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O Homem do Castelo Alto | As diversas realidades de Philip K Dick

Para qualquer leitor familiarizado com os textos de Philip K. Dick (ou PKD), não é surpresa encontrar uma narrativa que apresenta personagens transtornados e conceitos complexos ao explorar identidade e natureza humana, sem contar o tópico favorito do autor: questionar tanto a realidade do universo que cria em seus livros, quanto a do próprio leitor.

Responsável por diversas obras intrigantes que conseguiram estabelecer seu nome como um dos maiores expoentes do movimento new wave da ficção científica, caracterizado por uma abordagem mais experimental do gênero, Philip K. Dick também teve grande parte de suas obras adaptadas para o cinema, como aconteceu com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, traduzido para a grande tela por Ridley Scott no clássico Blade Runner (1982). Entre a lista de leituras essenciais do autor, como Ubik ou Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, costumo dizer que O Homem do Castelo Alto é a sua obra mais completa. As distopias sempre foram reconhecidas na ficção científica como uma ferramenta de crítica social e política, mas nem todas sabem aproveitar a premissa ou desenvolver o enredo tão bem quanto O Homem do Castelo Alto.

A obra examina uma realidade alternativa da história, na qual os países do eixo conseguem derrotar os “aliados” na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Japão e uma Alemanha nazista tornem-se as maiores potências mundiais, enquanto outras nações sejam destruídas, outras dividias, como acontece com os Estados Unidos. Assim, seguimos o drama de personagens completamente diferentes, tentando sobreviver em um mundo instável, como o inseguro Robert Childan, um antiquário de peças americanas para colecionadores; o operário judeu, Frank Frink, que tenta esconder sua origem; Nobosuke Tagomi, um burocrata lidando com delicadas relações políticas; e Juliana Frink, ex-esposa de Frank, e instrutora de judô, que fica obcecada por um livro proibido que fala sobre um universo alternativo no qual os nazistas perderam e a guerra foi vencida pelos “aliados”.

Um mundo psicótico, este em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disso?

Por mais que hoje a proposta pareça óbvia, e sequer foi a primeira vez que narrativas envolvendo realidades distópicas pós-guerra foram feitas, o diferencial de O Homem no Castelo Alto está na abordagem de Philip K. Dick, provavelmente o autor que passou mais tempo explorando a concepção de realidade do que qualquer outro. Por esse motivo, a sua construção de mundo envolve um tremendo exercício de imaginação, mas também, uma dedicação em manter um pé na nossa realidade (ou o que se passa por ela) para explorar um efeito borboleta de eventos que coincidem na vitória do eixo. Mas antes de mencioná-los, é necessário descermos ainda mais na toca do coelho e explorar a metalinguagem da obra.

philip k dick
Philip K Dick

Considere isso: você, leitor, está com O Homem do Castelo Alto, escrito por Philip K. Dick em mãos. No universo apresentado nos parágrafos anteriores, os personagens entram em contato com um livro, escrito por um homem chamado Hawthorne Abendsen, intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que explora uma realidade na qual o eixo na verdade perdeu a guerra. Essa é a primeira camada da metanarrativa de PKD, que não acaba por aí, já que a possível realidade do texto fictício (difícil usar palavras como essa nessa resenha com firmeza) de Abendsen revela um mundo similar ao nosso, mas não o mesmo, já que nesse uma grande guerra envolve Estados Unidos e Inglaterra. Ou seja, temos uma realidade em cima de outra, em cima de outra. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.

No livro dentro do livro, um dos principais acontecimentos responsáveis pela vitória dos nazistas está na morte do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, circunstância que manteria o país na crise da Grande Depressão, o enfraquecendo no futuro. É esse tipo de atenção aos detalhes e criatividade que faz o texto de PKD um experimento tão consistente, sem contar que, mesmo inserindo tanta informação, temos um enredo limpo e objetivo, e isso considerando o fato do universo da obra também introduzir elementos como exploração espacial, o que fica apenas em segundo plano e serve mais como parte da construção de mundo, mas surpreendentemente combina perfeitamente com a proposta de expansão dos países vitoriosos do eixo, que decidiram também dominar o espaço.

Enquanto os alemães estavam ocupados em lançar no espaço enormes sistemas robotizados, os japoneses queimavam as florestas do interior do Brasil, erguendo edifícios de apartamentos de oito andares, de barro, para ex-caçadores de cabeças. Até os japoneses lançarem seu primeiro foguete, os alemães tinham posto o sistema solar no bolso. P.19

Mas há outra obra literária de enorme importância dentro da narrativa, assim como para o próprio autor. Em O Homem do Castelo Alto, a maior parte da população tem o costume de consultar o I Ching, o Livro das Mutações, uma obra que ajudou a popularizar parte da filosofia chinesa para o resto do mundo, atuando como um oráculo, ou apenas apresentando textos de sabedoria. Ao contrário de “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, o I Ching não existe apenas na realidade dos personagens de O Homem do Castelo Alto, mas na nossa, e Philip K. Dick o utilizou constantemente no desenvolvimento de seu livro. Esses detalhes enriquecem a construção de mundo, introduzindo detalhes sobre suas esferas sociais e políticas, mas ao mesmo tempo, essa não é uma leitura complexa. O autor consegue uma narrativa limpa e clara, ainda que insira bastante informação em apenas uma página. O livro não promete reviravoltas explosivas na trama, mas não deixa de trazer surpresas, e a maior parte do conflito é desenvolvido em cima da tensão entre países e núcleos dramáticos específicos.

São vários personagens, alguns se encontram, outros não, e pode ser necessário uma atenção extra para lembrar todos os nomes, já que alguns personagens possuem mais de um, mas é uma preocupação que pode ser deixada de lado rapidamente porque, assim que as subtramas começam a convergir, tudo passa a ficar mais claro. Aqui temos, provavelmente, o livro em que o autor melhor aproveita suas personagens. É comum que autores de ficção científica prezem por uma narrativa com um foco maior na trama, principalmente para destacar os elementos do gênero em suas histórias, e Philip K. Dick entra nessa categoria diversas vezes. Talvez por esse motivo O Homem do Castelo Alto tenha se tornado, para muitos, a obra máxima do autor, a que melhor utilizou o enredo em função das personagens, construindo ótimos diálogos e fortalecendo suas interações com o universo alternativo.

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O Homem do Castelo Alto, série da Amazon Prime Video

Além disso, mesmo sendo um grande fã do autor, sempre critiquei a forma que ele deixa as mulheres em segundo plano no seu texto, atuando como coadjuvantes, quando sequer possuem essa função (esse foi outro problema da ficção científica por anos), mas aqui temos Juliana Frink, uma das melhores personagens de sua biblioteca, uma mulher forte e inteligente que passa a ser uma peça essencial para os momentos finais do livro – e que final espetacular, mas não vou mencioná-lo aqui para evitar estragar alguma coisa. Quanto aos temas da obra, ela não se limita aos debates sobre realidade, mas ao que conhecemos como a verdade.

Pegando emprestado conceitos da filosofia chinesa, o livro está constantemente nos fazendo pensar o conceito de historicidade, ou seja, no valor histórico de algo. No livro, temos as peças de Childan, que são importantes apenas por conta da história que contam, principalmente os artefatos vindos dos EUA, já que o país foi tomado pelos nazistas e sua cultura só possui qualquer valor por conta disso (o que rende uma das revelações mais engraçadas do livro, envolvendo um relógio com uma ilustração de Mickey Mouse). O contraste inteligente feito pelo autor está no fato de estarmos debatendo o que é real ou não enquanto Childan percebe que parte de suas peças são falsificadas.

A verdade é tão terrível quanto a morte, apenas mais difícil de encontrar.

Philip K Dick nunca deixa de brincar com nossas certezas e arrancar o leitor da zona de conforto à força, o que faz em certo ponto quando chega a jogar uma de suas personagens em outra realidade (talvez a nossa, mais uma camada de metanarrativa), apenas para que tenha um vislumbre das possibilidades. Inclusive, o autor arranja espaço para debater a própria ficção científica e as experimentações que oferece. Tudo acontece em apenas uma página, através de um diálogo, mas dá para notar como PKD defende o gênero (aprende, Margaret Atwood).

O Homem do Castelo Alto é um livro relativamente pequeno (considerando a quantidade de informação que o autor introduz em cada página), mas com um universo e personagens fortes o suficiente para torná-lo uma das obras mais estudadas de Philip K Dick. Por conta do formato e estrutura narrativa, esse acaba sendo o trabalho mais distintos da biblioteca do autor, um que sempre quis nos lembrar como é frágil nossa realidade, isso porque ele foi o único capaz de estar em todas ao mesmo tempo.

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Indicados ao HUGO AWARDS 2021 | Conheça os finalistas

No dia 13 de abril foram anunciados os finalistas para uma das principais premiações de ficção científica e fantasia da indústria, o prêmio Hugo (ou Hugo Awards), que leva esse nome por conta de Hugo Gernsback, inventor e editor da revista Amazing Stories, a primeira com foco total em narrativas de ficção científica. Desde sua primeira edição, em 1953, temos uma seleção do que há de melhor no gênero, passando pela literatura, quadrinhos, filmes, séries, e pela primeira vez, jogos.

Os votos são feitos pelos membros da World Science Fiction Society (ou Worldcon) e os finalistas de 2021 foram anunciados pelos autores e pesquisadores Sheree Renée Thomas, Malka Older e Ulysses Campbell. Vamos aos indicados da 68ª edição dos Hugo Awards, com alguns comentários rápidos sobre o conteúdo que assisti, e onde você pode encontrá-los.

Melhor Romance

* Alguns dos livros já foram lançados ou possuem distribuição confirmada no Brasil, então esses foram deixados com a editora original e a editora nacional, em itálico.

  • Black Sun, Rebecca Roanhorse (Gallery / Saga Press)
  • The City We Became *, N.K. Jemisin (Orbit) – Editora SUMA
  • Harrow the Ninth, Tamsyn Muir (Tor.com)
  • Network Effect, Martha Wells (Tor.com)
  • Piranesi *, Susanna Clarke (Bloomsbury) – Editora Morro Branco
  • The Relentless Moon, Mary Robinette Kowal (Tor Books)

Comentários: Da lista de indicados, dois romances já possuem distribuição confirmada no Brasil. A primeira delas é The City We Became, de N.K. Jemisin, que tem sido premiada praticamente todos os anos por conta de sua série A Terra Partida, que foi lançada por aqui pela editora Morro Branco. Mas dessa vez, a autora será publicada pela editora Suma, que tem focado no mercado de ficção especulativa com mais atenção nos últimos anos.

Além de Jemisin, Susanna Clarke e seu Piranesi foram confirmados pela editora Morro Branco, que tem feito um ótimo trabalho de trazer autores novos e relevantes para o público. Os outros livros ainda não possuem distribuição confirmada, mas dá pra ver que duas séries continuam fazendo bastante sucesso com o público, como Network Effect, da aclamada série de livros Murderbot Diaries, e The Relentless Moon, da série Lady Astronaut. Ambos tem estado presente nos últimos anos das principais premiações do gênero, e me surpreende que ainda não foram confirmadas por alguma editora por aqui.

Autora NK Jemisin, indicada mais uma vez ao Hugo Awards

Melhor Novela

  • Come Tumbling Down, Seanan McGuire (Tor.com)
  • The Empress of Salt and Fortune, Nghi Vo (Tor.com)
  • Finna, Nino Cipri (Tor.com)
  • Ring Shout, P. Djèlí Clark (Tor.com)
  • Riot Baby, Tochi Onyebuchi (Tor.com)
  • Upright Women Wanted, Sarah Gailey (Tor.com)

Melhor Noveleta

Para as noveletas disponíveis gratuitamente, é só clicar nos links. Todas estão na língua original.

Comentários: Com exceção da polêmica Helicopter Story, originalmente intitulada “I Sexually Identity as an Attack Helicopter”, e The Pill, que está disponível apenas de forma paga na coletânea Big Girl, da autora Meg Elison, todas as outras noveletas estão disponíveis para o público.

Melhor Conto

Para os contos disponíveis gratuitamente, é só clicar nos links. Todos estão na língua original.

Melhor Série Literária

  • The Daevabad Trilogy, S.A. Chakraborty (Harper Voyager)
  • The Interdependency, John Scalzi (Tor Books)
  • The Lady Astronaut Universe, Mary Robinette Kowal (Tor Books/Audible/Magazine of Fantasy and Science Fiction)
  • The Murderbot Diaries, Martha Wells (Tor.com)
  • October Daye, Seanan McGuire (DAW)
  • The Poppy War, R.F. Kuang (Harper Voyager)

Comentários: Mais uma vez, temos as séries Lady Astronaut e Murderbot Diaries nas mais aclamadas do ano, mas também temos John Scalzi com seu The Interdependency. Ainda não tive acesso aos outros da lista, mas parecem bem interessantes. 

Melhor Artigo / Ensaio

Para os artigos e ensaios disponíveis gratuitamente, é só clicar nos links. Todos estão na língua original.

Comentários: Desta lista, dá pra ver que temos um livro sobre Octavia Butler, o que é sempre bom, e o reconhecimento de alguns eventos relevantes, além de uma tradução nova de Beowulf e um artigo sobre a polêmica envolvendo a George R.R.Martin apresentando a premiação em 2020, que contou com o escritor de Game of Thrones errando o nome de participantes e cometendo outras gafes. A maior surpresa aqui é o vídeo de Jenny Nicholson, uma criadora de conteúdo que adoro, mas fiquei impressionado em ver reconhecimento por sua análise da comunidade de fãs adultos da série animada My Little Pony. Sério, vale a pena assistir, é um ótimo vídeo. 

Melhor Narrativa Gráfica (Quadrinho)

  • DIE, Volume 2: Split the Party, de Kieron Gillenn, Stephanie Hans e Clayton Cowles (Image Comics)
  • Ghost-Spider vol. 1: Dog Days Are Over, de Seanan McGuire, Takeshi Miyazawa e Rosie Kämpe (Marvel)
  • Invisible Kingdom, vol 2: Edge of Everything, de G. Willow Wilson e Christian Ward (Dark Horse Comics)
  • Monstress, vol. 5: Warchild, de Marjorie Liu e Sana Takeda (Image Comics)
  • Once & Future vol. 1: The King Is Undead, de Kieron Gillen, Dan Mora, Tamra Bonvillain e Ed Dukeshire (BOOM! Studios)
  • Parable of the Sower: A Graphic Novel Adaptation, de Octavia Butler (livro original), Damian Duffy e John Jennings (Harry N. Abrams)

Comentários: A prova de que eu estou completamente atrasado nas minhas leituras de quadrinhos é que, dessa lista, reconheci apenas três nomes, e só li um, o ótimo Monstress.

Melhor Dramatização, Longa (Melhor Filme)

  • Aves de Rapina / Birds of Prey (and the Fantabulous Emancipation of One Harley Quinn), de Cathy Yan (Warner Bros.)
  • Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga, de David Dobkin (European Broadcasting Union/Netflix)
  • A Velha Guarda / The Old Guard, de Gina Prince-Bythewood (Netflix / Skydance Media)
  • Palm Springs, de Max Barbakow (Limelight / Sun Entertainment Culture / The Lonely Island / Culmination Productions / Neon / Hulu / Amazon Prime)
  • Soul, de Pete Docter e Kemp Powers (Pixar Animation Studios/ Walt Disney Pictures)
  • Tenet, de Christopher Nolan (Warner Bros./Syncopy)

Comentários: Algumas ótimas escolhas, outras nem tanto. Por mais que o conceito seja interessante, Tenet foi Christopher Nolan demais pra mim, e não no bom sentido. Eurovision é divertido, mas assim como A Velha Guarda, poderiam ter dado espaço para filmes menores e melhores. Soul é ótimo, e Aves de Rapina foi um filme surpreendentemente equilibrado e bem dirigido em um DCEU cada vez mais confuso, mas de longe, a minha escolha de favorito para essa lista vai claramente para o divertido e criativo Palm Springs, que trouxe um enredo bem construído e um elenco ótimo, com Andy Samberg e Cristin Milioti, sem contar um hilário J.K Simmons.

Melhor Dramatização, Curta (Melhor Episódio de Série)

  • Doctor Who, “Fugitive of the Judoon”, escrito por Vinay Patel e Chris Chibnall, direção de Nida Manzoor (BBC) – GLOBOPLAY
  • The Expanse, “Gaugamela”, escrito por Dan Nowak, dirigido por Nick Gomez (Alcon Entertainment / Alcon Television Group / Amazon Studios / Hivemind / Just So) – AMAZON PRIME VIDEO
  • She-Ra and the Princesses of Power, “Heart” (parts 1 and 2), escrito por Josie Campbell e Noelle Stevenson, direção de Jen Bennett e Kiki Manrique (DreamWorks Animation Television / Netflix) – NETFLIX
  • The Mandalorian, “Chapter 13: The Jedi”, escrito e dirigido por Dave Filoni (Golem Creations / Lucasfilm / Disney+) – DISNEY+
  • The Mandalorian, “Chapter 16: The Rescue”, escrito por Jon Favreau, dirigido por Peyton Reed (Golem Creations / Lucasfilm / Disney+) – DISNEY+
  • The Good Place, “Whenever You’re Ready”, escrito e dirigido por Michael Schur (Fremulon / 3 Arts Entertainment / Universal Television, a division of Universal Studio Group) – NETFLIX

Comentários: Podemos ver que a premiação tem alguns favoritos. Não é a primeira vez que vemos essas séries por aqui, e com exceção de Doctor Who, porque estou bastante atrasado nas temporadas, assisti todos os indicados. A segunda temporada de Mandalorian foi muito divertida, assim como She-Ra e as Princesas do Poder, que teve um final maravilhoso. Por falar em final, terminei recentemente a série The Good Place, então está bem fresca na memória e posso dizer que aquele final foi bem emotivo, mas sem perder a graça. E para quem me conhece, sabe que vou soar como um disco arranhado, mas The Expanse é incrível, e Gaugumela foi uma aula de roteiro e direção, sem contar que foi, de longe, o episódio com as melhores atuações da série. 

Se você quiser saber mais sobre as MELHORES SÉRIES de 2020, temos um vídeo no canal do Primeiro Contato com a retrospectiva das melhores e piores séries de ficção científica do último ano:

Melhor Jogo (Video-game)

Essa é uma nova categoria.

  • Animal Crossing: New Horizons (Publisher and Developer: Nintendo)
  • Blaseball (Publisher and Developer: The Game Band)
  • Final Fantasy VII Remake (Publisher Square Enix)
  • Hades (Publisher and Developer: Supergiant Games)
  • The Last of Us: Part II (Publisher: Sony Interactive Entertainment / Developer: Naughty Dog)
  • Spiritfarer (Publisher and Developer: Thunder Lotus)

Comentários: Eu admito que não sou muito fã dos jogos atuais, principalmente aqueles com grande detalhe gráfico. Sou do tipo “jogo de plataforma 2d direto ao ponto”, então alguns dessa lista não posso opinar, e outros eu nem conheço ou tenho dinheiro pra jogar (adeus, Animal Crossing, saudade do que nunca tive).

Prêmio John W. Campbell Award para Melhor Escritor Estreante

  • Lindsay Ellis (primeiro ano elegível)
  • Simon Jimenez (primeiro ano elegível)
  • Micaiah Johnson (primeiro ano elegível)
  • A.K. Larkwood (primeiro ano elegível)
  • Jenn Lyons (segundo ano elegível)
  • Emily Tesh (segundo ano elegível)

Lodestar Award para Melhor Livro YA (Young-Adult)

* Alguns dos livros já foram lançados ou possuem distribuição confirmada no Brasil, então esses foram deixados com a editora original e a editora nacional, em itálico.

  • Cemetery Boys, de Aiden Thomas (Swoon Reads) – Galera Records
  • A Deadly Education, de Naomi Novik (Del Rey)
  • Elatsoe, de Darcie Little Badger (Levine Querido)
  • Legendborn, de Tracy Deonn (Margaret K. McElderry/ Simon & Schuster Children’s Publishing) – Intrínseca
  • Raybearer, de Jordan Ifueko (Amulet / Hot Key)
  • A Wizard’s Guide to Defensive Baking, de T. Kingfisher (Argyll Productions)

Este foi mais um ano em que o Hugo Awards tem uma lista de indicados bastante diversa. É interessante ver a quantidade de mulheres nas principais categorias, o que mostra como a premiação segue um caminho mais aberto para representações e pontos de vista diferentes. Assim que os vencedores saírem, voltamos com a lista atualizada!

Leia a lista completa

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O Colonizador (G. G. Diniz) | O pesadelo de dias ruins

Com a proposta de explorar a evolução da ficção científica nacional, a editora Plutão decidiu criar a série Ziguezague, onde apresenta três “ondas” capazes de construir um panorama da literatura especulativa no Brasil, resgatando autores e obras que contribuíram para a formação do gênero no país, assim como difundindo nomes promissores. Portanto, tivemos autores pioneiros da “primeira onda”, como Jeronymo Monteiro (com seu Três Meses no Século 81); e logo chegamos aos grandes historiadores e divulgadores do gênero, como Finisia Fideli (O Ovo do Tempo), na “segunda onda”. Para a “terceira onda”, a editora traz alguns autores que representam a atual literatura FC, com a sua rica diversidade e uma forte identidade.

Da “terceira onda”, o nome que mais me chamou a atenção foi Gabriele Diniz (mais conhecida por G.G.Diniz), alguém que eu já sigo há um bom tempo, não só pelas obras literárias, mas pelo ótimo canal no Youtube, intitulado Usina de Universos, onde faz suas resenhas e analisa o cenário do mercado editorial brasileiro (quando não decide simplesmente sentar em sua rede e divagar sobre temas problemáticos de suas leituras).

Autora fortalezense, Diniz também criou, ao lado de Alec Silva e Alan de Sá, o movimento literário Sertãopunk, uma resposta direta ao chamado Cyberagreste, que infelizmente caiu em território de apropriação cultural ao ter autores não-nordestinos escrevendo sobre algo que não faz parte de sua realidade. Assim, o Sertãopunk realmente se beneficia do enorme diferencial de lugar de fala e vivência. Para saber mais sobre o assunto, leia o artigo do próprio Alan de Sá: Por que fazer o Nordeste Sertãopunk?.

Em sua primeira colaboração com a editora Plutão, G.G. Diniz acaba de publicar O Colonizador, uma noveleta “curta”, ainda assim um de seus trabalhos mais envolventes, não só pela premissa com elementos de ficção científica, mas a execução inteligente de temas delicados, como violência e abuso.

Jandira é recém-formada e acabou de ser aceita em uma vaga para exobiologia, auxiliando o renomado dr. Costa. Ela está animada com as possibilidades do projeto, que envolve estudar um “fungo alienígena” capaz de entregar mais informações sobre uma civilização extinta. Mas o sonho de Jandira, assim como o projeto, podem ser comprometidos por um laboratório em péssimas condições e as atitudes inapropriadas de seu supervisor, que além de incompetente, está cada vez mais difícil de suportar por conta de seus avanços indesejados.

Gabriele Diniz do canal Usina de Universos

A narrativa de Diniz tem êxito quando procura construir uma atmosfera de incerteza e tensão entre os personagens. Cada diálogo é revelador, sem tornar o texto desnecessariamente expositivo, ainda mais considerando como a autora precisa conciliar o drama da protagonista com o desenvolvimento da ficção científica.

Entre os comentários repulsivos do dr. Costa e o dilema de Jurema, sem saber como lidar com o assédio de seu supervisor, também há espaço para introduzir e estabelecer bem personagens coadjuvantes, a maioria com características e personalidade bem definida, o que não é essencial para a quantidade de páginas de noveleta, mas importa para a narrativa mais sensível de Diniz.

Ainda que a subtrama envolvendo um “fungo extraterrestre” seja relevante para o enredo, o que realmente chama a atenção em O Colonizador é a abordagem inteligente e delicada para um necessário debate sobre assédio e violência sexual. Além disso, não faltam críticas à falta de recursos para o setor de pesquisas científicas no Brasil.

O que pode ser um incômodo para alguns é a mudança em tom quando a história se aproxima dos capítulos finais, trazendo uma abordagem mais voltada para a ação, o que compromete o drama por uma tentativa de aumentar a escala do núcleo especulativo. Esse desvio narrativo acaba se mostrando um pouco impaciente ao executar sequências que lembram outros thriller FC, como os filmes Alien ou O Enigma de Outro Mundo.

Há um outro tropeço na revisão do texto, principalmente na perspectiva do narrador. A obra é apresentada por um ponto de vista em primeira pessoa, mas por algum motivo, um dos capítulos tem uma mudança inesperada para a terceira pessoa. Pode ser uma decisão da autora, mas pareceu confuso e sem propósito, por isso imagino que seja algo que passou despercebido pela revisão. Felizmente, nada que atrapalhe a experiência geral. 

O Colonizador é mais um grande acerto da editora Plutão, que dessa vez trouxe uma das vozes mais fascinantes da ficção científica nacional contemporânea. Gabriele Diniz traz uma narrativa provocante, sem esquecer que uma das características mais fortes da ficção especulativa é aproveitar o universo fictício para comentar uma realidade que precisa ser encarada.

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O Horror Cósmico de H.P. Lovecraft e suas Influências

“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”

Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples. 

Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?

Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:

“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.

Arte de Andree Waliin sobre o Mito de C´tchullu
Arte de Andree Waliin

Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.

Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas. 

Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.

Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança. 

Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta. 

O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.

O escritor Alan Moore
Alan Moore

A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.

Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.

Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde

No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível. 

Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.

Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.

Filme O Enigma de Outro Mundo de John Carpenter

Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.

O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.

Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.

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A Parábola do Semeador | A Empatia é a Salvação

“Todas as lutas são lutas por poder”

A ficção científica dispõe de diversas narrativas capazes de experimentar possíveis realidades distópicas, seja através dos governos totalitários ou até a opressão por conta de uma certa utopia alienadora. Muitas vezes, essas histórias são protagonizadas por um herói insatisfeito com a sua condição, que por fim se rebela contra o sistema e consegue trazer uma mudança no pensamento de todos, acabando com a figura opressora. Para a autora Octavia E. Butler, esse herói não existe, mas a mudança é possível, apenas exige muito esforço.

Em seu livro A Parábola do Semeador, lançado originalmente em 1993, Butler comenta a maneira na qual a história se repete através do comportamento humano. Seguindo a filosofia de vida de Nina Simone, na qual afirma que “o dever do artista é refletir sobre sua realidade”, Butler especula sobre nossos caminhos e os obstáculos que negligenciamos, principalmente os econômicos e ambientais.

A Parábola do Semeador começa em 2024 e é narrado por Lauren Oya Olamina, uma jovem vivendo em uma sociedade falida, afetada por mudanças climáticas e escassez de recursos básicos, como a própria água. Além disso, as cidades são controladas por grandes corporações, e quem não trabalha para elas, simplesmente tenta sobreviver como pode.

Arte conceitual de Eran Fowler
Arte conceitual de Eran Fowler

Lauren mora na Califórnia, em uma comunidade pequena, onde todos precisam andar armados e revestir os muros em volta com arame farpado e pedaços de vidro, isso porque são constantemente invadidos por pessoas procurando roubar seus poucos pertences, isso quando não possuem intenções ainda mais malígnas. Como se a situação não fosse ruim o suficiente, Lauren lida com um fenômeno chamado hiper empatia, que faz com que ela compartilhe a dor e o prazer de outras pessoas. Em um mundo onde existe apenas tristeza e solidão, sentir em demasia pode ser mortal. 

“Mas se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer dor desnecessária a alguém?”

A literatura de Butler é carregada de símbolos, e por ser uma autora preta que começou a escrever ficção científica, gênero constituído majoritariamente por homens brancos, em uma época em que as manifestações por direitos iguais para a comunidade afro-descente nos Estados Unidos estava no auge, é fácil afirmar que seu ponto de vista era mais do que necessário, e isso explica o impacto de seu texto e a força com a qual retornou nos últimos anos, principalmente influenciando diretamente movimentos literários como o Afrofuturismo. No Brasil, suas obras têm sido publicadas pela editora Morro Branco (que também fez um excelente trabalho de resgate de outro grande autor, Samuel R. Delany).

A Parábola do Semeador carrega, em sua maior parte, um tom pessimista e deprimente, considerando a quantidade de violência “gráfica” durante os momentos mais pesados da obra, marcados por sangue e abuso. Octavia é uma escritora sem rodeios, seu texto é protesto e ela não tem medo de comentar temas arriscados de forma visceral. Sexo, religião, política e racismo são tópicos indispensáveis; e por mais que essa seja considerada uma expressão batida, poucos autores realmente “permanecem relevantes e atuais” como Butler.

Octavia E. Butler
Octavia E. Butler

Entre as diversas subtramas apresentadas no livro, mesmo que estejam acontecendo em segundo plano, temos um personagem chamado Donner, um político vivendo pela sua promessa em “trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século XX”. As semelhanças com o contexto político atual não é uma previsão, mas as preocupações de uma autora capaz de estudar a humanidade e nos lembrar como a história é cíclica, e vive se repetindo.

“Os fracos podem vencer os fortes se os primeiros resistirem. Persistir nem sempre é seguro, mas costuma ser necessário”

Butler nos traz uma protagonista complexa. Lauren é jovem e impulsiva, mas também é inteligente e sua empatia faz com que o senso de comunidade seja mantido mesmo em um cenário tão desolador. A relação de Lauren com sua religião, e por extensão seu Deus, é outro grande diferencial da obra. Para a personagem, Deus representa mudança, mas é indiferente, não favorece ou detesta, apenas é. Essa abordagem mais filosófica encaixa bem com a natureza da narrativa, principalmente considerando sua ambientação.

A escrita da autora é quase cinematográfica, com descrições rápidas, mas eficientes. Um diálogo pode mudar completamente o rumo de tudo; há atenção aos detalhes, como pequenos trejeitos dos personagens; as sequências de ação são cheias de tensão por conta do texto limpo e objetivo, mas impactante.

Arte de John Jude Palencar
Arte de John Jude Palencar

Há até espaço para que Butler crie sua própria corrida espacial, introduzindo elementos como exploração e colonização do espaço, que continua acontecendo, mesmo com todos os problemas na Terra de 2024. Esse pode ser um comentário da autora sobre os movimentos pelos direitos civis da década de 1960, onde era possível ver o contraste entre a comunidade afro-americana lutando por igualdade racial enquanto o resto da atenção dos EUA se voltava à chegada do homem à lua.

A Parábola do Semeador é um livro intenso e corajoso. Até onde o ser humano consegue aguentar e seguir em frente, mesmo que todos pareçam estar contra você? A jornada de Lauren é difícil e perigosa, mas é necessária apenas uma semente de empatia para que uma enorme mudança aconteça. 

Tudo o que você toca.

Você muda.

Tudo o que você Muda.

Muda você.

Capa do Livro A Parábola do Semeador

A Parábola do Semeador (Octavia E. Butler, 1993)

Edição Nacional de Editora Morro Branco, 2018

Tradução de Carolina Caires Coelho

Projeto Gráfico de Luana Botelho

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Literatura

Admirável Mundo Novo | O direito de ser infeliz

Aldous Huxley entra na lista de autores que mudaram completamente a ficção científica e a literatura pela maneira que usou o seu enredo para construir uma crítica social e política pertinente até hoje. Sua narrativa distópica, Admirável Mundo Novo, publicado originalmente em 1932, coloca o nome de Huxley entre grandes como George Orwell (1984) ou Ievguêni Zamiátin (Nós), mas há uma riqueza em detalhes e elementos que fazem com que sua obra divirja das demais.

A proposta inicial de Admirável Mundo Novo está na exploração da humanidade através do avanço das civilizações, principalmente em um contexto tecnológico. O que a obra consegue, além de entregar uma leitura provocante, é explorar tópicos inéditos, prevendo avanços científicos como os conceitos de hipnopedia e manipulação psicológica, assim como estudos envolvendo manipulação genética e a abordagem behaviorista.

Na futurística Londres de 632 d.F, é o Estado Mundial quem dita as regras, sustentando o seu lema de “comunidade, identidade e estabilidade”. Criados em laboratório, os habitantes possuem funções pré-determinadas para manter uma hierarquia social (dividida em castas) capaz de atingir um equilíbrio utópico, um futuro onde a velhice pode ser retardada, a solidão é literalmente proibida e pensamentos ruins podem ser eliminados pelo consumo de uma droga chamada soma.

Assim, somos apresentados ao personagem Bernard Marx, que ao contrário de seus companheiros faz questão de ser crítico ao governo e possui um complexo de inferioridade por conta de sua baixa estatura, mesmo fazendo parte de uma das castas mais altas da sociedade. Ao contrário dele, Lenina Crowne é uma jovem contente e sem medo de demonstrar seus desejos sexuais ou a alegria em depender de soma. O único amigo de Marx é Helmholtz Watson, escritor insatisfeito com seu trabalho. 

Admirável Mundo Novo

Aproveitando suas férias ao lado de Lenina, Bernard visita Malpaís, uma reserva selvagem fora do território comandado pelo governo. Eles conhecem John, um rapaz que cresceu na reserva depois de sua mãe se perder no local e engravidar, uma vergonha tão grande que a fez abandonar o Estado Mundial. Isso também faz com que John não seja acolhido pela tribo, e aprenda a ler por meio da única fonte de leitura acessível, uma coleção das peças de Shakespeare. Ao retornar para a cidade, Bernard e Linda são acompanhados pelo selvagem.

Narrativas distópicas correm o risco de se limitar aos elementos superficiais do gênero, como os governos totalitários e a ambientação desoladora, e oferecer uma construção de mundo rasa e péssima execução. O principal risco de Aldous Huxley está em sua tentativa de examinar um sistema totalitário através de uma aparente utopia. Há regras e limitações, mas a verdadeira distopia é aquela abraçada pela própria população, confortável em sua alienação e ignorância. A farsa é acolhedora, e não há tempo para insatisfação contra o governo quando ele proporciona tantas opções tentadoras e convenientes de manter a sociedade distraída.

“Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes políticos […] e seu exército de administradores controlassem uma população de escravos que não tivessem de ser coagidos porque amariam sua servidão” (Huxley)

Apoiado em uma crítica direta ao Fordismo, os conceitos de produção em massa e a homogeneidade de seres humanos em Admirável Mundo Novo são essenciais para compreendermos a construção de mundo proposta pelo autor. Mesmo que os personagens julguem-se livres de religiões ou mesmo um Deus, a admiração instintiva à figura do magnata industrialista Henry Ford, considerado o “criador” dessa sociedade, carrega seus próprios dogmas. Não só clamam e juram em nome de Ford, como todo o calendário é remodelado para adotar o termo d.F (“depois de Ford”). A data na obra é descrita como 632 d.F, equivalente ao ano 2540 d.C. 

De acordo com Huxley, sua maior inspiração para a obra é o autor H.G. Wells e seu romance Men Like Gods. Valendo-se de alguns elementos, Admirável também compartilha similaridades (ao ponto de alguns considerarem plágio) com a distopia Nós, do russo Ievguêni Zamiátin. Além de referenciar Wells, Huxley utiliza outros nomes não ficcionais para uma base mais realista no estabelecimento do contexto da obra, e ao lado de Henry Ford, temos figuras como Sigmund Freud e Ivan Pavlov criando um paralelo com os principais temas da obra.

Com tantos argumentos para explorar, o texto limpo e descritivo de Huxley contribui para uma leitura que deixa clara a sua intenção e não cai na armadilha de ser enfadonho. Ainda que seja necessariamente expositivo através de alguns diálogos e tenha um clímax onde acaba soando mais didático do que o exigido, o autor faz um excelente trabalho na execução dos temas que propõe. Compreendemos as circunstâncias daquele mundo, portanto o livro oferece informações como a extinção de determinados animais e línguas ou seus rituais sociais. Por serem criados em laboratório e receber funções específicas, os personagens acham conceitos como casamento ou família uma noção absurda e comicamente ofensiva.

O autor Aldous Huxley assinando obras
Aldous Huxley

Entre as várias previsões imprevistas de Huxley, a concepção de um “Cinema Sensível” é uma das mais certeiras, apresentando um cinema sensorial onde toda a experiência de estar em uma sala escura é elevada por conta de artifícios sensoriais, como a sessão ser acompanhada de “um órgão de perfumes”. Com exceção de termos hoje tecnologia capaz de fazer cadeiras vibrantes e realidade virtual, o livro também aproveita o entretenimento descartável com o propósito de manter sua população dessensibilizada, exibindo filmes com teor racista, xenofóbico e sexista.

A experiência de assistir uma obra de arte é trocada pelo próprio ato de ir ao cinema e se maravilhar com todas as novas tecnologias capazes de forçar uma imersão que o filme sozinho é incapaz de realizar. Os habitantes do Estado Mundial tem bibliotecas a sua disposição, mas ler é um esforço mental e solitário demais para eles, e por isso as reuniões no cinema sensível são uma das formas mais cômodas de interação.

“A beleza atrai, e nós não queremos que ninguém seja atraído pelas coisas antigas. Queremos que amem as novas […] O mundo agora é estável. As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem”. 

O enredo de Huxley enfatiza o desenrolar dos eventos e deixa o núcleo dramático em segundo plano. Não obstante, há espaço para boas cenas envolvendo as personagens, e mesmo que a obra alterne pontos de vista, eles se mantém entre Bernard, Lenina e John. Enquanto Bernard serve como o observador inicial capaz de ressaltar as inconveniências do mundo ficcional e Lenina cai em um infeliz padrão de narrativas especulativas em que personagens femininas são tratadas apenas como interesse amoroso ou acompanhante reagindo aos feitos do protagonista masculino, é John a figura mais fascinante e complexa. 

Apelidado de “Selvagem”, John é introduzido em um ponto de ruptura da história. Ele tem uma abordagem mais direta com o mundo distópico, enfrentando o contraste cultural entre sua reserva, limitada em recursos, mas rica em rituais e história; e o Estado Mundial, abundante em informação, mas sem interesse por parte da população. Fazer com que o selvagem use a literatura de Shakespeare como a sua única forma de comunicação verbal, é uma das decisão mais inteligentes de Huxley. Em um mundo onde a cultura não é incentivada e a população está confortável com seu destino pré-determinado, a beleza de uma poesia pode não só confundi-los, como incomodar a estrutura social. 

“As flores do campo e as paisagens […] têm um grave defeito: são gratuitas. O amor à natureza não estimula a atividade de nenhuma fábrica”

Admirável Mundo Novo se destaca entre outros livros do gênero por conta de sua abordagem e execução. Em uma narrativa clara, Aldous Huxley entrega um estudo notável sobre a humanidade e questiona se realmente é possível ou válida a promessa de uma utopia. 

Admirável Mundo Novo
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Literatura Canal

O Guia do Mochileiro das Galáxias | Uma obra confortavelmente absurda

Apenas um autor foi capaz de compreender a verdade por trás da vida, do universo e tudo mais. Infelizmente, ele nunca divulgou a descoberta, estava ocupado demais com a data limite para entregar seus projetos. Douglas Adams é o alquimista responsável pelo melhor, ou pelo menos o mais popular, casamento entre comédia e ficção científica da literatura. 

Desenvolvido originalmente como um programa de rádio para a BBC em 1978, O Guia do Mochileiro das Galáxias foi traduzido para várias mídias, tendo uma adaptação seriada em 1981 e um longa-metragem de 2005, mas foi através de sua “trilogia” de cinco livros que a história teve uma vida mais longa, e foi onde o autor dedicou a maior parte da sua carreira. Com uma proposta absurda e uma execução ainda mais louca, Douglas Adams criou um fenômeno literário e um marco da cultura pop. 

Há tantos elementos essenciais para a obra que fica difícil poder sintetizar uma simples premissa, mas eu vou tentar. Tudo começa com Arthur Dent, um britânico infeliz e entediado que faz uma enorme descoberta: a Terra está para ser destruída por uma raça alienígena, os Vogons, que pretende tirar o planeta do caminho para construir uma supervia intergalática. Mas Dent é salvo da destruição por Ford Prefect, outro alienígena infiltrado no planeta para estudar os humanos e registrar as suas observações no “Guia do Mochileiro das Galáxias”, a mais bem-sucedida enciclopédia jamais publicada pelas editoras de Ursa Menor. 

Arthur Dent e Trilliam, na versão cinematográfica de 2005
Arthur Dent e Trilliam, na versão cinematográfica de 2005

Assim, acompanhado de Ford e levando consigo apenas o roupão de banho que estava vestindo, Arthur segue em uma jornada espacial, conhecendo figuras cada vez mais excêntricas. Uma delas é Zaphod Beeblebrox, o presidente do Governo Imperial Galáctico que acabou de roubar a nave Coração de Ouro, equipada com um gerador de improbabilidade infinita, um conceito tão bizarro que precisou de um capítulo próprio para ser definido. Com ele, viajam a humana Tricia McMillan, apelidada de Trillian, e um depressivo Marvin, o “andróide paranóico”.

Como deu para notar, a proposta do autor não é apenas uma sátira dos elementos narrativos da ficção científica, como também é uma grande piada com o cotidiano da vida na Terra, usando do bom e velho humor britânico para expressar da forma mais trivial possível a importância de coisas como toalhas, poesia alienígena ou o número 42. Douglas Adams tira inspiração de dois grandes patrimônios culturais para os ingleses, a ciência de Doctor Who e a comédia do grupo Monty Python, dois projetos com o qual ele já chegou a colaborar com seus textos. 

Mesmo brincando com o gênero, alguns conceitos de Douglas para a obra acabam reforçando sua habilidade de construir mundos loucos, porém consistentes. Idéias como o peixe-babel, um aparelho auditivo que traduz qualquer língua através das ondas sonoras, é um dos exemplos que mostra como o autor não só usa a ciência como alvo das piadas, mas procura uma maneira inteligente de introduzi-la na narrativa. O que ele faz de brincadeira, muitos escritores sequer fazem questão de salientar em suas histórias, e isso é mais um indício de como a comédia pode ser um excelente recurso para elaborar uma crítica, mesmo que a principal intenção seja fazer o público rir.

Douglas Adams o criador de Guia do Mochileiro das Galaxias
Douglas Adams

Por mais que os personagens de Guia sejam memoráveis e divertidos, a escrita de Douglas brilha mais quando está construindo as situações cômicas na qual insere esses personagens, mas o autor não entrega, e nem parece ter a intenção, uma carga dramática eficaz. Se por um lado é impossível parar de rir com a narrativa, a leitura pode ser comprometida pela forma que negligencia entregar arcos dramáticos mais complexos para seus personagens. É compreensível que Adams queira usar seu livro mais como uma análise bem humorada de figuras políticas, da burocracia do cotidiano ou o absurdo e aleatoriedade da existência, mas desenvolver melhor seus personagens poderia deixar a obra ainda mais completa.

O Guia do Mochileiro das Galáxias pode não levar a sério os próprios questionamentos que levanta, mas a diversão está em apenas levantar essas perguntas, que nem sempre passam pela nossa cabeça, mas depois de ler o primeiro livro da série, jamais desaparecem. Toda a trilogia de cinco carrega seus pontos positivos e negativos, mas a jornada é tão rápida, divertida e despretensiosa que você só quer voltar para o início de novo e aproveitar o texto de Douglas Adams, o melhor no que faz.

Assista a resenha em vídeo:

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Literatura

Messias de Duna | A fé pode ser manipulada e o conhecimento é perigoso

Frank Herbert provou seu poder narrativo com o épico Duna, um relato fictício sobre o planeta Arrakis e seus habitantes, explorando seu cotidiano, religião e economia. Para a continuação ele aproveita a liberdade de poder construir uma nova obra sem depender do formato mensal (originalmente, Duna foi distribuído em partes na revista Analog), mas ao invés de extrapolar nas páginas, desenvolve o livro mais “curto” da série, Messias de Duna.

A quantidade reduzida de página não diminui a importância do texto, que aborda os temas de forma mais densa, mas não os deixa de lado, isso porque há uma atenção maior ao desenrolar dos eventos que colocaram Paul Atreides no poder e as suas consequências, lembrando a grande crítica de Herbert aos líderes carismáticos e a crença cega de seus seguidores.

Mais de uma década se passou desde que Muad’Dib, Paul Atreides, ascendeu ao poder de Arrakis, sendo assim um nome respeitado e temido pelo império galáctico, comandando a distribuição de melange, a especiaria mais cobiçada do universo. O livro abre a oportunidade para debates políticos sobre o impacto do governo de Paul, e também observa os diversos pontos de vista de outras guildas e sociedades, como a organização Bene Tleilax, proeminente no enredo, introduzindo novas tramas e personagens intrigantes, como o Dançarino Facial Scytale.

“Como todos os sacerdotes, vocês logo aprenderam a chamar a verdade de heresia”. 

Além de todos os questionamentos políticos, Herbert examina a família Atreides com um olhar mais íntimo, com um Paul mais preocupado com seu legado e o futuro do planeta; e Alia, sua irmã, agora uma jovem inteligente e bela. Aqui podemos ter uma versão mais frágil dos dois, o que traz mais emoção para a obra, acusada por alguns de ser muito fria no seu primeiro volume quando se trata da interação entre os personagens.

Dunas

Com a expansão do universo de Duna, começamos a nos familiarizar com o passado, aprendendo mais sobre “A Idade de Ouro da Terra”, e alguns conceitos mais arriscados, como a criação dos gholas, o que resulta no retorno de um personagem importante do livro original. É difícil construir um mundo tão grande como esse e ao mesmo tempo desenvolver o drama dos personagens de maneira espontânea, mas Herbert não é qualquer escritor.

É claro que a quantidade de páginas acaba reduzindo alguns elementos importantes da obra, e isoladamente Messias de Duna não teria esse problema, mas como uma continuação direta de Duna, a falta de mais sequências envolvendo os fremen (habitantes naturais de Arrakis) e os vermes gigantes, ou até a ausência total de Lady Jessica, a mãe de Paul, aqui mencionada apenas através de diálogos, acabam sendo um ponto desconfortável na leitura, que pode ser afetada ao abandonar elementos tão essenciais para o sucesso da saga. 

Faz sentido termos uma concentração maior no avanço do império Atreides, mas terminamos com mais perguntas que respostas; e considerando que o livro seguinte, Filhos de Duna, volta a um formato de mais páginas, talvez fosse melhor transformar essas duas obras em uma só (o que aconteceu em alguns casos nos EUA, onde o segundo e terceiro volume foram lançados como um). 

Messias de Duna pode ser um livro pequeno, porém ainda carrega um universo gigantesco com questionamentos que poucos autores têm a coragem de trazer, comprometendo seu próprio protagonista, reforçando um líder imperfeito e tomando decisões impossíveis e arriscadas. Isso faz com que o próprio leitor encare com ceticismo a figura que Herbert criou, e assim somos deixados com uma crise de fé e sem saber em quem podemos confiar daqui para frente. 

Ficha Técnica:
Título Original: Dune Messiah (EUA, 1969)
Editora Aleph, 2012
Tradução de Maria do Carmo Zanini
216 Páginas.

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Literatura

Três Meses no Século 81 | O futuro por Jeronymo Monteiro

Embora autores clássicos como Machado de Assis tenham se aventurado no gênero, a ficção científica começou a dar seus primeiros passos para ser reconhecida como uma possibilidade para narrativas originais no Brasil graças ao trabalho de Jeronymo Monteiro. Envolvido em diversos projetos, o jornalista e escritor ficou conhecido por seu trabalho em séries de rádio, além de ser um nome importantíssimo para os quadrinhos, editando e traduzindo materiais da editora Abril, como a primeira revista do Pato Donald no país.

Mas sua maior contribuição foi para a literatura nacional, área na qual recebeu a alcunha de “pai da ficção científica no Brasil”, sendo responsável por consolidar o gênero no país através da revista Magazine de Ficção Científica, trazendo autores como Isaac Asimov e Ray Bradbury todo mês. Monteiro é tão influente que a data de seu nascimento, dia 11 de dezembro, é considerada o dia da ficção científica brasileira.

Edição de Magazine de Ficção Científica, de 1970
Edição de Magazine de Ficção Científica, de 1970

Entre suas obras literárias está Três Meses no Século 81, relançada pela editora Plutão em sua coleção Ziguezague, onde explora as diferentes “ondas” da ficção científica no país. Monteiro está claramente na primeira, sendo pioneiro em apresentar uma narrativa sobre viagem no tempo com elementos que seriam marca do gênero até hoje.

No livro, Campos relata sua experiência visitando a civilização do século 81. A sua viagem revela um mundo aparentemente utópico, com arquitetura e tecnologia impressionante, mas talvez as coisas sejam perfeitas demais para o viajante, que ao chegar no futuro se vê no corpo de um ser chamado Loi. A decisão do autor em transformar a viagem temporal em uma experiência esotérica, através do que chama de “transmigração”, ao invés de uma máquina, como estamos acostumados, é um caminho que acaba dando mais originalidade ao material. 

“Em todo caso, aquelas construções, se eram impressionantes pela simplicidade e pela largueza, nada tinham de emocionantes”

A obra carrega uma construção de mundo surpreendente, estabelecendo a sociedade do futuro com sua nova geografia, hierarquias e economia (ou falta dela), fazendo questão de explicar o desenvolvimento de uma nova língua híbrida do inglês com outros idiomas (talvez uma pequena cutucada na maneira como a cultura norte americana tem se expandido em nosso cotidiano).

Monteiro também brinca um pouco com a metalinguagem, elemento pouco comum para a época, inserindo o escritor H.G.Wells, responsável pelo clássico A Máquina do Tempo, em sua história, não só como referência, mas como um personagem que existe no universo de Campos, ou de Loi. 

Jeronymo Monteiro em sua máquina de escrever
Jeronymo Monteiro em sua máquina de escrever

Pode ser uma boa maneira de introduzir os principais elementos da trama, mas é engraçado como a narrativa acaba sofrendo um pouco com essa atenção aos detalhes, deixando por vezes visível como Monteiro acaba sendo prolixo ao ponto de introduzir personagens essenciais para a trama tarde demais, como Ilá, que acaba servindo como ativista e interesse romântico para o protagonista, mas por ser apresentada tão tarde, perde seu peso e suas “cenas” são um problema quando consideramos o quão bem estabelecido é o universo do livro. 

Esse é um deslize fácil de relevar em uma obra precursora como essa, e importante para a ficção científica no Brasil. Jeronymo Monteiro é um nome necessário para qualquer leitor de ficção especulativa no país, e o relançamento de Três Meses no Século 81 é mais um enorme acerto da editora Plutão.

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Literatura

Leviatã Desperta | “As Estrelas Estão Melhores Sem Nós”

Escrita por James S. A. Corey (pseudônimo da dupla Daniel Abraham e Ty Franch), a série de livros The Expanse fez tanto sucesso que acabou gerando uma adaptação seriada para o canal SyFy de mesmo nome (que depois foi cancelada e salva pelo serviço de streaming, Amazon Prime Video). Lançado originalmente em 2011, o primeiro livro da série se chama Leviatã Desperta, e é uma aula de construção de mundo e personagens.

A humanidade já conquistou o espaço, mas está dividida. Saltamos 200 anos em um futuro onde os conflitos entre habitantes da Terra, Marte e o cinturão de asteróides podem estourar a qualquer momento, e a tensão aumenta quando uma nave transportadora é destruída. Sem alguém para culpar, começa a corrida contra o tempo para descobrir o que está acontecendo, e o destino de todos pode estar na mão de uma pequena tripulação liderada pelo justo capitão James Holden e o abusado detetive Joe Miller. 

Leviatã Desperta é um livro grande, uma ópera espacial em um universo rico, e a quantidade de personagens, planetas e conceitos que precisam ser introduzidos justifica o tamanho da obra. Esse é apenas o primeiro livro, mas já faz um ótimo trabalho em executar uma narrativa sobre conspiração política de maneira inteligente; mesmo que ela esteja acontecendo em segundo plano, continua afetando a trama do início ao fim. 

Cada capítulo da obra segue a perspectiva de um personagem específico, e aqui temos uma atenção quase exclusiva aos pontos de vista de Holden e Miller, que também dão nome aos capítulos. O que poderia resultar em um desenvolvimento enfadonho acaba servindo não apenas como um bom exercício diferencial de narrativa, mas uma solução mais dinâmica de alavancar a trama, revelando informações aos poucos, aumentando a expectativa, alternando entre protagonista antes que corra o risco de entediar o leitor – o que nunca acontece. 

Leviatã Desperta

“Diga o que quiser sobre o crime organizado, pelo menos ele é organizado”

Não é apenas o formato que chama a atenção. Parte do dinamismo da escrita de Corey está nos diálogos, divertidos e ácidos, que deixam os personagens ainda mais reais e envolventes. Há também a dedicação dos autores em apresentar um mundo verossímil, com regras bem estabelecidas, não importa se é para algo maior como uma estação espacial ou trivial como um coquetel de drogas usado pela tripulação para não amenizar o impacto da força g

Para aqueles interessados em comparações entre o livro e a série de TV, a versão literária é tão elaborada que rendeu conteúdo para duas temporadas. Ainda que a série tenha sido inteligente em introduzir núcleos dramáticos e ótimos personagens logo no começo, a decisão de manter o foco narrativo do livro entre Holden e Miller acaba tirando o espaço de figuras como a excelente Chrisjen Avasarala, a líder das Nações Unidas da Terra. É claro que isso não afeta negativamente a versão original, já que são formatos e mídias diferentes, mas é curioso notar essa diferença.  

Leviatã Desperta é uma forte introdução para um universo bem construído, personagens atraentes e uma trama conspiratória como poucas. Até o momento, apenas o primeiro livro foi lançado no Brasil, pela editora Aleph, e infelizmente não há uma data para trazer as continuações, mas essa permanece uma obra satisfatória, mesmo que deixe alguns ganchos para o livro seguinte. Vamos esperar. 

Leviatã Desperta

Ficha Técnica:
Título Original: Levathan Wakes
Editora Aleph, 2017
Tradução de Marcia Blasques
672 Páginas.