo mais leve, sem muita intriga política ou conceitos complexos, tivemos alguns filmes bem divertidos, como a primeira adaptação cinematográfica de O Guia do Mochileiro das Galáxias (2005), baseado na obra de Douglas Adams e estrelado por Martin Freeman; ou MIB: Homens de Preto II (2002), um tremendo sucesso, assim como o primeiro. Mas o que eu vou usar como exemplo aqui é uma comédia “infantil” bastante criativa e com efeitos especiais muito bons: Zathura (2005).

Dirigido por um Jon Favreau pré-Homem de Ferro (Favreau foi o responsável por abrir as portas do MCU), a história é basicamente um Jumanji (1995) no espaço, mas consegue ter personalidade o suficiente para de diferenciar. Walter e Danny são mandados ao espaço por conta de um jogo de tabuleiro mágico e tem que descobrir como sobreviver a todas as ameaças dele.

Esqueça seu preconceito com a Kristen Stewart e eu esqueço o meu com o Dax Shepard, porque esse é um daqueles filmes família com um robô gigante que quer matar duas crianças inocentes, então ele merece um pouco mais de amor e eu estou dando. Toma, Zathura!

Zathura

Assim como na lista anterior, vou deixar um filme mais dramático onde as relações humanas são mais fortes que todo o conceito sci-fi em volta. Não é todo dia que temos uma obra do gênero que fale sobre relacionamentos com tanta força quanto Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). A direção de Michel Gondry e roteiro de Charlie Kaufman já deveriam ser o suficiente para entender o quão bom é esse filme. Kaufman desenvolve uma das suas melhores narrativas com Brilho Eterno, com uma história sensível e inteligente.

Joel não aguenta mais lembrar do passado depois de terminar seu relacionamento com Clementine, para resolver isso decide passar por um procedimento experimental que promete apagar literalmente todas as memórias que Joel tiver dela. O longa tem o roteiro metalinguístico e absurdo de Kaufman ao lado dos visuais surreais de Gondry, isso combinado com um elenco certeiro encabeçado por Jim Carrey e Kate Winslet. A ficção científica está no filme inteiro, não apenas nas representações mentais do protagonista ou na tecnologia, é a relação de Joel e Clementine o conceito mais complexo da obra. Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças permanece por dias com quem assiste e melhora com cada revisitada.

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças

E aí, anotou todos? Devo ter indicado aqui uns vinte filmes, e independente de ter mais ação, drama ou comédia, acredito que todos merecem ser assistidos. Deixe nos comentários algum que deveria estar aqui e diga quais você viu e quais quer ver. Vai ter mais listas de onde essa veio, então não esqueça de seguir o Primeiro Contato.

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Cinema

Sob a Pele (Under the Skin, 2013)

O cinema é uma arte visual, muito pode ser contado apenas com um olhar. Há filmes que entregam uma carga de emoções em questão de segundos com apenas uma tomada, até mesmo um plano estático. Diretores como Kubrick e Tarkovsky fizeram grandes obras da ficção científica e souberam aproveitar cada pedaço da película, transformaram o filme em uma experiência única. Nem sempre precisamos de diálogos explicando tudo que estamos vendo ou uma direção mais didática, também é necessário abraçar o abstrato e dar valor ao silêncio. Isso é algo que Sob a Pele faz muito bem, se arriscando em tempos de um cinema cada vez mais apressado e de atenção limitada.

Estrelado por Scarlett Johansson (que esteve em outra obra sci-fi no mesmo ano, o ótimo Ela, de Spike Jonze), Sob a Pele segue uma figura misteriosa, uma jovem -obviamente- belíssima em uma missão curiosa que envolve seduzir alguns homens que encontra no caminho. Isso é apenas metade da premissa, a parte que eu consigo explicar sem entrar em especulações, porque a outra metade envolve motoqueiros obstinados e um lugar completamente sombrio onde você afunda na escuridão (é isso ou algo bem próximo disso).

Under Skin

Jonathan Glazer, o diretor, recorre ao silêncio, esse é um filme que constrói uma atmosfera característica, e não estou falando apenas da parte sci-fi (mais tarde séries como Stranger Things utilizam o mesmo apelo visual das cenas de Scarlett na escuridão) ou do suspense durante os encontros da personagem; Sob a Pele também é carregado de solidão. A personagem caminha um mundo frio e desolador, as poucas conexões humanas talvez sejam o suficiente para fazê-la questionar suas atitudes, mas ainda assim há uma tristeza que não parece ir embora. Esse é um filme difícil de ser assistido, mas ainda assim cresce com cada assistida, você encontra um novo detalhe que diz muito. É uma pena que alguns tenham assistido esse filme na época apenas pela promessa de uma cena envolvendo nudez com a protagonista, o que explica as reações negativas depois de perceber que tipo de filme estavam assistindo.

Por falar em Johansson, a atriz está perfeita. Se em Ela houve uma falta de presença física e uma predominância através de sua voz (ela interpreta um sistema operacional), aqui é o completo oposto. Johansson tem pouquíssimas falas e entrega todo o drama com sua interpretação, os olhares tortos, a boca travada e o corpo tenso. Uma curiosidade sobre isso é que o diretor pediu para a atriz participar de algumas cenas e improvisar um pouco. O filme foi gravado em uma vila da Escócia onde Scarlett ainda não era tão reconhecida, por isso Glazer fez com que a atriz interagisse com homens aleatórios na estrada, nada de atores, em cenas onde ele podia incluir uma câmera escondida.

Foram quase dez anos de produção, mudanças no elenco e outros ajustes, mas todo esforço valeu a pena. Além da direção de arte belíssima que rende alguns momentos de puro êxtase visual com suas cores e composições, seria tolo esquecer outra composição: a musical, feita por Mica Levi. A trilha principal tem uma melodia quase acolhedora e ameaçadora ao mesmo tempo, é uma sensação estranha que deixa a experiência de assistir o filme ainda mais poderosa. Talvez sem ela este filme pudesse perder até um pouco do tom melancólico que apresenta. Vale mencionar aqui que o filme Aniquilação (2018) claramente pega um pouco emprestado da trilha sonora de Levi, mas isso é só um detalhe.

Personagem Sob a Pele

Sob a Pele é baseado no livro homônimo de Michel Faber. Existe uma possibilidade de muitas perguntas serem respondidas na versão literária, mas considero o mistério o que fez do filme uma obra poderosa. Não precisamos saber de tudo o tempo todo, a experiência é o suficiente. Em um mundo onde não nos esforçamos para interpretar e recorremos ao primeiro vídeo de explicação do filme em um vídeo no Youtube, o longa de Jonathan Glazer apenas cresce com a maneira sutil e quase experimental que executou sua arte. Esse longa não é para todos, mas quem disse que tudo precisa ser?

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40 Anos do Piquenique de Tarkovsky

Andrei Tarkovsky é facilmente um dos maiores nomes do cinema russo. Seu olhar para uma direção de arte impecável e a sensibilidade para debater temas complexos e existenciais é um diferencial que ele carrega como poucos. Na área da ficção científica ele tem no seu currículo duas grandes obras: Solaris (1971) e Stalker (1979). A primeira, adaptada do livro homônimo de Stanisław Lem, é grandiosa e muitas vezes comparada, com razão, ao maior feito de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Já Stalker, bem menor em escala mas igualmente impactante, é uma adaptação de Piquenique Na Estrada, a obra mais aclamada dos irmãos Arkádi e Boris Strugátski. Recentemente, li a última edição traduzida para o português da obra, lançada no país pela Editora Aleph em 2017.

Em Piquenique na Estrada temos um clássico sci-fi de primeiro contato, mas com uma particularidade na premissa, desta vez os alienígenas vão embora sem que nós ao menos tenhamos a chance de descobrir o que está acontecendo. A cidade de Harmont é um dos pontos abandonados pelos visitantes, mas o curioso aqui está no que eles deixaram para trás. Chamados de “zonas”, os territórios habitados pelos invasores continuam um mistério para muitos que acreditam que qualquer tipo de coisa perigosa e bizarra pode acontecer. Por isso, poucos tem coragem de entrar nestas zonas. Um deles é Redrick Schuhart, um stalker, o tipo de pessoa que conhece o lugar e invade os pontos abandonados para coletar e tentar vender objetos de outro mundo.

O livro sofreu bastante na mão da censura. Lançado originalmente em 1971 na União Soviética, Piquenique na Estrada foi uma obra que refletiu seu tempo, trazendo momentos de alusão à Guerra Fria em seu texto. A edição brasileira além de ser traduzida diretamente do russo, estar em sua versão definitiva e ainda ter um prefácio pela incrível Ursula K. Le Guin, apresenta um posfácio escrito por um dos autores originais, Bóris, onde ele comenta o processo criativo da dupla e o contexto político que envolvia a obra — é nesta altura que o autor lista algumas das “razões” para o texto original ter sido atacado à ponto de perder sua essência. Trechos como “… eu gostaria de beber algo forte, mal conseguia me aguentar.”- p. 62, ou “… estava coberto de lama, como se fosse um porco.”- p. 113, são apenas alguns exemplos que a censura da época carimbou por “comportamento amoral” ou “expressões chulas”.

Arkádi & Boris Strugátski

Por já ter assistido o filme, ficou difícil ler a obra dos Strugátski sem fazer algumas comparações, é claro. A versão literária é muito mais objetiva na apresentação de seus personagens e em seus temas. O enredo tem uma proposta instigante e é cheio de elementos peculiares, mas devo confessar que a narrativa pode ser um pouco enfadonha. Em compensação, os diálogos são um dos pontos altos do livro, isso evita que você desanime de algumas partes. Piquenique na Estrada é uma obra única que merece atenção de qualquer fã de ficção científica pela maneira inovadora que executa um subgênero tão provocante. E acredite, a versão cinematográfica é para alguns (me inclua nessa) ainda mais surpreendente.

Assim como o livro, a adaptação de Tarkovsky possui um ritmo mais lento, mas sempre justificado. Sua câmera toma tempo, faz longas tomadas do ambiente e entrega a atmosfera onírica necessária para contar essa ficção científica com divagações filosóficas.

Os visuais de Tarkosvky são um espetáculo. O filme foi gravado em locais que exibiam a estética que o diretor considerava a mais próxima do que a zona deveria ser: decrépita, manchada e cheia de tralhas. Um dos locais da produção foi em uma usina abandonada na Estónia, o que já era praticamente um local pronto para a equipe de filmagem. Um outro elemento importante que permeia a obra é a presença da água, um tema recorrente do diretor. Ela está em quase todas as cenas de alguma maneira.

Ainda que o livro exija um exercício de imaginação e tenha chances de ser mais “interpretativo”, a versão cinematográfica tem a vantagem de inserir imagens impactantes e memoráveis. O cinema é uma mídia visual e quando uma ideia é representada com tamanha força como em Stalker, você entende a importância de capturar a pintura perfeita. Aqui Tarkovsky faz isso várias vezes. Um dos exemplos disso é a representação visual que o diretor decidiu utilizar para criar certo suspense, como a passagem do trem próximo à casa do protagonista — o resultado é uma das conclusões mais incríveis do cinema.

Piquenique de Tarkovsky

Outra comparação — já que entrei nessa e não deixei de lado — envolve os personagens. Para Tarkovsky é importante apresentar de forma clara as intenções e crenças de cada um dos viajantes que acompanha Redrick Schuhart (Aleksandr Kaydanovskiy), o stalker. Se no trabalho dos Strugátski há uma diversidade e “rotatividade” maior nos acompanhantes do protagonista, a película foca na dupla composta por um escritor (Anatoliy Solonitsyn) e um professor (Nikolay Grinko), ambos interessados em visitar a zona. Na versão cinematográfica, eles procuram uma sala que supostamente entrega uma revelação. No livro, o maior objeto de interesse é uma esfera que -mais uma vez, supostamente- concede desejos. O que dá ainda mais força ao enredo é a forma como a jornada se desenvolve.

Tarkovsky é um dos poucos diretores que sabe como trabalhar com a beleza e a captura da forma mais pura. Seus filmes são alguns dos mais desafiadores que já assisti, com visuais extraordinários e uma noção de tom que poucos tem.

Stalker Piquenique na Estrada são obras igualmente carregadas de debate filosófico, trazendo reflexões sobre ciência, religião, política e o nosso papel no mundo. Faça um favor a si mesmo e assista o filme e leia o livro. O primeiro pode ser assistido (com legendas) de graça no canal do Youtube da própria produtora do filme, a Mosfilmpor enquanto. Ela tem liberado vários filmes clássicos de seu catálogo em boa qualidade para todos. E aproveite, porque tem mais coisa do Tarkosvky por lá.

Já o segundo teve sua última edição lançada pela editora Aleph, com ótimo acabamento, tradução do idioma original e material extra imperdível.

Capa do Piquenique de Tarkovsky

Piquenique na Estrada (Roadside Picnic)
de Arkádi e Boris Strugátski

Editora Aleph, 2017

320 páginas, capa dura

Tradução de Tatiana Larkina

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O Primeiro Homem | Explorando outros pontos de vista

Damian Chazelle é um nome relativamente novo na industria cinematográfica mas tem feito bastante sucesso com seus filmes, como os aclamados Whiplash(Em Busca da Perfeição, 2014)La La Land (Cantando Estações, 2016). É curioso como depois de se envolver na direção de projetos voltados para uma veia mais musical (até seu primeiro longa, Guy and Madeline on a Park Bench, tem a música como personagem) decidiu partir para a produção de um longa sobre a exploração espacial. Em O Primeiro Homem (First Man, 2018), Chazelle visita o momento histórico da corrida espacial que levou o homem à lua. O diferencial aqui está no fato de que, surpreendentemente, não temos muitos filmes com um foco na vida pessoal do astronauta Neil Armstrong — na verdade, não consigo sequer pensar em algum que tenha essa proposta.

Ryan Gosling interpreta o astronauta. O ator já se provou mais do que competente em vários filmes e aqui ele está tão bom quanto sempre foi, sua performance contida combina com a frustração do personagem, mesmo com poucas expressões ele consegue provar seu ponto. Ainda assim, o destaque no elenco vai para Claire Foy, no papel de Janet, esposa de Neil. Ela carrega as cenas com sua atitude apreensiva, e como grande parte do longa se passa na casa da família Armstrong, ela tem uma presença forte nessa narrativa. O casal passa por todos os imprevistos da preparação para a missão espacial, o que infelizmente quer dizer que devem saber lidar com a perda, esse que é um tema presente em todo o longa.

Casal no filme o primeiro homem

A alternância de sequencias entre os testes da Nasa e o drama familiar dos astronautas é perfeitamente equilibrado. Chazelle tem uma boa noção de ritmo e estabelece uma boa conversa entre os dois núcleos principais, isso permite sairmos da tensão de estar dentro de uma cápsula espacial minúscula para depois nos encontrarmos em um ambiente aberto e confortável em um quintal tomando cerveja. Há um desconforto em toda a experiência de Neil, ele não sabe o quanto mais pode aguentar das pessoas que acabam sofrendo ao longo dos testes. Não bastando os acidentes letais, ele lida com a pressão pública, com as incertezas da população.

Em O Primeiro Homem há espaço (sem trocadilho, mas se quiser, sinta-se em casa) para pontos de vista. O que sinto falta em alguns filmes do gênero é a ausência de alguns elementos que prejudicam um pouco o contexto no qual o filme é inserido. É pertinente a atenção dada aos movimentos sociais da época e o cenário político, isso tira o enredo de um território mais superficial. Claro que isso abre caminho para vários momentos icônicos, curiosidades e referências, como os protestos civis em ascensão em meados da década de 1960. Na televisão pode-se ver entrevistas com celebridades, estudiosos e até mesmo autores de ficção científica como Kurt Vonnegut e Arthur C Clarke — não vou mentir, fiquei feliz ao ver isso, mesmo que apenas por alguns segundos. Vale mencionar aqui também a representação de Buzz Aldrin por Corey Stoll, ele acerta os maneirismos e dá uma versão um pouco mais caricata do astronauta que serve de alívio cômico diversas vezes.

Dessa vez, Damian Chazelle tenta se arriscar um pouco mais na direção, com os planos fechados, por exemplo, que deixam os ambientes já apertados ainda mais angustiantes. Mas quando estamos no espaço e o homem pode dar seus primeiros passos, a câmera se afasta e revela a imensidão do inexplorado. Aqui eu devo mencionar como o filme toma seu tempo e respeita o silêncio, não só por questão de realismo e obediência das leis da física mas por conta do fascínio (nosso e dos personagens).

Lançamento de Foguete

Seja na terra ou na lua, o filme tem um tratamento visual primoroso, com aquele aspecto mais granulado da imagem, comum da gravação em película, que é bom e ajuda na textura e a aparência estética da década na qual o filme se passa. Ao lado do diretor de arte, Linus Sandgren, Chazelle usou o mais comum 35mm na maior parte do filme, mas para as tomadas espaciais preferiu o efeito IMAX do 70mm. O resultado é uma experiência sensorial marcante.

O Primeiro Homem mostra que Damian Chazelle pode sair de sua zona de conforto e que filmes sobre exploração espacial ainda tem potencial para novas narrativas.

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The Whispering Star (Hiso hiso boshi, 2015), de Sion Sono

Sion Sono tem me surpreendido bastante nos últimos anos. Além de aparentemente estar correndo atrás do título de diretor mais laborioso do mercado japonês (ainda falta muito para derrotar um peso pesado como Takashi Miike, mas é só não desistir), Sono tem entregado obras cada vez mais conceituais, como a sua ficção científica, The Whispering Star.

Ao contrário de seus trabalhos mais conhecidos, como Suicide Club (Jisatsu Sâkuru, 2001) ou o “peculiar” Riaru Onigokko (2015), também chamado de “Tag”, que rodou pela internet por conta de uma cena envolvendo um ônibus sendo cortado ao meio, um bando de adolescentes decapitados e vacas ao vento (eu não estou mentindo), The Whispering Star é um caminho diferente dos longas cheios de violência e ação frenética da qual está habituado. Aqui temos uma criação mais introspectiva e Sono se aproveita mais do silêncio do que a histeria coletiva de algumas produções do passado.

The Whispering Star é estrelado por Megumi Kagurazaka, que interpreta Yoko, uma androide com a tarefa de fazer entregas em pontos distintos da galáxia. Em sua jornada, encontra novos lugares, rostos e reflexões sobre a vida, o universo e tudo mais — esse tipo de coisa. Na contramão de filmes que seguem essa linha mais contemplativa, Sono não entrega grandes descobertas e reviravoltas, o filme parece mostrar a angústia da protagonista como algo do passado, talvez ela esteja acostumada com o isolamento e por ser um personagem desprovido de emoções em sua concepção, a sensação de ambiguidade permeia o filme.

The Whispering Star (Hiso hiso boshi, 2015), de Sion Sono

Yoko registra seu histórico de viagem e passa a maior parte do tempo em sua nave, uma das peculiaridades visuais do filme, já que o interior do veículo é constituído de móveis e utensílios típicos de uma cozinha tradicional, é como se ela estivesse viajando no espaço com sua própria casa. Essa intenção de confundir a percepção de tempo e espaço é comum no cinema de Sono, e só depois de passarmos os primeiros minutos observando uma cozinha que temos o movimento da câmera revelando um painel de controle e um vidro que separa o “cômodo” das estrelas do lado de fora.

O longa também tem espaço para alguns momentos de graça, como a forma que manifesta a passagem de tempo, fazendo piada com a situação da protagonista e o absurdo de esperar quase um ano para fazer um chá porque preferiu esperar o gotejar da torneira. Essas decisões e o ritmo mais lento traçam algumas comparações com clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), mas os minutos de meditação da personagem e o encontro esporádico com personagens solitários em pontos distintos do espaço deixam tudo com uma atmosfera que lembra mais algo que Andrei Tarkovsky faria em Solaris (1972).

The Whispering Star pode ser um pouco difícil de digerir, ainda mais se estiver acostumado com algo mais imediato e cheio de “ação”. É abstrato em sua abordagem e fala pouco com palavras, mas se você fica na jornada e se sentir confortável, encontra algumas belíssimas composições e conceitos visuais que revelam muita coisa e podem dar pistas do que aconteceu com o resto das pessoas. Um homem com uma lata de alumínio como calçado faz várias conexões, mas com um jogo de sombras bem simples, o filme cria uma cena poderosa que entrega uma das melhores ideias de Sono até hoje.

The Whispering Star (Hiso hiso boshi, 2015), de Sion Sono

Pode ser um filme pouco conhecido, na verdade eu nem vejo alguém falando sobre ele, mas para os amantes da ficção científica, como eu, que adora algo mais melancólico e reflexivo, The Whispering Star é indispensável.

Ah, e se você também segue a filmografia do Sono, não se preocupe; Ele não abandona seu estilo por conta desse filme e um ano depois está de volta com Anchiporuno (2016), e esse tem toda a loucura que você poderia pedir, além de ser um ótimo filme, o que não costuma ser surpresa no caso de um diretor habilidoso como ele.

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Eles Vivem (They Live, 1988), De John Carpenter

Se tem um diretor que eu defendo com todas as forças é John Carpenter. Ao lado de Sam Raimi, ele fez alguns dos filmes que eu mais tenho ligação emocional, seja por nostalgia mesmo ou o charme despretensioso deles. Estranho que até hoje eu nunca tinha assistido Eles Vivem em sua totalidade. Era sempre um pedaço aqui e ali no TCM (acho), mas nunca de cabo a rabo. Então, como esse ano decidi fazer pequenos textos sobre todos os filmes do gênero sci-fi (e derivados) que assisto, seja a primeira vez ou não, pensei em começar com um que eu sempre deixei na lista e nunca assisti.

Eles Vivem foi lançado em 1988. Carpenter já tinha lançado obras como Os Aventureis do Bairro Proibido e O Enigma de Outro Mundo, então acho bem engraçado como ele parece ter decidido um caminho bem mais orgânico para Eles Vivem. No fim, ele acabou com aquela pegada mais, por falta de palavra melhor, trash. Mas daqueles bons, e quando digo bons quero dizer do tipo que parecem ter sido feitos com amor, e não por uma equipe sem imaginação tentando se tornar cult com um filme que foi claramente pensado para ser adorado por ser ridículo, como Birdemic ou até mesmo algumas continuações de Sharkanado (e eu gosto de Sharkanado, que fique anotado).

Eles Vivem está mais para a franquia Evil Dead, com seu humor e situações absurdas que extrapolam tudo com uma rapidez inimaginável. Além disso, tem os diálogos que parecem ser todo composto de frases de efeito e falas sem sentido, mas que casam com o momento. É como se fosse um The Room (o do Tommy Wiseau, não confunda com a Brie Larson prisioneira, porém Oscarizada), mas aqui a trama é mais clara e menos poluída de subtramas desnecessárias.

O filme segue o operário Nada (é o nome dele mesmo), interpretado pelo finado Roddy Piper (descanse em paz, amigão), que encontra um par de óculos pretos capaz de revelar informações segredas que nós, humanos comuns, não vemos. Onde percebemos um outdoor de lingerie, os óculos revelam um outdoor sem imagem, apenas com um texto que resume a mensagem principal do anúncio, como “Você foi feito para reproduzir e ter filhos”. Ao olhar em volta, Nada percebe que não são é só a publicidade, mas as pessoas, pelo menos a maioria delas, na verdade é uma versão cadavérica do que deveriam ser (ver a foto de destaque da matéria).

Imagem do filme Eles Vivem

A crítica é bem óbvia, e já vimos isso em vários lugares. “Estamos sendo consumidos pelo que consumimos”. Sabe como é, esse tipo de coisa. O diferencial é que Carpenter sabe disso e brinca constantemente com o formato, satirizando e jogando a mensagem na nossa cara, para depois sair correndo e filmar sequencias insanas de tiroteio incensante, piadas mal feitas (propositalmente), romance, amizade, e tudo que você espera em um filme, só que da maneira mais boba possível. Você tem que entender a proposta primeiro, senão fica difícil aguentar mais de cinco minutos de dois caras se espancando em um beco por um motivo idiota. Se você já gosta de coisas do tipo, como as obras que mencionei anteriormente, vai se sentir em casa. Se é do tipo sério, que precisa de explicação e uma história mais dramática, provavelmente não vai passar dos primeiros dez minutos.

É uma obra divertidíssima, rápida e dinâmica, com personagens engraçados e uma trama louca que agrada qualquer fã de um cinema mais independente e sujo, coisa que eu amo de coração. Indico fortemente.