Com roteiro de Alan Moore e arte de Dave Gibbons, a graphic novel Watchmen é lançada em 1986, pela DC Comics, em doze volumes. Ela é um enorme sucesso, vendendo muito bem e sendo elogiada por todos. Duas décadas depois, a HQ é destacada como um dos melhores romances do século pela revista Time, fazendo com que a obra de Moore e Gibbons receba novo fôlego e atenção até daqueles não interessados na arte sequencial.
É 2009 e Hollywood consegue finalmente adaptar Watchmen para o cinema. Dirigido por Zack Snyder, o longa tem uma recepção mista da crítica, mas a bilheteria não impressiona. Ainda assim, todos parecem interessados em desenvolver suas próprias histórias se aproveitando das doze edições originais da HQ. A própria DC tenta uma prequel em quadrinhos, intitulada Antes de Watchmen, reunindo diversos artistas com o intuito de contextualizar um universo que, alguns diriam, não necessitava disso. Mesmo sem sucesso, a editora insiste em inserir os personagens em seu selo padrão, criando a saga Doomsday Clock.
Estamos em 2019: Damon Lindelof, co-criador de séries como Lost e The Leftovers, decide liderar uma adaptação de Watchmen para a HBO. O primeiro episódio é lançado no dia 20 de Outubro. Hoje, eu escrevo a resenha.
É verão e estamos ficando sem gelo.
A primeira sequência do episódio talvez seja a mais importante para estabelecer o tema principal dessa série, que promete utilizar o contexto político e social dos quadrinhos para desenvolver uma crítica mais pertinente ao crescimento de grupos fascistas e supremacistas brancos nos EUA. Tudo começa em 1921, durante a rebelião racial de Tulsa, na qual a comunidade negra de Oklahoma é covardemente atacada por brancos intimidados com o crescimento de distritos como Greenwood, um dos mais ricos do estado, habitado por negros. No meio do tumulto e dos linchamentos, seguimos um casal tentando salvar seu filho o enviado em uma carruagem com uma mensagem no bolso.
Em seguida, somos introduzidos ao ano 2019 da série, que mesmo sendo uma versão alternativa do nosso, se passando no mesmo universo dos quadrinhos (aparentemente, o filme não será levado em conta), comenta a realidade fora da tela. Depois dos eventos do quadrinho, que termina com o personagem Rorschach entregando seu diário contendo os planos de Adrian Veidt, o Ozymandias, e todos os outros integrantes do grupo Watchmen, a série explora as sequelas da despedida do Dr. Manhattan, assim como a catastrófica solução de Veidt para trazer a paz mundial.
Talvez a decisão mais radical da série, ainda que faça total sentido (eu vou explicar na parte de spoilers), é transformar Rorschach em uma figura de resistência para um movimento de supremacistas brancos chamado Seventh Kavalry (seria apenas uma referência ao regimento dos EUA ativo em grandes guerras, ou uma ligação mais forte com um diálogo dos quadrinhos onde Veidt menciona a cavalaria como contraste para o apocalipse?). No 2019 de Watchmen, é a vez da polícia usar máscaras e se auto-intitular a vigilante máxima da sociedade, respondendo o questionamento em latim “Quis custodiet ipsos custodes”, traduzido por Alan Moore para “Quem vigia os vigilantes”. Mas ainda há obstáculos para a própria polícia, que precisa de códigos de segurança mais restritos quando envolve o uso de armas, que agora tem uma trava liberada apenas por autorização geral.
Entre os policiais, ainda há vigilantes encapuzados, como Angela Abar (Regina King) e Looking Glass (Tim Blake Nelson), que procuram trabalhar na margem da lei, mas dessa vez de maneira mais organizada.
Além de uma boa construção de mundo e um ótimo elenco (Regina King e Jeremy Iron prometem ser a maior força dramática da série), esse primeiro episódio, dirigido por Nicole Kassell, tem um excelente trabalho do departamento de direção de arte, com uma bela fotografia que apresenta a iconografia dos quadrinhos, com ovos que formam o rosto sorridente do bóton do Comediante ou a gota de sangue caindo no distintivo de um dos personagens, sem contar as composições que tentam replicar o formato de um relógio de bolso e seus ponteiros. Vale mencionar a composição musical da dupla Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) e Atticus Ross, responsáveis por filmes como A Rede Social e Garota Exemplar, aqui aumentando a força da narrativa com uma atmosfera mais sombria e tensa através do piano melancólico de Reznor.
It’s Summer and We’re Running Out of Ice é um ótimo começo para a série, estabelecendo muita coisa dos quadrinhos e desenvolvendo outras que prometem colocar o dedo na ferida. Alan Moore já abordou em Watchmen alguns tópicos relevantes do nosso 2019, como os direitos LGBTQ+ ou o risco de acreditar na carisma de figuras fascistas, mas a atenção da série ao debate racial pode ser um ângulo intrigante capaz de transformar a série em algo próprio, ao contrário de outros materiais que tentaram apenas recriar a sensação do quadrinho original.
Sob o Capuz: Referências e Teorias (SPOILERS)
Como é apenas o primeiro episódio da série, vou deixar apenas algumas das coisas curiosas que achei enquanto assistia o episódio.
- O livro SOB O CAPUZ, a autobiografia de Hollis Mason (primeiro Coruja, do grupo Minutemen, os heróis que atuavam antes dos Watchmen), pode ser visto na mesa do escritório de Judd Crawford. E por falar em Crawford, o episódio dá alguns indícios de que ele possa ser o segundo Coruja, Dan Dreiberg, como sua caneca em formato de coruja ou o fato de utilizar a Arquimedes, nave do herói nos quadrinhos. É claro que ele poderia simplesmente estar usando um de seus nomes falsos depois dos eventos da HQ, mas depois da revelação final do episódio fica difícil continuar acreditando que ele seja o Coruja.
- A CHUVA DE LULA que acontece enquanto Angela Abar está trazendo seu filho da escola é uma clara referência ao clímax causado pro Adrian Veidt nos quadrinhos, na qual ele desenvolve uma lula mutante para aterrorizar a humanidade orquestrando um falso ataque alienígena. Isso deixa evidente que a série é uma sequencia da HQ e não do filme. Falando nisso, na cena anterior podemos ver um quadro com a imagem dos principais presidentes dos EUA, e um deles é Robert Redford, uma piada com a última página do quadrinho, onde brincam com a possibilidade de um ator na casa branca.
- O personagem JUSTIÇA ENCAPUZADA tem bastante destaque na série, sendo o “rosto” principal nos anúncios do futuro documentário sobre os Minutemen, aparecendo em uma propaganda de ônibus e nos comerciais da TV. Na própria HQ, Hollis Mason diz em sua autobiografia que ninguém sabe a verdadeira identidade do Justiça Encapuzada, mas por conta de sua roupa, idealizada com uma corda em forma de forca no pescoço e um capuz roxo como máscara, a principal teoria é que seja um homem negro (possivelmente homossexual, isso de acordo com Hollis). Assistindo ao episódio não pude deixar de imaginar que o idoso da cadeira de rodas, que aparece lendo seu jornal e fazendo comentários aleatórios para Angela (e no fim revela-se o garoto com o bilhete da sequencia de abertura), é o verdadeiro Justiça Encapuzada. E isso faz total sentido, considerando a camisa roxa, a idade e as suposições de Hollis.
- Uma das coisas que mais aguardo na série é o retorno de Adrian Veidt, que tem poucos minutos no episódio, mas já revela estar trabalhando em uma peça, uma tragédia em cinco atos — o que provavelmente será mais um de seus planos para trazer a paz mundial que tanto almeja. Um dos indícios de que Adrian pode estar mais uma vez por trás de uma grande conspiração é uma rápida tomada na qual podemos ver um jornal com a manchete que diz “Veidt é Oficialmente Declarado Morto”. Ou esse é o primeiro passo para seu esquema mirabolante, ou a série está experimentando com uma narrativa não-linear, o que não seria surpresa agora que tantas séries estão fazendo isso, como a própria Westworld, da HBO.
- Entre todos os nomes mencionados no episódio, o que achei mais curioso foi PIRATE JENNY, utilizado por uma vigilante trabalhando ao lado de Judd Crawford, pilotando a Arquimedes. Pirate Jenny é o título de uma música (macabra) da cantora Nina Simone, uma das favoritas de Alan Moore, tanto que ele utiliza a letra da canção como inspiração para os Contos do Cargueiro Negro, uma história dentro da história de Watchmen. Para ser mais exato, o Cargueiro Negro é um quadrinho sobre piratas que os jovens leem no universo de Watchmen, já que heróis encapuzados são uma realidade, quadrinhos como da Marvel e DC não fazem sentido. Um trecho da letra traduzida: “Há um navio, o Cargueiro Negro. Com uma caveira em seu mastro. Eles estão chegando”. Ouça a música.
- O aspecto mais polêmico do episodio envolve Rorschach e os Supremacistas Brancos. Eu entendo quem talvez tenha se incomodado com isso, mas eu considero um dos grandes acertos do episódio. Tirando o fato do grupo de supremacistas generalizar seu preconceito, se estendendo também aos policiais, a inspiração deles é em um personagem claramente preconceituoso — e não me entenda errado, adoro o personagem, mas posso gostar dele e não gostar de suas atitudes ao mesmo tempo (ponto para o roteiro de Alan Moore, como sempre). Nas HQs, Rorschach está constantemente fazendo comentários sexistas e homofóbicos sobre seus companheiros de trabalho, como chamar Veidt de homossexual, por exemplo. Isso sem contar que o personagem é um ávido leitor do jornal The New Frontiersman, direcionado ao público mais reacionário. Há várias outras menções na HQ, mas a mais gritante é quando uma das vizinhas de Rorschach o chama de “pervertido nazista”. Essa parte pode ser polêmica, mas não infundada.
- Para fechar os meus destaques (há outros, mas não quero deixar isso muito grande e outros ainda precisam ser confirmados), é bom saber que algumas coisas nunca mudam e Alan Moore ainda não aceita ser creditado em nenhuma adaptação de suas obras, deixando todo o crédito para o artista Dave Gibbons.
Essas foram algumas das minhas considerações sobre o primeiro episódio da série de Watchmen, It’s Summer and We’re Running Out of Ice. Deixe nos comentários o que achou do episódio e das mudanças.
Nos vemos na próxima semana.
Tick, tock, tick tock.