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Retrospectiva 2018: o ano das mulheres na Ficção Científica

Em 19 de agosto deste ano, foram anunciados os vencedores do Hugo Awards – o maior e mais importante prêmio de Ficção Científica do mundo. Como melhor romance, gravado vencedor, estava o livro The Stone Sky, da norte-americana N.K. Jemisin.

A estatueta veio para coroar Jemisin como melhor autora de FC e Fantasia dos últimos anos: em 2016, ela foi a primeira escritora negra a receber um Hugo por A Quinta Estação (The Fifth Season, publicado no Brasil pela editora Morro Branco, em 2017), livro que abre a trilogia Terra Partida (The Broken Earth Trilogy). No ano seguinte, Jemisin repetiu o feito com a sequência, O Portão do Obelisco (The Obelisk Gate). O prêmio de The Stone Sky (previsto pela Morro Branco para 2019, mas ainda sem tradução oficial), que fecha a série, a tornou a primeira pessoa a receber três Hugo seguidos em 65 anos.

Na ocasião, Jemisin – que também carrega três prêmio Nebula pela mesma trilogia – fez um discurso belíssimo e emocionado, em que lembrou que seu percurso como mulher negra e autora de Ficção Científica foi marcado por obstáculos e luta.

Jemisin é a representação perfeita da literatura que ganhou espaço em 2018, mas ela não é a única. O ano foi consagrado por títulos de autoria feminina que finalmente chegaram ao Brasil e foram reconhecidos como Ficção Científica de qualidade, com narrativas densas e personagens fortes, diversos, complexos e críticos à sociedade atual.

“… a vida num mundo difícil não é nunca apenas uma luta”

Em seu discurso de aceitação do último Hugo, sobre a ideia para a Terra Partida, a autora disse: “Acho que é bem óbvio que tirei inspiração da história humana de opressão estrutural, assim como meus sentimentos sobre este momento na história americana”. Sentimentos estes que ficam claro no texto que é recheado de críticas à sociedade, classe e raça.

A narrativa de Terra Partida fica em cima da linha tênue que existe entre FC e Fantasia e trata da história de Essun, uma mulher que chega em casa e encontra seu filho de três anos morto, assassinado pelo próprio pai, e sua filha de nove, desaparecida. No mesmo dia, começa o fim do mundo e a jornada da personagem.

Mas são seus personagens os verdadeiros trunfos da autora: Essun, Nassun, Alabaster, Syenite, Damaya, Schaffa, Hoa e tantos outros são complexos e também são falhos, como devem ser. Nenhum existe a toa, nenhum existe para fazer volume e nada, nenhuma das histórias são entregues facilmente – é uma descoberta e evolução conjunta entre narrativa e público. Jemisin constrói cada acontecimento e personalidade de acordo com o avanço do texto de forma primorosa e é o leitor que ganha com a riqueza de detalhes e ensinamentos carregados pela obra.

Além de autora de uma trilogia já obrigatória aos fãs de FC e Fantasia, Jemisin fechou o ano com o lançamento de How Long ‘til Black Future Month? (ainda sem tradução e sem previsão de publicação por aqui), uma coletânea de 22 contos que mostra sua evolução como escritora e, apesar de independentes, tratam as cidades como personagens centrais. Os leitores já iniciados poderão estranhar alguns dos textos, mas reconhecerão elementos de outras histórias.

“O universo é aquilo que fazemos dele. Cabe a você decidir que papel quer desempenhar”

Se é de diversidade e personagens fortes e bem desenvolvidos que falamos, A Longa Viagem a um Pequeno Planeta Hostil (The Long Way To A Small, Angry Planet, publicado no Brasil pela DarkSide), de Becky Chambers, não pode ficar de fora. A obra, um sci-fi moderno que carrega todos os elementos, com direito a naves espaciais, viagem entre buracos de minhoca e brigas intergalácticas, foi um projeto diferente desde o início: sua produção foi feita a partir de uma campanha do Kickstarter – uma ferramenta de financiamento coletivo.

Em A Longa Viagem, o leitor acompanha a história de uma tripulação que embarca na nave Andarilha com a missão de abrir um portal entre o centro político da galáxia e um pequeno planeta distante, que acaba de se aliar ao governo vigente. No caminho, os personagens esbarram em obstáculos pessoais e coletivos que devem ser resolvidos durante o confinamento espacial.

Aliás, não há nada mais apaixonante nessa história do que os personagens. A tripulação da Andarilha é composta por indivíduos de planetas, espécies e gêneros diferentes  – incluindo uma Inteligência Artificial que comanda os sistemas da nave, e que homenageia Ada Lovelace, a primeira programadora do mundo. São personagens complexos e que com suas especificidades tratam de temas como amizade, racismo, poliamor, feminismo, fluidez de gênero e conceitos de família.

A Longa Viagem é o primeiro de três livros da série Wayfarers. O segundo título, A Vida Compartilhada em uma Admirável Órbita Fechada (A Closed and Common Orbit), foi indicado como melhor romance para o Hugo de 2017 e chegou ao país este ano, também com o selo DarkLovers, da DarkSide Books. O terceiro volume da série, Record of a Spaceborn Few, ainda não tem previsão de lançamento por aqui.

“Se vai fazer alguma coisa assim tão louca, guarde para quando puder fazer de fato uma diferença”

A estréia de Justiça Ancilar (Ancillary Justice), da norte-americana Ann Leckie, em 2014, foi marcada por reconhecimento em premiações:  Hugo, Nebula, Locus, BSFA e Arthur C. Clarke. Apesar de já reconhecido entre os fãs do gênero, a tradução brasileira só chegou neste ano, pela Editora Aleph.

O livro conta a história de Breq, uma ancilar, membro do Radch, o império que domina a galáxia, e a nave Justiça de Toren – uma porta-tropas gigantesca com uma única inteligência artificial que habitava e controlava milhares de soldados. Mas após uma traição, tudo o que restou de Breq foi um corpo humano para enfrentar o império.

Leckie conseguiu construir uma narrativa possível para agradar iniciantes e iniciados em FC. Justiça Ancilar é uma Space Opera movida por vingança e que reúne alguns dos elementos clássicos do gênero: inteligência artificial, conflitos de xenofobia e classe e política interplanetária são algumas das coisas presentes no texto.

A linguagem é parte importante da história e merece destaque. O idioma de Breq, a personagem principal e narradora da trama, não tem pronomes com gênero definido. A autora simula uma tradução do idioma radchaai e optou por flexionar as palavras para o feminino – característica mantida na tradução de Fábio Fernandes para a Aleph.

Justiça Ancilar é o primeiro livro de uma trilogia. As sequências Ancillary Sword e Anciliary Mercy (ambas sem previsão para publicação no Brasil) também venceram o Locus Award e receberam indicações para o Nebula.

“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”

Octávia E. Butler talvez seja o maior nome dessa lista. A dama da Ficção Científica, como é conhecida, ficou famosa por conseguir unir racismo e feminismo a elementos extraordinários em suas obras afrofuturísticas.

Em Kindred: Laços de Sangue (Kindred, publicado aqui pela Editora Morro Branco), seguimos Dana, uma jovem escritora negra que está de mudança para um novo apartamento ao lado de seu marido. No seu aniversário de 26 anos, Dana vive sua primeira viagem no tempo: ela se sente mal e acorda à beira de um rio, onde uma criança se afoga. Depois de salvar o menino, Dana sai da água e se depara com uma espingarda apontada em sua direção.

Dividida entre sua casa em uma Los Angeles de 1976 e uma fazenda pré-Guerra Civil em Maryland, Dana conhece seus ancestrais e se envolve com a comunidade escrava e agrícola da região, enquanto faz o que é necessário para sobreviver e retornar ao presente.

Publicado pela primeira vez em 1979, Kindred é uma obra poderosíssima e atual. A partir de uma narrativa direta com elementos da FC, aborda a dinâmica e dilemas da escravidão, a dualidade de casamentos inter-raciais, questões de poder, gênero, raça e as perspectivas de um futuro igualitário.

Para ficar de olho em 2019

Com campanhas que buscam incentivar a leitura de autoras, como a #LeiaMulheres, que teve início em 2014 e continua até hoje, a demanda do mercado permanece aquecida com novas publicações de qualidade em todas as áreas, inclusive na Ficção Científica, gênero majoritariamente masculino.

Para o próximo ano, a editora Morro Branco já anunciou a publicação de The Stone Sky, obra que fecha a trilogia de N.K. Jemisin, citada acima. A expectativa, no entanto, é que mesmo sem confirmação, novos títulos de FC escrita por mulheres cheguem às livrarias brasileiras. Vale acompanhar o catálogo de editoras que, acompanhando a demanda do mercado atual, têm se dedicado a publicar mulheres e FC.

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A maldição do conhecimento em “Flores Para Algernon”

Flores Para Algernon é um livro bastante conhecido do público norte-americano. Originada em forma de conto na Magazine of Fantasy & Science Fiction, a história conseguiu vencer um prêmio Hugo em 1960 e dar certa visibilidade para o autor, Daniel Keyes. Em 1966, ele transformou o conto em um romance que acabou bastante aclamado, também vencedor de alguns prêmios, como o Nebula, e até hoje é considerado leitura obrigatória em muitas escolas dos EUA.

Com sucesso, sempre vem as adaptações. A primeira mais conhecida é o filme Charly, de 1968, estrelado por Cliff Robertson, que acabou ganhando um Oscar de Melhor Ator. A segunda adaptação cinematográfica só aconteceu em 2000, desta vez direto para a televisão e com Matthew Modine no papel do protagonista. O livro também foi parar nas rádios e nos palcos do teatro, tendo até mesmo uma versão musical. E mesmo sendo uma obra tão icônica, é curioso como é pouco conhecido no Brasil. Felizmente, com o lançamento do livro pela editora Aleph em 2018, pude ler Flores para Algernon e entender porque é considerado tão essencial.

Charlie Gordon é um bom amigo e um bom funcionário em uma padaria local, porém sofre de uma deficiência intelectual, tem um QI muito baixo. Ele quer muito mudar isso, quer surpreender seus amigos e impressionar todos sendo uma pessoa “tão normal quanto as outras”. Por isso Charlie se submete a um experimento que envolve uma cirurgia inovadora capaz de aumentar sua capacidade mental.

O livro é escrito na forma de epístola, como se fossem relatórios de progresso do protagonista. Com isso temos uma leitura em primeira pessoa, mas o que chama a atenção de primeira é a decisão do autor em incorporar uma escrita propositalmente errada (Charlie não é bom com as palavras, por motivos óbvios), no entanto fazendo sentido na proposta e contribuindo para o desenvolvimento não apenas do personagem, como o narrativo. Ver a forma que são empregados os acentos ou pequenos detalhes, como vírgulas, por exemplo, criam uma conexão e simpatia maior por Charlie.

Infelizmente, o que deveria ser considerado um milagre, logo se torna uma maldição. Charlie começa a ficar inteligente, mais até que os próprios médicos que o operaram. Além disso, ele agora reconhece todas as vezes em que foi humilhado. As pessoas riam dele, não com ele. Onde antes existia um indivíduo inocente e com um eterno sorriso no rosto agora dá lugar a um homem amargo e desconfiado. Algernon, o pequeno ratinho que serviu de cobaia antes que testassem a cirurgia em Charlie, acaba sendo seu único companheiro.

Imagem da adaptação de 2000, estrelada por Matthew Modine.

Alguém pode argumentar que a obra não tenha elementos o suficiente para justificar ser categorizada como ficção científica, mas não é só na parte “científica”, a cirurgia no caso, que se sustenta o gênero. Keys questiona uma realidade com outra. No começo não confiamos na veracidade de alguns relatos, o passado é revelado lentamente depois de passarmos pela neblina do esquecimento na cabeça do protagonista. Além disso, antes do experimento surtir o efeito desejado, os personagens tem características que nos são apresentadas de uma forma completamente diferente da que é relatada assim que Charlie começa a ter uma nova óptica sobre suas relações. Seus companheiros de trabalho na padaria eram divertidos e engraçados, agora são maldosos e ignorantes.

A nova realidade deveria trazer alegria para Charlie, mas ele não consegue mais se divertir com quem fazia piada de sua condição. Descobrir que todos que você considerava de maior confiança são na verdade pessoas falsas e maliciosas dói demais para o protagonista, e pensar que tudo que ele queria era ser inteligente o suficiente para entender as coisas e surpreender seus amigos.

Ao longo da história o leitor descobre pequenos detalhes e informações através das reminiscências de Charlie, que ou esqueceu as coisas ou reprimiu para evitar um sofrimento maior. Essa é a parte mais dramática do livro, com questionamentos sérios e o momento mais catártico da obra, que não vou estragar para você porque esse livro realmente deve ser considerado leitura obrigatória de qualquer currículo escolar.

Mesmo tendo um narrador não muito confiável por conta da forma que interpreta as coisas “à flor da pele”, Flores para Algernon é um livro carregado de significados e debates sobre a condição humana. Essa é provavelmente uma das melhores leituras que você pode ter e uma das mais emocionantes da ficção científica.

“Flores para Algernon””
de Daniel Keyes


Editora Aleph, 2018

228 páginas

Tradução de Luisa Geisler

Capa de Adalis Martinez

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Sobre a Imortalidade de Rui de Leão

Comprei meu Kindle e fiz a limpa em algumas editoras que eu gosto, e devo admitir que fiquei bem satisfeito com o resultado. É claro que não há aquele charme do livro físico, mas o conteúdo é o que realmente importa e é bom ter um aparelho leve e com um dicionário embutido do que carregar peso na mochila. Uma das coisas que mais me chamou atenção foi também descobrir novas editoras, como a Plutão, que chegou no mercado com um serviço completamente digital e uma proposta que me deixou bem feliz: produzir e relançar conteúdo brasileiro sobre ficção científica. Independente do que você pensa sobre a forma que a fantasia e ficção científica são recebidos por aqui, deve admitir que é uma ideia bem interessante.

Para estrear a editora tivemos uma publicação que veio como surpresa para muitos, era uma obra de Machado de Assis (sim, o Machado de Assis que você está pensando). Eu confesso que não imaginei que o autor tivesse trabalhado com o gênero sci-fi antes, mas como nunca fui um estudioso sobre Assis e meu repertório envolvendo sua obra ainda é bem básico, fiquei curioso.

Sobre a Imortalidade de Rui de Leão

Sobre a Imortalidade de Rui de Leão traz dois textos de Machado de Assis, eles são “Rui de Leão” e “O Imortal”. As duas obras foram lançadas em épocas diferentes, uma em 1872 e a outra uma década depois, respectivamente. Com alguns paralelos entre as tramas, fez total sentido publica-las no mesmo livro. Ainda que tenha uma língua mais rebuscada e regionalista de outrora, há uma narrativa simples e limpa que não se aprofunda demais no debate científico do gênero mas sim no território especulativo e fantasioso.

Rui de Leão é um fidalgo que mora no interior do Brasil e é casado com uma bela jovem de família indígena. Certo dia seu sogro, o pajé, o presenteia com um licor que supostamente trará vida eterna ao fidalgo. Dessa premissa dá pra imaginar um pouco onde as coisas podem ir, mas o texto de Assis instiga e faz com que a jornada de Leão seja memorável. O uso da terminologia tupiniquim agrega mais aos diálogos e enriquece a narrativa, como nos momentos em que o pajé utiliza os frutos para descrever o estado de espírito de um personagem.

“A água bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza”

Essa é uma obra que debate temas mais filosóficos sobre o conceito de imortalidade. A angustia da perfeição e a busca por propósito fazem parte da sina do protagonista. Mas além do drama há espaço para o humor, mesmo que bem pontual. Em certo ponto, Leão faz um discurso que impressiona tanto o público a ponto de receber elogios mais positivos do que o esperado: “Está fundada a eloquência brasileira” talvez entre na minha lista de falas favoritas.

Além dos textos de Assis, o livro digital tem as belas artes de Paula Cruz, responsável pelas ilustrações da obra e a identidade visual da editora. E como se não fosse suficiente ainda temos um prefácio muito informativo sobre a história da ficção científica no Brasil pelo escritor Roberto de Souza Causo.

Sobre a Imortalidade de Rui de Leão é curto mas um ótimo pontapé inicial para uma editora como a Plutão, que mesmo pequena (por enquanto) já mostra ao que veio.

Capa sobre a imortalidade de Rui Leão

Sobre a Imortalidade de Rui de Leão
de Machado de Assis

Editora Plutão, 2018

124 páginas

Capa e Ilustrações: Paula Cruz

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As Sereias de Titã | Atravessando o infundíbulo cronossinclástico

É a minha primeira vez lendo Kurt Vonnegut. Eu não estava preparado. 
As Sereias de Titã possui uma premissa absurda que consegue ficar ainda mais fantástica do que se imagina. Mas calma lá, não quero estragar a experiência, então tentarei ser o mais breve possível nessa parte — mesmo que considere praticamente inútil tentar omitir informações do enredo já que nem mesmo com contexto essa é uma história comum.

Winston Niles Rumfoord é um homem poderoso (com isso quero dizer abastado). Tão poderoso que conseguiu ir ao espaço em sua própria nave, acompanhado apenas por seu cão, Kazak. Mas ele não esperava que fosse passar por um fenômeno que resultaria em uma mudança completa na forma que percebe o tempo e o espaço. Depois disso, consegue fazer breves materializações na Terra para sua esposa, o que acaba causando uma comoção pública. O mais curioso nessa história toda, como se já não fosse misteriosa o suficiente, é que Rumfoord está mais interessado em entrar em contato com Malachi Constant, um ator Hollywoodiano considerado o americano mais rico do mundo, para que ele realize uma missão que está praticamente definida do início ao fim, envolvendo viagens espaciais (com paradas em Marte, Mercúrio e Titã), espécies alienígenas e até ter um filho com a esposa do próprio Rumfoord. É claro que a ideia parece estúpida e sem sentido algum, mas Malachi talvez não tenha muita escolha sabendo que a missão foi dada por alguém que viu o futuro.

E isso é tudo que você precisa saber da trama por enquanto.

Para tirar logo isso do caminho, é notável e inevitável a comparação que alguns fazem do trabalho de Vonnegut com o de outro grande autor da ficção científica: Douglas Adams, o criador da série O Guia do Mochileiro das Galáxias. Ambos utilizam uma abordagem mais cômica e absurda em suas obras, o que é algo mais do que bem-vindo em um gênero constituído de conceitos surpreendentes e formas diferentes de debater temas importantes. Mas se Adams utiliza o humor para enfatizar o absurdo no melhor estilo Monty Python, Vonnegut é mais sutil e não se importa se algumas piadas passarem por você porque, acredite, algumas vão. Mas ele também não se aguenta e coloca algumas situações hilárias que dão aquela sensação de piada que nunca termina mas continua engraçada, como o momento em que descobrimos como o pai de Malachi se tornou um homem rico através da “palavra de Deus” ou basicamente tudo envolvendo o Viajante Espacial.

Kurt Vonnegut gigantesco em arte de prédio.

Vonnegut não é tão criativo em “termos técnicos” quanto Adams, mas ainda assim tem sua contribuição para o departamento de zombarias com a física ficcional do gênero. O que é um “infundíbulo cronossinclástico”? Você provavelmente não terá chance de descobrir tão cedo, mas foi onde Rumfoord foi parar com seu companheiro canino.

Mas Sereias de Titã não é apenas um livro com alguns momentos engraçados e piadas bem elaboradas; há um mar de questões filosóficas que estão constantemente retornando para a história. A própria missão de Malachi seria, por definição, uma forma de abandonar seu livre arbítrio? — se é que este conceito seja relevante de qualquer maneira para nós. Malachi está cumprindo algum tipo de destino? Será que os planos de Rumfoord fazem sentido apenas para ele, e dependendo da resposta, seriam os planos justificados? O livro levanta debates morais em um contexto complexo e aborda temas pesados, como estupro e homicídio.

Vonnegut tem um problema em mãos, na verdade é um que muitos autores do gênero tiveram por anos, que é a falta de uma personagem feminina de destaque (isso quando tem alguma) ou que tenha pelo menos uma individualidade que não seja baseada em estereótipos como, no caso do livro em questão, a de “megera” que serve apenas para cumprir seu “papel de mulher”. É claro que o próprio autor aborda a forma que ela foi usada, mas ainda assim é uma parte que sofreu um pouco com o tempo.

“Eu fui vítima de uma série de acidentes, como todos nós somos”.

Mas saindo um pouco da crítica social —sabemos que é outra época e esse debate deve ser feito com muito mais cuidado e embasamento, então vamos focar na resenha literária — , esse é um livro mais informal do que imagina, mesmo abordando tudo o que já mencionei. A escrita de Vonnegut é limpa e dinâmica, talvez um dos motivos que tenha rendido comparações com Adams (e com isso não o mencionarei mais aqui). Essa é uma obra surpreendentemente humana, principalmente nos seus momentos finais, quando toma um rumo mais sentimental, mas mesmo assim não deixa de brincar com a situação e ir na contramão do que alguns esperam de uma conclusão para uma jornada como essa.

Kurt Vonnegut escreve com a maestria de alguém que não se importa com as regras estabelecidas da narrativa. As Sereias de Titã tem tudo para ser uma das coisas mais mirabolantes e aleatórias que você já leu, e provavelmente é, mas no fim somos nós quem parecemos loucos ao conseguir assimilar tanta loucura.

Capa do Livro As Sereias de Titã

As Sereias de Titã (The Sirens of Titan)
de Kurt Vonnegut

Editora Aleph, 2018

304 páginas

Tradução de Livia Koeppl

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A importância do debate sobre gênero em “A Mão Esquerda da Escuridão”

Qual a função da ficção científica? 
Você pode debater que o necessário para uma história ser considerada sci-fi é ter uma ambientação futurista e servir como entretenimento, ter muita ação e situações criativas. Não deixa de ser verdade, mas é uma definição limitada para uma forma literária tão rica em elementos e tremendo potencial narrativo. Neste debate, não faltam vozes levantando várias opiniões sobre a função da ficção científica.

Entre tantas possibilidades, a que mais me intriga é o uso da liberdade poética quando falamos sobre o futuro e suas diversas representações. Alguns se aproveitam da ferramenta para especular ou alertar sobre o que está por vir, mas nem sempre estamos falando literalmente sobre o futuro. Recentemente, li pela primeira vez o livro “A Mão Esquerda da Escuridão”, de Ursula K Le Guin, lançado originalmente em 1969 (a versão que li foi a edição da editora Aleph, de 2015), e me deparo com a seguinte citação, logo na introdução da obra:

A Ficção científica não prevê; descreve […] Previsões são o trabalho de profetas, videntes e futurólogos. Não são o trabalho de romancistas. O trabalho do romancista é mentir.

De acordo com Le Guin, o autor de uma obra sci-fi não está aqui para te dizer que tipo de carro voador estaremos usando no futuro ou o quão bizarra será a nossa vestimenta, mas sim refletir sobre seu contexto social e político de uma forma diferente, muitas vezes através de alusões e metáforas bem elaboradas.

A premiada série televisiva The Handmaid´s Tale utiliza um futuro distópico onde as mulheres perderam a maior parte de seus direitos e servem apenas para o prazer masculino. Essa premissa sozinha já poderia ser considerada uma boa ficção científica, mas a onda cada vez maior de notícias sobre a violência contra a mulher faz com que esta não seja apenas uma proposta narrativa, mas uma crítica feroz sobre a condição humana.

Na série temos um regime totalitário, com enorme poder baseado em medo, e quando você lembra de todas as obras do gênero em que um sistema político como este é um elemento saliente da trama, como em O Homem do Castelo Alto ou 1984, percebe que elas estiveram o tempo todo refletindo o momento que seu país estava vivendo. As principais obras de Kurt Vonnegut (Cama de Gato, Matadouro 5), por exemplo, são um “relato” sobre o que o autor passou em meio aos tempos sombrios da segunda guerra, só que ele nunca trata isso como uma autobiografia, está mais para uma terapia onde o cliente não usa seu nome verdadeiro e todos os traumas vividos são recriados de forma pouco similar. Acredito que essa seja uma analogia menos complicada do que os autores fazem quando planejam uma obra destas.

Ursula K Le Guin , década de 1970 — Special Collections and University Archives, University of Oregon Libraries

Qualquer coisa levada a seu extremo lógico torna-se deprimente, quando não cancerígena.

Agora, vamos voltar para A Mão Esquerda da Escuridão. Na obra, Genly Ai é um emissário da Terra, enviado para Gethen com o propósito de convidá-los para uma união entre povos em um sistema coletivo chamado Ekumen. Em Inverno, como é chamado o planeta pelos próprios habitantes de Gethen por conta da baixa temperatura, o protagonista nota a maior diferença entre os nativos e ele: ao contrário do que acontece em seu próprio planeta, a sociedade de Inverno é constituída de indivíduos sem sexo definido. E por conta de seus preconceitos e questionamentos inapropriados, Genly passa por várias provações e pode não conseguir completar sua missão, sem contar que corre risco de vida por estar ali.

O enredo do livro é muito bom, cheio de pequenos detalhes e maneiras inteligentes de desenvolver a narrativa bastante descritiva de Le Guin (ainda que isso também possa ser considerado um ponto negativo por conta do ritmo de leitura, que sofre com alguns trechos mais longos e extenuantes, mas vamos focar nos temas do livro), mas é na hora de debater gênero e o comportamento humano que a obra brilha.

— Experiência espantosa

Está cada vez mais difícil termos uma conversa sobre gênero de forma aberta em um país onde se especula mais sobre a vida pessoal e as intenções de quem não conhecemos ao invés de repudiar o crescimento de casos de feminicídio em nosso país ou da violência de gênero sendo negligenciada. Problemas como esses são a principal inspiração para as “mentiras” de Le Guin.

Em Gethen, não há discriminação de gênero, já que todos desempenham o mesmo papel em momentos diferentes da vida. Através do Kemmer, um período no qual os habitantes do planeta desenvolvem órgãos sexuais e sentem atração física pelo companheiro, podemos ver como vários questionamentos envolvendo a forma de nos relacionarmos são levantados.

Um homem deseja que sua viralidade seja reconhecida, uma mulher deseja que sua feminilidade seja apreciada, por mais indiretos que sejam esses reconhecimentos ou essa apreciação. Em Inverno, isso não vai existir. Julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa.

Genly Ai e seu companheiro de viagem. BBC Radio 4

É claro que Le Guin não é a única abordando temas voltados ao debate de gênero. Li recentemente um texto de James Davis Nicoll (o link fica aqui e no fim dessa matéria) e ele fala sobre a fixação de autores de ficção científica com premissas envolvendo planetas com uma população predominantemente, quando não completamente, de um único gênero. O que deixa as coisas um pouco complicadas é que na maioria dos casos temos a ausência do que seria o representante do sexo oposto sendo tratada como uma forma de alívio, é como se a presença de um ser “diferente de você” se transformasse em um enorme inconveniente. Preferimos viver alienados, porém confortáveis, ao invés de aprender com próximo.

Outro costume de alguns romancistas é simplesmente esquecer que o outro gênero existe. Como diz Nicoll, “a falta do outro gênero nem ao menos tem a intenção de dizer algo com isso, o autor apenas não se importou em incluir qualquer personagem do tipo, nem como coadjuvante […] Talvez o exemplo mais curioso seja o de Andre Norton, que lançou um livro (Plague Ship) sem qualquer mulher na história, mesmo sendo a própria escritora uma mulher”.

Não vou entrar em território de representatividade agora, mesmo sendo outro que precisa estar sempre em pauta, mas não podemos negar como muitos fãs de ficção científica e a comunidade nerd estão incluídos na parcela que não quer ver alguém do sexo oposto ganhando qualquer espaço na área de entretenimento, seja cinema, televisão ou quadrinhos. É só ver as reações negativas (e prematuras) à escolha de elenco nos últimos filmes da franquia Star Wars, isso sem contar que não são só comentários sexistas atacando as mulheres do filme, você encontra até xenofobia e racismo, e a pior parte é que não precisa procurar por muito tempo.

Em A Mão Esquerda, temos leituras diferentes para a forma que o sexo funciona. Talvez haja um gênero, e este seja próprio de Gethen; talvez três gêneros: masculino, feminino e neutro. Mas depois de conversar com um amigo que entende do assunto mais do que eu (vamos deixar claro que meu departamento é o de debate sobre a narrativa, estou apenas abrindo aqui os temas apresentados) e passou recentemente por uma transição importantíssima e de enorme impacto para sua vida. De acordo com ele, “os personagens parecem estar entre fluído e agênero. O que não deixa as coisas claras é a parte do acasalamento, porque se enquadra um pouco no cenário interssexual. Parece que Ursula quis intercalar essas três premissas”.

Independente das intenções da autora, o importante é notar como Inverno não faz distinção de sexo e com isso tem uma mente completamente diferente da nossa. É interessante notar como a abordagem de um tema abre a possibilidade para tantos outros debates relevantes, como o da cultura do estupro, outro que infelizmente tornou-se parte do nosso cotidiano.

Considere: não existe sexo sem consentimento, não existe estupro. Como ocorre com todos os mamíferos, o coito só pode ser realizado por convite e consentimento mútuo; do contrário, não é possível. A sedução certamente é possível mas deve ser tremendamente oportuna. Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva. Na verdade, pode-se verificar que toda a tendência ao dualismo que permeia o pensamento humano é muito reduzida, ou alterada, aqui em Inverno.

Ainda assim, o proprio povo de Gethen tem seus preconceitos com a forma que Genly Ai se comporta e como as coisas funcionam com a espécie do emissário, isso somado ao estranhamento dos habitantes com a cor “escura” da pele do protagonista, mas o livro não dá tanto destaque para essa parte, então talvez seja um assunto melhor desenvolvido em uma matéria sobre outra obra onde isso seja predominante (sinta-se livre para indicar alguma nos comentários). Fica clara a intenção de Ursula ao mostrar como todos temos nossos próprios conceitos pré-estabelecidos e medo do que não compreendemos. No entanto, o livro também traz uma inesperada amizade que mostra dois lados com ideais diferentes, mas através de diálogos profundos e momentos para questionamentos existenciais, Ursula nos mostra a essência do que é ser um indivíduo que contempla seu mundo com fascínio, sem deixar que a incerteza tome conta da razão.

Talvez seja o que a ficção científica tem de melhor: criar empatia. Exploramos tantos mundos e espécies alienígenas; especulamos, estrapolamos e apostamos sobre o futuro; questionamos o sistema e tudo que há de estranho à nossa volta, mas o mais interessante da experiência é questionar a nós mesmos. Com “A Mão Esquerda da Escuridão”, Ursula K Le Guin conquistou vários prêmios, além da atenção de incontáveis fãs do gênero, por isso seu nome é tão poderoso.

Eu sei que não existe uma única resposta para a minha pergunta inicial, mas é essa a graça. Todos podem se interessar por sci-fi por incontáveis motivos, e expandir sua mente para debates e territórios que você nunca imaginou conhecer é um deles.

Talvez essa seja a função da ficção científica: abrir sua mente.

Luz é a mão esquerda da escuridão
e a escuridão, a mão direita da luz.
Dois são um, vida e morte, unidas
como amantes no kemmer,
como mãos entrelaçadas,
como o fim e a jornada

Capa do livro A Mão Esquerda da Escuridão

“A Mão Esquerda da Escuridão”
de Ursula K. Le Guin

Editora Aleph, 2015

296 páginas

Tradução de Susana Alexandria

Quero agradecer Lorrana Côrtes e Gabriel Carvalho, por terem me ajudado. Sem vocês esse texto seria um desastre.