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Páginas do Futuro | Uma máquina do Tempo da FC brasileira

A relação do leitor brasileiro com a sua própria literatura não é das mais expressivas, ainda mais quando consideramos a ficção científica. Qual o caminho percorrido pelo gênero por aqui e como ele conversa com as influências anglo-saxônicas tão presentes em outras mídias?

Sem demora, Páginas do Futuro aceita a tarefa de apresentar, de maneira bem didática e em poucas páginas, a linha de eventos que pode ter provocado nosso cenário atual. Braulio Tavares ilustra em sua apresentação o que ele considera as três principais tradições literárias que contribuíram para o que conhecemos hoje como ficção científica. Começamos com grandes narrativas épicas e fantásticas, onde criaturas e jornadas inimagináveis (até então) são alguns dos elementos recorrentes. Em seguida, é através do casamento do fantástico com a “ascensão da literatura realista no velho continente” que nos deparamos com o chamado Scientific Romance, onde o extraordinário é tratado com um olhar mais pragmático. Para terminar, não é deixada de lado a importância de publicações pulp, principalmente a revista Amazing Stories, criada por Hugh Gernsback, que abrigou alguns nomes que logo seriam grandes autores do gênero.

Se a apresentação de Tavares já é o suficiente para instigar o leitor a conhecer mais sobre a ficção científica e sua posição no mercado editorial brasileiro, o mais impressionante ainda está por vir. Ele reúne aqui doze contos desenvolvidos em períodos diferentes, trazendo temas diversos, explorando subgêneros e compartilhando sua própria voz. É curioso ver como alguns autores desta coletânea tiveram contato com a ficção científica e escreveram usando alguns de seus componentes anos antes dela receber esse nome.

Reunindo autores como Raquel de Queiroz, Rubem Fonseca e Luiz Bras, Páginas do Futuro é em si uma máquina do tempo, nos fazendo viajar entre 1957 e 2010. Ainda que seja visível o impacto da literatura internacional em alguns dos contos, não há perda de identidade, como acontece em O Quarto Selo, de Rubem Fonseca, que carrega os traços de uma narrativa policial comum no que depois seria chamado de cyberpunk, mas também está acostumado com as ruas do Rio de Janeiro.

Páginas do Futuro | Uma máquina do Tempo da FC brasileira

Há exemplos de contos que correm fora do Brasil, como Uma Breve História da Maquinidade, de Fábio Fernandes, onde se encontram vários elementos das ficções de vapor em uma Europa pós-Revolução Industrial — em outras palavras, o Steampunk.

“A FC brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da FC internacional sob o risco de deixar de ser FC, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira”

Cada conto traz um comentário crítico, em algum nível, sobre o papel do homem e a maneira que lida com suas criações ou criaturas. Podemos ver em Veja seu Futuro, de Ataíde Tartari, ou Do Outro Lado da Janela, de André Carneiro, uma narrativa mais simples que depende do fascínio do protagonista com o objeto que carrega a trama. Estes contos poderiam facilmente figurar em alguma temporada de Além da Imaginação, como o próprio Braulio Tavares menciona em sua apresentação.

O livro tem a predominância de uma voz masculina, o que é esperado considerando o período dissertado pela obra. Não obstante, Raquel de Queiroz e Finisia Fideli marcam presença com suas histórias, que acabaram sendo algumas das melhores da antologia. Ainda que a ficção científica não seja o primeira coisa que vem em nossas cabeças quando pensamos em Raquel de Queiroz, o que a autora faz em Ma-Hôre é uma descrição intrigante com uma boa dose de ação, mas o que realmente se destaca é a proposta de nos colocar na pele do alienígena em contato com os humanos — essa é uma lógica narrativa atraente até hoje, então imagine a reação em 1961, quando o conto foi publicado originalmente.

Quanto a Finisia Fideli, seu Exercícios de Silêncio (provavelmente o meu favorito dos doze) conversa com o leitor de forma mais lenta, com atenção aos detalhes e a descrição sensorial dos personagens, com um enredo que lembra um pouco o estilo de Ursula K Le Guin, principalmente no excelente A Mão Esquerda da Escuridão. São histórias de introspecção e conexão com uma forma de coletivo, com protagonistas muitas vezes lidando com costumes do planeta no qual se encontra.

Páginas do Futuro é uma leitura rápida e bastante informativa sobre a história da ficção científica no Brasil. São doze contos que passam voando e você ainda tem as ilustrações de Romero Cavalcanti cobrindo algumas páginas com ótimas interpretações visuais do universo apresentado pelo livro.

Capa do Livro Páginas do Futuro


Páginas do Futuro, de Braulio Tavares

Editora Casa da Palavra, 2011

160 Páginas

Ilustrações de Romero Cavalcanti

Compre o Livro: https://amzn.to/2EQC5ON

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Literatura

Oryx e Crake | Adestrando o Fim dos Tempos

Esse livro foi lido durante o Desafio #LendoScifi 2019.

Um dos aspectos que mais me fascina na ficção científica são os debates criados por conta da própria ciência que o gênero carrega no nome. Com Oryx e Crake, primeiro volume da série MaddAddão, a autora Margaret Atwood explora questionamentos éticos e morais sobre humanidade e ciência. O cientificismo também entra na conversa, vinculado a uma crítica política inevitável. É uma obra que rende horas de discussão, mas aqui vou ater-me aos temas e a narrativa de Atwood, o que são provavelmente os pontos de maior destaque.

Em uma versão pós-apocalíptica do nosso mundo, onde os lençóis freáticos ficaram salgados, a calota polar ártica derreteu e a seca nas planícies centrais do continente tornou-se cada vez pior, talvez a perda mais significativa tenha sido para o setor alimentício, com a dificuldade da humanidade em conseguir mais carne. Ao tentar resolver o problema, as grandes corporações decidem contratar cientistas para um trabalho envolvendo manipulação genética, o que não teve o fim esperado e resultou em “criaturas” perigosas.

Somos apresentados ao Homem das Neves, o sobrevivente de uma grande epidemia que aparentemente acabou com toda a população da Terra. Ele já atendeu pelo nome de Jimmy, mas isso foi em outra época, uma onde ele tinha amigos e família. Suas únicas companhias agora são os remanescentes de um experimento genético, humanoides que atendem pelo título de Filhos de Crake. Eles se encontram regularmente perto de uma árvore, onde o Homem das Neves reside e prega a palavra de Oryx e Crake, os dois grandes responsáveis pelo estado do mundo.

Margaret Atwood
Margaret Atwood

A narrativa intricada de Atwood traz sensações conflitantes. Por um lado há uma alegoria muito bem construída e debates sobre a interferência do capitalismo no processo científico, sem contar o embate ético que surge por parte dos personagens. Este é o ponto alto do livro, que serve como um ótimo meio para botar em evidência algumas preocupações do nosso tempo e especular sobre um possível futuro. Mas por outro lado, há a narrativa em si, onde alguns podem encontrar dificuldade.

“Há algo bom na fome: pelo menos ela faz você saber que está vivo”

A linha temporal de eventos se desenvolve de forma não linear, alternando constantemente entre passado e presente, sendo Jimmy o elo dos Filhos de Crake e do leitor com os principais pontos da trama. O texto de Atwood é mais forte quando assume a função de descrever o terreno melancólico e desolador do livro, com representações realistas e detalhadas de todos os escombros, a poeira ou a vegetação. A construção de mundo, com ambiente e tom, é mais que competente. Mas com cada regresso aos momentos onde os personagens precisam se destacar fica visível a maior fraqueza na estrutura narrativa da autora.

Jimmy tem poucas características realmente envolventes, indo de piadas autodepreciativas para memórias envolvendo sexo descartável. A obra dedica algumas páginas para sua infância e instâncias onde uma avaliação pessoal por parte dele poderia ter sido melhor explorada. Os seus amigos, Oryx e Crake, são dois extremos. Oryx passa a maior parte da história como um conceito duvidoso, o que compromete as suas origens (se é que são mesmo suas); Crake é um personagem mais intrigante, com uma filosofia de vida (e profissional) intimidadora para Jimmy, mas estranhamente atraente para quem lê. Quanto aos Filhos de Crake, temos uma comunidade investida em todos os conceitos e desculpas mirabolantes que o Homem das Neves dá para instruir sentido em sua própria narrativa. Não há malícia neles, apenas a vontade de aprender mais sobre o mundo anterior.

Oryx e Crake é a previsão de um possível futuro, um assustadoramente possível, o que faz deste livro um comentário pertinente ao abuso de um poder que talvez devesse ser possuído por ninguém. Atwood tem uma voz incontestável na ficção científica, principalmente por sua habilidade de imaginar premissas estimulantes como esta, ainda que aqui ela divida algumas opiniões sobre a forma como seus personagens são executados.

“É o rígido apego à rotina diária que ajuda a manter a boa disposição e a preservar a sanidade”

Capa Oryx e Crake


Oryx e Crake (Livro 1 da Série MaddAddão), de Margaret Atwood

Editora Rocco, 2018

352 Páginas

Tradução: Léa Viveiros de Castro

Compre o Livro: https://amzn.to/2WfC9kV

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Cinema Literatura

A Grandiosidade de “Jurassic Park: O Parque dos Dinossauros” (1993)

“A vida encontra um meio”.

Dirigido por um Spielberg já consolidado por conta de longas como E.T.Tubarão e Indiana JonesJurassic Park surpreende qualquer um que estivesse considerando uma perda de fôlego do diretor na época. Na verdade, é mais um atestado de sua enorme criatividade e competência por trás das câmeras, o que fica ainda mais evidente quando lembramos que no mesmo ano tivemos A Lista de Schindler, o primeiro passo de Spielberg em trabalhos mais maduros, mas não menos premiados e aclamados pelo público e crítica. Pessoalmente, considero Jurassic Park seu maior feito, e em uma filmografia tão diversa e adorada quanto a dele, isso é dizer bastante.

Baseado na obra literária homônima de Michael Chichton, o filme é um daqueles raros casos onde a adaptação é considerada melhor que o original. Mas também, com tudo que o longa tem, fica fácil pensar assim. A história tem uma premissa bem simples e uma narrativa objetiva, mas cheia de elementos únicos e tão bem aproveitados, que retornar ao filme é sempre uma experiência satisfatória. E eu preciso dizer que a maior parte se mantém muito bem, algumas bem até demais.

Seguimos um grupo de pesquisadores e cientistas em uma visita guiada e financiada por um magnata com a promessa de ter conseguido realizar um dos maiores feitos da humanidade: trazer de volta a vida animal dominante do período jurássico. A dupla de paleontólogos, Grant e Ellie, está obviamente ansiosa para ver tudo com seus próprios olhos. Com eles, está Malcolm, um matemático fascinado pela teoria do caos, e o mais preocupado com os riscos que essa descoberta pode trazer.

E aí já encontramos o primeiro grande triunfo do filme. O que fez Jurassic Park tão bom, e talvez o que faltou nas continuações (que nunca chegaram perto de se igualar ao original), são as interações entre os personagens. Spielberg é conhecido por criar figuras e construí-las com carisma e charme suficiente para sustentar a maior porção do filme apenas com bons diálogos. Essas conversas entre os cientistas antes mesmo de chegarem ao parque, já são envolventes e acredito ser a maior força desse filme, ao lado de toda a aventura e aquela sensação de maravilhamento — nossa e dos personagens — que traz um coração e alma impossível de replicar.

Esq. para direira: Martin Ferrero, Jeff Goldblum, Richard Attenborough, Laura Dern e Sam Neill.
Esq. para direira: Martin Ferrero, Jeff Goldblum, Richard Attenborough, Laura Dern e Sam Neill.

O elenco é impecável. Richard Attenborough é o magnata com sorriso acolhedor e entusiasmo de sobra, mesmo quando não merece nossa admiração, fica difícil ficar bravo com ele. A mesma coisa vale para Jeff Goldblum, que está interpretando ele mesmo (nada de novo aí) no papel de Malcolm, mas com uma dose extra de personalidade e confiança. Ele serve como a personificação de tudo que é legal nesse mundo, mesmo quando fica impossibilitado de entrar em ação por um bom tempo.

A adição de duas crianças, Tim e Lex, interpretados por Joseph Mazzello e Ariana Richards, respectivamente, não corre o risco de cair na armadilha de tantos filmes que vieram depois. Geralmente, os personagens infantis servem como um obstáculo para a jornada de alguém ou só um rosto fofo para alívio cômico, mas aqui eles tem um propósito narrativo ligado diretamente ao arco dramático de Grant e sua incerteza em criar uma família. Ademais, a dupla é divertida, inteligente e ajuda na missão.

Em uma das cenas principais, Grant (Sam Neill) começa a chorar e fica sem reação ao confirmar que os dinossauros se comportam do jeito que ele sempre imaginou, enquanto isso, Ellie (Laura Dern) o consola e vê um momento de vulnerabilidade no companheiro, que estava sendo o mais cético até o momento. A decisão de manter a câmera no rosto dos atores e em suas reações por mais tempo do que nos próprios dinossauros é uma das mais inteligentes de Spielberg. E isso não é para fugir de algum tipo de inconsistência nos efeitos especiais, porque esses continuam incríveis até hoje.

Não temos tantos dinossauros em tela quanto nos filmes seguintes da franquia, o que contribui para meu argumento anterior sobre eles não serem o motivo desse filme ser tão bom, ou pelo menos não serem o motivo principal. Mas já que estamos falando deles, aí vai mais uma vitória do filme: os efeitos práticos.

Jurrasic Park

O uso de animatrônicos para representar as criaturas acaba sendo a melhor saída. A técnica envelhece bem e não sofre tanto quanto o CGI, que torna-se obsoleto rapidamente se não for bem utilizado. A textura fica estranha sem um tratamento meticuloso do visual e um estudo da fisiologia animal do que está sendo representado com os “bonecos”. Felizmente, Jurassic Park não sofre disso. O triceratope doente encontrado pelos personagens é expressivo e realista, e quando o Dr. Grant o abraça, o mecanismo reproduz a respiração fraca do animal — uma particularidade que faz a diferença no resultado final.

Não que as partes em CGI sejam ruins. Algumas sequencias envolvendo modelagem digital para representar as imagens da tela de computador dos técnicos do parque talvez necessitem de uma atualização, mas outras, como o vídeo ensinando o funcionamento do DNA através de uma animação, tem um charme próprio. Claro que o destaque vai para as interações entre os dinossauros, principalmente em uma cena com a dupla de velociraptors e o T-Rex, que rende a minha composição favorita do filme e uma das melhores que já vi no cinema (não coloquei em destaque na matéria à toa).

Horror é um componente presente nas aventuras de Spielberg. Para ele, não importa se o tom do filme é leve e divertido, um susto aqui e ali é bem-vindo. Os dinossauros impressionam e encantam quem vê, você quer chegar perto e descobrir a sensação de encostar em um, mas são aterrorizantes ao mesmo tempo, feitos para criar a tensão constante depois que as coisas começam a dar errado no parque e as criaturas estão livres para devorar e pisotear quem quiserem.

O terceiro enorme diferencial (“triunfo”, para ser consistente) é a música de John Williams. O compositor é um dos mais aclamados da indústria cinematográfica e, assim como Spielberg, confirma novamente seu nome como um dos maiores que já existiu. Sua orquestra, conhecida pela harmonia que traz a magnitude capaz de celebrar o espetáculo visual do parque e suas criaturas.

Laura Dern, meu amor ❤
Laura Dern, meu amor ❤

Poucos filmes carregam a grandiosidade encontrada em Jurassic Park. O enredo é simples, mas você encontra algo novo em cada canto, os diálogos são memoráveis, a ação é mais ainda, o elenco é único, a música é perfeita e como já disseram uma vez: “Se você não viu Jurassic Park, você não viu coisa alguma”. *

*Jurassic Park é mencionado durante uma conversa no filme Swiss Army Man (2016).

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Guerra do Velho, de John Scalzi | Resenha

Eu sou do time que adora o filme Tropas Estelares (1997), de Paul Verhoeven. Completamente exagerado e ridículo em abordagem, e com aquela crítica escancarada sobre a abordagem militar como pano de fundo. O filme é bem diferente do material original que rendeu a adaptação cinematográfica, o livro homônimo de Robert A. Heinlein, que trata tudo com mais seriedade. Com isso em mente, dá pra ver que Guerra do Velho, de John Scalzi, é uma obra literária cheia de paralelos com a escrita de Heinlein, mas com um tom que lembra muito mais a adaptação cinematográfica de Verhoeven.

Em um futuro onde a humanidade conquistou o espaço com suas naves e viagens interestelares, tudo que precisam conquistar agora é território, ou seja, planetas que já são habitados por raças alienígenas. Temos a tecnologia, temos a vontade e a verba, mas precisamos de soldados, e não é qualquer soldado. Para se alistar você deve ter no mínimo 75 anos. Isso vem como uma boa notícia para John Perry, que não tem mais a companhia de sua esposa, então decide comemorar seu aniversário se alistando.

“No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: visitei o túmulo da minha esposa, depois entrei para o exército. 
Visitar o túmulo de Kathy foi a menos dramática das duas”.

Essa é minha primeira leitura de qualquer obra de Scalzi, e pelo que vi, foi seu primeiro romance publicado. Isso pode explicar um pouco alguns problemas do livro que são justificados pelo “amadorismo” do autor. O excesso de conveniências ou situações com pouco peso dramático e honestidade são um incômodo, mas pequenos comparados ao que o livro tem de bom em sua proposta. Deixando logo o negativo no ar, posso seguir para o que faz de Guerra do Velho um bom trabalho.

De começo, destaco o protagonista. Carismático e complacente, John Perry é o principal motivo para esse primeiro livro funcionar do início ao fim. Independente da quantidade de missões que recebe e a forma simplista com as quais alguns conflitos são resolvidos, não se deve desconsiderar o personagem, que tem atitude sem soar arrogante e é engraçado sem ser ácido demais. Isso me leva a outro ponto positivo da obra, os diálogos ágeis e ótimas quebras de expectativa. Logo na primeira interação do livro, entre Perry e a recepcionista das Forças Coloniais de Defesa (FCD), temos uma amostra do que está por vir, em uma situação cheia de tiradas rápidas, desentendimentos e piadas bem construídas.

John Scalzi

Não falta ação para Perry e os outros recrutas, o livro é uma mina de sangue espirrando para todos os lados e criaturas com lâminas nos braços. O texto de Scalzi não é minucioso como muitos do gênero, preocupados em desenvolver com precisão cada elemento do ambiente, por exemplo, mas ele detalha o suficiente para situar o leitor e deixar claro quem é quem, onde estão e como estão. Um problema nessa abordagem mais objetiva do autor surge quando entram as já mencionadas conveniências ou quando características do próprio protagonista parecem não possuir relevância narrativa, como o fato dele ter sido um escritor antes de se alistar. Traços de personalidade são essenciais na construção de um personagem, mas criá-los sem que isso seja aproveitado pode ser um desperdício de oportunidade, e acontece aqui em alguns momentos.

A trama é bem intrigante, é o típico livro onde fica difícil largar um capítulo no meio sem saber no que vai dar. Reviravoltas são esperadas, e felizmente aqui são todas úteis para a narrativa, não apenas um jeito de surpreender o leitor. Uma delas pode dividir opiniões de primeira, mas quando você descobre para onde as coisas estão indo e o debate filosófico que isso rende, dando mais peso dramático, talvez considere uma boa decisão.

Guerra do Velho é um dos lançamentos mais divertidos da editora Aleph, responsável também por um ótimo acabamento gráfico e uma das melhores artes de capa que eu já vi. Scalzi entrega uma obra leve e sem muita pretensão, mais interessada em criar um laço forte entre o leitor e o protagonista. É uma estratégia sensata, mas não se deve esquecer que no meio de todos os diálogos bem pensados e personagens carismáticos, precisamos de um argumento mais consistente e menos conveniente, com riscos e drama mais realistas, sem que afete o já acertado tom bem humorado e absurdo da obra.

Ainda assim, vale a pena a leitura, e estou doido para ler a continuação, AsBrigadas Fantasma.

Capa Guerra do Velho

“Guerra do Velho”
de John Scalzi

Editora Aleph, 2016

368 páginas

Tradução de Petê Rissatti

Capa de Pedro Inoue

Ilustração de Sparth

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Cinema Séries Literatura Quadrinhos

Os finalistas do Hugo Awards 2019

No começo de Abril tivemos os indicados deste ano ao Hugo Awards, uma das principais premiações de ficção científica e fantasia. Os finalistas foram indicados pelos membros da World Science Fiction Society, responsável pela Worldcon, uma das convenções anuais mais aguardadas pelos fãs do gênero. E dando uma olhada nas categorias, podemos ver um aumento no número de mulheres e minorias, principalmente por conta de um mercado com mais opções e um espaço relativamente maior para artistas negligenciados há muito tempo. Vou listar aqui de acordo com o site Tor.com. e comentar naqueles que eu já li/assisti.

Melhor Romance

  • The Calculating Stars, by Mary Robinette Kowal (Tor)
  • Record of a Spaceborn Few, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)
  • Revenant Gun, by Yoon Ha Lee (Solaris)
  • Space Opera, by Catherynne M. Valente (Saga)
  • Spinning Silver, by Naomi Novik (Del Rey / Macmillan)
  • Trail of Lightning, by Rebecca Roanhorse (Saga)

Comentários: Eu estou bem atrasado nas minhas leituras esse ano, mas ouvi apenas coisas boas de Trail of Lightning The Calculating Stars, provavelmente os que tem a maior chance de ganhar por conta de todos os prêmios no qual foram indicados recentemente.

Melhor Novela

  • Artificial Condition, by Martha Wells (Tor.com Publishing)
  • Beneath the Sugar Sky, by Seanan McGuire (Tor.com Publishing)
  • Binti: The Night Masquerade, by Nnedi Okorafor (Tor.com Publishing)
  • The Black God’s Drums, by P. Djèlí Clark (Tor.com Publishing)
  • Gods, Monsters, and the Lucky Peach, by Kelly Robson (Tor.com Publishing)
  • The Tea Master and the Detective, by Aliette de Bodard (Subterranean Press / JABberwocky Literary Agency)

Comentários: Finalmente peguei a série Binti no meu Kindle e posso me atualizar, então você provavelmente vai ler sobre ela por aqui no futuro. Gods, Monsters, and the Lucky Peach está sendo bastante aclamado e tem enorme chance de levar.

Melhor Noveleta

  • If at First You Don’t Succeed, Try, Try Again,” by Zen Cho (B&N Sci-Fi and Fantasy Blog, 29 November 2018)
  • The Last Banquet of Temporal Confections,” by Tina Connolly (Tor.com, 11 July 2018)
  • Nine Last Days on Planet Earth,” by Daryl Gregory (Tor.com, 19 September 2018)
  • “The Only Harmless Great Thing”, by Brooke Bolander (Tor.com Publishing)
  • The Thing About Ghost Stories,” by Naomi Kritzer (Uncanny Magazine 25, November- December 2018)
  • When We Were Starless,” by Simone Heller (Clarkesworld 145, October 2018)

ComentáriosThe Last Banquet of Temporal Confections é uma noveleta bem intrigante, com uma narrativa envolvente. Esse foi o único da lista que li, mas os próximos já estão aqui separados para poder avaliar antes da premiação. O mais legal dessa categoria é que alguns indicados são bem fáceis de achar para ler gratuitamente.

Melhor Conto

  • The Court Magician,” by Sarah Pinsker (Lightspeed, January 2018)
  • The Rose MacGregor Drinking and Admiration Society,” by T. Kingfisher (Uncanny Magazine 25, November-December 2018)
  • The Secret Lives of the Nine Negro Teeth of George Washington,” by P. Djèlí Clark (Fireside Magazine, February 2018)
  • STET,” by Sarah Gailey (Fireside Magazine, October 2018)
  • The Tale of the Three Beautiful Raptor Sisters, and the Prince Who Was Made of Meat,” by Brooke Bolander (Uncanny Magazine 23, July-August 2018)
  • A Witch’s Guide to Escape: A Practical Compendium of Portal Fantasies,” by Alix E. Harrow (Apex Magazine, February 2018)

Melhor Série

  • The Centenal Cycle, by Malka Older (Tor.com Publishing)
  • The Laundry Files, by Charles Stross (most recently Tor.com Publishing/Orbit)
  • Machineries of Empire, by Yoon Ha Lee (Solaris)
  • The October DayeSeries, by Seanan McGuire (most recently DAW)
  • The Universe of Xuya, by Aliette de Bodard (most recently Subterranean Press)
  • Wayfarers, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)

Melhor Artigo / Ensaio

  • Archive of Our Own, a project of the Organization for Transformative Works
  • Astounding: John W. Campbell, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, L. Ron Hubbard, and the Golden Age of Science Fiction, by Alec Nevala-Lee (Dey Street Books)
  • The Hobbit Duology(documentary in three parts), written and edited by Lindsay Ellis and Angelina Meehan (YouTube)
  • An Informal History of the Hugos: A Personal Look Back at the Hugo Awards, 1953- 2000, by Jo Walton (Tor)
  • www.mexicanxinitiative.com:The Mexicanx Initiative Experience at Worldcon 76(Julia Rios, Libia Brenda, Pablo Defendini, John Picacio)
  • Ursula K. Le Guin: Conversations on Writing, by Ursula K. Le Guin with David Naimon (Tin House Books)

Comentários: Esse é complicado. Por mais que eu tenha adorado o vídeo-ensaio de Lindsay Ellis sobre a produção da trilogia Hobbit, existe aí a presença de um artigo sobre o próprio Hugo, o que rende aquela chance por ter ligação com o evento; e de outro lado, também temos um documento de Ursula K. Le Guin, que faleceu no último ano. Então, não dá pra saber quem vence.

Melhor Narrativa Gráfica

  • Abbott, written by Saladin Ahmed, art by Sami Kivelä, colours by Jason Wordie, letters by Jim Campbell (BOOM! Studios)
  • Black Panther: Long Live the King, written by Nnedi Okorafor and Aaron Covington, art by André Lima Araújo, Mario Del Pennino and Tana Ford (Marvel)
  • Monstress, Volume 3: Haven, written by Marjorie Liu, art by Sana Takeda (Image Comics)
  • On a Sunbeam, by Tillie Walden (First Second)
  • Paper Girls, Volume 4, written by Brian K. Vaughan, art by Cliff Chiang, colours by Matt Wilson, letters by Jared K. Fletcher (Image Comics)
  • Saga, Volume 9, written by Brian K. Vaughan, art by Fiona Staples (Image Comics)

Comentários: Eu AMO Saga, mas admito estar um pouco atrasado na leitura. Paper Girls e Monstress são duas ótimas obras criativas que merecem seu espaço aqui, mas se tivesse que escolher entre um dos dois, seria facilmente a belíssima Monstress. Por mais que Black Panther: Long Live the Kingseja escrito por Nnedi Okorafor, o que é um destaque, não acho que tenha impressionado tanto quando os outros mencionados.

Melhor Dramatização, Longa (Melhor Filme)

  • Aniquilação, directed and written for the screen by Alex Garland, based on the novel by Jeff VanderMeer (Paramount Pictures / Skydance)
  • Vingadores: Guerra Infinita, screenplay by Christopher Markus and Stephen McFeely, directed by Anthony Russo and Joe Russo (Marvel Studios)
  • Pantera Negra, written by Ryan Coogler and Joe Robert Cole, directed by Ryan Coogler (Marvel Studios)
  • Um Lugar Silencioso, screenplay by Scott Beck, John Krasinski and Bryan Woods, directed by John Krasinski (Platinum Dunes / Sunday Night)
  • Sorry to Bother You, written and directed by Boots Riley (Annapurna Pictures)
  • Homem-Aranha no Aranhaverso, screenplay by Phil Lord and Rodney Rothman, directed by Bob Persichetti, Peter Ramsey and Rodney Rothman (Sony)

Comentários: Algumas ótimas escolhas. Pantera Negra foi um sucesso e merece destaque pelo que conseguiu fazer com uma narrativa menor dentro de um universo compartilhado tão grande; Um Lugar Silencioso com certeza impressionou muita gente por termos John Krasinski se provando um bom diretor e promessa por trás das câmeras; Aniquilação é a adaptação de Alex Garland de um livro bastante adorado, e além disso o filme teve a tarefa de ser o sucessor do pequeno, mas bem construído, Ex-Machina. Todos são bons, mas não se nega o brilhantismo de Sorry to Bother You e Homem-Aranha no Aranhaverso. Os mais impressionantes da lista por conta da enorme criatividade na narrativa visual e uma abordagem completamente diferente do que estamos acostumados. Se qualquer um dos dois levar, posso morrer feliz.

Eu já falei sobre alguns dos indicados na minha matéria sobre os Melhores e Piores Filmes Sci-fi de 2018, então você pode ir lá dar uma olhada também.

Melhor Dramatização, Curta (Melhor Episódio de Série)

  • The Expanse: “Abaddon’s Gate,” written by Daniel Abraham, Ty Franck and Naren Shankar, directed by Simon Cellan Jones (Penguin in a Parka / Alcon Entertainment)
  • Doctor Who: “Demons of the Punjab,” written by Vinay Patel, directed by Jamie Childs (BBC)
  • Dirty Computer, written by Janelle Monáe, directed by Andrew Donoho and Chuck Lightning (Wondaland Arts Society / Bad Boy Records / Atlantic Records)
  • The Good Place: “Janet(s),” written by Josh Siegal & Dylan Morgan, directed by Morgan Sackett (NBC)
  • The Good Place: “Jeremy Bearimy,” written by Megan Amram, directed by Trent O’Donnell (NBC)
  • Doctor Who: “Rosa,” written by Malorie Blackman and Chris Chibnall, directed by Mark Tonderai (BBC)

Comentários: The Good Place tem o costume de aparecer nas premiações com mais de uma indicação, e dessa vez não foi diferente. O problema é que esta provavelmente foi a temporada mais morna para o público, diminuindo as chances de levarem esse ano. Dirty Computer é o único da lista que não é um episódio de série, mas entra no formato de dramatização, por ser um grande álbum conceito da cantora Janelle Manáe, ambientado em uma sociedade futurista. Ele está disponível do Prime Video e pode ser assistido, por enquanto. Eu assisti e achei interessante, mas nada que seja melhor que os outros indicados. The Expanse é uma maravilha de série e eu vivo falando bem dela para todos, então nem preciso dizer qual o meu favorito da lista, mas não podemos negar que a última temporada de Doctor Who teve alguns episódios marcantes para o público, e eles estão indicados aqui, com uma enorme chance de levar, principalmente levando em conta todas as polêmicas envolvendo boicote por termos uma protagonista feminina pela primeira vez na série. Quando esse povo vai aprender?

Melhor Fanzine

  • Galactic Journey, founder Gideon Marcus, editor Janice Marcus
  • Journey Planet, edited by Team Journey Planet
  • Lady Business, editors Ira, Jodie, KJ, Renay & Susan
  • nerds of a feather, flock together, editors Joe Sherry, 
    Vance Kotrla and The G
  • Quick Sip Reviews, editor Charles Payseur
  • Rocket Stack Rank, editors Greg Hullender and Eric Wong

Melhor Livro de Arte (Conceito Visual, Design…)

  • The Books of Earthsea: The Complete Illustrated Edition, illustrated by Charles Vess, written by Ursula K. Le Guin (Saga Press /Gollancz)
  • Daydreamer’s Journey: The Art of Julie Dillon, by Julie Dillon (self-published)
  • Dungeons & Dragons Art & Arcana: A Visual History, by Michael Witwer, Kyle Newman, Jon Peterson, Sam Witwer (Ten Speed Press)
  • Spectrum 25: The Best in Contemporary Fantastic Art, ed. John Fleskes (Flesk Publications)
  • Spider-Man: Into the Spider-Verse — The Art of the Movie, by Ramin Zahed (Titan Books)
  • Tolkien: Maker of Middle-earth, ed. Catherine McIlwaine (Bodleian Library)

Comentários: Eu já dei uma olhada em alguns desses, mas apenas online. Por mais que The Books of Earthsea, sobre Terramar, seja bem bonito, e Tolkien: Maker of Middle Earth fale com meu lado fã do autor, não tem como eu querer um desse em mãos mais do que o de Aranhaverso. Até hoje fico louco com os visuais e impressionando com cada detalhe, então o livro com toda a parte de conceito visual do filme é minha escolha óbvia.

Prêmio John W. Campbell Award para Melhor Escritor

  • Katherine Arden (segundo ano elegível)
  • S.A. Chakraborty (segundo ano elegível)
  • R.F. Kuang (primeiro ano elegível)
  • Jeannette Ng (segundo ano elegível)
  • Vina Jie-Min Prasad (segundo ano elegível)
  • Rivers Solomon (segundo ano elegível)

Lodestar Award para Melhor Livro YA (Young-Adult)

  • The Belles, by Dhonielle Clayton (Freeform / Gollancz)
  • Children of Blood and Bone, by Tomi Adeyemi (Henry Holt / Macmillan Children’s Books)
  • The Cruel Prince, by Holly Black (Little, Brown / Hot Key Books)
  • Dread Nation, by Justina Ireland (Balzer + Bray)
  • The Invasion, by Peadar O’Guilin (David Fickling Books / Scholastic)
  • Tess of the Road, by Rachel Hartman (Random House / Penguin Teen)

ComentáriosChildren of Blood and Bone foi lançado no Brasil como “Filhos de Sangue e Osso”, e é um dos livros mais populares da lista. Eu não cheguei a ler qualquer um dos indicados nesta categoria, mas alguns parecem bem interessantes, como The Invasion e Tess of the Road.

Este ano o Hugo Awards tem uma lista de indicados bastante diverso. É interessante ver a quantidade de mulheres nas principais categorias, o que mostra como a premiação segue um caminho mais aberto para representações e pontos de vista diferentes.

Assim que os vencedores sairem, voltamos com a lista. Enquanto isso, hora de atualizar as leituras.

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Matadouro-Cinco | “É assim mesmo”

“Tudo isso aconteceu, ou quase. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras”

Kurt Vonnegut é um autor que entende a comédia como poucos, com ritmo e sutileza suficiente para fazer cada nova leitura uma experiência com novas sensações. Ainda que seu tratamento siga, geralmente, um ângulo mais descontraído e fácil de digerir pelo público, Vonnegut não evita tecer seus comentários ácidos sobre conceitos como política e filosofia. Isso porque o autor teve um encontro com o pior que a humanidade pode oferecer, tendo sobrevivido ao terror da Segunda Guerra Mundial. Mas não foi só isso.

“Billy Pilgrim ficou solto no tempo”. Assim somos apresentados ao personagem principal, sem rodeios. Pilgrim é um veterano de guerra com bastante história para contar, mesmo que algumas delas possam parecer mais absurdas do que o normal. Ser abduzido por uma raça alienígena e fazer parte de um zoológico humano não chega perto do horror que é sua experiência como soldado durante a Segunda Guerra Mundial. Pilgrim, o coitado, não consegue convencer as pessoas que tem a capacidade de visitar diversos momentos de sua vida instantaneamente e aleatoriamente. Agora ele pode estar sentado em um sofá assistindo as notícias, mas num piscar de olhos se encontra no meio do campo de batalha, sendo arrastado e humilhado por seus companheiros, cansados de sua atitude. Ainda que seja uma obra sobre guerra, Matadouro-Cinco não se importa com representações de grandes batalhas e segue uma premissa que utiliza mais a comédia e a ficção científica para dar seu relato incrivelmente pessoal sobre o que o autor passou. Vamos falar um pouco sobre a relação de Vonnegut com a guerra e as decisões narrativas tomadas com esse livro.

Os Fantasmas de Dresden

Como Billy Pilgrim, Kurt Vonnegut serviu na Segunda Guerra e acabou retido em Dresden, uma pequena cidade barroca na Alemanha, constantemente descrita como um ponto turístico cheio de beleza, comparada ao que o mundo tinha de mais charmoso e artístico, uma “Florença do Elba”. Dresden nunca foi uma cidade militar, sendo até aproveitada como um lugar independente dos conflitos da época. Foi por este motivo que ninguém estava pronto (mesmo em tempos como aqueles) para o que estava por vir: um bombardeio efetuado pelos próprios aliados que lançou toneladas de dispositivos incendiários na capital. O desastre foi uma das maiores atrocidades do período, deixando um número de baixas perturbador, principalmente quando lembramos que dos milhares, a maioria era constituída de civis. “Dresden era uma imensa labareda. A labareda devorava tudo o que fosse orgânico, tudo o que pegasse fogo” (p. 237).

A catástrofe esteve presente nas obras de Vonnegut, mas apenas de forma alegórica, como em Cama de Gato, onde atribui à figura do cientista Felix Hoenikker a responsabilidade por ter desenvolvido a bomba atômica. No caso, o livro dá destaque para o ataque de Hiroshima, o que levanta a questão: por que não abordar Dresden? O motivo é simples, era um tópico doloroso demais para ser revisitado, mas que precisa ser contado. Esse dilema é representado nas primeiras páginas de Matadouro-Cinco, onde o autor se posiciona como narrador do capítulo inicial para fazer uma brincadeira de metalinguagem, confessando suas preocupações em escrever um livro sobre algo tão íntimo.

Matadouro-Cinco | “É assim mesmo”

É um começo inusitado, somos lembrados pelo próprio autor que tudo o que estamos prestes a presenciar é uma história saindo de sua máquina de escrever. Vonnegut arrisca perder uma conexão com o público, mas é neste mesmo instante que ficamos ainda mais intrigados com o rumo da jornada de Billy Pilgrim, seu protagonista, e nosso interesse apenas aumenta em ver como um autor tenta se desligar de sua própria narrativa, principalmente uma que se tornou tão essencial para seu desenvolvimento pessoal. Há um certo alívio em sua decisão, tanto que conclui seu relato mencionando uma tragédia bíblia, a de Sodoma e Gomorra, especificamente quando a esposa de Ló desobedece uma orientação divina e olha para trás, para toda a destruição, fazendo com que a mulher se transforme em uma estátua de sal.

Mas ela olhou. E eu a amo por isso, porque foi um ato muito humano. 
Aí ela virou uma estátua de sal. É assim mesmo. 
As pessoas não devem olhar para trás. Eu garanto que não vou fazer mais isso. Já terminei meu livro sobre a guerra. O próximo […] vai ser divertido. Este é um fracasso, e tinha mesmo de ser, pois foi escrito por uma estátua de sal.

Narrativa e Referências

Além da metalinguagem que atravessa a obra, tendo pequenas menções do autor dizendo onde estava durante o evento (“aquele ali no banco de trás, era eu”), Vonnegut emprega figuras de linguagem o tempo todo, a mais recorrente sendo a repetição de adjetivos para descrever a situação deplorável de algum personagem (“coitado”) ou frases que servem para acentuar o absurdo de alguns acontecimentos, talvez fazendo alusão à “regra não escrita” de como funciona a estrutura de uma piada, podendo ser repetida no máximo três vezes até perder a graça.

Em Matadouro-Cinco temos a frase mais conhecida do autor, repetida em demasia como uma forma de luto por alguém (ou algo) que teve um fim trágico: “É assim mesmo” (no original, “so it goes”). Isso é repetido em todos os capítulos; na verdade, em quase todas as páginas. No começo parece uma maneira leve de abordar as mortes e o caos, mas logo somos tomados pelo sentimento desconfortável de estarmos ficando cada vez mais acostumados com uma frase que representa algo tão deprimente. É o jeito inteligente de utilizar a comédia, como uma ferramenta de auto-crítica. O texto simples e limpo de Vonnegut, ao lado das ilustrações, atesta seu talento para escrever algo impactante com uma abordagem menos carregada nas palavras, deixando esse trabalho para a própria trama.

Deus, me conceda a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as coisas que posso, e sabedoria para sempre reconhecer a diferença.

Há referências, é claro. Vonnegut tem um tipo de universo compartilhado em sua biblioteca. Neste livro encontramos figuras conhecidas de quem está acostumado ao autor, como um membro da família Rumfoord, importantíssima para a trama de Sereias de Titã; temos também o escritor de ficção científica Kilgore Trout, de Café da Manhã dos Campeões (uma obra posterior, mas com o mesmo personagem); e Eliot Rosewater, que empresta seu nome para outro livro de Vonnegut: God Bless You, Mr. Rosewater (ainda sem tradução no Brasil).

“pu-ti-uít?”*

Matadouro-Cinco é um livro denso em seus temas, mas leve na escrita. Considerada por muitos como uma obra-prima da ficção científica cômica (e pessoalmente, a melhor obra do autor que li até o momento), este é um exercício de memória que tenta soar despretensioso, mas não consegue esconder a indignação com tudo que aconteceu. Vonnegut não gosta da guerra, não quer envolvimento com ela, sequer gostaria de ler sobre ela. Mas ele precisa escrever, ele esteve lá.

Nada de inteligente pode ser dito sobre um massacre (p. 37)

Toda a viagem espacial e a abdução pelos tralmafadorianos (a raça alienígena que Billy diz ter encontrado) abre a mente do protagonista da obra, o ensina sobre a nossa própria concepção de tempo e como lidar com o luto, percebendo que “quando uma pessoa morre […], ela está bem viva no passado. Todos os momentos, passado, presente e futuro, sempre existiram, sempre existirão”. Pode ser apenas a maneira estranha que Billy escolheu para sobreviver tanto tempo com as memórias de guerra, mas ele se sente bem assim. Mais uma vez Vonnegut questiona nossa liberdade, assim como fez em obras anteriores, e nos deixa sozinhos com perguntas que talvez ninguém consiga responder, nem mesmo no fim da humanidade.

É assim mesmo.

*pu-ti-uít?: Som dos pássaros. Os únicos que tem algo para falar sobre a guerra.

Capa Matadouro Cinco

Matadouro-Cinco ou A Cruzada das Crianças: Uma Dança Compulsória Com a Morte(Slaughterhouse-Five)
de Kurt Vonnegut

Editora Intrínseca, 2019

Capa de Túlio Cerquize

288 páginas

Tradução de Daniel Pellizzari

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Literatura

Guerra Sem Fim | Marcado pelo campo de batalha

Uma das características mais representativas da ficção científica é a capacidade do gênero em apresentar uma crítica de maneira única, se beneficiando de metáforas para construir a narrativa. Joe Haldeman decidiu exorcizar seus demônios da Guerra do Vietnã em sua obra The Forever War, traduzida para o Brasil como Guerra Sem Fim. No livro, Haldeman questiona a importância da guerra, suas contradições, a perda e a solidão constante e a maneira como somos condicionados a participar de atos inumanos.

William Mandella (quase um anagrama para Haldeman) é um recruta convocado para a batalha. Ele não se sente confortável com aquilo, mas decide aceitar toda a experiência, já que não há muita opção. Somos situados em 1997, e a humanidade consegue viajar pelo tempo e espaço através do que chamam de salto colapsar, que são como pontos de acesso servindo como portais para buracos de minhoca. Os soldados tem a missão de enfrentar os taurianos (nome que receberam por conta da constelação de Taurus), uma raça alienígena que sequer conhecem, mas através de estímulos mentais introduzidos pelo próprio governo conseguem matar várias criaturas, mesmo que elas não tenham o mesmo poder de fogo para responder. É uma carnificina gratuita, a raça humana mostra a que veio.

A obra é dividida nos quatro momentos mais importantes da carreira de Mandella, passando por todas as suas patentes. Ainda assim, a estrutura narrativa é linear e cada uma dessas partes possui uma abordagem diferente dos problemas enfrentados por muitos veteranos da Guerra Fria. Tudo começa com o treinamento dos recrutas, em um texto de Haldeman totalmente focado na ação. O autor toma como prioridade, assim como um soldado, o reconhecimento de terreno e todos os elementos do ambiente, além de nos ensinar sobre o equipamento e as táticas marine necessárias para “matar um homem de maneira furtiva”. Este segmento do livro tem todos os atributos que fazem dele uma excelente reprodução da sensação de estar no meio do campo de batalha, mesmo que sacrifique um pouco o desenvolvimento dos personagens. Aqui Guerra Sem Fim tem comparações óbvias com outro sci-fimilitar, o clássico de Robert A. Heinlein, Tropas Estelares. Felizmente, Haldeman não cai nas mesmas armadilhas de ter sua obra confundida com propaganda (não me entenda errado, Tropas Estelares é ótimo, mas tem seus defeitos) e logo assume a responsabilidade se espelhando em Mandella, um jovem estudante de física (assim como o autor) indignado com o caminho tomado pela humanidade.

O que teria acontecido se tivéssemos nos sentado e tentado nos comunicar? (p. 111)

Chegando na segunda parte, Haldeman toma seu tempo e foca nas relações do protagonista. Por conta da relatividade na física das viagens interestelares, há uma dilatação temporal que afeta os soldados. Na sua primeira visita de volta para Terra, Mandella nota que uma década se passou durante sua ausência, mesmo que para ele tenha sido menos da metade disso. Ele visita sua mãe e passa mais tempo com Marigay, uma companheira de campo. Para sua infelicidade tudo está diferente: o crime aumentou, a saúde é precária, houve uma “Guerra do Racionamento”, e uma nova forma de controle da natalidade o deixa confuso. É como se Mandella fosse o alienígena em sua própria terra.

Fica evidente como o autor tem uma facilidade para manter uma consistência narrativa, isso sem contar a habilidade para implementar termos técnicos de forma orgânica, muitos baseados em táticas militares. Há uma sequencia gráfica e realista envolvendo uma contagem regressiva, logo na primeira parte da obra, que eu não duvido ter sido influenciada diretamente por algum acontecimento dos tempos de guerra do autor. Cada baixa da equipe é sentida com um peso e uma dolorosa sinceridade. E talvez o mais impressionante seja a coragem de Haldeman, ainda no auge do debate sobre a guerra (o livro saiu em 1974), em criticar o comportamento dos norte-americanos no Vietnã, com toda destruição desenfreada que não se importou com as crianças e as mulheres inocentes. O primeiro encontro com os taurianos é a mais assustadora e realista tradução disso.

Soldado Mandella

A escolha de dedicar uma parte do livro na perspectiva de Mandella tentando compreender a vida na Terra é uma que nem todo autor pensa em inserir, achando que o público está interessado apenas na ação. Mas como o drama não é o forte de Haldeman, há tropeços. O retorno do protagonista tem alguns bons diálogos e construção de personagem, mas é um pouco difícil digerir a forma quase cômica na qual ele mostra o aumento da criminalidade, dando a sensação de termos um saqueador em cada esquina. No entanto, é também nesse ponto do livro que o personagem reflete sobre a morte e a trivialidade com a qual ela é tratada em campo.

No século 20, estabeleceu-se, para satisfação de todos, que “eu estava apenas seguindo ordens” era uma desculpa adequada para condutas desumanas. (p. 111)

Outra coisa que deve ser considerada, provavelmente a maior, seja a abordagem do autor sobre sexo e sexualidade. É claro que o contexto sempre deve ser levado em conta, como a mentalidade da época, então é esperado ver pensamentos do protagonista como “Porque pegamos as mais cansadas quando estamos com fogo e as mais fogosas quando estamos cansados?”. A maior questão surge mesmo quando Mandella revela seu lado homofóbico, o que felizmente é mencionado e corrigido pelo personagem aos poucos. O controle de natalidade da Terra só é possível por conta da dominância de cidadães homossexuais. É inteligente de Haldeman fazer um tratamento mais acolhedor das pessoas, o que entra em outra crítica ao jeito que o exército trata os gays, mas incomoda um pouco vê-los tendo atitudes efeminadas quase caricatas em alguns momentos. A versão brasileira lançada pela editora Aleph traz uma introdução, do próprio Haldeman, sobre isso. Ele admite não ter a tido a sutileza necessária para tocar no assunto, “Em Guerra Sem Fim, há sexo gay, é claro, mas normalmente entre mulheres ou entre homens efeminados. Minha única desculpa é que era assim que eu via o mundo, na época em que escrevi”.

Guerra Sem Fim é considerado, merecidamente, um clássico da ficção científica militar. Você encontra elementos da obra em várias mídias, seja em filmes como Interestelar Nascido Para Matar, ou até mesmo no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror. Haldeman desenvolve uma narrativa devastadora sobre manipulação e as cicatrizes da guerra. É uma leitura essencial para conhecer um dos trabalhos mais influentes do gênero e relembrar uma das maiores manchas da história.

Capa do Livro Guerra Sem Fim

Guerra Sem Fim (The Forever War)
de Joe Haldeman

Editora Aleph, 2019

Capa de Gustavo Perg

354 páginas

Tradução de Leonardo Castilhone

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Literatura

O Salmão da Dúvida | As Confissões de Douglas Adams

Douglas Adams é uma das figuras mais instigantes da ficção científica, não só pelo seu texto, mas por ter um comportamento despreocupado e honesto com os fãs e, aparentemente, a própria carreira. Tendo O Guia do Mochileiro das Galáxias como a maior referência em sci-fi cômica, é curioso saber mais sobre os bastidores da criação de Adams.

O Salmão da Dúvida é o livro póstumo do autor, que morreu aos 49 anos em 2001, e reúne várias anotações, entrevistas e manuscritos. A edição brasileira, lançada em 2014 pela editora Arqueiro, segue o modelo do original, com uma introdução feita pelo escritor Stephen Fry. A obra consiste de três partes, intituladas obviamente como A Vida, sobre algumas histórias de vida do autor; O Universo, com algumas observações divertidas do tipo que só Adams conseguia; e a conclusão com E Tudo Mais, onde fica a parte mais interessante para os fãs, com uma versão diferente do conto Young Zaphod Plays it Safe, intitulado Perfeitamente Seguro na versão traduzida, e alguns capítulos até então inéditos sobre uma possível nova aventura envolvendo o detetive holístico Dirk Gently, chamada de O Salmão da Dúvida. Adams, como sempre, ficou na duvida sobre a história e passou um tempo em conflito sobre continuar uma narrativa para Gently ou talvez transformar a nova obra em mais uma entrada no Guia. No fim, a obra ficou inacabada — o que faz do título um tipo de piada feita pelo próprio Adams.

O Salmão de Dúvidas

E outra coisa surpreendente, mas praticamente inofensiva, é como toda essa informação foi encontrada no computador do autor. Adams passou anos zombando a tecnologia e a dependência das pessoas nas máquinas, mas com o passar dos anos, assumiu uma relação saudável com o monitor e o teclado, utilizando seu Macintosh para quase tudo envolvendo escrita. Foi em seu computador que manteve os capítulos inéditos, comentários sobre sua infância e o tamanho do nariz, assim como um ensaio filosófico sobre a existência de Deus.

O livro abre com anotações de Adams para o editor e um relato sobre os tempos de escola e o impacto que os Beatles tiveram na sua infância. Há pequenas menções à Graham Chapman, o integrante do grupo de comediantes Monty Python, onde Douglas participou brevemente colaborando nos roteiros e fazendo bagunça com a equipe. Aqui aviso logo que esta não é uma biografia; O Salmão da Dúvida engloba o universo do autor do seu próprio ponto de vista, o que é ótimo mas também sofre um pouco com a ausência de contexto. Se você já não segue o trabalho do escritor, vai ficar um pouco perdido. Indico a leitura de Não Entre em Pânico, da editora Novo Século, uma biografia de Douglas Adams escrita por ninguém menos que Neil Gaiman. Ela foca bastante na criação da série Mochileiro das Galáxias, e o texto de Gaiman é tão leve que tudo pode ser lido em um dia. Também existe a biografia Wish You Were Here, de Nick Webb, mas essa ainda não tive a chance de ler.

O Salmão de Dúvidas

Voltando ao livro, Douglas faz questão de contar mais uma vez um incidente conhecido dos fãs, envolvendo um jornal e um pacote de biscoito. Felizmente, é uma piada que não perde a graça. Entre as opiniões do autor, descobrimos o que ele pensa sobre cachorros, visitas inesperadas e vídeo-games, sem contar uma lição humorada (mas SÉRIA) sobre a execução apropriada para uma excelente xícara de chá:

“Os americanos nunca conseguem entender por que os ingleses dão tanta importância ao chá porque a maioria deles NUNCA TOMOU UMA XÍCARA DE CHÁ DECENTE. Mas para dizer a verdade, a maioria dos ingleses também já não sabe preparar um bom chá e prefere beber café instantâneo barato”

É uma pena não termos a continuação da nova aventura de Dirk Gently, mas é uma alegria ler um pouco do que estava preparado, principalmente com a louca premissa envolvendo o desaparecimento de apenas metade de um gato. O conto envolvendo Zaphod não é tão divertido, mas quem sou eu para reclamar de qualquer coisa nova no universo do Guia ¯\_(ツ)_/¯

Douglas Adams pode não ter vivido o suficiente, mas é um dos maiores gênios da comédia. Suas séries literárias (Guia Dirk Gently) são algumas das mais lembradas e adoradas da ficção científica, e sua contribuição para a cultura pop e o humor é incalculável, bem maior que 42.

Capa O Salmão de Dúvidas

O Salmão da Dúvida (The Salmon of Doubt)
de Douglas Adams

Editora Arqueiro, 2014

Capa de Ana Paula Daudt Brandão

304 páginas

Tradução de Fabiano Morais

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Literatura

Kindred: Laços de Sangue | Nunca esqueça o passado

Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco (Octavia E. Butler)

Dana está de mudança para um novo apartamento com seu marido, Kevin. Mas não há tempo para descanso depois de carregar todas as caixas, porque começa a sentir o chão desaparecer e antes que perceba, está à beira de uma mata, ajoelhada, próxima de um rio, onde uma criança está se afogando. Ela salva a criança, mas logo nota que encara a ponta de uma espingarda. O susto aparentemente a traz de volta para seu apartamento, e a prova de que tudo não foi um sonho são suas roupas encharcadas. Tudo volta ao normal, mas não demora para que aconteça de novo.

A premissa de Kindred: Laços de Sangue é talvez uma das melhores que eu já li, nos colocando no meio da ação, introduzindo todos os elementos e preparando o terreno para o que está por vir. Octavia E. Butler tem um texto dinâmico e constrói fortes personagens, cada um com características muito bem definidas – tudo que eu procuro em um livro; sem contar o comentário social que Butler aborda de maneira inteligente (afinal, uma das coisas que a ficção científica faz melhor que qualquer gênero é encontrar maneiras originais de estudar a condição humana).

No livro, Dana logo descobre que está sendo mandada constantemente para o século XIX, onde se encontra no pior lugar e época possível para uma jovem negra como ela: uma Maryland pré-Guerra Civil, onde a escravidão durou duzentos anos e as leis eram extremamente rígidas, até mesmo comparadas com outros estados. É nesse ambiente que Dana precisa resistir para poder ajudar Rufus, o garoto que salvou no rio e precisa salvar mais vezes. Mesmo que seja um futuro alcoólatra dono de escravos, ele também será o pai de um dos antepassados de Dana, o que faz a relação deles mais complicada do que deveria.

Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.

Kindred é uma narrativa que se encaixa facilmente no Afrofuturismo, graças ao uso da ficção científica especulativa para criar um debate sobre a história negra e a forma como os eventos repercutem até hoje (e infelizmente parecem querer se repetir na cabeça de alguns). Dana é originalmente de 1976, vivendo em um Estados Unidos que passou por radicais mudanças depois dos movimentos de igualdade racial. Butler foi extremamente pertinente ao lançar uma obra como essa em 1979, aproveitando o momento para continuar tocando na ferida. Hoje esse é um dos melhores exemplos de como a ficção serve para analisar a sociedade e a forma como interpretamos o passado.

Rufus é uma personagem complexa, assim como sua relação com Dana. Ele a conhece ainda garoto e a encontra constantemente, sempre que precisa de ajuda, seja botando fogo nas cortinas de sua casa ou bêbado em uma poça de lama alguns anos depois. Seu comportamento abusivo é insuportável, mas Dana é compreensível e humaniza Rufus, independente de sua família e o que ele pode acabar se tornando. Esse contraste pode passar a impressão de que Dana seria ingênua de aceitar as decisões ruins de Rufus, mas ela se torna uma protagonista mais forte ao tentar conversar e fazer com que o jovem entenda onde errou e como pode se redimir. Os dois vivem trocando farpas e Dana encontra obstáculos cada vez maiores para superar.

Kindred é uma leitura rápida, mas pesada (você vai querer largar o livro por alguns minutos). O que Butler narra não é apenas uma tragédia na vida de uma figura negra, mas um retrato de uma cultura que sofreu mais do que imaginou por conta da ignorância e preconceito. Há um momento em que Dana está em sua casa, em 1976, e lê um livro sobre a Segunda Guerra, apenas para ficar deprimida com toda agressão, doença e tortura. “Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que os americanos praticaram por quase dois séculos”. A autora não se contém e faz questão de lembrar quanto sangue inocente foi derramado para que a história pudesse ser feita, e como continuamos derramando quando o ser humano decide descontar sua raiva em quem é diferente. Esse é um livro importante e cheio de significados, com referências e paralelos que farão você notar que nem tudo é tão ficcional quanto parece, e a importância de jamais esquecer o passado. Jamais.

capa kindred

Kindred: Laços de Sangue (Kindred)
de Octavia E. Butler

Editora Morro Branco, 2017

Capa de Mecob

432 páginas

Tradução de Carolina Caires Coelho

Fontes
*Sobre Maryland e a emancipação tardia de seus escravos (em inglês).

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Literatura

Cama de Gato | As Mentiras Inofensivas de Kurt Vonnegut

“Está vendo o gato? Está vendo a cama?”

O Bokononismo pode soar complicado para alguns. A leitura dos livros sagrados pode elucidar um pouco qualquer dúvida que tenha sobre seu karass ou como as fomas tem afetado sua vida. Mas o mais difícil mesmo é aceitar que esta é uma religião fictícia, criada pelo autor Kurt Vonnegut, em seu livro, Gama de Gato. Pode soar como um choque, mas não desanime, não é como se a minha verdade tivesse que ser a sua verdade.

A obra de Vonnegut segue John (o Jonah, já que ele prefere assim) em sua procura por registros de pessoas que estiveram envolvidas direta ou indiretamente com o dia em que Hiroshima foi bombeada pelos Estados Unidos. John consegue entrevistas com os filhos de um dos principais responsáveis pela bomba atômica: Felix Hoenikker. O que poderia ser apenas um recorte de comentários sobre o cientista acaba se tornando um mar de revelações, mas também um oceano de incertezas e questões sobre o que é essa substância aparentemente poderosa chamada gelo-nove, por exemplo.

John não imaginou que a história tomaria este rumo ou que ele pararia na ilha de San Lorenzo, onde todos são adeptos do Bokononismo, uma religião baseada em uma existência consciente das mentiras de seu criador. Mas talvez a maior surpresa para John foi acabar se tornando um adepto.

A primeira frase que aparece nos livros de Bokonon é esta:
Todas as verdades que estou prestes a contar são mentiras descaradas”. 
Meu conselho Bokononista é este:
Quem for incapaz de entender como uma religião benéfica pode ser baseada em mentiras também não vai entender esse livro.
Que assim seja.

Cama de Gato, editora Aleph, 2017

Parece confuso, e é confuso. Vonnegut faz questão de explicar a terminologia e os dogmas de sua religião fictícia, mas não deixa de brincar com o conceito e a forma — irracional — como aderimos ao pensamento de uma figura religiosa (ou política) absoluta, o que rende as melhores piadas e os momentos mais engraçados do livro. Você pode fazer parte de um karassequipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que estão fazendo; Mas se você é do tipo de pessoa que prefere apenas uma relação à dois e quer alguém para dividir seus ideais bokononistas, está pronta para um duprass, que é basicamente um karass formado por duas pessoas.

Vonnegut em todo seu esplendor

Cama de Gato consiste em 127 curtos capítulos, cada um apresenta um elemento com algum tipo de piada ou pelo menos preparação para uma, muitas vezes utilizando apenas duas páginas. A obra também traz várias canções e passagens do livro de Bokonon, muitas vezes lidos em forma de calipso, o gênero musical afro-caribenho (escolhido por ser representativo de Trinidad e Tobago, e por conta de Lionel Boyd Johnson, um negro, episcopaliano de batismo e súdito britânico da ilha de Tobago. Para a maioria ele é conhecido apenas como Bokonon). O livro de Vonnegut carrega muitas de suas marcas registradas, como o humor negro que ele insere no cotiado nos personagens, fazendo com que a tragédia seja mais um inconveniente do que uma… tragédia (não pensei em um sinônimo melhor). Há ironia espalhada durante toda a narrativa, e é assim que caímos nas situações mais hilárias da obra, como a própria relação de John com os habitantes de San Lorenzo e a bela Mona, a filha de “Papa” Monzano, o comandante da ilha.

Também há paralelos entre Cama de Gato e outras obras do autor. Um dos pensamentos do bokononismo diz que os parceiros de um duprass morrem com a diferença de uma semana um do outro, um conceito já utilizado em As Sereias de Titã. Mas a ligação mais direta com Sereias é revelada quando Bokonon escreve sobre ter trabalhado com a família Rumfoord, uma das peças mais importantes do texto.

Mas além de todas as piadas na superfície, há um debate mais íntimo na obra, envolvendo um dos capítulos mais tristes da Segunda Guerra Mundial, quando Vonnegut presenciou o bombardeio da cidade de Dresden, na Alemanha, um ataque que acabou completamente com a beleza do ponto turístico. O acontecimento serviu de inspiração para outro livro de Vonnegut, Matadouro 5, mas não ficou por aí, o autor continuou carregando o trauma em várias de suas obras. Em Cama de Gato os horrores da guerra são representados na figura de Hoenikker e sua criação, o gelo-nove, capaz de solidificar qualquer forma líquida. Uma invenção genial, com propósitos militares, que acaba parando nas mãos menos experientes que se pode imaginar. Mesmo com a abordagem cômica, fica clara a crítica e a indignação do autor com a neglicencia de figuras políticas e científicas tão poderosas.

Mural em Dresden em homenagem ao autor, que foi prisioneiro de guerra.

O Décimo quarto livro [de Bokonon] é intitulado “O que um homem sensato espera da humanidade na Terra, dada a experiência dos últimos milhões de anos?”.
Não levei muito tempo para ler o Décimo quarto livro. Ele consiste de uma palavra e um ponto final.
É o seguinte:
“Nada”.

Vonnegut acabou trazendo muito da sua realidade para a literatura, como próprio Hoenikker, inspirado em Irving Langmuir, um estudioso na área da teoria atômica e também vencedor de um Nobel, assim como o personagem. Os temas de seus livros são embasados em traumas e muito de seu comportamento e atitudes mudaram por conta da Guerra. “Foi quanto eu perdi minha inocência, na verdade… Quando a bomba caiu em Hiroshima”, conta o autor*.

A abordagem cínica e quase provocadora de Kurt Vonnegut faz de Cama de Gato uma das leituras mais absurdas e instigantes que já fiz, com personagens cheios de personalidade e diálogos carregados de acidez. É um jeito inteligente de comentar mais uma vez sobre nossas noções de livre-arbítrio e crença, e como fingimos ter tudo em controle.

“Tudo deve ter um propósito?”, perguntou Deus.
“Certamente”, disse o homem.
“Então deixarei que você pense em um propósito para tudo isso”, disse Deus. 
E Ele foi embora.

capa cama de gato

Cama de Gato (Cat´s Cradle)
de Kurt Vonnegut

Editora Aleph, 2017

Capa de Adalis Martinez

304 páginas

Tradução de Livia Koeppl

*Documentário “Kurt Vonnegut So It Goes” para o canal BBC sobre Cama de Gato e a Segunda Guerra, exibido em 1983: