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Eles Herdarão a Terra | Racontos sobre a solidão

Depois de lembrar os primórdios da ficção científica produzida no Brasil através de Machado de Assis, com a obra Sobre a Imortalidade de Rui de Leão, a editora Plutão realmente começa a explorar a pluralidade de vozes do país com a série Ziguezague. Com a proposta de entregar obras que contribuíram para a formação do gênero por décadas, somos apresentados a “Primeira Onda” da ficção científica nacional com Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz. 

Apresentando cinco contos (ou “racontos”, como Queiroz prefere chamá-los), Eles Herdarão a Terra alterna entre a ficção científica, ensaio político e relato sobrenatural, e por mais que sejam, em certo nível, abordagens distintas, o principal tema abordado pela autora é a solidão, presente em cada um dos contos.

Estamos numa época em que a solidão humana ganhou uma perspectiva capaz de produzir verdadeiras alucinações.

Com a intenção de abordar o absurdo, as histórias são divididas em três categorias: “Antecipação”, “Cotidiano” e “Sobrenatural”. A primeira é a mais rica em conteúdo, com narrativas um pouco maiores e detalhadas, sendo elas “A Universidade Marciana”, “O Carioca” e o conto que dá nome ao livro. Em seguida, com “Partido Nacional”, Dinah brinca com o “proverbial derrotismo brasileiro”. No fim, usa o conto “A Mão Direita” como ferramenta do absurdo além da compreensão humana. 

Mesmo que “Partido Nacional” seja uma sátira política curiosa em sua premissa e desenvolvimento, ou “A Mão Direita” traga uma escrita mais rebuscada, o verdadeiro destaque da coletânea são os três contos de ficção científica. 

Dinah Silveira de Queiroz
Dinah Silveira de Queiroz

Em “A Universidade Marciana”, Dinah aborda o primeiro contato com um olhar mais íntimo e introspectivo, questionando as motivações e as consequências de encontrarmos nova forma de vida. Ambientada em um Rio de Janeiro distópico, onde a “enchente fez unir o mar à lagoa Rodrigo de Freitas”, temos também uma forte presença da igreja, principalmente na figura do papa, que recebe todos no Vaticano para estudar melhor a situação. Esse teor religioso está tão presente nos contos de Queiroz quanto a solidão que aflige os seus personagens.

“Estávamos, então, no limiar da Era Interplanetária, mas a ciência ensinara, durante esse tempo todo, que só a Terra era habitada” 

Para “O Carioca”, Queiroz aborda os avanços no campo da cibernética, mas mesmo que a história introduza um cientista construindo o primeiro robô “viajante a Marte ou Vênus” (robô que dá nome ao conto), o verdadeiro apelo dramático da trama está na relação entre esse cientista e sua vizinha, uma viúva que acaba criando uma relação de afeto com as máquinas em seu apartamento. 

Chegando no principal conto da obra, “Eles Herdarão a Terra”, somos arrastados ao lugar perfeito para explorar a solidão que fascina Queiroz: um farol, localizado à vista de Guaratiba, outro ponto do Rio de Janeiro. É lá que Marcos trabalha, ao lado de seu velho pai, até que sua irmã, Tudinha, os visita. As coisas ficam estranhas assim que uma figura misteriosa surge com revelações assustadoras sobre o futuro da humanidade. 

O livro também tem espaço para algumas referências, não só literárias, como a menção de vários autores da Academia Brasileira de Letras, da qual a própria Dinah fez parte, mas também da ficção científica e de eventos como a famigerada transmissão de Orson Welles para a rádio CBS, em 1938, quando decidiu narrar o livro Guerra dos Mundos, ao vivo, e causou certa comoção (ainda que parte dela seja fabricada para aumentar o impacto da história). 

“Sempre haverá quem sustente que tudo partiu de um mero espetáculo de ficção científica, gênero muito popular então, mas agora totalmente esquecido”

Com uma narrativa lenta, mas carregada de tensão, essa é uma coletânea relativamente curta, principalmente considerando que apenas três contos são realmente ficção científica, mas ainda é atraente conhecer melhor o trabalho de Queiroz e suas diferentes vozes refletindo sobre a solidão carioca. Eles Herdarão a Terra é mais um resgate necessário feito pela editora Plutão, que não deixa de surpreender. 

Eles Herdarão a Terra

Eles Herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz.

163 Páginas; Editora Plutão, 2019

O livro também conta com um prefácio de Ana Rüsche, e a arte gráfica de Paula Cruz.

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The Expanse S04 | Explorando Nova Terra

Depois de ser cancelada injusta e prematuramente pelo canal SyFy quando acabou de entregar uma ótima terceira temporada, The Expanse conseguiu um novo lar no serviço de streaming da Amazon, o Prime Video. O mais impressionante não é apenas o fato de ter sido renovada para uma quarta temporada, mas por continuar com uma base de fãs forte e críticas positivas sendo uma série de ficção científica mais “pesada” no meio de tantas produções de maior nome. 

Com essa mudança, alguns poderiam ficar preocupados com o rumo tomado pela série, ainda mais com a redução de episódios por temporada, indo de treze para dez (como foi em seu primeiro ano), ou ter que mexer nos cenários e agendas de elenco. Felizmente, a maioria dessas preocupações foram desnecessárias e tivemos um ótimo retorno para uma das melhores séries da atualidade. 

Com o surgimento do Anel, um portal criado por conta da Protomolécula, tudo está diferente. Alianças improváveis e uma “corrida espacial” fazem com que a situação fique mais complexa do que o imaginado. Através do portal, foram descobertas novas possibilidades, milhares de planetas potencialmente similares ao nosso. O primeiro deles é Ilus IV, chamado de Nova Terra pelas Nações Unidas, formado por um gigantesco continente e ilhas separadas por um oceano, mas o problema está nas diferentes nações e facções que assumem o território sem compreender os mistérios envolvendo sua existência. 

The Expanse

Para contribuir com a exploração e decidir a disputa pelo território é designada a tripulação da Rocinante. Holden, Naomi, Amos e Alex estão de volta, mas ainda que a ameaça da Protomolécula pareça estar chegando ao fim, eles continuam em risco. Enquanto isso, do outro lado do Anel, Bobbie lida com dilemas familiares e éticos, Dummer e Ashford mantém a diplomacia entre os belters (habitantes do cinturão) e os inners (habitantes dos planetas do sistema solar: terráqueos e marcianos, na maioria dos casos), e Avasarala enfrenta novos desafios, não só em sua vida política, mas pessoal. 

Para a quarta temporada, a quantidade de episódios reduzida acabou contribuindo para uma temporada mais concisa, usando a corrida contra o tempo para criar sequências de ação muito bem executadas, como a retirada de todos os ocupantes de Ilus, que resultou em uma cena angustiante por conta da música e os efeitos especiais do desastre “natural” que atinge o planeta. Por conta da maior parte da temporada se passar em alguns pontos de Ilus, além da tensão constante, o drama é muito bem desenvolvido. 

Mas não é sempre perfeito. A alternância entre núcleos dramáticos, indo do impasse militar por conta dos representantes de cada nação procurando território em Ilus para os jogos políticos de Avasarala e as descobertas de Bobbie, pode dar a sensação de tramas paralelas um pouco deslocadas, talvez por conta dos temas sobre dilema, traição e orgulho não se aplicarem em todos os arcos de personagens. Esse é apenas um detalhe quando consideramos o enorme trabalho da série em desenvolver cada um desses núcleos com cuidado, sem deixar de lado a atenção aos detalhes que vem acompanhando The Expanse desde o início. 

The Expanse

Com a mesma (ótima) qualidade de roteiro, a quarta temporada continua surpreendendo com novas revelações, seguindo em frente com a narrativa e introduzindo novos personagens, como o chefe de segurança Adolphus Murtry, interpretado por Burn Gorman, que colabora para deixar a situação em Ilus ainda pior com uma sede de vingança depois de perder parte de sua tripulação, aparentemente por conta dos belters que chegaram antes. Ainda que pequenas instâncias de conveniência atinjam o roteiro, sobretudo quando um tipo de cegueira coletiva atinge os ocupantes de Ilus, não é algo que distraia o público. 

Por falar no elenco, é bom saber que ainda temos Thomas Jane retornando como Miller por mais uma temporada, para perturbar a mente de Holden com suas teorias e pistas. Shohreh Aghdashloo é uma atriz magnífica, facilmente a melhor da série, e não deixa de lado seus insultos e a boca suja, ainda mais suja com as liberdades que a série teve depois de assinar com a Prime Video. Se na última temporada Cara Gee foi um dos destaques, dessa vez David Strathairn, intérprete do comandante Ashford, tem seu merecido espaço para brilhar.

The expanse

Mesmo com o orçamento modesto, a série sempre se destacou por efeitos especiais mais do que competentes, e agora que recebeu um melhor investimento, pode exibir grandes sequências de ação espacial, com naves manobrando no fogo cruzado ou as grandes arquiteturas reveladas pela Protomolécula. O design de produção nunca foi tão complexo e a fotografia nunca foi tão bela quanto nessa temporada, principalmente em Nova Terra, com planos abertos revelando sua geografia, dando atenção aos seus desertos e estruturas.

The Expanse termina mais um ano trazendo ficção científica de qualidade, não só por conta de sua precisão científica ou ótimos visuais, mas também pela combinação perfeita entre elenco e roteiro, o que sempre funciona se bem feita, e a dessa série funciona como poucas. 

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The Expanse S03 | É lutar ou fugir

Continuando com uma das melhores séries da ficção científica atual, a terceira temporada de The Expanse mergulha em debates políticos e fica cada vez mais perto da guerra iminente entre a Terra e Marte. A temporada também é marcada por alguns saltos temporais que avançam a trama de uma maneira orgânica, e isso apenas beneficia a narrativa, que precisa lidar com as consequências a longo prazo dos encontros da Rocinante. 

Aqui abordamos a segunda metade de Caliban’s War e grande parte dos eventos de Abaddon’s Gate, o segundo e terceiro livros da série The Expanse, respectivamente. E ainda que as conspirações continuem fortes, podemos ver que o principal tema da temporada é a traição e suas consequencias, não importa se para algo no qual acredita ser o melhor para todos, como Naomi faz com seus amigos; ou o melhor para seu próprio nome, como Sadavir Errinwright, que tem seus planos envolvendo a proto molécula revelados. 

Agora temos novas adições ao elenco, como a Dra. e Reverenda Anna Volovodov, interpretada por Elizabeth Mitchell, que traz uma personagem mais centrada e aparentemente imparcial, mas ela logo se mostra mais do que apenas uma figura pública; e além de novidades, há espaço para retornos, mesmo que sejam em forma de visões, e é ótimo ver Thomas Jane no papel de Miller novamente. A maneira na qual foi inserido no contexto atual da série foi uma das decisões inteligentes dessa temporada.

Mas dando destaque para o elenco recorrente, vale sempre mencionar o quão incrível é a interpretação de Shohreh Aghdashloo como a irreverente Chrisjen Avasarala, capaz de roubar a cena de qualquer um. Mas duas personagens tiveram um grande destaque na temporada e exigiram um comprometimento maior, e essas são Naomi Nagata (Dominique Tipper) e Camina Drummer (Cara Gee).

The Expanse

As duas estiveram em um dos núcleos dramáticos mais importantes, lidando com suas decisões com extrema cautela, sabendo que qualquer passo em falso pode estragar o que construíram no caminho. A relação de Naomi com Holden (Steven Strait) acaba se fragilizando, assim como Dummer e Ashford (David Strathairn), e felizmente Tipper e Gee são ótimas atrizes, principalmente considerando a carga emocional que conseguem entregar enquanto precisam manter seu sotaque belta

Deixando o elenco de lado, um departamento que não deixa de me surpreender é o de efeitos visuais, que aperfeiçoou suas sequências de “embate” espacial e mostra uma enorme evolução, arriscando deixar a câmera por mais tempo em elementos que necessitam completamente do CGI para sua execução. 

Mas um elemento que não canso de elogiar é o roteiro, que continua sagaz, com ótimos diálogos, sem medo de construir tensão e entregar revelações que podem alterar completamente o status quo da série. Ainda que tenhamos uma pequena subtrama envolvendo um membro de uma equipe de filmagens, à bordo da Rocinante, que acabou ficando previsível demais, ou episódios em que alguns eventos pareciam um pouco desconexos (talvez culpa maior da montagem, não do roteiro), o texto da série está fazendo um trabalho como poucos de trazer uma produção de hard scifi que merece ser levada a sério. 

The expanse

Com um drama bem estabelecido, trama envolvente e efeitos visuais incríveis (mesmo sem um orçamento gigante), The Expanse merece ser assistida por qualquer fã de ficção científica, e mesmo que o próprio canal SyFy não acredite nisso, a série felizmente foi renovada para uma quarta temporada, pela Prime Video

Continuamos a jornada com Pinus Contorta Rocinante!

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Watchmen | It’s Summer and We’re Running Out of Ice – S01E01

Com roteiro de Alan Moore e arte de Dave Gibbons, a graphic novel Watchmen é lançada em 1986, pela DC Comics, em doze volumes. Ela é um enorme sucesso, vendendo muito bem e sendo elogiada por todos. Duas décadas depois, a HQ é destacada como um dos melhores romances do século pela revista Time, fazendo com que a obra de Moore e Gibbons receba novo fôlego e atenção até daqueles não interessados na arte sequencial.

É 2009 e Hollywood consegue finalmente adaptar Watchmen para o cinema. Dirigido por Zack Snyder, o longa tem uma recepção mista da crítica, mas a bilheteria não impressiona. Ainda assim, todos parecem interessados em desenvolver suas próprias histórias se aproveitando das doze edições originais da HQ. A própria DC tenta uma prequel em quadrinhos, intitulada Antes de Watchmen, reunindo diversos artistas com o intuito de contextualizar um universo que, alguns diriam, não necessitava disso. Mesmo sem sucesso, a editora insiste em inserir os personagens em seu selo padrão, criando a saga Doomsday Clock.

Estamos em 2019: Damon Lindelof, co-criador de séries como Lost The Leftovers, decide liderar uma adaptação de Watchmen para a HBO. O primeiro episódio é lançado no dia 20 de Outubro. Hoje, eu escrevo a resenha.

É verão e estamos ficando sem gelo.

Watchmen Trailer Looking Glass

A primeira sequência do episódio talvez seja a mais importante para estabelecer o tema principal dessa série, que promete utilizar o contexto político e social dos quadrinhos para desenvolver uma crítica mais pertinente ao crescimento de grupos fascistas e supremacistas brancos nos EUA. Tudo começa em 1921, durante a rebelião racial de Tulsa, na qual a comunidade negra de Oklahoma é covardemente atacada por brancos intimidados com o crescimento de distritos como Greenwood, um dos mais ricos do estado, habitado por negros. No meio do tumulto e dos linchamentos, seguimos um casal tentando salvar seu filho o enviado em uma carruagem com uma mensagem no bolso.

Em seguida, somos introduzidos ao ano 2019 da série, que mesmo sendo uma versão alternativa do nosso, se passando no mesmo universo dos quadrinhos (aparentemente, o filme não será levado em conta), comenta a realidade fora da tela. Depois dos eventos do quadrinho, que termina com o personagem Rorschach entregando seu diário contendo os planos de Adrian Veidt, o Ozymandias, e todos os outros integrantes do grupo Watchmen, a série explora as sequelas da despedida do Dr. Manhattan, assim como a catastrófica solução de Veidt para trazer a paz mundial.

Talvez a decisão mais radical da série, ainda que faça total sentido (eu vou explicar na parte de spoilers), é transformar Rorschach em uma figura de resistência para um movimento de supremacistas brancos chamado Seventh Kavalry (seria apenas uma referência ao regimento dos EUA ativo em grandes guerras, ou uma ligação mais forte com um diálogo dos quadrinhos onde Veidt menciona a cavalaria como contraste para o apocalipse?). No 2019 de Watchmen, é a vez da polícia usar máscaras e se auto-intitular a vigilante máxima da sociedade, respondendo o questionamento em latim “Quis custodiet ipsos custodes”, traduzido por Alan Moore para “Quem vigia os vigilantes”. Mas ainda há obstáculos para a própria polícia, que precisa de códigos de segurança mais restritos quando envolve o uso de armas, que agora tem uma trava liberada apenas por autorização geral.

Entre os policiais, ainda há vigilantes encapuzados, como Angela Abar (Regina King) e Looking Glass (Tim Blake Nelson), que procuram trabalhar na margem da lei, mas dessa vez de maneira mais organizada.

Além de uma boa construção de mundo e um ótimo elenco (Regina King e Jeremy Iron prometem ser a maior força dramática da série), esse primeiro episódio, dirigido por Nicole Kassell, tem um excelente trabalho do departamento de direção de arte, com uma bela fotografia que apresenta a iconografia dos quadrinhos, com ovos que formam o rosto sorridente do bóton do Comediante ou a gota de sangue caindo no distintivo de um dos personagens, sem contar as composições que tentam replicar o formato de um relógio de bolso e seus ponteiros. Vale mencionar a composição musical da dupla Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) e Atticus Ross, responsáveis por filmes como A Rede Social e Garota Exemplar, aqui aumentando a força da narrativa com uma atmosfera mais sombria e tensa através do piano melancólico de Reznor.

It’s Summer and We’re Running Out of Ice é um ótimo começo para a série, estabelecendo muita coisa dos quadrinhos e desenvolvendo outras que prometem colocar o dedo na ferida. Alan Moore já abordou em Watchmen alguns tópicos relevantes do nosso 2019, como os direitos LGBTQ+ ou o risco de acreditar na carisma de figuras fascistas, mas a atenção da série ao debate racial pode ser um ângulo intrigante capaz de transformar a série em algo próprio, ao contrário de outros materiais que tentaram apenas recriar a sensação do quadrinho original.

Sob o Capuz: Referências e Teorias (SPOILERS)

Watchmen

Como é apenas o primeiro episódio da série, vou deixar apenas algumas das coisas curiosas que achei enquanto assistia o episódio.

  • O livro SOB O CAPUZ, a autobiografia de Hollis Mason (primeiro Coruja, do grupo Minutemen, os heróis que atuavam antes dos Watchmen), pode ser visto na mesa do escritório de Judd Crawford. E por falar em Crawford, o episódio dá alguns indícios de que ele possa ser o segundo Coruja, Dan Dreiberg, como sua caneca em formato de coruja ou o fato de utilizar a Arquimedes, nave do herói nos quadrinhos. É claro que ele poderia simplesmente estar usando um de seus nomes falsos depois dos eventos da HQ, mas depois da revelação final do episódio fica difícil continuar acreditando que ele seja o Coruja.
Watchmen Sob o capuz
  • A CHUVA DE LULA que acontece enquanto Angela Abar está trazendo seu filho da escola é uma clara referência ao clímax causado pro Adrian Veidt nos quadrinhos, na qual ele desenvolve uma lula mutante para aterrorizar a humanidade orquestrando um falso ataque alienígena. Isso deixa evidente que a série é uma sequencia da HQ e não do filme. Falando nisso, na cena anterior podemos ver um quadro com a imagem dos principais presidentes dos EUA, e um deles é Robert Redford, uma piada com a última página do quadrinho, onde brincam com a possibilidade de um ator na casa branca.
Watchmen Polvo
  • O personagem JUSTIÇA ENCAPUZADA tem bastante destaque na série, sendo o “rosto” principal nos anúncios do futuro documentário sobre os Minutemen, aparecendo em uma propaganda de ônibus e nos comerciais da TV. Na própria HQ, Hollis Mason diz em sua autobiografia que ninguém sabe a verdadeira identidade do Justiça Encapuzada, mas por conta de sua roupa, idealizada com uma corda em forma de forca no pescoço e um capuz roxo como máscara, a principal teoria é que seja um homem negro (possivelmente homossexual, isso de acordo com Hollis). Assistindo ao episódio não pude deixar de imaginar que o idoso da cadeira de rodas, que aparece lendo seu jornal e fazendo comentários aleatórios para Angela (e no fim revela-se o garoto com o bilhete da sequencia de abertura), é o verdadeiro Justiça Encapuzada. E isso faz total sentido, considerando a camisa roxa, a idade e as suposições de Hollis.
  • Uma das coisas que mais aguardo na série é o retorno de Adrian Veidt, que tem poucos minutos no episódio, mas já revela estar trabalhando em uma peça, uma tragédia em cinco atos — o que provavelmente será mais um de seus planos para trazer a paz mundial que tanto almeja. Um dos indícios de que Adrian pode estar mais uma vez por trás de uma grande conspiração é uma rápida tomada na qual podemos ver um jornal com a manchete que diz “Veidt é Oficialmente Declarado Morto”. Ou esse é o primeiro passo para seu esquema mirabolante, ou a série está experimentando com uma narrativa não-linear, o que não seria surpresa agora que tantas séries estão fazendo isso, como a própria Westworld, da HBO.
Watchmen Veidt Morto
  • Entre todos os nomes mencionados no episódio, o que achei mais curioso foi PIRATE JENNY, utilizado por uma vigilante trabalhando ao lado de Judd Crawford, pilotando a Arquimedes. Pirate Jenny é o título de uma música (macabra) da cantora Nina Simone, uma das favoritas de Alan Moore, tanto que ele utiliza a letra da canção como inspiração para os Contos do Cargueiro Negro, uma história dentro da história de Watchmen. Para ser mais exato, o Cargueiro Negro é um quadrinho sobre piratas que os jovens leem no universo de Watchmen, já que heróis encapuzados são uma realidade, quadrinhos como da Marvel e DC não fazem sentido. Um trecho da letra traduzida: “Há um navio, o Cargueiro Negro. Com uma caveira em seu mastro. Eles estão chegando”. Ouça a música.
Watchmen Pirate Jany
  • O aspecto mais polêmico do episodio envolve Rorschach e os Supremacistas Brancos. Eu entendo quem talvez tenha se incomodado com isso, mas eu considero um dos grandes acertos do episódio. Tirando o fato do grupo de supremacistas generalizar seu preconceito, se estendendo também aos policiais, a inspiração deles é em um personagem claramente preconceituoso — e não me entenda errado, adoro o personagem, mas posso gostar dele e não gostar de suas atitudes ao mesmo tempo (ponto para o roteiro de Alan Moore, como sempre). Nas HQs, Rorschach está constantemente fazendo comentários sexistas e homofóbicos sobre seus companheiros de trabalho, como chamar Veidt de homossexual, por exemplo. Isso sem contar que o personagem é um ávido leitor do jornal The New Frontiersman, direcionado ao público mais reacionário. Há várias outras menções na HQ, mas a mais gritante é quando uma das vizinhas de Rorschach o chama de “pervertido nazista”. Essa parte pode ser polêmica, mas não infundada.
The Watchman HBO
Watchmen Rorshach Mark Hill/HBO
  • Para fechar os meus destaques (há outros, mas não quero deixar isso muito grande e outros ainda precisam ser confirmados), é bom saber que algumas coisas nunca mudam e Alan Moore ainda não aceita ser creditado em nenhuma adaptação de suas obras, deixando todo o crédito para o artista Dave Gibbons.
Watchmen Final

Essas foram algumas das minhas considerações sobre o primeiro episódio da série de Watchmen, It’s Summer and We’re Running Out of Ice. Deixe nos comentários o que achou do episódio e das mudanças.

Nos vemos na próxima semana.

Tick, tock, tick tock.

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Ubik | Entre a vida, morte e a realidade

“Eu tenho vida”

Philip K Dick talvez seja meu autor favorito, o que não o isenta de ressalvas, como a maneira que costuma negligenciar o desenvolvimento de alguns personagens ou simplesmente os transforma em um narrador sem personalidade. Mas eu não comecei essa resenha com uma afirmação tão positiva sobre ele para deixar de mencionar o que fez para merecê-la. Os textos de Dick se apoiam em conceitos únicos, vindos de uma mente pouco convencional, e o que ele faz melhor é explorar temas complexos de maneira objetiva, criando um debate como poucos conseguem.

Romances como Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? ou O Homem do Castelo Alto conseguem se desvencilhar dos problemas que mencionei no parágrafo anterior, trazendo personagens mais envolventes e ativos, e depois de ler Ubik, tenho mais um exemplo de como o autor nem sempre cai na mesma armadilha. Lançado originalmente em 1969, no ano da eleição de Nixon e em meio à primeira retirada do exército Norte-Americano da Guerra do Vietnã, Philip K Dick decide conceber uma obra sobre o que entende melhor: questionamentos sobre a nossa realidade e espionagem corporativa, sem contar um pouco de religião e poderes mentais.

A obra se situa em uma Nova York de 1992 habitada por humanos que desenvolveram habilidades psíquicas ou conseguem se relacionar com o tempo de maneira diferente (eles tecnicamente não viajam no tempo, então prefiro deixar a definição dessa maneira). Em um mundo onde poderes como esse podem ser utilizados para manipular a realidade de seus adversários, muitas vezes com propósitos corporativos, algumas empresas oferecem um serviço de proteção, que contrata humanos capazes de neutralizar a ameaça original. Glen Runciter é um dos homens mais poderosos do mundo, responsável por uma dessas empresas, mas há um mistério a ser resolvido, envolvendo o desaparecimento de seus funcionários. Para ajudá-lo, o técnico Joe Chip parte em uma investigação que pode alterar toda a realidade.

Além da premissa mais “policial” do livro, PKD também explora temas de religião e até vida após a morte através de um conceito de meia-vida no qual a consciência de pessoas que já faleceram pode ser preservada para que seus contatos possam se comunicar, isso por conta de um serviço oferecido, novamente, por uma empresa. Fica clara a intenção do autor em comentar o avanço de grandes conglomerados e o impacto da propaganda no cotidiano, tanto que cada capítulo é apresentado com um texto publicitário sobre algum produto inovador, todos com o mesmo nome: Ubik.

Capa Ubik

Mors certa et hora certa

Há muito mais elementos apresentados no romance, como uma viagem à lua (talvez a promessa do homem na lua tenha o influenciado nesse aspecto) ou a esposa em meia-vida de Runciter, mas é Joe Chip o verdadeiro protagonista, correndo contra o tempo para descobrir o que está acontecendo, sem certeza sequer de que seu mundo continua real. Essa é uma das brincadeiras favoritas de PKD, alternando entre tempo e espaço e experimentando com a percepção do leitor, que nunca sabe se pode confiar no que está escrito.

Também podemos encontrar referências diretas com outros textos do autor, como a presença de precogs, aqui extremamente relevantes para o enredo, mesmo que indiretamente. Os precogs são humanos com habilidades mentais avançadas, capazes de observar o futuro, o que cria uma das sequências mais criativas do livro, envolvendo uma conversa entre Joe e Runciter através de um anúncio na TV. São momentos como esse que evidenciam a escrita quase cinematográfica de Dick, descrevendo ações como uma voz fora de sintonia com o movimento da boca ou um corpo tentando fugir da realidade.

Alguns leitores podem pegar uma obra como essa e considerar sua proposta desconfortável, isso porque o autor não faz questão de entregar uma narrativa comum, nem mesmo se importa em construir tramas incontestáveis, nos deixando com um exercício mental sobre o que consideramos real ou não. Terminamos o livro com mais questionamentos que antes, e esse pode ser o verdadeiro objetivo de Philip K Dick, abrir nossas mentes para tudo o que pode ser. Isso é apenas o começo.

Ubik

Ficha Técnica:
Título Original: Ubik
Editora Aleph, 2019
Tradução de Ludimila Hashimoto
Arte de Rafael Coutinho e Giovana Cianelli
240 Páginas.

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O Planeta dos Macacos | O que é uma civilização?

“O que caracteriza uma civilização?

Será o gênio excepcional?

Não; é a vida rotineira”

O francês Pierre Boulle pode não ser um dos escritores mais conhecidos pelos leitores de ficção científica, principalmente por não se considerar um autor do gênero, mas seu trabalho merece reconhecimento, não só em âmbito literário, mas cinematográfico. Ele é responsável pelo roteiro do aclamado filme A Ponte do Rio Kwai, baseada em seu próprio romance de mesmo nome, mas é claro que nada chamou tanto a atenção quando seu trabalho em O Planeta dos Macacos. Com propostas e desenvolvimento de trama similares, não há grandes diferenças entre as versões das páginas e a das telas, com exceção, claro, da grande reviravolta final.

Talvez a maior diferença na abordagem narrativa entre os dois seja a sua estrutura. Enquanto o filme parte direto para a jornada do protagonista, o livro primeiro nos introduz a dois viajantes espaciais, um casal em lua de mel, que encontra uma garrafa à deriva na escuridão do espaço, mas dentro dela há uma mensagem, um diário escrito pelo jornalista Ulysse Mérou. Assim, nos situamos na narrativa principal, lendo os relatórios de Ulysse sobre uma aventura a trezentos anos-luz da Terra, a caminho da estrela Betelgeuse, em um planeta bastante similar ao nosso, com exceção de seus habitantes, uma sociedade constituída de macacos que podem falar como nós. O curioso é que neste planeta, também encontramos humanos, mas que regrediram de alguma forma e assumem o papel de animais daquele planeta.

O texto de Boulle é dinâmico e constrói os personagens, assim como suas intrigas políticas, eximiamente. A sagacidade dos diálogos e o desenvolvimento orgânico da trama faz a leitura da obra uma experiência agradável. Quando Ulysse Mérou e seus companheiros de viagem, o cientista Antelle e o jovem físico Arthur Levain, descem para a superfície de Soror, como decidiram chamar o planeta por conta de uma semelhança geográfica com a Terra, Boulle narra o primeiro contato com paciência, revelando aos poucos as informações que logo chocariam os personagens. Antelle e Arthur logo deixariam a história, o que nos deixa com os símios, principalmente o casal de cientistas Zira e Cornelius, e o respeitado ministro da ciência, Dr. Zaius. Logo, também acompanhamos de maneira pontual a humana Nova, incapaz de comunicação verbal, mas interesse romântico de Ulysse.

O Planeta dos macacos

Na contramão de sua primeira adaptação cinematográfica, em 1968, na qual Zaius torna-se o antagonista principal e os comentários sobre armamento nuclear são o tópico mais relevante para a conjuntura da época, a obra literária tem mais interesse em evidenciar nossa arrogância, com a proposta de refletir sobre o ciclo da humanidade, principalmente na forma como as sociedades acabam obsoletas.

Os símios do livro são o reflexo mais cristalino de nossa própria realidade, não importa em qual planeta ou ano, o que alguns podem ler como uma interpretação mais pessimista do autor. Ulysse encontra-se constantemente espantado ao confrontar as coincidências daquele mundo com o seu, observando a hierarquia entre os primatas e como eles se separam em gêneros, com os gorilas, orangotangos e chimpanzé tendo diferentes funções e responsabilidades na comunidade.

“O planeta inteiro é governado por um conselho de ministros, à frente do qual está um triunvirato, compreendendo um gorila, um orangotango e um chimpanzé […] Não se misturam à massa; não são vistos nas manifestações populares, mas são eles que dirigem a maioria das grandes empresas.”

Lançado originalmente em 1963, a obra de Boulle continua atual, isso se pudermos relevar a representação feminina quase previsível pela mídia da década, onde as mulheres por vezes serviam mais como um prêmio pelos feitos heróicos do protagonista ou apenas um interesse amoroso sem personalidade. No livro temos Nova, a “parceira” de Ulysse, incumbida da exclusiva tarefa de reagir aos estímulos do protagonista. É intrigante como, em contraste, a cientista símia Zira, tenha um papel bem mais ativo e chegue a ser talvez minha personagem favorita da versão literária.

É óbvio que eu não deixaria de falar das reviravoltas encontradas no livro e no filme, completamente diferentes. Se no filme temos Charlton Heston (George Taylor, protagonista com um nome norte-americano, ao contrário do francês Ulysse) na praia, berrando e amaldiçoando a humanidade depois do que acabou de presenciar, o livro não fica atrás e entrega duas incríveis revelações que transformam a leitura de quem já assistiu o filme em uma nova experiência. Por mais que Rod Serling, um dos roteiristas da versão cinematográfica, tenha feito um trabalho impecável de adaptação, fica fácil entender quem prefira a saída mais irônica de Boulle.

“Estou cansado de viver preso, mesmo na mais confortável das jaulas, mesmo aos seus cuidados.”

O Planeta dos macacos

Como mencionei a distinção entre o nome dos protagonistas, também vale mencionar como os dois possuem personalidades nem um pouco parecidas. De um lado, Ulysse é um jornalista arrogante e ocasionalmente hipócrita, enxergando o pedantismo de Zeius, mas não o seu, à medida que George Taylor configura a imagem do homem musculoso e carismático com um charuto sempre acesso, isso até o momento em que os perde, junto de suas roupas.

O Planeta dos Macacos é uma das leituras mais envolventes para qualquer um interessado em ficção científica ou apenas uma boa aventura, com personagens marcantes e um enredo excepcional. Entra para a lista de clássicos indispensáveis do gênero.

Capa O Planeta dos Macacos

Ficha Técnica:
Título Original: La planète des singes
Editora Aleph, 2015
Tradução de André Telles
Arte de Pedro Inoue
216 Páginas, Posfácio de Bráulio Tavares e entrevista com o autor.

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A Curva do Sonho | A vida não pode ser segura

George Orr é uma figura peculiar. Com exceção de seu talento para os desenhos, poderia ser apenas um homem simples de rotina calma, mas tem abusado do seu medicamento porque acredita possuir a habilidade de mudar a realidade através de seus sonhos, então permanecer consciente parece ser a melhor opção para evitar qualquer possível catástrofe, já que não é apenas a sua realidade que muda, mas a de todos. Se Orr vivesse em ignorância, talvez tivesse uma vida mais fácil (considerando as circunstâncias), no entanto, ele mantém sua memória e lembra de todas as vezes em que seus sonhos moldaram a existência.

Isso faz com que ele seja “convidado” a atender sessões de terapia com o doutor William Haber, um psiquiatra e pesquisador sobre as condições de sono que acredita no infortúnio de Orr e passa a utilizar seu intelecto e recursos para propósitos pessoais, tentando assim se transformar em um dos homens mais poderosos do mundo. Quando os sonhos do paciente provam-se efetivos, Orr e Haber começam um esquema arriscado onde não apenas a realidade, mas suas mentes, são manipuladas.

Escrito por Ursula K Le Guin, A Curva do Sonho é um romance curto, mas de grande impacto, mais uma vez salientando como a autora trata temas relevantes e perenes de forma inteligente, principalmente considerando que a obra foi publicada originalmente em 1971, apenas dois anos depois do seu clássico A Mão Esquerda da Escuridão.

A humanidade enfrenta a superpopulação e os desastres das mudanças climáticas. Temos um drama ambientado no “nosso mundo”, em Portland, no Oregon, e esse é um elemento importante para entender alguns aspectos da obra, como a pintura do Monte Hood, no consultório de Haber, tornando-se parte da trama. Mas esse é apenas um detalhe quando percebemos que a verdadeira força da história está na maneira como os sonhos se concretizam, com sucesso ou não em sua premissa, apresentando cenários aparentemente utópicos, mas que logo revelam-se cheios de falhas, como quando Orr sonha com um mundo livre da superpopulação, mas para resolver isso acaba inventando uma praga que dizimou parte da população.

A Curva do Sonho

É através da execução dos sonhos que Ursula nos apresenta alguns dos principais temas da obra, com debates filosóficos sobre determinismo e a nossa necessidade de livre-arbítrio. Cada capítulo é anunciado com citações sobre o assunto, a maioria envolvendo algum pensamento de tradição taoista, onde é atribuída uma força poderosa e invisível por toda existência. Além disso, uma das comparações mais óbvias que podemos fazer é com as obras de Philip K Dick, por conta das experiências envolvendo realidades alternativas, mas Le Guin não deixa de trazer sua própria voz, abordando mais uma vez um debate sobre individualidade e racismo, como quando Orr sonha em acabar com a desigualdade racial, mas as coisas não saem do melhor jeito.

“Eliminamos o problema de cor, de ódio racial. Eliminamos a guerra. Eliminamos o risco de deterioração da espécie e o estímulo a linhagens com genes deletérios. Eliminamos… não, digamos que estamos em processo de eliminação… a pobreza, a desigualdade, a guerra de classes, em todo mundo. O que mais?”

Em uma leitura mais rápida como essa, ainda assim temos um excelente desenvolvimento de personagens, mostrando a evolução do passivo Orr, aceitando tudo que lhe é mandado, e do inteligente e malicioso doutor Haber. Logo cedo, também somos introduzidos a Heather Lelache, uma advogada pela qual Orr acaba se apaixonando. Temos uma narrativa que intercala entre núcleos dramáticos, e essa é talvez a parte mais envolvente da obra, que infelizmente sofre um pequeno tropeço em sua segunda metade, quando tenta introduzir eventos cada vez mais absurdos e impactantes, mas acaba ironicamente perdendo um pouco da sua força, antes concentrada em seus personagens e uma premissa consistente. Não é algo que chega a estragar a leitura, mas pode distrair alguns da proposta original do livro.

A Curva do Sonho é mais uma tentativa de Ursula K Le Guin em nos mostrar o potencial humano, seja ele para o bem ou não. Os dilemas de George Orr, por mais que cobertos por algumas camadas de ficção científica, são universais, mostrando como não somos donos de nosso destino e talvez seja melhor assim.

Capa A Curva do Sonho

Ficha Técnica
Título Original: The Lathe of Heaven,
de Ursula K Le Guin
Editora Morro Branco, 224 Páginas
Arte (que brilha no escuro!) de Paula Cruz
Tradução de Heci Regina Candiani

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Literatura

Neuromancer | A Realidade Virtual de William Gibson

Não é difícil entender como Neuromancer tornou-se um clássico.
O livro de William Gibson tem um enorme peso na história da ficção científica, principalmente por conta de todos os elementos que contribuíram para a construção do imaginário do gênero, como a introdução de conceitos sobre ciberespaço antes mesmo da popularização da internet (o livro foi lançado originalmente em 1984) ou a maneira como explorou e virou uma referência cyberpunk.

Na obra de Gibson, o virtual substitui o cotidiano da vida real. Seguimos Case, um hacker talentoso, porém infeliz em todos os outros sentidos, lidando com as consequências de ter usado suas habilidades para roubar um de seus empregadores. Como se não bastasse estar impossibilitado de acessar a matrix (em outras palavras, a rede global de computadores), o hacker descobre estar sendo caçado. Assim, com a oportunidade de recuperar seu acesso e consertar o passado, Case segue em uma missão arriscada.

O que Neuromancer faz é estruturar um mundo com componentes quase arquétipos para o cyberpunk, ajudando na sua popularização. As concepções triviais da tecnologia diegética, assim como a qualidade de vida precária, estão presentes ao longo do enredo. Tudo isso por conta do texto bastante descritivo de Gibson, que faz questão de capturar as minúcias do ambiente e das sensações dos seus personagens. É uma decisão arriscada com chance de dividir alguns leitores que talvez se distraiam com a narrativa do livro, como aconteceu comigo.

“O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar”

Arte de Josan Gonzales
Arte de Josan Gonzales

Esse é o primeiro romance de William Gibson, que até o momento trabalhava com contos. É impressionante ver seu uso de uma linguagem capaz de mesclar gírias, termos tecnológicos e filosóficos, sem contar todo o impacto cultural causado pela obra, uma conquista inquestionável. Não são apenas todos os termos cunhados pelo autor, mas os temas que explora envolvendo inteligência artificial, consciência e até terrorismo virtual, se mantêm relevantes até hoje. É claro que nenhuma expressão artística tem a obrigação de ser atual, muitas vezes o debate com os obstáculos de seu tempo é exatamente o que faz de algumas obras uma representação perfeita de nossa evolução, conquistando assim o atemporal.

Mas embora seja um documento importante para qualquer um interessado em compreender a construção da ficção científica como a conhecemos, Neuromancer por vezes se equilibra em uma corda bamba narrativa, beirando o desnecessário com descrições longas e redundantes (mesmo levando em conta a estrutura inovadora), possivelmente resultado das constantes reescritas de Gibson por não ter certeza da conclusão de sua história. Também temos bastante tensão mas pouco peso dramático, com um aspecto distante e insólito. Isso não tira nenhum dos méritos mencionados no parágrafo anterior, mas por focar mais em apresentar os fundamentos de seu mundo e estabelecer conceitos instigantes, Gibson acaba caindo em uma armadilha construída pelo seu próprio estilo, deixando o enredo quase previsível, principalmente considerando as influências noir nas características básicas dos personagens, esses delegados a diálogos repetitivos e monótonos.

Em Neuromancer podemos encontrar similaridades com a abordagem textual de Philip K. Dick, conhecido por explorar temas arriscados e experimentar com uma estrutura que serve para “desnortear” o leitor, alternando entre tempo e espaço constantemente. Infelizmente, não é toda vez que isso funciona e em algumas instâncias as transições tendem a ser abruptas demais, o que pode afetar negativamente o ritmo da leitura.

O clássico de William Gibson merece todos os créditos por ter introduzido milhares de leitores a um dos subgêneros mais envolventes da ficção científica, e devo mencionar sua inteligência para debater temas tão pertinentes, mas a maneira como constrói o drama de seus personagens (alguns quase caricatos) e depende demais de seu próprio estilo acabam tirando um pouco do brilho do que poderia ser uma leitura menos trabalhosa e um tanto enfadonha para alguns.

Neuromancer

Ficha Técnica:
Neuromancer, de William Gibson; Lançado originalmente em 1984;
Editora Aleph, 2014;
Tradução de Fábio Fernandes;
Arte de Josan Gonzales;
416 Páginas.

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Literatura

O Mundo Resplandecente | O poder do conhecimento

Estudar os primórdios da ficção científica é uma das tarefas mais árduas de qualquer pesquisador. Muitas coisas acabaram se perdendo no caminho, enquanto outras são simplesmente negligenciadas pela história, e esse é o caso de O Mundo Resplandecente (originalmente intitulado The New World, Called The Blazing World), escrito por Margaret Cavendish originalmente em 1666, que ficou por séculos na escuridão e voltou a causar interesse apenas em 1925 por conta de uma menção no livro Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf.

Amante da filosofia e duquesa de Newcastle-upon-Tyne, a autora explora temas pertinentes ao seu tempo nesta obra, dando atenção maior ao debate filosófico através de sua protagonista, uma mulher que desvenda um novo mundo acessado pelo Polo Norte. Ela tenta se adaptar ao novo ambiente e compreender seus habitantes, o que consegue e logo torna-se imperatriz daquele povo. É neste lugar que adquire conhecimento inestimável sobre natureza e ciência.

Uma figura interessante do século XVII, Margaret Cavendish é uma das escritoras mais prolíficas de seu tempo, principalmente quando consideramos os obstáculos de outras escritoras femininas, tendo seus textos desprezados no círculo literário. Muitas passaram a vida assinando suas obras com pseudônimos masculinos para conseguir ter suas páginas lidas, mas Cavendish fazia questão de assinar suas publicações com o próprio nome.

Enquanto o fim último da racionalidade é a verdade, o da imaginação é a fantasia.

Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle - PETER LELY, 1665
Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle – PETER LELY, 1665

Mundo Resplandecente tornou-se objeto de estudo também por conta de sua característica utópica, o que faz com que o livro possa ser considerado a primeira ficção científica escrita por uma mulher, antes mesmo de Frankenstein, de Mary Shelley em 1818, mesmo que a segunda carregue mais elementos referenciais para o gênero — ainda que tenhamos estas informações, é impossível saber exatamente onde ele começou de verdade, mas são bons indicativos do que pode ter contribuído para a FC que temos hoje.

Felizmente, a editora Plutão (voltada para lançamentos virtuais de clássicos da FC) pôde apresentar para o público o trabalho de Cavendish, traduzido pela doutoranda em teoria e crítica literária, Milene Cristina da Silva Baldo, em sua dissertação de mestrado para a Unicamp em 2014. Essa versão vem com três prefácios, um de Milene e os seguintes da própria duquesa para edições diferentes, cada um essencial para contextualizar melhor o leitor que está prestes a encarar conceitos e pensamentos pelos quais Cavendish tem fortes opiniões.

“Em O Mundo Resplandecente, conhecimento é poder” (Milene Baldo)

Pela época em que foi publicada originalmente, é previsto que a escrita seja um pouco mais arcaica do que o público atual esteja acostumado, mas uma das particulares desta utopia é a facilidade de imersão na experiência da protagonista, constantemente fazendo perguntas sobre filosofia, religião e até matemática — assuntos de alto interesse da autora — em diálogos que tomam uma grande parte do texto e revelam a paixão de Cavendish pelo debate e a descoberta.

Mundo Resplandecente é um importantíssimo documento para qualquer estudioso ou apenas leitor de ficção científica interessado em conhecer mais sobre os primórdios de um gênero onde tudo é possível. Margaret Cavendish traz uma abordagem audaciosa, confirmando a importância da mulher na sociedade em uma época em que outras escritoras não tiveram a oportunidade de se entregar para a literatura por completo.

Capa O Mundo Resplandecente

A Descrição de um novo mundo chamado Mundo Resplandecente, 1666;
Editora Plutão, 2019;
Tradução de Milene Cristina da Silva Baldo;
Arte de Paula Cruz;
180 Páginas.

Compre o livro.

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Literatura

Duna | Um épico poderoso

Não terei medo. O medo mata a mente. O medo é a pequena morte que leva à aniquilação total. Enfrentarei meu medo. Permitirei que passe por cima e através de mim. E quando estiver passado, voltarei o olho interior para ver seu rastro. Onde o medo não estiver mais, nada haverá. Somente eu restarei. (p. 14)

Falar sobre Duna não é uma tarefa fácil. O universo criado por Frank Herbert é um dos mais ricos que qualquer fã de ficção científica pode encontrar, isso porque o autor não se limita aos elementos do gênero e acrescenta características que fazem desta obra um épico essencial para qualquer leitor.

Lançado originalmente em partes na revista Analog, Duna foi publicado como romance em 1965 pela Chilton Books, uma editora conhecida por seus manuais de reparo de peças. Ainda que tenha um começo peculiar, um ano depois o livro saiu vencedor na principal categoria da premiação Nebula, quando ainda era um evento estreante.

Utilizando muito do conteúdo que reuniu durante as pesquisas para um artigo sobre as dunas de areia no estado de Oregon, Herbert trouxe uma perspectiva conveniente para seu texto quando decidiu introduzir elementos de uma vertente mais ambientalista. Com uma abordagem diferente de outras space opera, personagens complexos e um mundo provocativo, o livro de Herbert é uma experiência única. É impossível sintetizar todas as suas páginas de maneira absoluta para uma simples resenha, mas tentarei ao máximo.

Em um futuro distante, a humanidade abandonou seu planeta natal e está no caminho de conquistar novos territórios. Cada novo planeta é comandado por uma “Casa”, todas supervisionadas pelo imperador padixá Shaddan IV. Por conta da ascensão da Casa Atreides, um decreto faz com que ela seja responsável pelo planeta Arrakis, também chamado de Duna, um lugar onde se encontra apenas areia e perigosos vermes gigantes, mas também a substância mais significativa e cobiçada do universo, a especiaria chamada mélange. Mas o que parecia uma grande honra, revela-se um golpe político orquestrado pelo próprio imperador ao lado da Casa Harkonnen, uma rival dos Atreides.

Mas há muito mais engrenagens nos bastidores de Duna, como os Fremen, habitantes dos terrenos áridos de Arrakis e únicos capazes de viver entre os vermes gigantes. Eles têm seus próprios segredos e aguardam pela chegada de Lisan al Gaib, um profeta que trará o paraíso para seu planeta. Mas mais misteriosas são as Bene Gesserit, uma irmandade ancestral que também tem planos para uma figura que nos guiará para o futuro da raça humana. Entre estes dois lados está o jovem Paul Atreides, filho do duque Leto e uma Bene Gesserit, Jessica. Paul ainda não sabe, mas será protagonista da maior lenda da história de Arrakis.

Fã Arte de Duna

“O poder de destruir algo representa o controle absoluto sobre aquela coisa”.

Duna toca em diversos temas, nenhum deles de maneira superficial. Religião, política e sociedade são abordados com um olhar bastante crítico do autor, que faz questão de não mostrar ambiguidade em seu texto. A narrativa de Herbert é minuciosa, ela descreve sensações e atmosfera como se estivesse estudando cada pedaço do planeta. As comparações com a escrita de Tolkien são compreensíveis, tanto que uma citação de Arthur C. Clarke comparando Duna com O Senhor dos Anéis acabou parando na contra capa de várias edições do livro. A leitura pode ser um pouco arrastada no começo e você deve se esforçar um pouco para manter todos os nomes e conceitos em mente, mas assim que nos familiarizamos com a estrutura básica da obra, o livro fica mais palatável para o leitor médio.

Ao aprender sobre as relações entre os personagens e as descrições da atmosfera e a superfície de Arrakis, vislumbramos uma construção de mundo exemplar, atenta em detalhes que vão desde o comportamento dos vermes até o pequeno rato que inspira um dos títulos de Paul: Muad´Dib. É uma trama onde a tecnologia é caracterizada por um aspecto mais analógico, sem androides, computadores ou coisas do tipo, ainda que hajam armas como escudos de força pessoais para proteção contra armas laser.

Também entendemos porque este livro é considerado uma referência no debate sobre ecologia na ficção científica e como a humanidade pode mudar um planeta e ser mudado por ele. A água é tão importante que os habitantes do planeta precisam aproveitar cada gota — não há desperdício, literalmente. Mas mesmo com a preocupação em nos posicionar no cenário de Arrakis, as intrigas políticas e os embates entre os personagens são o maior diferencial da obra.

Ainda que Paul “Muad´Dib” Atreides seja interpretado muitas vezes como um personagem frio e distante, principalmente por conta de suas ações, ele é um protagonista frágil e trágico com uma jornada infeliz. Ele pode parecer impassível por fora, mas lamenta a mudança na maneira que as pessoas o tratam, vendo todos os seus amigos assumindo a posição de seguidores. Antes de ler a obra ouvi bastante sobre os poderes “ilimitados” de Paul, mas sua percepção de passado, presente e futuro não é recebida como uma dádiva: “É preciso entender os limites desse poder. Pense na visão. Temos olhos, mas não enxergamos sem luz. Se estamos no leito de um vale, não enxergamos além de nosso vale. Da mesma maneira, Muad´Dib nem sempre tinha a opção de ver o outro lado do terreno misterioso”.

Embora tenhamos outros personagens interessantes como o leal Duncan Idaho, o antagonista Vladimir Harkonnen e o próprio duque Leto, são as mulheres de Duna que causam uma forte impressão. Não vou debater aqui sobre a representação dos personagens femininos no livro e a distribuição hierárquica de Herbert (o que seria ótimo para um texto próprio), mas observar seu impacto na narrativa. Chani, a companheira de Paul, é uma oportunidade desperdiçada, o que acabou sendo o meu único ponto negativo para a obra, que apresenta personagens como ela e as incube de grandes responsabilidades, mas as deixa como coadjuvantes, apenas testemunhas dos incríveis feitos das figuras masculinas da obra. Alia, a filha do duque Leto, é outra com um potencial tremendo, e até tem seus momentos (seus diálogos e a interação com Harkonnen são uma das melhores partes do livro), mas não recebe espaço o suficiente para desenvolvimento.

Felizmente, temos Jessica, que considero a melhor personagem. Ela é o elemento mais humano da obra, e é quem carrega o peso de manter sua autoridade em uma sociedade onde “nasceu para servir”, sem contar que basicamente constrói o caminho de Paul, seja para o bem ou para o mal. Ela, ao lado das Bene Gesserit, é um dos componentes mais intrigantes daquele universo.

Frank Herbert

“Duna aponta para a ideia do líder infalível porque minha visão da história diz que os erros feitos por um líder (ou em seu nome) são alastrados pelo números de seguidores cegos” (Herbert, 1985).

Arrakis é o cenário para uma lenda em andamento e Duna serve como uma grande coleção dos feitos de Muad´Dib, uma das razões para a linguagem de Herbert ser por vezes parecida com escritos antigos retirados de pergaminhos, inserindo excertos no começo da cada capítulo, escritos pela princesa Irulan. Mas isso não nega os aspectos subjetivos da narrativa, uma que o autor usa para comentar sobre nosso papel no mundo e, através de figuras messiânicas e o poder da crença, nosso próprio papel ao esculpir a história. Não precisamos de Paul, “apenas a lenda que ele já se tornou”.

Como eu disse, falar sobre Duna não é uma tarefa fácil.