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Watchmen | It’s Summer and We’re Running Out of Ice – S01E01

Com roteiro de Alan Moore e arte de Dave Gibbons, a graphic novel Watchmen é lançada em 1986, pela DC Comics, em doze volumes. Ela é um enorme sucesso, vendendo muito bem e sendo elogiada por todos. Duas décadas depois, a HQ é destacada como um dos melhores romances do século pela revista Time, fazendo com que a obra de Moore e Gibbons receba novo fôlego e atenção até daqueles não interessados na arte sequencial.

É 2009 e Hollywood consegue finalmente adaptar Watchmen para o cinema. Dirigido por Zack Snyder, o longa tem uma recepção mista da crítica, mas a bilheteria não impressiona. Ainda assim, todos parecem interessados em desenvolver suas próprias histórias se aproveitando das doze edições originais da HQ. A própria DC tenta uma prequel em quadrinhos, intitulada Antes de Watchmen, reunindo diversos artistas com o intuito de contextualizar um universo que, alguns diriam, não necessitava disso. Mesmo sem sucesso, a editora insiste em inserir os personagens em seu selo padrão, criando a saga Doomsday Clock.

Estamos em 2019: Damon Lindelof, co-criador de séries como Lost The Leftovers, decide liderar uma adaptação de Watchmen para a HBO. O primeiro episódio é lançado no dia 20 de Outubro. Hoje, eu escrevo a resenha.

É verão e estamos ficando sem gelo.

Watchmen Trailer Looking Glass

A primeira sequência do episódio talvez seja a mais importante para estabelecer o tema principal dessa série, que promete utilizar o contexto político e social dos quadrinhos para desenvolver uma crítica mais pertinente ao crescimento de grupos fascistas e supremacistas brancos nos EUA. Tudo começa em 1921, durante a rebelião racial de Tulsa, na qual a comunidade negra de Oklahoma é covardemente atacada por brancos intimidados com o crescimento de distritos como Greenwood, um dos mais ricos do estado, habitado por negros. No meio do tumulto e dos linchamentos, seguimos um casal tentando salvar seu filho o enviado em uma carruagem com uma mensagem no bolso.

Em seguida, somos introduzidos ao ano 2019 da série, que mesmo sendo uma versão alternativa do nosso, se passando no mesmo universo dos quadrinhos (aparentemente, o filme não será levado em conta), comenta a realidade fora da tela. Depois dos eventos do quadrinho, que termina com o personagem Rorschach entregando seu diário contendo os planos de Adrian Veidt, o Ozymandias, e todos os outros integrantes do grupo Watchmen, a série explora as sequelas da despedida do Dr. Manhattan, assim como a catastrófica solução de Veidt para trazer a paz mundial.

Talvez a decisão mais radical da série, ainda que faça total sentido (eu vou explicar na parte de spoilers), é transformar Rorschach em uma figura de resistência para um movimento de supremacistas brancos chamado Seventh Kavalry (seria apenas uma referência ao regimento dos EUA ativo em grandes guerras, ou uma ligação mais forte com um diálogo dos quadrinhos onde Veidt menciona a cavalaria como contraste para o apocalipse?). No 2019 de Watchmen, é a vez da polícia usar máscaras e se auto-intitular a vigilante máxima da sociedade, respondendo o questionamento em latim “Quis custodiet ipsos custodes”, traduzido por Alan Moore para “Quem vigia os vigilantes”. Mas ainda há obstáculos para a própria polícia, que precisa de códigos de segurança mais restritos quando envolve o uso de armas, que agora tem uma trava liberada apenas por autorização geral.

Entre os policiais, ainda há vigilantes encapuzados, como Angela Abar (Regina King) e Looking Glass (Tim Blake Nelson), que procuram trabalhar na margem da lei, mas dessa vez de maneira mais organizada.

Além de uma boa construção de mundo e um ótimo elenco (Regina King e Jeremy Iron prometem ser a maior força dramática da série), esse primeiro episódio, dirigido por Nicole Kassell, tem um excelente trabalho do departamento de direção de arte, com uma bela fotografia que apresenta a iconografia dos quadrinhos, com ovos que formam o rosto sorridente do bóton do Comediante ou a gota de sangue caindo no distintivo de um dos personagens, sem contar as composições que tentam replicar o formato de um relógio de bolso e seus ponteiros. Vale mencionar a composição musical da dupla Trent Reznor (da banda Nine Inch Nails) e Atticus Ross, responsáveis por filmes como A Rede Social e Garota Exemplar, aqui aumentando a força da narrativa com uma atmosfera mais sombria e tensa através do piano melancólico de Reznor.

It’s Summer and We’re Running Out of Ice é um ótimo começo para a série, estabelecendo muita coisa dos quadrinhos e desenvolvendo outras que prometem colocar o dedo na ferida. Alan Moore já abordou em Watchmen alguns tópicos relevantes do nosso 2019, como os direitos LGBTQ+ ou o risco de acreditar na carisma de figuras fascistas, mas a atenção da série ao debate racial pode ser um ângulo intrigante capaz de transformar a série em algo próprio, ao contrário de outros materiais que tentaram apenas recriar a sensação do quadrinho original.

Sob o Capuz: Referências e Teorias (SPOILERS)

Watchmen

Como é apenas o primeiro episódio da série, vou deixar apenas algumas das coisas curiosas que achei enquanto assistia o episódio.

  • O livro SOB O CAPUZ, a autobiografia de Hollis Mason (primeiro Coruja, do grupo Minutemen, os heróis que atuavam antes dos Watchmen), pode ser visto na mesa do escritório de Judd Crawford. E por falar em Crawford, o episódio dá alguns indícios de que ele possa ser o segundo Coruja, Dan Dreiberg, como sua caneca em formato de coruja ou o fato de utilizar a Arquimedes, nave do herói nos quadrinhos. É claro que ele poderia simplesmente estar usando um de seus nomes falsos depois dos eventos da HQ, mas depois da revelação final do episódio fica difícil continuar acreditando que ele seja o Coruja.
Watchmen Sob o capuz
  • A CHUVA DE LULA que acontece enquanto Angela Abar está trazendo seu filho da escola é uma clara referência ao clímax causado pro Adrian Veidt nos quadrinhos, na qual ele desenvolve uma lula mutante para aterrorizar a humanidade orquestrando um falso ataque alienígena. Isso deixa evidente que a série é uma sequencia da HQ e não do filme. Falando nisso, na cena anterior podemos ver um quadro com a imagem dos principais presidentes dos EUA, e um deles é Robert Redford, uma piada com a última página do quadrinho, onde brincam com a possibilidade de um ator na casa branca.
Watchmen Polvo
  • O personagem JUSTIÇA ENCAPUZADA tem bastante destaque na série, sendo o “rosto” principal nos anúncios do futuro documentário sobre os Minutemen, aparecendo em uma propaganda de ônibus e nos comerciais da TV. Na própria HQ, Hollis Mason diz em sua autobiografia que ninguém sabe a verdadeira identidade do Justiça Encapuzada, mas por conta de sua roupa, idealizada com uma corda em forma de forca no pescoço e um capuz roxo como máscara, a principal teoria é que seja um homem negro (possivelmente homossexual, isso de acordo com Hollis). Assistindo ao episódio não pude deixar de imaginar que o idoso da cadeira de rodas, que aparece lendo seu jornal e fazendo comentários aleatórios para Angela (e no fim revela-se o garoto com o bilhete da sequencia de abertura), é o verdadeiro Justiça Encapuzada. E isso faz total sentido, considerando a camisa roxa, a idade e as suposições de Hollis.
  • Uma das coisas que mais aguardo na série é o retorno de Adrian Veidt, que tem poucos minutos no episódio, mas já revela estar trabalhando em uma peça, uma tragédia em cinco atos — o que provavelmente será mais um de seus planos para trazer a paz mundial que tanto almeja. Um dos indícios de que Adrian pode estar mais uma vez por trás de uma grande conspiração é uma rápida tomada na qual podemos ver um jornal com a manchete que diz “Veidt é Oficialmente Declarado Morto”. Ou esse é o primeiro passo para seu esquema mirabolante, ou a série está experimentando com uma narrativa não-linear, o que não seria surpresa agora que tantas séries estão fazendo isso, como a própria Westworld, da HBO.
Watchmen Veidt Morto
  • Entre todos os nomes mencionados no episódio, o que achei mais curioso foi PIRATE JENNY, utilizado por uma vigilante trabalhando ao lado de Judd Crawford, pilotando a Arquimedes. Pirate Jenny é o título de uma música (macabra) da cantora Nina Simone, uma das favoritas de Alan Moore, tanto que ele utiliza a letra da canção como inspiração para os Contos do Cargueiro Negro, uma história dentro da história de Watchmen. Para ser mais exato, o Cargueiro Negro é um quadrinho sobre piratas que os jovens leem no universo de Watchmen, já que heróis encapuzados são uma realidade, quadrinhos como da Marvel e DC não fazem sentido. Um trecho da letra traduzida: “Há um navio, o Cargueiro Negro. Com uma caveira em seu mastro. Eles estão chegando”. Ouça a música.
Watchmen Pirate Jany
  • O aspecto mais polêmico do episodio envolve Rorschach e os Supremacistas Brancos. Eu entendo quem talvez tenha se incomodado com isso, mas eu considero um dos grandes acertos do episódio. Tirando o fato do grupo de supremacistas generalizar seu preconceito, se estendendo também aos policiais, a inspiração deles é em um personagem claramente preconceituoso — e não me entenda errado, adoro o personagem, mas posso gostar dele e não gostar de suas atitudes ao mesmo tempo (ponto para o roteiro de Alan Moore, como sempre). Nas HQs, Rorschach está constantemente fazendo comentários sexistas e homofóbicos sobre seus companheiros de trabalho, como chamar Veidt de homossexual, por exemplo. Isso sem contar que o personagem é um ávido leitor do jornal The New Frontiersman, direcionado ao público mais reacionário. Há várias outras menções na HQ, mas a mais gritante é quando uma das vizinhas de Rorschach o chama de “pervertido nazista”. Essa parte pode ser polêmica, mas não infundada.
The Watchman HBO
Watchmen Rorshach Mark Hill/HBO
  • Para fechar os meus destaques (há outros, mas não quero deixar isso muito grande e outros ainda precisam ser confirmados), é bom saber que algumas coisas nunca mudam e Alan Moore ainda não aceita ser creditado em nenhuma adaptação de suas obras, deixando todo o crédito para o artista Dave Gibbons.
Watchmen Final

Essas foram algumas das minhas considerações sobre o primeiro episódio da série de Watchmen, It’s Summer and We’re Running Out of Ice. Deixe nos comentários o que achou do episódio e das mudanças.

Nos vemos na próxima semana.

Tick, tock, tick tock.

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SAGA – Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos

Poucas HQs foram tão aclamadas pelo público e crítica quanto Saga. Com argumento de Brian K. Vaughan (Y: O Último Homem) e arte de Fiona Staples (Archie), a revista, publicada pela Image Comics, é uma das space opera mais criativas que você vai ler. Em um mundo onde humanoides com uma televisão no lugar da cabeça comandam um exército e felinos podem detectar se uma afirmação é verdadeira ou falsa, seguimos Alana e Marko, um casal fugindo das autoridades por terem concebido uma criança em período de guerra entre as suas duas raças. Alana vem de Aterro (Landfall, no original), o maior planeta da galáxia, mais militarizado e acostumado ao uso de tecnologia. Marko, por outro lado, vem de Grinalda (Wreath), a lua natural de Aterro, onde seus habitantes tem bastante conhecimento no uso de magia.

Uma das coisas mais curiosas da série, logo de cara, é a sua estrutura. A história é narrada pelo bebê do casal, Hazel, mas de um período não determinado no futuro. Ainda que ela sirva como um narrador onisciente (e presente), o leitor não se restringe ao núcleo dramático de sua família, fazendo assim com que as conversas e conspirações entre os governos possam ser observadas com cautela, e a jornada de O Querer (The Will), um caçador de recompensas de Grinalda, encarregado de deter o casal e capturar a criança, possa se desenvolver com bastante tensão.

As seis primeiras edições, compiladas no primeiro encadernado da série, tem a tarefa de apresentar os personagens e pelo menos uma parcela de seu universo – o que não é fácil, considerando a quantidade de elementos e temas que Brian K. Vaughan promete explorar (aqui eu me atenho apenas ao que é introduzido no primeiro encadernado), com debates sobre a natureza da guerra e da perversão humana, um tópico que fica evidente quando assistimos a missão de O Querer terminar com uma revelação chocante envolvendo escravidão sexual.

SAGA - Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos

O mundo de Saga é rico em detalhes, mas não são apenas as informações sobre magia e figuras importantes que chama a atenção, mas a maneira como o cotidiano é retratado com uma naturalidade incomum nos quadrinhos, revelando como o casal principal tem mais problema enfrentando os desafios da parentalidade e as discussões da relação ao invés das ameaças armadas que surgem em cada esquina (mesmo quando não há uma). Isso faz com que o público compreenda com mais facilidade os personagens, sem contar que todos possuem um certo charme e sabem divertir, mesmo tendo um papel mais antagônico.

O roteiro de Vaughan tem um ritmo excelente, sabendo mesclar com sucesso a comédia, o drama, o terror e a violência; e mesmo que os diálogos não sejam um grande destaque, contribuem para a construção dos personagens e resumem bem os pontos mais importantes da trama. Através deles, podemos compreender o comportamento mais pacifista de Marko, a atitude sarcástica de Alana, a fachada intimidadora de O Querer, ou o descontrole emocional do Príncipe Robô IV (aquele humanoide com uma TV na cabeça que mencionei anteriormente).

Mas se o roteiro de Vaughan mantém o interesse do leitor é por causa da arte de Fiona Staples. A canadense começou sua carreira com pequenos projetos e participações pontuais em alguns materiais, como a antologia de horror Contos do Dia das Bruxas, adaptação do filme de mesmo nome. Staples consegue um desenho expressivo e de enorme impacto visual, não importa o quão violenta ou inocente seja a proposta da página.

Tenho lido várias comparações da HQ com produções como Star Wars, Game of Thrones ou até a tragédia de Shakespeare, Romeu e Julieta, mas ainda que a intenção seja boa, nenhum desses exemplos realmente representa o que Saga faz, um debate relevante através de uma interpretação introspectiva das suas space opera favoritas, o que prova porque ela tem chamado tanta atenção.

SAGA - Vol. 1: Magia, Espadas e Recém-Nascidos
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Por que você precisa ler O “IMORTAL HULK”

Texto publicado originalmente no site Rima Narrativa, em 28 de Julho de 2018, postado aqui com algumas atualizações.

Quando Matt Fraction começou com sua fase de Hawkeye (Gavião Arqueiro), não demoraram nem cinco edições e eu já estava elogiando e achando uma das melhores coisas que eu já li pela Marvel.

Isso há seis anos, quando ainda estava saindo nos EUA, e desde então eu não tive muitos motivos para criar outro texto especulando materiais promissores, e olha que tivemos o Visão, de Tom King, que eu gosto bastante, mas não tive a chance de debater por aqui. E por falar no King, ele também merece ser exaltado por seu trabalho comandando fase do Senhor Milagre.

Ainda assim, tivemos bons materiais das duas grandes editoras do mercado: Marvel e DC, mas nada que me impressionasse como Immortal Hulk.

Immortal Hulk

Escrita por Al Ewing, com artes de Joe Bennett (e capas de Alex Ross), essa série promete uma abordagem diferente para o gigante esmeralda, com uma ambientação muito mais aterrorizante, e não foi à toa que alguns estão comparando essa fase com a clássica do Monstro do Pântano, de Alan Moore e John Totleben. Isso faz sentido, já que as duas lidam um dilema existencial, uma atmosfera de mistério que paira por conta da presença destas figuras em qualquer lugar e o rastro de destruição deixado por eles.

Em Immortal Hulk, começamos tudo do jeito que muitos fãs já conhecem, com um Bruce Banner fugindo das autoridades, tentando se esconder entre a multidão e levar uma vida sem conflitos. Vale lembrar que essa história se passa depois dos acontecimentos da saga Guerra Civil II, de Brian Michael Bendis, que – sejamos honestos – foi um desastre.

Aqui os eventos da saga são brevemente mencionados através da narração de Banner: “Certa vez, pedi para um conhecido lançar uma fecha especial direto na minha cabeça. Foi uma situação complexa, vou te poupar dos detalhes”. E depois dessa sutil crítica ao que o personagem passou recentemente, é bom ver como até isso foi bem integrado no enredo, com a “morte” servindo como um novo pretexto para Banner deixar de ser o centro das atenções e vagar sem ser notado. Infelizmente, isso é quase impossível, porque a criatura verde parece ter uma voz cada vez mais forte na relação de médico e monstro dos dois, essa que é retratada aqui com uma mescla de horror e angústia. É como se o Hulk fosse, além de um acidente de laboratório, uma assombração. Não é uma ideia inédita, mas aqui é feita com um toque mais “refinado” que o normal.

Immortal Hulk

Tudo começa com um tiro. Um jovem assustado tenta roubar uma loja de conveniências mas acaba puxando o gatilho na hora errada. Além de matar uma adolescente, acerta Bruce Banner. Tomado pela fúria, Hulk decide fazer justiça com as próprias mãos e procura satisfação com o jovem e a gangue que o obrigou a fazer o roubo. A destruição causada pela criatura atrai a atenção das autoridades e dos noticiários.

No começo, a maior parte da trama tem mais foco na tensão criada pelo personagem e as reações de quem ele atinge do que apenas batalhas exageradas para mostrar o quão forte ele é. Essa proposta lembra bastante a série clássica da televisão, O Incrível Hulk, estrelada por Bill Bixby e Lou Ferrigno, que você pode acusar de datada o quanto quiser, mas tinha um bom roteiro e empresta um pouco dele para esse novo quadrinho, que não esquece de fazer pequenas referências aqui e ali, seja na manchete de um jornal ou na icônica imagem de Bixby solitário pela estrada.

Essa dinâmica forma uma narrativa com possibilidades para coisas incríveis, como a excelente edição #3, “Ponto de Vista”, formada por depoimentos de pessoas sendo interrogadas pela repórter Jackie Mcgee. Temos um policial, um barman, um padre e uma idosa, cada um mais esquisito, engraçado ou assustador que o outro  —  aliás, uma decisão criativa bem inteligente foi chamar desenhistas diferentes para ilustrar cada depoimento, como Leonardo Romero e Paul Hornschemeier.

immortal hulk

Immortal Hulk vem cumprindo todas as promessas com êxito, seja no roteiro detalhado de Ewing ou no traço forte de Bennett, que ao lado da arte finalização de Ruy José (ele, assim com Bennett, representa o Brasil lá fora. Isso é algo que eu sempre gosto de mencionar), deixa as coisas mais impactantes visualmente, com peso, mas sem ser grosseiro demais. É a quantidade certa de agressividade que uma HQ como essa precisa.

Depois de ter feito um tremendo sucesso com a crítica e vendendo até mais que o Batman nos EUA, o quadrinho finalmente chegou ao Brasil, pela Panini, em um encadernado que reúne suas cinco primeiras edições. Se você ainda não teve a chance de ler, está perdendo um dos materiais mais criativos dos últimos anos, talvez da Marvel inteira. Daqui para frente, torço para mais conteúdo nesse nível.

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Homem-Aranha 2 | A Força do Personagem

Essa matéria foi publicada originalmente no site Rima Narrativa.

Está na hora de falar do amigão da vizinhança e aquele que é, sem duvida alguma, seu melhor filme até o momento.
Na última década tivemos algumas adaptações e produções originais de qualidade. A Marvel já nos surpreendeu com filmes como Soldado Invernal e Guardiões da Galáxia, além de Vingadores, obviamente. A Fox, mesmo recebendo muita reclamação, é responsável por alguns bons X-Men, além do divertido Deadpool e o surpreendente Logan, que deixou muitos fãs chorando na saída do cinema. E a DC, por mais que tenha alguns filmes de qualidade discutível, é responsável por aquele que é considerado por muitos como “O maior filme baseado em quadrinhos do cinema”: The Dark Knight.

Mas eu queria dedicar esse tempo com vocês para debater um que, mesmo sendo bastante adorado, não parece receber toda a atenção que merece: Homem-Aranha 2.

Homem Aranha 2

Esse é o filme que melhor representa para mim o que chamados de “filmes de super-herói”, e posso arriscar dizer que é o meu favorito de todas as adaptações de quadrinhos.

Eu vou explicar.

Lançado em 2004, Homem-Aranha 2 é uma das melhores continuações de uma franquia no cinema. Com personagens envolventes, ótima ação e um enredo ainda melhor (mesmo toda a franquia tendo uma premissa parecida, o que não quer dizer muita coisa quando analisamos a narrativa mesmo).

Conte quantas vezes você não olhou para relógio em vários filmes esperando as cenas de ação e o personagem uniformizado te salvar daquela trama chata. Na maioria das vezes, isso acontece porque você não se interessa o suficiente pelo personagem, o filme não tenta criar uma conexão forte entre a pessoa e o herói, e na maioria das vezes, quando cria uma, ela é bem rasa e fica só no roteiro. Mas Homem-Aranha 2 é sobre Peter Parker, ele é o verdadeiro herói, com ou sem o uniforme.

No filme, Parker está tendo problemas para separar todas as suas vidas: trabalhando como entregador de pizza (it´s pizza time!) e tirando fotos da ameaça aracnídea para o Clarim Diário (o aluguel não se paga sozinho), dedicando mais tempo para os estudos, sua tia, vida amorosa…  e claro, ele é o amigão da vizinhança.

Homem Aranha 2

Ao longo do filme, podemos ver um Peter cada vez mais desmotivado, tendo que lidar com o ódio de seu melhor amigo, Harry, pelos acontecimentos do primeiro filme (o pai de Harry morreu durante uma batalha com o Aranha), e Mary Jane parece um sonho cada vez mais distante. Além disso, sua tia May sente o peso da perda de seu marido. Peter decide largar o seu lado Aranha e aceita que só poderá ser completo se focar no lado Parker. O filme toma seu tempo e dedica uma boa parte na vida dele.

Enquanto muitas adaptações por aí tentam fugir do formato estabelecido pelos quadrinhos, anunciando seu realismo ou o quão sombrio são, Homem-Aranha 2 abraça todas as coisas mais inocentes e até um pouco bregas das revistas e mantém no filme. Frases de efeito, vilões exagerados, cores vibrantes e momentos absurdos. O que impressiona é que tudo isso funciona aqui porque sabemos que o importante é criar um bom filme, sabendo usar todos esses elementos de forma inteligente.

O longa abre com uma sequencia perfeita ilustrada por Alex Ross (sim, se liga no nível) com a trilha de Danny Elfman. Aqui temos um dos melhores trabalhos de Elfman, e a melodia é tão boa que você reconhece nos primeiros segundos.

Esta abordagem mais inocente não compromete o drama e os momentos mais sérios, e por isso o enredo é um ponto alto, dando tempo para cenas importantes desenvolverem-se organicamente. O filme também se arrisca bastante, não só aceitando estes elementos exagerados, mas também experimentando e brincando com o formato, o que infelizmente vejo cada vez menos em produções do gênero.

Um grande acerto do filme foi manter Sam Raimi na direção. Raimi sabe bem como é ser criativo com pouco orçamento. Responsável por filmes como a trilogia Evil Dead e o primeiro longa de Darkman, ele se mostrou um daqueles diretores para se ficar de olho. E seu trabalho com o Aranha foi provavelmente o melhor de sua carreira, foi onde mostrou tudo que aprendeu ao longo dos anos, com um visual mais limpo e atenção aos detalhes.

Raimi tem um estilo único, principalmente a forma como usa a câmera. Ele é um dos poucos que consegue colocar uma cena de tentáculos metálicos esquartejando uma equipe médica inteira em um filme cheio de comédia e aventura sem comprometer o tom. As várias maneiras de mostrar isso sem que pareça gráfico demais para o público é um dos motivos para eu gostar tanto de Raimi na direção, com a ajuda de uma montagem ágil e dinâmica, é claro. Mas a maior vitória de Raimi foi com os personagens. Homem-Aranha 2 valoriza cada interação e diálogo. Algumas cenas chave entregam o coração do filme.

Uma das minhas favoritas é quando Peter tem seu primeiro encontro com Otto Octavius para conversar sobre sua pesquisa. A principio é apenas uma parte do filme que serve para apresentar Otto e sua esposa, mas para Peter, este é um dos momentos mais importantes. Ele não está por conhecer seu ídolo, mas também é a primeira vez que ele consegue conversar com alguém que o entende, e a cena é toda montada como se fosse um jantar de família, não apenas um encontro casual. Peter se sente bem naquele meio, ele nunca chegou a conhecer seus pais e seus pais não tiveram a oportunidade de ver Peter crescendo. 

Aqui Otto é a figura paterna que Peter sempre quis ter, alguém para motiva-lo. Ele chega até a dar bronca em Peter sobre a quantidade de faltas na faculdade e dá conselhos amorosos para o jovem. Esse tipo de interação, por mais simples que pareça, é necessária e uma das que faz o filme muito mais humano e convincente. Quando você percebe o que Otto representava para Peter, a sua despedida no último ato tem um sentido ainda maior.

Homem Aranha 2
“Nunca se deve guardar alto tão forte quanto o amor em segredo”

A relação de Peter com MJ também está diferente. Ela precisa de Peter ao seu lado, e dá várias chances para que ele se esforce mais. Está claro que ela não está feliz na sua relação atual, chegando até a tentar reencenar com seu namorado o beijo que teve com o Aranha no primeiro filme, mas não sente a mesma coisa. Enquanto isso, Peter está se esforçando para voltar a ser quem era, estudioso e assíduo, além de um bom sobrinho.

Sobre a tia May, já é triste ver a pobre senhora forçando Peter a aceitar dinheiro para pagar o aluguel, mesmo que ela não tenha muito para dar, e é doloroso ver o que acontece com o dinheiro: o senhorio do apartamento onde Peter mora arranca da mão dele (vale mencionar que o nome do senhorio é Ditkovitch, referência ao roteirista clássico do Aranha, Steve Ditko). Este é o tipo de decisão narrativa que evidencia como Peter anda se sentindo. Todas as poucas alegrias que tem vão embora como se ele nem estivesse ali. É só lembrar das cenas onde ele vai comprar as flores para a peça de MJ ou tentar pegar uma taça de bebida na festa.

São estes pequenos momentos que fazem o filme mais humano, estas pequenas decisões que transcendem o personagem para algo mais convincente. Ver a evolução de Peter Parker, de um jovem cheio de duvidas para um homem que sabe que deve fazer o certo, mesmo que isso resulte em magoar aqueles próximos dele. Aqui ele finalmente entende que com grandes poderes vem grandes responsabilidades.

Homem Aranha 2

O filme ainda acha espaço para situações cômicas memoráveis. Jk Simmons como JJ Jameson talvez seja uma das decisões de casting mais certeiras da história do cinema. A entrega de pizza para “Dra Brennan” (Emily Deschanel) e “Ash” (Bruce “Deus” Campbell) como segurança do teatro também são hilárias. Mas como este é um filme de super-herói, tem que ter ação. E deixei o melhor para o final.

Raimi sabe muito bem o que deixar ou não no seu enquadramento. Ele tem uma ótima noção de espaço e ritmo. Assim como fez em Evil Dead, deixou muitas sequencias de Homem-Aranha memoráveis. Estas cenas ainda se sustentam, até mesmo quando o CGI se torna bem óbvio. Raimi tem o costume de usar efeitos práticos, então a maior parte da ação foi realmente executada por atores ou dublês. Eu poderia falar do salvamento da tia May, da entrega de pizza, da batalha no banco, mas é claro que você só está pensando na cena do trem.

Homem Aranha 2

Essa é facilmente a minha batalha favorita de um filme de super heróis. É logo depois dele decidir voltar com o uniforme, então o Aranha está realmente motivado. A luta é frenética e a trilha de Elfman é uma maravilha. No fim, ele salva o trem e é salvo pela população. Nesta cena, perde a máscara, algo recorrente no filme que reforça o tema de alter ego. Peter vive tentando esconder sua máscara, deixar de lado sua parte heroica. O círculo se fecha quando o próprio Peter tira sua máscara para Otto, ele quer que o vilão se lembre do homem que foi.

As maiores batalhas do filme são as internas, Peter sabe que não se sente bem sendo outra coisa além de um herói, por isso cenas importantes como a tia May jogando os quadrinhos de Peter fora, a lembrança de tio Ben no carro e a confissão para MJ no final são tão importantes. Homem-Aranha 2 é o filme perfeito para quem procura todas as emoções que um filme pode entregar de uma vez só, nunca forçado, nunca fora de lugar. Talvez seja difícil ter algo tão equilibrado no futuro, principalmente com os estúdios pensando cada vez mais em criar uma linguagem uniforme entre seus universos compartilhados. Então, por enquanto, não consigo pensar em filme que melhor represente uma adaptação dos quadrinhos do que este.

E se você é daqueles que leva notas do Metacritic e Rotten Tomatoes em consideração, esse filme está muito acima da média. Merecidamente, claro.

Homem-Aranha 2 tem muuuuito mais coisas para serem analisadas, mas aí vamos ficar o dia inteiro aqui. Por enquanto é só, mas como eu provavelmente não vou calar a boca sobre Homem-Aranha nesse site, daqui a pouco estarão ouvindo mais sobre o assunto.

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A Narrativa Gráfica em Watchmen

Spoilers de Watchmen

Watchmen é uma das maiores obras dos quadrinhos. Uma das mais aclamadas e estudadas da história. Todos sabem sobre sua fama, como esteve na lista de melhores leituras da Times, inspirou um longa dirigido por Zack Snyder (que não será o foco aqui) e mudou a percepção do público sobre quadrinhos e seu potencial.

Watchmen foi lançada entre 1986 e 1987 através de 12 edições pela DC Comics. Não demorou muito para a onda das graphic novels tomar conta do mercado com a chegada de outros grandes lançamentos como SandmanO Cavaleiro das Trevas ou A Queda de Murdock. Assim, a série logo foi encadernada em um único volume. Os roteiros são de Alan Moore e a arte é de Dave Gibbons, e o resultado é um comentário sociopolítico cheio de acidez e ironia, onde assistimos um bando de super heróis aposentados lidando com um possível assassino atrás dos encapuzados de outrora. É um grande mistério cheio de subtexto sobre a guerra do vietnã, a guerra fria, a paranóia e histeria coletiva, a contracultura norte-americana e muito mais.

Enquanto muitos mencionam a violência, sexo, ótimos personagens e maravilhosa arte de Dave Gibbons, há um elemento ignorado por alguns que sempre me impressionou: sua estrutura narrativa e gráfica. Vamos começar com calma.

A estrutura de 3 atos é a mais básica e pode ser encontrada nas pequenas tiras de jornal. Nós temos o primeiro ato, o “Começo”, onde a informação é estabelecida para prover contexto para a história. Nos perguntamos onde, quando, quem, qual, por quê… Com o contexto definido temos nosso segundo ato, o “Meio”, onde os personagens tentam alcançar algum objetivo e encontram um conflito. Geralmente é nessa parte onde começamos a entender a premissa, o que está sendo construído. O conflito traz a potencial “Morte da premissa”, onde ela chega no seu terceiro ato, ou o “Fim”, onde há uma resolução para o conflito.

Act Story Structure

Mas essa é apenas uma maneira de ver as coisas. Há muito mais em uma narrativa do que apenas três atos. Há muito mais do que início, meio e fim e nem sempre nessa ordem. Ao escrever um roteiro pensamos em como desenvolver os personagens e como isso fará parte do enredo. Se você é Alan Moore, seus roteiros são gigantescos e extremamente detalhados. Só para você ter uma ideia, ele fez quatro páginas descrevendo apenas a primeira página da HQ. Cada ângulo, balão de diálogo e até sensação de textura são minuciosamente apresentados no roteiro. Mesmo que o autor tenha declarado dar liberdade para os desenhistas, fica bem claro que o que ele quer, ele quer precisamente do jeito que está em sua mente. Essa é uma obra onde o diabo realmente está nos detalhes, ainda mais considerando como o clímax da HQ é previsto ao longo de toda a história através de diálogos inteligentes e a sutileza do autor em construir cada pedaço de seu universo.

Uma curiosidade que me faz respeitar Alan Moore ainda mais é sua decisão em usar as páginas finais dedicadas aos anúncios da editora para desenvolver ainda mais do universo de Watchmen, chegando até a um exercício de metalinguagem quando aproveita um desses espaços para fazer um anúncio de um produto da (fictícia) indústria Veidt, com relatórios sobre bonecos, perfumes e a equipe de marketing e desenvolvimento. Além desses, temos alguns capítulos de amostra para o livro de Hollis Mason, Sob o Capuz.

Voltando à estrutura, uma das mais comuns na literatura é a estrutura dramática apresentada por Gustav Freytag, que desenvolveu um esquema quinário para os atos, ou seja, de cinco atos. Como podemos ver na imagem, temos introduçãoação em ascensão, o clímax, a ação em declínio, chegando no desfecho, ou resolução. Podemos também esperar uma mudança neste esquema se considerarmos o modelo funcional de Propp, que usa as atitudes dos personagens como ações que definem a narrativa. Mas é um conceito mais longo e complexo que eu vou abordar no futuro e sobre uma outra obra. Voltando para Gustav, temos estes cinco níveis com nomes auto-explicativos.

Freytag Pyramid

Se formos colocar Watchmen nesta estrutura de forma bem crua, seria mais ou menos assim: Temos a introdução, onde descobrimos que o Comediante foi encontrado morto, o que causa uma comoção na comunidade de encapuzados e nos leva direto para a Ação em Ascensão, onde a trama se desenrola e o mistério começa a ser investigado para que no Clímax tenhamos uma grande reviravolta ou mudança capaz de afetar o futuro da história. Com a ação em declínio, vemos o desenrolar do clímax, o resultado das ações de Adrian. No fim, a Resolução, onde vemos como aquele mundo ficou depois de toda a jornada dos heróis e sua influência. O último painel mostra o diário de Rorscharch, e sabemos que ele andou escrevendo sobre tudo que aconteceu para que o mundo ficasse daquele jeito. O balanço das coisas pode mudar mais uma vez.

Podemos ver a maneira que Alan Moore se apropria deste modelo, até mesmo na primeira página da HQ, começando a história DEPOIS do assassinato do Comediante. O que chamamos de Inciting Incident, ou o “incidente que motivou a trama”, acontece logo de cara. Isso faz com que Watchmen deixe a introdução dos personagens principais para depois, durante o enterro do Comediante, e pule direto na ação em ascensão enquanto assistimos os legistas conversando sobre sua morte, o que também serve como a introdução para o mundo do quadrinho.

Mas deixando um pouco de lado esse debate sobre atos, devemos lembrar que estamos falando de um quadrinho, que é uma forma de arte com características únicas, então vamos entrar um pouco no debate sobre ritmo e como a estrutura narrativa funciona em uma HQ. Para isso, vou precisar da ajuda de Scott McCloud. Para quem não conhece, McCloud é um dos maiores nomes no debate teórico sobre quadrinhos, ele é basicamente o Robert McKee da nona arte, então ele sabe o que fala.

Actions

Em Desvendando os Quadrinhos, McCloud fala um pouco sobre as transições que podem ser feitas entre os painéis de uma HQ. Seja de momento para momentoação para açãosujeito para sujeitocena para cenaaspecto para aspecto e non sequitur (imagem ao lado), que é uma expressão para falácia lógica, mais comum em quadrinhos com uma abordagem abstrata — mão confundir com as viagens alucinógenas de Grant Morrison — ou pode confundir, dependendo de qual HQ estiver lendo. Piada à parte, é muito mais fácil encontrar quadrinhos onde o foco está na ação para ação, sujeito para sujeito ou cena para cena, indo de alguém bloqueando um soco para devolver com outro na sequência, por exemplo.

Em Watchmen, temos um grande foco nas transições de momento para momento e sujeito para sujeito, com longos diálogos e a reação dos personagens a situação, desenvolvendo múltiplas tramas paralelamente. Para construir a ambientação do universo de Watchmen Moore também usa aspecto para aspecto, mais comum em mangás, geralmente servindo para estabelecer espaço ou a natureza do ambiente. É uma técnica que dá a impressão de ritmo mais lento e contemplativo, mas também traz um pouco de tensão, o que podemos ver muito bem feito nos painéis repetidos em páginas diferentes no quinto volume, intitulado apropriadamente como Terrivel Simetria.

Watchmen tem na sua maior parte uma distribuição de 9 painéis por página. Algumas vezes em uma narrativa linear, outras alternando entre tempo e espaço. O que alguns podem considerar uma decisão básica, eu considero brilhante, principalmente na forma como ele executa sua narrativa através desses nove painéis.

Quadrinho Watchmen

Uma das coisas mais curiosas no formato de 9 painéis é como ele estabelece um ritmo e depois causa um impacto maior destruindo o próprio modelo. Quando chegamos nas cenas mais impactantes da HQ, principalmente no clímax, vemos o uso de uma página completa para mostrar a importância daquele momento. É como diz Michael Brown em seu artigo sobre o quadrinho:

“As cenas de Dr. Manhattan divagando sobre seu passado revelam um desvio da forma de maneira única. Nos quadrinhos, nós esperamos que o tempo flua linearmente de painel para painel. Pulando para trás e para frente através do tempo entre os painéis, o leitor é inserido no conceito de tempo de Manhattan de uma maneira que poucos conseguem”

Quadrinho Watchmen

Há muito que pode ser estudado em Watchmen, mas eu adoro ver como Alan Moore e Dave Gibbons estruturaram sua HQ para diferenciá-la de tudo que era famoso na época, como sacrificar os anúncios por mais história, desenvolver as capas com imagens sem ação ou que apelem para o grande público. Eles aproveitaram tudo que podiam fazer e fizeram, até mesmo criar um tipo de história onde a capa da edição já fazia parte da narrativa (o primeiro painel de todas as edições é uma perspectiva ou ângulo diferente da arte da capa).

Esse foi um grande risco tomado pela dupla, mas como podemos ver é um que mexeu com o que conhecemos sobre quadrinhos até hoje. Watchmen não só trouxe novos leitores para a nona arte, essa é uma HQ que explorou o que pode ser feito com uma indústria que já é conhecida por imaginação ilimitada.

Quadrinho Watchmen

Essa foi uma rápida introdução para a narrativa gráfica de Watchmen. Se tiver interesse por mais matérias como essa, posso trazer mais nesse modelo. É só deixar nos comentários aqui ou nas redes sociais. Até a próxima!

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O Escultor | Scott McCloud põe suas aulas em prática

Scott McCloud dedicou grande parte de sua carreia ao estudo dos quadrinhos. Assim como Will Eisner fez para popularizar o formato como uma “arte sequencial”, McCloud é um grande professor e defensor do potencial desta arte com seus livros didáticos (mas nem um pouco enfadonhos), Desvendando os Quadrinhos, Desenhando os Quadrinhos e Reinventando os Quadrinhos. Se você tem o sonho de fazer algo nesta área, sinta-se obrigado a ler estes livros, que foram estruturados como uma HQ, por motivos óbvios. Neles, o autor define o formato, seu comportamento e todos os elementos envolvidos no processo.

O Escultor

Conhecido também por ter feito Zot!, uma HQ bem humorada e completamente diferente do que as grandes editoras estavam fazendo com seus heróis na época, McCloud se tornou um dos nomes mais respeitados da área. Não posso deixar de mencionar o movimento 24 Hour Comics, um desafio que envolvia a criação de uma HQ de 24 páginas por um único artista em apenas um dia. Neil Gaiman, Steve Bissette e Erik Larsen foram alguns dos que aceitaram o desafio.

Mais de uma década se passou desde que McCloud desenvolveu seu último trabalho, e agora, coloca tudo o que aprendeu com seus próprios livros teóricos em prática, com sua primeira Graphic NovelO Escultor.

Agora vamos falar dela.

David Smith está triste, bebendo sozinho em um bar, pensando em sua carreira, que teve um ótimo começo, mas agora nem paga as contas e serve apenas como uma das frustrações na vida do protagonista. Depressivo e desesperado, faria de tudo para poder se sentir completo novamente, poder criar projetos que fariam as pessoas ficarem sem palavras e esculpir as mais belas figuras.

Faria de tudo, até mesmo um pacto com a morte, e não pensa duas vezes quando recebe a oferta da própria. ”Tudo que importa é a arte”. Assim David tem 200 dias de vida, mas em troca recebe a habilidade de esculpir o que quiser no material que quiser, até mesmo em granito, com as próprias mãos. Ele teria que se preocupar apenas com os dias, se não se apaixonasse por uma jovem que se apresentou como um anjo na sua frente, literalmente.

O Escultor

Não quero entregar mais da trama, já que foi uma das leituras mais interessantes e envolventes do ano, talvez a melhor. Ok, a melhor.

Em O Escultor, McCloud consegue se aprofundar nos temas mais comuns da humanidade, como vida, morte, amor, mentira, ego e solidão. É a forma como aborda estes temas que faz toda a diferença, quando fala das frustrações de seus personagens, do amor inconsequente e irracional que temos por algo que mal conhecemos, do apego, da nostalgia, tudo o que é e poderia ter sido. David é comprometido com seus princípios, assim muitos se identificam com seus esforços para manter tudo aquilo que prometeu, mesmo vivendo em mundo onde a as galerias de arte estão cada vez mais ocupadas pela indicação de um amigo do que a arte em si.

E por falar em arte, a de McCloud é um espetáculo. Simples, animadas e até um pouco cartunescas, em um mundo azul bastante moderado, que fica belíssimo em contraste com outros tons da mesma cor, além do branco e preto que ficam lindos nos painéis maiores e dão uma dimensão e perspectiva agradáveis, principalmente nos momentos mais surreais da história. A cidade tem um papel enorme na história e é desenhada com um detalhe e paciência que só uma pessoa muito talentosa teria. Se você chegar na página em que David caminha pela rua visualizando um calendário sob seus pés, com os dias ausentes representando uma queda para o esquecimento, e não parar por alguns minutos para refletir sobre o que acabou de ver, a única razão lógica para isso é… ok, não existe uma.

Eu diria que nada é perfeito e faria uma menção ao uso de um pequeno recurso narrativo que o autor usa logo no finalzinho da obra, mas que não afeta em nada a trama geral que é desenvolvida muito bem, flui perfeitamente e tem diálogos muito bem escritos. O tempo e espaço entre os painéis é outra coisa que te deixa de boca aberta, as composições e a contraluz fazem com que você se sinta assistindo um filme — por falar nisso, se prepare para procurar referências cinematográficas das mais óbvias, como “O Sétimo Selo”, até as mais escondidas, como de “Clube da Luta”. É tudo dinâmico e nunca cansativo, você pode ler as quase 500 páginas de uma só vez e ainda vai quer mais daquele mundo.

Eu disse que nada era perfeito, mas como prefiro ser esta metamorfose ambulante, retiro o que disse. Esta é a realização de tudo que McCloud tem construído ao longo de sua carreira, fazendo de O Escultor uma das melhores leituras da última década e de longe a minha favorita do ano.

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Quadrinhos

Astro City | Parte 1: A angústia do Samaritano e a Vida na Cidade Grande

Sempre que entro em algum debate sobre histórias em quadrinhos que surpreenderam com a abordagem do mito do herói, escuto respostas como Watchmen ou Planetary, por exemplo. Eu adoro essas duas obras, a primeira é escrita pelo maior roteirista da nona arte, e isso nem é um debate (pode vir nos comentários), mas nessas conversas, sinto falta de alguém defendendo a maravilha que é Astro City, e geralmente sou eu quem precisa dar o primeiro passo. Por isso, decidi criar logo uma sequencia de textos analisando e criando um debate leve por aqui sobre todas as coisas que fazem dessa série uma das melhores que eu já li.

Criada por Kurt Busiek e Brent Anderson, roteirista e desenhista, respectivamente, Astro City é um exercício de criatividade único. Mas para falar dele, precisamos mencionar Marvels, o trabalho que Busiek lançou, através da famosa editora que inspirou o nome do quadrinho, um ano antes.

Em Marvels, Busiek une forças com as ilustrações de Alex Ross para trazer uma história sobre o cotidiano de todos aqueles cidadãos que convivem com os super-heróis do universo Marvel, como Homem-Aranha e a equipe do Quarteto Fantástico. É como se a ideia original de Stan Lee em criar tramas que se interligam entre personagens de séries diferentes em uma mesma edição mensal, mas interpretado de um ponto de vista mais trivial, ou seja, o nosso. A HQ até hoje é um sucesso e está presente em qualquer ranque das melhores obras da editora.

No ano seguinte, quando Busiek decidiu criar uma nova série, agora para a iniciante editora Image Comics, aproveitou a oportunidade para manter a dinâmica de Marvels, só que com novos personagens e um universo próprio. Astro City chegou as bancas pelo selo Wildstorm, da Image, com uma premissa simples e objetiva, mas de portas abertas para incontáveis interpretações e críticas ao formato e o gênero.

Uma das melhores está logo no começo da série, na primeira edição, em uma história intitulada “Em Sonhos”. Na edição temos a figura de um homem nu, porém sorridente, feliz por estar voando sem preocupações. Mas ele logo desperta. Era tudo um sonho e agora ele tem que continuar com sua vida deprimente, como um dos maiores heróis que Astro City já viu: o Samaritano.

Astro City

Assim como Alan Moore fez diversas vezes em sua carreira (com Watchmen Miracleman, principalmente), Busiek nos proporciona uma nova perspectiva do que compreendemos como um super-herói. O que alguém pode ver como uma benção, o herói vê como maldição. Pisando um pouco em território filosófico aqui, apenas para um rápido embasamento teórico (mesmo que eu seja mais um entusiasta no assunto do que um estudante), vamos para o “existencialista” Jean-Paul Sarte. De acordo com o filósofo, a liberdade é uma escolha feita por nós, mas não apenas isso, essa escolha evidencia outras possíveis escolhas. Vivemos pelas nossas escolhas e são através delas que deixamos nossa marca. Mas essa noção de liberdade pode se transformar em uma questão angustiante para quem é e pode mais do que um ser humano normal, como o protagonista da HQ.

O Samaritano é um comentário sagaz de Busiek ao mito da figura mais imponente dos quadrinhos, o homem de aço: Superman. Desde o visual e a fachada de rapaz desajustado para manter as aparências, até mesmo a profissão (assim como Superman, Samaritano também trabalha em um jornal), fica bem óbvia a comparação que o autor faz aqui. Vale lembrar que esse tipo de estudo de personagem baseado em personagens e num imaginário coletivo de outras editoras acontece constantemente em Astro City, é basicamente uma das características principais da série.

Em um dos painéis mais importantes da edição, o Samaritano reflete sobre a possibilidade de viver apenas sua identidade civil, o jornalista Asa Martin. Mas essa decisão significaria não ter mais tempo para atividades heroicas e isso o faz entrar em uma crise existencial.

Astro City

Se ficamos fascinados pelas aventuras do homem de aço com toda sua força e habilidades, o que faz do Samaritano algo moderno e criativo é o paralelo criado entre os dois personagens e o contraste na personalidade. Enquanto um considera sua atividade como super-herói um bem necessário, outro vive o desconforto de dedicar sua vida combatendo o crime e ajudando as pessoas. Isso não implica que o Samaritano seja uma pessoa ruim, ele apenas sofre com o peso da responsabilidade que é colocada em seus ombros.

Como privar o mundo de um poder tão grande? Ele deve sacrificar sua liberdade pelo bem de todos? Esse é um dos debates abertos por Busiek, e isso apenas na primeira edição.

Como já disse, Astro City é um enorme estudo de personagem dentro dos quadrinhos. Utilizar o voo, uma das maiores habilidades do Superman, como uma representação das limitações do Samaritano no mundo real é a melhor maneira de entregar um comentário poderoso. Nos sonhos ele está nu, sem seu uniforme, isso é mais que um sonho, é uma ânsia pela liberdade.

Essa é a precisão com a qual Busiek consegue se aproveitar do universo dos quadrinhos para trazer uma reflexão única e novas perspectivas do que pode ser feito com as narrativas sobre super-heróis.

Astro City
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Cinema Quadrinhos

“I KILL GIANTS” e a importância de adaptar

Aviso: Possíveis spoilers (coisa leve).

Recentemente assisti a adaptação cinematográfica do quadrinho (AKA “gibi”) de Joe KellyI Kill Giants, e enquanto assistia não conseguia deixar de lado a sensação de que algo estava faltando, mesmo com o filme sendo bastante fiel em muitos pontos narrativos. Não sei se era questão de dinamismo durante as cenas de ação, de entrega dramática em momentos mais íntimos entre os personagens ou a direção pouco imaginativa… espera, era isso aí mesmo. Faltava imaginação, algo novo. É tudo bem parecido, o visual é bem atraente e a história segue basicamente cada capítulo na mesma ordem de acontecimentos, pelo menos a maior parte, diria que é bastante fiel ao enredo da HQ, e é aí que entra aquele meu problema com o longa.

Mas, vocês sabem, eu preciso contextualizar tudo e explicar ou refrescar a memória das pessoas sobre a premissa.

Lançada em 2008 pela editora Image Comics, I Kill Giants é desenvolvida por Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, e é protagonizada por Barbara Thorson, uma menina com poucos amigos, mas que consegue reunir uma mesa de RPG para horas e horas jogando Dungeons and Dragons, onde ela geralmente cumpre o papel de “Mestre” (aquele que narra e conduz a aventura imaginária), mostrando seu lado mais criativo, lado este que está sempre presente, mas ela tem que tomar cuidado para não se desviar de seu verdadeiro objetivo: “encontrar gigantes, caçar gigantes e matá-los”. Sua obsessão pelas criaturas é tamanha que se acha na obrigação de alertar todos de um ataque iminente e devastador, e munida de seu poderoso martelo, Kovaleski, segue em sua missão.

Quadrinho I Kill Giants

A trama de Joe Kelly traz uma proposta divertida e promessa de muita ação, mas também é o drama de uma personagem lidando com temas complexos para alguém da sua idade, então a única coisa que pode fazer é recorrer à um mundo fantástico onde ela acredita ser o melhor caminho para continuar negando a realidade. E é só o que vou dizer sobre a trama porque eu não quero estragar a experiência já que a HQ é ótima e facilmente uma das melhores da última década. Mas como nada passa despercebido pelo olhar da indústria cinematográfica, era óbvio que uma adaptação estava chegando.

Devo deixar aqui uma observação sobre o filme Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, 2016), já que muita gente fez comparações com I Kill Giants, mesmo que erroneamente. A HQ original de Joe Kelly saiu antes do livro, lançado em 2011, então temos uns três anos de diferença aí.

Dirigido pelo estreante Anders Walter, o filme é uma adaptação bem fiel ao material original, ainda mais considerando que os próprios responsáveis pela HQ são creditamos como roteiristas. Então isso é tudo, caso encerrado, não precisamos de mais nada além disso, não é?

Então porque ainda fica aquela sensação de que algo está faltando?

Uma afirmação que todos estão fadados a bater de frente, principalmente dentro da “comunidade nerd” (por falta de uma denominação melhor) é a de que “uma adaptação só pode ser boa se for fiel ao material original em todos os aspectos”. E é uma consideração válida, nós queremos ver aquele livro ou quadrinho sendo respeitado, seguindo a exata visão de seus criadores em cada detalhe, sem que nada mude. A essência tem que estar lá. Mas por algum motivos algumas destas mesmas pessoas também não se incomodam com a visão de Christopher Nolan para sua trilogia sobre o Cavaleiro das Trevas.

Sim, alguns elementos podem ter sido pegos de uma fase ou outra, mas o próprio diretor não parecia um grande conhecedor do herói encapuzado, mas fez questão de manter em primeiro plano tudo o que os fãs consideravam importante para o personagem não sofrer inconsistências gritantes. Tirando isso, sua Gotham era muito mais voltada para aquela estabelecida por Tim Burton em 1989, que contribuiu para reformular muito do que conhecemos atualmente do universo de Batman, inserindo sua ambientação e arquitetura mais gótica e a atmosfera de clássicos noir. Pode parecer pouca coisa agora, mas na época foi um marco e continua ecoando até hoje no consciente coletivo de todos os fãs do morcego. E quem diria, grande parte disso foi uma liberdade criativa do diretor e por conta dessas liberdades tivemos ótimos filmes como Blade e Hellboy, ambos de um aficionado pela nona arte, Guilhermo Del Toro. Mas falaremos mais disso daqui a pouco.

Michael Keaton e o diretor Tim Burton no set de Batman (1989)
Michael Keaton e o diretor Tim Burton no set de Batman (1989)

Como Del Toro, temos casos onde o responsável pela adaptação é um apaixonado pelo material original. Sam Raimi dirigiu a primeira trilogia de Homem-Aranha (fiz alguns textos sobre a ameaça aracnídea, é só clicar), estrelada por Tobey Maguire. Mesmo com pequenas modificações na roupa e outra que pode não ter agradado alguns envolvendo os cartuchos de teia –culpe James Cameron por isso -, ainda assim fica evidente como Raimi mescla a comédia e as breguices típicas de quadrinhos do gênero, mas desenvolve seus personagens e nunca deixa de lado o drama pessoal de Peter Parker, o que ele considera o coração de todas as histórias clássicas de Stan Lee e Steve Ditko.

E aí fica uma grande razão para não dependermos demais apenas da fidelidade ao material original: No cinema temos a visão de um diretor mais interessado em criar um espetáculo visual e uma narrativa envolvente do que apenas referências e easter eggs para os fãs acharem, e isso pode parecer um comentário óbvio, mas ainda assim nos apegamos demais aos personagens e suas histórias que fica um pouco difícil aceitar uma interpretação divergente da nossa. Porém o formato é diferente e as necessidades são outras. Vamos usar de exemplo um querido do público, Clube da Luta. Um livro impactante com uma mensagem forte no centro, cheia de metalinguagem e ironia narrativa, coisas que as palavras conseguem revelar de uma forma completamente diferente do cinema. Se em um momento Tyler Durden está fazendo um discurso real demais para as páginas do livro, no filme essa sensação é extrapolada e executada de forma inusitada, com o enquadramento saindo do lugar, a câmera trêmula e o ator olhando diretamente para nós, como se o filme estivesse queimando e fugindo do projetor. Isso foi uma liberdade tomada pelo diretor David Fincher, que fez um trabalho excelente e acabou recebendo elogios do próprio autor do livro, Chuck Palahniuk, sobre como a obra conseguiu criar algo novo e diferente sem sair da proposta de seu trabalho original.

Mas e quando o próprio criador está envolvido na adaptação, assim como Frank Miller esteve em Sin City (2005), dirigido por Robert Rodrigues? Também é complicado, e é um caso bem parecido com o de I Kill Giants, só que em Sin City o responsável pelas decisões narrativas e a direção era Rodrigues, enquanto Miller ficava mais ocupado supervisionando tudo e, quando podia, até dirigia algumas cenas (isso o motivou a realizar seu próprio filme em 2008, uma versão Millerizada de Spirit, o que não deu muito certo). Um dos maiores feitos de Sin City foi manter a paleta monocromática da HQ sem que ficasse estranho, mas sim convidativo e intrigante. É este tipo de adaptação que não faz apenas um longa ser um bom filme baseado em quadrinhos, mas apenas um bom filme.

Com tudo isso não quero dizer que devemos dar uma de Jodorowsky e violar completamente o material original e a visão de seu criador, mas aceitar novas interpretações e formas diferentes de contar uma história podem ser uma experiência incrível. Podemos até ver uma mudança total em perspectiva, como Tropas Estelares, com um livro e um filme com o mesmo tema, mas o debate passa longe de ser o mesmo. A versão cinematográfica de Paul Verhoeven é bem mais leve e cômica (alguns diriam “boba”) em tom e aborda seu comentário político de maneira mais satírica e niilista, uma interpretação que diverge muito da escrita mais intelectual de Robert A. Heinlein(independente de sua opinião política, Heinlein traz questionamentos que vão além da superficialidade da qual o roteiro do filme sofre).

O que eu quero não é fidelidade, mas um compromisso com o material, um que não precise impedir a fidelidade. O que os cineastas deveriam se perguntar não é “Como posso trazer essa história para a tela sem perder coisa alguma” e sim “O que eu quero enfatizar deste material?” (Scott Tobias, do AV CLUB).

Com isso em mente, voltamos para I Kill Giants.

I Kill Giants

O filme pode ser bem fiel, mas também toma pequenas liberdades. Ah, e nessa parte eu tentarei o máximo para não ultrapassar o território de spoilers.

Como na HQ, Barbara interage com criaturas assustadoras e outras nem tanto, já no filme muito dessa manifestação criativa da protagonista é executada de uma forma que posso definir apenas como “genérica”. Não só transformam algo relevante do material original em um grupo de figuras assustadoras (algumas só presentes no filme) sem qualquer personalidade, como perdem a relevância narrativa. Se na HQ o comportamento de Barbara e seu mundo desenvolvem a trama, aqui parecem apenas pontos obrigatórios que o filme precisava riscar da lista para chegar logo no final. E não me entenda mal, eu gostei do filme, achei bem divertido e me entreteve na maior parte, mas mesmo se nunca tivesse lido o trabalho de Joe Kelly, ainda assim estaria com essa indiferença, ou talvez até achasse pior sem conhecer o original.

No fim, fica difícil simpatizar com alguns personagens, principalmente quando não ganham espaço no roteiro. Imaginei que talvez a mudança na bully que intimida Barbara pudesse ser uma boa ideia, mas a sua presença no filme e total falta de importância evidencia ainda mais o que falei sobre “riscar pontos da lista”. A irmã de Barbara e sua melhor amiga estão mais conectados aos dilemas e obstáculos da protagonista, no entanto aqui a atenção do filme é maior nas interações com a psicóloga da escola, a senhorita Mollé, e eu não consigo deixar de imaginar que isso é por conta dela ser interpretada pela Zoe Saldana, o nome mais famoso no elenco, mas eu não quero entrar em debate sobre a indústria cinematográfica agora, então vamos seguir em frente.

O cinema é uma arte visual e é sempre bom quando um filme consegue mostrar muito dizendo pouco (aquele famoso “show, don´t tell”). E mesmo em cenas com longos diálogos como os do roteirista Aaron Sorkin (A Rede SocialA Grande Jogada), eles servem a favor da narrativa e não mastigam informação desnecessária para o público. Mas os quadrinhos são uma mídia diferente e às vezes as partes mais interessantes podem acontecer entre os painéis, onde você é o diretor e sua mente preenche com a imaginação.

Um ótimo exemplo disso (no caso, de como não fazer) é a vergonhosa versão de Ang Lee para o gigante esmeralda em Hulk (2003), um filme cheio de transições e inserções para criar divisões na tela como se fossem os painéis do quadrinho. Sério, é uma das coisas mais feias que eu já vi na vida – e eu gosto do Ang Lee.

Todas as noções de tempo, ritmo e movimento variam de acordo com o formato, e é a mesma coisa quando comparamos o cinema com os quadrinhos.

Scott McCloud explica melhor do que eu:

Quadrinho I Kill Giants

“É por isso que acho um erro ver os quadrinhos apenas como um hibrido das artes gráficas e da prosa de ficção. O que acontece entre os painéis é uma coisa mágica que só os quadrinhos podem criar”.

Assistir I Kill Giants pode ter sido legal, mas não me prendeu como fã de cinema, não é memorável ou traz qualquer coisa nova, diferente ou arriscada, e olha que com uma premissa dessas o que não falta é oportunidade. O filme pode ser bem fiel, repete algumas falas da HQ, recria algumas cenas e faz várias referências, mas nunca tenta ser algo mais e se é para ver a mesma história, não é melhor ficar logo no quadrinho original?

Não sou daqueles que pensa que um filme PRECISA ter uma mensagem grandiosa ou crítica política para ser bom. Ser divertido já é o suficiente, todos gostam de assistir Curtindo a Vida Adoidado para passar um tempo com Ferris Bueller e seus amigos, mas para fazer com que o público continue voltando e se fascinando com o mesmo filme e os mesmos rostos, acredito que ele PRECISA acreditar no que está dizendo e ter coração, e isso não é coisa fácil, mas se você se esforçar, tem horas que sai um Homem-Aranha 2 ou Cavaleiro das Trevas. Tudo que precisa fazer é ser fiel aos princípios e os temas que fizeram o material original tão incrível, daí pra frente é só mostrar para todos o impacto que isso teve em você e compartilhar seu ponto de vista. Só assim podemos ter uma boa conversa.

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Os finalistas do Hugo Awards 2019

No começo de Abril tivemos os indicados deste ano ao Hugo Awards, uma das principais premiações de ficção científica e fantasia. Os finalistas foram indicados pelos membros da World Science Fiction Society, responsável pela Worldcon, uma das convenções anuais mais aguardadas pelos fãs do gênero. E dando uma olhada nas categorias, podemos ver um aumento no número de mulheres e minorias, principalmente por conta de um mercado com mais opções e um espaço relativamente maior para artistas negligenciados há muito tempo. Vou listar aqui de acordo com o site Tor.com. e comentar naqueles que eu já li/assisti.

Melhor Romance

  • The Calculating Stars, by Mary Robinette Kowal (Tor)
  • Record of a Spaceborn Few, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)
  • Revenant Gun, by Yoon Ha Lee (Solaris)
  • Space Opera, by Catherynne M. Valente (Saga)
  • Spinning Silver, by Naomi Novik (Del Rey / Macmillan)
  • Trail of Lightning, by Rebecca Roanhorse (Saga)

Comentários: Eu estou bem atrasado nas minhas leituras esse ano, mas ouvi apenas coisas boas de Trail of Lightning The Calculating Stars, provavelmente os que tem a maior chance de ganhar por conta de todos os prêmios no qual foram indicados recentemente.

Melhor Novela

  • Artificial Condition, by Martha Wells (Tor.com Publishing)
  • Beneath the Sugar Sky, by Seanan McGuire (Tor.com Publishing)
  • Binti: The Night Masquerade, by Nnedi Okorafor (Tor.com Publishing)
  • The Black God’s Drums, by P. Djèlí Clark (Tor.com Publishing)
  • Gods, Monsters, and the Lucky Peach, by Kelly Robson (Tor.com Publishing)
  • The Tea Master and the Detective, by Aliette de Bodard (Subterranean Press / JABberwocky Literary Agency)

Comentários: Finalmente peguei a série Binti no meu Kindle e posso me atualizar, então você provavelmente vai ler sobre ela por aqui no futuro. Gods, Monsters, and the Lucky Peach está sendo bastante aclamado e tem enorme chance de levar.

Melhor Noveleta

  • If at First You Don’t Succeed, Try, Try Again,” by Zen Cho (B&N Sci-Fi and Fantasy Blog, 29 November 2018)
  • The Last Banquet of Temporal Confections,” by Tina Connolly (Tor.com, 11 July 2018)
  • Nine Last Days on Planet Earth,” by Daryl Gregory (Tor.com, 19 September 2018)
  • “The Only Harmless Great Thing”, by Brooke Bolander (Tor.com Publishing)
  • The Thing About Ghost Stories,” by Naomi Kritzer (Uncanny Magazine 25, November- December 2018)
  • When We Were Starless,” by Simone Heller (Clarkesworld 145, October 2018)

ComentáriosThe Last Banquet of Temporal Confections é uma noveleta bem intrigante, com uma narrativa envolvente. Esse foi o único da lista que li, mas os próximos já estão aqui separados para poder avaliar antes da premiação. O mais legal dessa categoria é que alguns indicados são bem fáceis de achar para ler gratuitamente.

Melhor Conto

  • The Court Magician,” by Sarah Pinsker (Lightspeed, January 2018)
  • The Rose MacGregor Drinking and Admiration Society,” by T. Kingfisher (Uncanny Magazine 25, November-December 2018)
  • The Secret Lives of the Nine Negro Teeth of George Washington,” by P. Djèlí Clark (Fireside Magazine, February 2018)
  • STET,” by Sarah Gailey (Fireside Magazine, October 2018)
  • The Tale of the Three Beautiful Raptor Sisters, and the Prince Who Was Made of Meat,” by Brooke Bolander (Uncanny Magazine 23, July-August 2018)
  • A Witch’s Guide to Escape: A Practical Compendium of Portal Fantasies,” by Alix E. Harrow (Apex Magazine, February 2018)

Melhor Série

  • The Centenal Cycle, by Malka Older (Tor.com Publishing)
  • The Laundry Files, by Charles Stross (most recently Tor.com Publishing/Orbit)
  • Machineries of Empire, by Yoon Ha Lee (Solaris)
  • The October DayeSeries, by Seanan McGuire (most recently DAW)
  • The Universe of Xuya, by Aliette de Bodard (most recently Subterranean Press)
  • Wayfarers, by Becky Chambers (Hodder & Stoughton / Harper Voyager)

Melhor Artigo / Ensaio

  • Archive of Our Own, a project of the Organization for Transformative Works
  • Astounding: John W. Campbell, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, L. Ron Hubbard, and the Golden Age of Science Fiction, by Alec Nevala-Lee (Dey Street Books)
  • The Hobbit Duology(documentary in three parts), written and edited by Lindsay Ellis and Angelina Meehan (YouTube)
  • An Informal History of the Hugos: A Personal Look Back at the Hugo Awards, 1953- 2000, by Jo Walton (Tor)
  • www.mexicanxinitiative.com:The Mexicanx Initiative Experience at Worldcon 76(Julia Rios, Libia Brenda, Pablo Defendini, John Picacio)
  • Ursula K. Le Guin: Conversations on Writing, by Ursula K. Le Guin with David Naimon (Tin House Books)

Comentários: Esse é complicado. Por mais que eu tenha adorado o vídeo-ensaio de Lindsay Ellis sobre a produção da trilogia Hobbit, existe aí a presença de um artigo sobre o próprio Hugo, o que rende aquela chance por ter ligação com o evento; e de outro lado, também temos um documento de Ursula K. Le Guin, que faleceu no último ano. Então, não dá pra saber quem vence.

Melhor Narrativa Gráfica

  • Abbott, written by Saladin Ahmed, art by Sami Kivelä, colours by Jason Wordie, letters by Jim Campbell (BOOM! Studios)
  • Black Panther: Long Live the King, written by Nnedi Okorafor and Aaron Covington, art by André Lima Araújo, Mario Del Pennino and Tana Ford (Marvel)
  • Monstress, Volume 3: Haven, written by Marjorie Liu, art by Sana Takeda (Image Comics)
  • On a Sunbeam, by Tillie Walden (First Second)
  • Paper Girls, Volume 4, written by Brian K. Vaughan, art by Cliff Chiang, colours by Matt Wilson, letters by Jared K. Fletcher (Image Comics)
  • Saga, Volume 9, written by Brian K. Vaughan, art by Fiona Staples (Image Comics)

Comentários: Eu AMO Saga, mas admito estar um pouco atrasado na leitura. Paper Girls e Monstress são duas ótimas obras criativas que merecem seu espaço aqui, mas se tivesse que escolher entre um dos dois, seria facilmente a belíssima Monstress. Por mais que Black Panther: Long Live the Kingseja escrito por Nnedi Okorafor, o que é um destaque, não acho que tenha impressionado tanto quando os outros mencionados.

Melhor Dramatização, Longa (Melhor Filme)

  • Aniquilação, directed and written for the screen by Alex Garland, based on the novel by Jeff VanderMeer (Paramount Pictures / Skydance)
  • Vingadores: Guerra Infinita, screenplay by Christopher Markus and Stephen McFeely, directed by Anthony Russo and Joe Russo (Marvel Studios)
  • Pantera Negra, written by Ryan Coogler and Joe Robert Cole, directed by Ryan Coogler (Marvel Studios)
  • Um Lugar Silencioso, screenplay by Scott Beck, John Krasinski and Bryan Woods, directed by John Krasinski (Platinum Dunes / Sunday Night)
  • Sorry to Bother You, written and directed by Boots Riley (Annapurna Pictures)
  • Homem-Aranha no Aranhaverso, screenplay by Phil Lord and Rodney Rothman, directed by Bob Persichetti, Peter Ramsey and Rodney Rothman (Sony)

Comentários: Algumas ótimas escolhas. Pantera Negra foi um sucesso e merece destaque pelo que conseguiu fazer com uma narrativa menor dentro de um universo compartilhado tão grande; Um Lugar Silencioso com certeza impressionou muita gente por termos John Krasinski se provando um bom diretor e promessa por trás das câmeras; Aniquilação é a adaptação de Alex Garland de um livro bastante adorado, e além disso o filme teve a tarefa de ser o sucessor do pequeno, mas bem construído, Ex-Machina. Todos são bons, mas não se nega o brilhantismo de Sorry to Bother You e Homem-Aranha no Aranhaverso. Os mais impressionantes da lista por conta da enorme criatividade na narrativa visual e uma abordagem completamente diferente do que estamos acostumados. Se qualquer um dos dois levar, posso morrer feliz.

Eu já falei sobre alguns dos indicados na minha matéria sobre os Melhores e Piores Filmes Sci-fi de 2018, então você pode ir lá dar uma olhada também.

Melhor Dramatização, Curta (Melhor Episódio de Série)

  • The Expanse: “Abaddon’s Gate,” written by Daniel Abraham, Ty Franck and Naren Shankar, directed by Simon Cellan Jones (Penguin in a Parka / Alcon Entertainment)
  • Doctor Who: “Demons of the Punjab,” written by Vinay Patel, directed by Jamie Childs (BBC)
  • Dirty Computer, written by Janelle Monáe, directed by Andrew Donoho and Chuck Lightning (Wondaland Arts Society / Bad Boy Records / Atlantic Records)
  • The Good Place: “Janet(s),” written by Josh Siegal & Dylan Morgan, directed by Morgan Sackett (NBC)
  • The Good Place: “Jeremy Bearimy,” written by Megan Amram, directed by Trent O’Donnell (NBC)
  • Doctor Who: “Rosa,” written by Malorie Blackman and Chris Chibnall, directed by Mark Tonderai (BBC)

Comentários: The Good Place tem o costume de aparecer nas premiações com mais de uma indicação, e dessa vez não foi diferente. O problema é que esta provavelmente foi a temporada mais morna para o público, diminuindo as chances de levarem esse ano. Dirty Computer é o único da lista que não é um episódio de série, mas entra no formato de dramatização, por ser um grande álbum conceito da cantora Janelle Manáe, ambientado em uma sociedade futurista. Ele está disponível do Prime Video e pode ser assistido, por enquanto. Eu assisti e achei interessante, mas nada que seja melhor que os outros indicados. The Expanse é uma maravilha de série e eu vivo falando bem dela para todos, então nem preciso dizer qual o meu favorito da lista, mas não podemos negar que a última temporada de Doctor Who teve alguns episódios marcantes para o público, e eles estão indicados aqui, com uma enorme chance de levar, principalmente levando em conta todas as polêmicas envolvendo boicote por termos uma protagonista feminina pela primeira vez na série. Quando esse povo vai aprender?

Melhor Fanzine

  • Galactic Journey, founder Gideon Marcus, editor Janice Marcus
  • Journey Planet, edited by Team Journey Planet
  • Lady Business, editors Ira, Jodie, KJ, Renay & Susan
  • nerds of a feather, flock together, editors Joe Sherry, 
    Vance Kotrla and The G
  • Quick Sip Reviews, editor Charles Payseur
  • Rocket Stack Rank, editors Greg Hullender and Eric Wong

Melhor Livro de Arte (Conceito Visual, Design…)

  • The Books of Earthsea: The Complete Illustrated Edition, illustrated by Charles Vess, written by Ursula K. Le Guin (Saga Press /Gollancz)
  • Daydreamer’s Journey: The Art of Julie Dillon, by Julie Dillon (self-published)
  • Dungeons & Dragons Art & Arcana: A Visual History, by Michael Witwer, Kyle Newman, Jon Peterson, Sam Witwer (Ten Speed Press)
  • Spectrum 25: The Best in Contemporary Fantastic Art, ed. John Fleskes (Flesk Publications)
  • Spider-Man: Into the Spider-Verse — The Art of the Movie, by Ramin Zahed (Titan Books)
  • Tolkien: Maker of Middle-earth, ed. Catherine McIlwaine (Bodleian Library)

Comentários: Eu já dei uma olhada em alguns desses, mas apenas online. Por mais que The Books of Earthsea, sobre Terramar, seja bem bonito, e Tolkien: Maker of Middle Earth fale com meu lado fã do autor, não tem como eu querer um desse em mãos mais do que o de Aranhaverso. Até hoje fico louco com os visuais e impressionando com cada detalhe, então o livro com toda a parte de conceito visual do filme é minha escolha óbvia.

Prêmio John W. Campbell Award para Melhor Escritor

  • Katherine Arden (segundo ano elegível)
  • S.A. Chakraborty (segundo ano elegível)
  • R.F. Kuang (primeiro ano elegível)
  • Jeannette Ng (segundo ano elegível)
  • Vina Jie-Min Prasad (segundo ano elegível)
  • Rivers Solomon (segundo ano elegível)

Lodestar Award para Melhor Livro YA (Young-Adult)

  • The Belles, by Dhonielle Clayton (Freeform / Gollancz)
  • Children of Blood and Bone, by Tomi Adeyemi (Henry Holt / Macmillan Children’s Books)
  • The Cruel Prince, by Holly Black (Little, Brown / Hot Key Books)
  • Dread Nation, by Justina Ireland (Balzer + Bray)
  • The Invasion, by Peadar O’Guilin (David Fickling Books / Scholastic)
  • Tess of the Road, by Rachel Hartman (Random House / Penguin Teen)

ComentáriosChildren of Blood and Bone foi lançado no Brasil como “Filhos de Sangue e Osso”, e é um dos livros mais populares da lista. Eu não cheguei a ler qualquer um dos indicados nesta categoria, mas alguns parecem bem interessantes, como The Invasion e Tess of the Road.

Este ano o Hugo Awards tem uma lista de indicados bastante diverso. É interessante ver a quantidade de mulheres nas principais categorias, o que mostra como a premiação segue um caminho mais aberto para representações e pontos de vista diferentes.

Assim que os vencedores sairem, voltamos com a lista. Enquanto isso, hora de atualizar as leituras.

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Cinema Quadrinhos

Alita: Anjo de Combate | A Nova Experiência de Robert Rodrigues

Independente do que ache sobre a filmografia de Robert Rodrigues, não podemos negar que ele tenta se reinventar algumas vezes. Eu comecei a seguir o diretor há muito tempo, quando ainda era criança e morava em frente à locadora da rua. Ao lado de Sam Raimi e Quentin Tarantino, ele estava na capa da maioria das fitas que eu alugava. O Mariachi, seu primeiro filme, é um sólido começo com uma história divertida e uma identidade forte. Não demorou muito para ele começar sua amizade com Tarantino e desenvolver o ótimo longa sanguinário Um Drink No Inferno, em 1996.

Rodrigues nunca chegou a ser um dos meus diretores favoritos, mas era aquele nome que eu seguia por instinto, como se fosse um hábito involuntário. E se você notar, provavelmente já assistiu algumas obras dele, mesmo sem saber. Depois de sua fase trash pistoleira, Rodrigues seguiu um rumo completamente diferente e dirigiu o longa infantil Pequenos Espiões, em 2001. Foi a primeira vez que o diretor atingiu um público maior, obviamente por conta de ter feito um filme mais acessível para toda a família (que rendeu mais três continuações em sua mão).

Ele passou por uma fase morna, sem grandes lançamentos, focando em curtas e documentários. Mas em 2005, comandou Sin City: A Cidade do Pecado, uma adaptação cinematográfica da HQ de Frank Miller bastante fiel à atmosfera e o estilo narrativo do quadrinista. Rodrigues mais uma vez envolvia-se com um projeto original e seu nome voltou a ser lembrado. O longa foi bem recebido pela crítica e recebeu vários elogios sobre sua abordagem com uma fotografia estilizada de preto e branco que parece ter saído direto das páginas do quadrinho noir.

Com Sin City, Rodrigues lentamente voltava ao seu mundo de sujeira e crime, mas o retorno foi real apenas quando, ao lado de Tarantino, desenvolveu Grindhouse, uma homenagem dos diretores ao movimento da década de 60/70, no qual dois filmes eram exibidos em sequencia durante as sessões, geralmente de obras trash com um pouco de gore. Grindhouse consistia de À Prova de Morte (de Tarantino)e Planeta Terror (de Rodrigues). Depois disso, o diretor fez dois longas para Machete e uma continuação para Sin City, mas nada que tenha impressionado.Finalmente, em 2019 tivemos Alita: Anjo de Combate, um projeto que esteve em desenvolvimento há mais de uma década nas mãos de outro diretor: James Cameron; mas sabemos como ele acabou ficando ocupado por conta de Avatar, então confiou em Rodrigues para seguir com o filme. Cameron continuou como produtor e assina como um dos roteiristas, ao lado de Laeta Kalogridis.

Cameron e Rodrigues

Baseado no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio. É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem Rodrigues para comandar o projeto. Ele já provou conseguir criar boas sequencias de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.

O maior desafio do filme foi manter a promessa de deixar Alita visualmente parecia com a figura que saiu de um mangá, com os olhos gigantes e tudo. Felizmente, Cameron é um gênio quando se fala de efeitos visuais, então mais uma vez conseguiu arranjar uma maneira de executar sua ideia. A captura de movimentos da personagem, através da atriz Rosa Salazar, foi um sucesso e impressiona como deu certo quando poderia facilmente ter caído em território de vale da estranheza. É claro que nem toda colaboração de Cameron é necessária, como sua presença nos roteiros, que são a parte mais fraca do longa. Toda a trama de Alita é divertida e traz bons momentos de personagens, mas alguns diálogos podem beirar o cliché (há instâncias onde não só beira, como se joga completamente neles) e a segunda metade do filme já chega com o conflito interno principal da protagonista resolvido, então perdemos um pouco do interesse no drama dos personagens.

Ao lado de Salazar, o elenco conta com Christoph Waltz (que já trabalhou com Tarantino e provavelmente foi uma indicação), Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein e Keean Johnson. Waltz e Johnson tem a maior presença e servem, respectivamente, como uma figura paterna e um interesse amoroso. Connelly e Ali estão pagando a reforma da cozinha, mas ainda assim se dedicam, mesmo com a atuação caricata necessária para seus papéis antagônicos. Skrein, como sempre, parece se divertir independente do orçamento do filme.

Outra contribuição de Cameron foi o 3D. Particularmente, tenho uma raiva do uso excessivo de 3D em filmes, e é óbvio que a técnica é usada até hoje para aumentar o preço dos ingressos no cinema, mas aqui ele é bem atribuído. Sequencias de ação, como as do torneiro de Motorball, e algumas batalhas entre Alita e outros ciborgues se beneficiaram da técnica, utilizando profundidade nos personagens para criar um senso de espaço melhor. Essa noção de espaço é também um ponto positivo para um filme onde batalhas de CGI acontecem constantemente. Pode-se perceber a dimensão da cidade onde o filme se passa, e a importância dada aos espaços que introduz. Há um bar onde os caçadores de recompensa se encontram para beber e se gabar de seus feitos, nesta sequencia temos a introdução de alguns conceitos e personagens que mostram como aquele mundo pode ser explorado no futuro.

Alita

Alita: Anjo de Combate se despede confiante, com um gancho para uma possível sequencia. Até o momento, o filme se pagou na bilheteria, mas não foi nada estrondoso. Ainda que tenha seus problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação, que talvez seja a primeira competente envolvendo a de um anime feito pelos norte-americanos. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.

Robert Rodrigues se encontra mais uma vez no holofote, com um filme que mescla seu olhar para ação e desenvolve o início para o que pode ser uma franquia divertida e despretensiosa, mas carregada de conceitos e efeitos visuais que funcionam muito bem e tem a chance de continuar experimentando sem medo, talvez com um roteiro melhor e uma ameaça mais original.

Ficha Técnica
Título Original: Alitta: Battle Angel (2019)
Direção: Robert Rodrigues
Roteiro: James Cameron e Laeta Kalogridis
Baseado na obra de Yukito Kishiro
Elenco: Rosa Salazar, Christoph Waltz, Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein, Keean Johnson