A relação do leitor brasileiro com a sua própria literatura não é das mais expressivas, ainda mais quando consideramos a ficção científica. Qual o caminho percorrido pelo gênero por aqui e como ele conversa com as influências anglo-saxônicas tão presentes em outras mídias?
Sem demora, Páginas do Futuro aceita a tarefa de apresentar, de maneira bem didática e em poucas páginas, a linha de eventos que pode ter provocado nosso cenário atual. Braulio Tavares ilustra em sua apresentação o que ele considera as três principais tradições literárias que contribuíram para o que conhecemos hoje como ficção científica. Começamos com grandes narrativas épicas e fantásticas, onde criaturas e jornadas inimagináveis (até então) são alguns dos elementos recorrentes. Em seguida, é através do casamento do fantástico com a “ascensão da literatura realista no velho continente” que nos deparamos com o chamado Scientific Romance, onde o extraordinário é tratado com um olhar mais pragmático. Para terminar, não é deixada de lado a importância de publicações pulp, principalmente a revista Amazing Stories, criada por Hugh Gernsback, que abrigou alguns nomes que logo seriam grandes autores do gênero.
Se a apresentação de Tavares já é o suficiente para instigar o leitor a conhecer mais sobre a ficção científica e sua posição no mercado editorial brasileiro, o mais impressionante ainda está por vir. Ele reúne aqui doze contos desenvolvidos em períodos diferentes, trazendo temas diversos, explorando subgêneros e compartilhando sua própria voz. É curioso ver como alguns autores desta coletânea tiveram contato com a ficção científica e escreveram usando alguns de seus componentes anos antes dela receber esse nome.
Reunindo autores como Raquel de Queiroz, Rubem Fonseca e Luiz Bras, Páginas do Futuro é em si uma máquina do tempo, nos fazendo viajar entre 1957 e 2010. Ainda que seja visível o impacto da literatura internacional em alguns dos contos, não há perda de identidade, como acontece em O Quarto Selo, de Rubem Fonseca, que carrega os traços de uma narrativa policial comum no que depois seria chamado de cyberpunk, mas também está acostumado com as ruas do Rio de Janeiro.
Há exemplos de contos que correm fora do Brasil, como Uma Breve História da Maquinidade, de Fábio Fernandes, onde se encontram vários elementos das ficções de vapor em uma Europa pós-Revolução Industrial — em outras palavras, o Steampunk.
“A FC brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da FC internacional sob o risco de deixar de ser FC, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira”
Cada conto traz um comentário crítico, em algum nível, sobre o papel do homem e a maneira que lida com suas criações ou criaturas. Podemos ver em Veja seu Futuro, de Ataíde Tartari, ou Do Outro Lado da Janela, de André Carneiro, uma narrativa mais simples que depende do fascínio do protagonista com o objeto que carrega a trama. Estes contos poderiam facilmente figurar em alguma temporada de Além da Imaginação, como o próprio Braulio Tavares menciona em sua apresentação.
O livro tem a predominância de uma voz masculina, o que é esperado considerando o período dissertado pela obra. Não obstante, Raquel de Queiroz e Finisia Fideli marcam presença com suas histórias, que acabaram sendo algumas das melhores da antologia. Ainda que a ficção científica não seja o primeira coisa que vem em nossas cabeças quando pensamos em Raquel de Queiroz, o que a autora faz em Ma-Hôre é uma descrição intrigante com uma boa dose de ação, mas o que realmente se destaca é a proposta de nos colocar na pele do alienígena em contato com os humanos — essa é uma lógica narrativa atraente até hoje, então imagine a reação em 1961, quando o conto foi publicado originalmente.
Quanto a Finisia Fideli, seu Exercícios de Silêncio (provavelmente o meu favorito dos doze) conversa com o leitor de forma mais lenta, com atenção aos detalhes e a descrição sensorial dos personagens, com um enredo que lembra um pouco o estilo de Ursula K Le Guin, principalmente no excelente A Mão Esquerda da Escuridão. São histórias de introspecção e conexão com uma forma de coletivo, com protagonistas muitas vezes lidando com costumes do planeta no qual se encontra.
Páginas do Futuro é uma leitura rápida e bastante informativa sobre a história da ficção científica no Brasil. São doze contos que passam voando e você ainda tem as ilustrações de Romero Cavalcanti cobrindo algumas páginas com ótimas interpretações visuais do universo apresentado pelo livro.
Ainda que grandes estúdios tenham um orçamento gigantesco para a execução de seus filmes, o resultado final nem sempre compensa o investimento. Isso apenas evidencia o excelente trabalho de algumas equipes responsáveis por produções independentes, onde você deve fazer valer cada centavo.
Se você tem o costume de assistir curta-metragens de ficção científica, provavelmente já ouviu falar da DUST, o selo sci-fi da empresa Gunpowder & Sky, responsável por distribuir conteúdo original do gênero. Com um catálogo atraente (disponível também no canal do Youtube da marca), muitos artistas ficaram rapidamente interessados em contribuir com seus próprios filmes.
Quando o longa Prospect, distribuído pela DUST, foi anunciado para plataformas digitais, a opção para os fãs brasileiros foi esperar o posicionamento de algum serviço de streaming. A resposta veio da Netflix, trazendo o filme para o país com o título Riqueza Tóxica. Não é a melhor das traduções, e é claro que ainda sobra o problema da Netflix em deixar obras como esta no catálogo com pouca visibilidade (o mesmo aconteceu em Terra À Deriva, um dos maiores sucessos de bilheteria da Ásia, que não recebeu toda a atenção merecida por aqui), mas vamos ficar felizes por pelo menos ter fácil acesso ao filme.
O filme é baseado no curta homônimo da dupla Christopher Caldwell e Zeek Earl, que também assinam a direção e o roteiro do longa. Uma jovem e seu pai visitam uma lua alienígena na busca de pequenas jóias valiosas que só podem ser encontradas adentrando uma floresta tóxica. Mas eles não são os únicos tentando ficar ricos dessa maneira.
No meio de tanta coisa grande saindo nos cinemas, rendendo bilhões nas bilheterias, seja mais um filme da franquia Marvel ou Star Wars (basicamente, tudo Disney), é fascinante ver como uma obra menor, em escala e orçamento, consegue ser tão poderosa. Começando pela sua construção visual, que atingiu uma estética realista e distópica sem precisar do uso de tela verde. A maior parte das filmagens foi realizada em uma floresta conhecida da infância dos diretores, e um galpão precisou ser construído para que a equipe pudesse trabalhar perto do local.
É esse tipo de esforço que me faz apreciar ainda mais filmes assim, onde é visível a importância de ter sido gravado longe de um estúdio, com luz natural, contribuindo para a imersão daquele mundo. Tudo aqui é original: trajes espaciais, armas, ilustrações e até mesmo a poeira. Para que o filme tivesse sua própria identidade visual, os diretores passaram dias explorando maneiras diferentes de representar a poeira rosada que cobre a superfície da lua verde.
Outro diferencial do longa está no elenco. Jay Duplass é Damon, um pai longe de ser perfeito, mas ainda assim preocupado com a segurança de sua filha. Pedro Pascal é o nome mais conhecido do público, principalmente depois de ter interpretado Oberyn na série Game of Thrones, papel que chamou a atenção de Caldwell e Earl e colocou Pascal como a pessoa perfeita para o personagem Ezra, um obstáculo no caminho de Damon. Mas é Sophie Thatcher quem carrega o peso de protagonizar o filme como Cee, a jovem que se encontra em um território perigoso demais, principalmente para alguém sem muita experiência. Também foi satisfatório ver a dinâmica pai e filha em um filme do gênero, onde geralmente temos um um filho aprendendo com o pai. É arriscado, mas apoio que sempre vale a pena termos mais representação e novos pontos de vista.
Riqueza Tóxica tem uma direção íntima e cheia de belas tomadas de um horizonte vibrante, longe de toda a sujeira daquela lua. Esse é um filme que merece muito mais atenção por conta de todos os detalhes da produção e o incrível resultado final. Sequer cheguei a mencionar o roteiro, sem grandes tramas mirabolantes e planos malignos envolvendo destruição mundial (ou galáctica, dependendo de qual franquia estiver na sua mente agora), apenas o drama pessoal de uma jovem em um mundo perdido. Tudo é revelado através de diálogos naturais, onde podemos saber um pouco mais sobre a economia e cultura daquele lugar, além das pessoas que o habitam, como outros garimpeiros e saqueadores. É um universo rico em detalhes, mas o filme é inteligente o suficiente para confiar em seu público e não repetir as informações constantemente.
O ritmo é lento, mas a duração do filme é tão modesta que isso nem é sentido. É uma experiência rápida, mas cheia de beleza em sua execução. Um filme que não merece ficar escondido no catálogo da Netflix e precisa ser valorizado, ainda mais em tempos de blockbusters tomando conta de todas as salas de cinema.
Esse livro foi lido durante o Desafio #LendoScifi 2019.
Um dos aspectos que mais me fascina na ficção científica são os debates criados por conta da própria ciência que o gênero carrega no nome. Com Oryx e Crake, primeiro volume da série MaddAddão, a autora Margaret Atwood explora questionamentos éticos e morais sobre humanidade e ciência. O cientificismo também entra na conversa, vinculado a uma crítica política inevitável. É uma obra que rende horas de discussão, mas aqui vou ater-me aos temas e a narrativa de Atwood, o que são provavelmente os pontos de maior destaque.
Em uma versão pós-apocalíptica do nosso mundo, onde os lençóis freáticos ficaram salgados, a calota polar ártica derreteu e a seca nas planícies centrais do continente tornou-se cada vez pior, talvez a perda mais significativa tenha sido para o setor alimentício, com a dificuldade da humanidade em conseguir mais carne. Ao tentar resolver o problema, as grandes corporações decidem contratar cientistas para um trabalho envolvendo manipulação genética, o que não teve o fim esperado e resultou em “criaturas” perigosas.
Somos apresentados ao Homem das Neves, o sobrevivente de uma grande epidemia que aparentemente acabou com toda a população da Terra. Ele já atendeu pelo nome de Jimmy, mas isso foi em outra época, uma onde ele tinha amigos e família. Suas únicas companhias agora são os remanescentes de um experimento genético, humanoides que atendem pelo título de Filhos de Crake. Eles se encontram regularmente perto de uma árvore, onde o Homem das Neves reside e prega a palavra de Oryx e Crake, os dois grandes responsáveis pelo estado do mundo.
A narrativa intricada de Atwood traz sensações conflitantes. Por um lado há uma alegoria muito bem construída e debates sobre a interferência do capitalismo no processo científico, sem contar o embate ético que surge por parte dos personagens. Este é o ponto alto do livro, que serve como um ótimo meio para botar em evidência algumas preocupações do nosso tempo e especular sobre um possível futuro. Mas por outro lado, há a narrativa em si, onde alguns podem encontrar dificuldade.
“Há algo bom na fome: pelo menos ela faz você saber que está vivo”
A linha temporal de eventos se desenvolve de forma não linear, alternando constantemente entre passado e presente, sendo Jimmy o elo dos Filhos de Crake e do leitor com os principais pontos da trama. O texto de Atwood é mais forte quando assume a função de descrever o terreno melancólico e desolador do livro, com representações realistas e detalhadas de todos os escombros, a poeira ou a vegetação. A construção de mundo, com ambiente e tom, é mais que competente. Mas com cada regresso aos momentos onde os personagens precisam se destacar fica visível a maior fraqueza na estrutura narrativa da autora.
Jimmy tem poucas características realmente envolventes, indo de piadas autodepreciativas para memórias envolvendo sexo descartável. A obra dedica algumas páginas para sua infância e instâncias onde uma avaliação pessoal por parte dele poderia ter sido melhor explorada. Os seus amigos, Oryx e Crake, são dois extremos. Oryx passa a maior parte da história como um conceito duvidoso, o que compromete as suas origens (se é que são mesmo suas); Crake é um personagem mais intrigante, com uma filosofia de vida (e profissional) intimidadora para Jimmy, mas estranhamente atraente para quem lê. Quanto aos Filhos de Crake, temos uma comunidade investida em todos os conceitos e desculpas mirabolantes que o Homem das Neves dá para instruir sentido em sua própria narrativa. Não há malícia neles, apenas a vontade de aprender mais sobre o mundo anterior.
Oryx e Crake é a previsão de um possível futuro, um assustadoramente possível, o que faz deste livro um comentário pertinente ao abuso de um poder que talvez devesse ser possuído por ninguém. Atwood tem uma voz incontestável na ficção científica, principalmente por sua habilidade de imaginar premissas estimulantes como esta, ainda que aqui ela divida algumas opiniões sobre a forma como seus personagens são executados.
“É o rígido apego à rotina diária que ajuda a manter a boa disposição e a preservar a sanidade”
Oryx e Crake (Livro 1 da Série MaddAddão), de Margaret Atwood
Scott McCloud dedicou grande parte de sua carreia ao estudo dos quadrinhos. Assim como Will Eisner fez para popularizar o formato como uma “arte sequencial”, McCloud é um grande professor e defensor do potencial desta arte com seus livros didáticos (mas nem um pouco enfadonhos), Desvendando os Quadrinhos, Desenhando os Quadrinhos e Reinventando os Quadrinhos. Se você tem o sonho de fazer algo nesta área, sinta-se obrigado a ler estes livros, que foram estruturados como uma HQ, por motivos óbvios. Neles, o autor define o formato, seu comportamento e todos os elementos envolvidos no processo.
Conhecido também por ter feito Zot!, uma HQ bem humorada e completamente diferente do que as grandes editoras estavam fazendo com seus heróis na época, McCloud se tornou um dos nomes mais respeitados da área. Não posso deixar de mencionar o movimento 24 Hour Comics, um desafio que envolvia a criação de uma HQ de 24 páginas por um único artista em apenas um dia. Neil Gaiman, Steve Bissette e Erik Larsen foram alguns dos que aceitaram o desafio.
Mais de uma década se passou desde que McCloud desenvolveu seu último trabalho, e agora, coloca tudo o que aprendeu com seus próprios livros teóricos em prática, com sua primeira Graphic Novel, O Escultor.
Agora vamos falar dela.
David Smith está triste, bebendo sozinho em um bar, pensando em sua carreira, que teve um ótimo começo, mas agora nem paga as contas e serve apenas como uma das frustrações na vida do protagonista. Depressivo e desesperado, faria de tudo para poder se sentir completo novamente, poder criar projetos que fariam as pessoas ficarem sem palavras e esculpir as mais belas figuras.
Faria de tudo, até mesmo um pacto com a morte, e não pensa duas vezes quando recebe a oferta da própria. ”Tudo que importa é a arte”. Assim David tem 200 dias de vida, mas em troca recebe a habilidade de esculpir o que quiser no material que quiser, até mesmo em granito, com as próprias mãos. Ele teria que se preocupar apenas com os dias, se não se apaixonasse por uma jovem que se apresentou como um anjo na sua frente, literalmente.
Não quero entregar mais da trama, já que foi uma das leituras mais interessantes e envolventes do ano, talvez a melhor. Ok, a melhor.
Em O Escultor, McCloud consegue se aprofundar nos temas mais comuns da humanidade, como vida, morte, amor, mentira, ego e solidão. É a forma como aborda estes temas que faz toda a diferença, quando fala das frustrações de seus personagens, do amor inconsequente e irracional que temos por algo que mal conhecemos, do apego, da nostalgia, tudo o que é e poderia ter sido. David é comprometido com seus princípios, assim muitos se identificam com seus esforços para manter tudo aquilo que prometeu, mesmo vivendo em mundo onde a as galerias de arte estão cada vez mais ocupadas pela indicação de um amigo do que a arte em si.
E por falar em arte, a de McCloud é um espetáculo. Simples, animadas e até um pouco cartunescas, em um mundo azul bastante moderado, que fica belíssimo em contraste com outros tons da mesma cor, além do branco e preto que ficam lindos nos painéis maiores e dão uma dimensão e perspectiva agradáveis, principalmente nos momentos mais surreais da história. A cidade tem um papel enorme na história e é desenhada com um detalhe e paciência que só uma pessoa muito talentosa teria. Se você chegar na página em que David caminha pela rua visualizando um calendário sob seus pés, com os dias ausentes representando uma queda para o esquecimento, e não parar por alguns minutos para refletir sobre o que acabou de ver, a única razão lógica para isso é… ok, não existe uma.
Eu diria que nada é perfeito e faria uma menção ao uso de um pequeno recurso narrativo que o autor usa logo no finalzinho da obra, mas que não afeta em nada a trama geral que é desenvolvida muito bem, flui perfeitamente e tem diálogos muito bem escritos. O tempo e espaço entre os painéis é outra coisa que te deixa de boca aberta, as composições e a contraluz fazem com que você se sinta assistindo um filme — por falar nisso, se prepare para procurar referências cinematográficas das mais óbvias, como “O Sétimo Selo”, até as mais escondidas, como de “Clube da Luta”. É tudo dinâmico e nunca cansativo, você pode ler as quase 500 páginas de uma só vez e ainda vai quer mais daquele mundo.
Eu disse que nada era perfeito, mas como prefiro ser esta metamorfose ambulante, retiro o que disse. Esta é a realização de tudo que McCloud tem construído ao longo de sua carreira, fazendo de O Escultor uma das melhores leituras da última década e de longe a minha favorita do ano.
Assim como a maioria das obras de Terry Gilliam, Brazil se destaca com seu design de produção incrivelmente criativo, com todos os elementos que poderiam se passar por poluição visual facilmente, mas são transformados aqui em algo bem mais estiloso, mas não menos incômodo para os personagens, que precisam passar pelas piores situações por conta de um futuro onde nada parece ter avançado como deveria. Ver o encanamento de um estabelecimento passando pelo chão, por cima das mesas de jantar e de nossas cabeças, seria um inferno na vida de qualquer um, mas aqui é uma brincadeira com nossa aceitação de tudo como nos é apresentado. Quando toda a fiação da casa do protagonista parece uma parte viva da residência, talvez tenhamos ido longe demais.
Gilliam, que começou sua carreira ao lado do grupo cômico Monty Python, está acostumado com exageros, absurdidade e humor inesperado. O futuro distópico, quase orwelliano, tem suas figuras de autoridade totalitária, mas perde seu peso dramático e dá lugar ao ridículo por conta de toda a apatia da sociedade com o seu cotidiano, e não por um tipo de desânimo ou opressão, que também estão presentes, mas por um tipo de preguiça ou desinteresse em tudo que está acontecendo em volta. Tudo se converteu em uma vida de procedimentos desnecessários, uma perda de tempo (os pessimistas diriam que é a parte menos fictícia do filme).
É um debate bem claro que Gilliam traz para a mesa, a alienação e a ignorância são uma tragédia bem atual, com o excesso de divulgação de informação equivocada com o qual lidamos quase diariamente nas redes sociais, por exemplo. Seria fácil dizer apenas que é um filme relevante até hoje, mas uma das características mais intrigantes da ficção científica é como o gênero possui a habilidade de estudar o comportamento humano de um jeito único, e Brazil é um daqueles filmes que acerta em cheio em quase tudo que se propõe — o “quase” aí foi deliberado.
Sam Lowry (Jonathan Pryce) está cansado de tanta burocracia e vive fantasiando uma realidade onde pode criar asas e sair voando para longe de tudo. Em sua fantasia, ele não está sozinho, Sam tem a mulher perfeita, um tipo de musa para inspira-lo, e ela existe no mundo real, se chama Jill Layton (Kim Greist), mas ela não faz a menor ideia de quem ele seja.
Como se a própria existência naquele mundo já não fosse um enorme incômodo, por conta de um equívoco em sua papelada de trabalho, Sam passa a ser perseguido por agentes do governo sem qualquer interesse em conversar.
Os visuais do longa são o maior destaque, desde a cidade e todos os temas retro-futuristas até o enorme samurai prateado que invade suas fantasias. Mas o elenco também merece atenção, muito mais por quem está nele, como Robert DeNiro e o Python veterano, Michael Palin. Isso não quer dizer que as atuação não são boas, mas sim que elas não conseguem brilhar tanto quanto deveriam, e o mundo de Brazil os engole um pouco, assim como faz com seus personagens, então talvez fique devendo nesse departamento (“retire mais um formulário na fila ao lado, obrigado”).
Outra coisa que não parece mais tão interessante é a necessidade em transformar uma das poucas figuras femininas do filme em um tipo de troféu para o protagonista. Ele é o herói, luta contra o samurai, consegue a garota e você já sabe o resto. É um conceito inocente, aparentemente, mas que toma uma parte do filme que parece tão desnecessária quanto as papeladas do trabalho de Sam. Jill é apresentada como alguém cheia de atitude e uma motivação própria, mas isso começa a desaparecer aos poucos e a personagem é comprometida por conta da narrativa do protagonista, que não traz muitas surpresas.
Brazil é um filme grande, um pouco lento, mas com visuais incríveis e o lugar perfeito para encontrar uma sátira política envolvente. Pode não ser perfeito, tem elementos que roubam o brilho de outros facilmente, mas ainda assim é indispensável para todo fã de ficção científica. Cirurgias plásticas e atendimento domiciliar jamais serão os mesmos depois de assistir esse filme.
Dirigido por um Spielberg já consolidado por conta de longas como E.T., Tubarão e Indiana Jones, Jurassic Park surpreende qualquer um que estivesse considerando uma perda de fôlego do diretor na época. Na verdade, é mais um atestado de sua enorme criatividade e competência por trás das câmeras, o que fica ainda mais evidente quando lembramos que no mesmo ano tivemos A Lista de Schindler, o primeiro passo de Spielberg em trabalhos mais maduros, mas não menos premiados e aclamados pelo público e crítica. Pessoalmente, considero Jurassic Park seu maior feito, e em uma filmografia tão diversa e adorada quanto a dele, isso é dizer bastante.
Baseado na obra literária homônima de Michael Chichton, o filme é um daqueles raros casos onde a adaptação é considerada melhor que o original. Mas também, com tudo que o longa tem, fica fácil pensar assim. A história tem uma premissa bem simples e uma narrativa objetiva, mas cheia de elementos únicos e tão bem aproveitados, que retornar ao filme é sempre uma experiência satisfatória. E eu preciso dizer que a maior parte se mantém muito bem, algumas bem até demais.
Seguimos um grupo de pesquisadores e cientistas em uma visita guiada e financiada por um magnata com a promessa de ter conseguido realizar um dos maiores feitos da humanidade: trazer de volta a vida animal dominante do período jurássico. A dupla de paleontólogos, Grant e Ellie, está obviamente ansiosa para ver tudo com seus próprios olhos. Com eles, está Malcolm, um matemático fascinado pela teoria do caos, e o mais preocupado com os riscos que essa descoberta pode trazer.
E aí já encontramos o primeiro grande triunfo do filme. O que fez Jurassic Park tão bom, e talvez o que faltou nas continuações (que nunca chegaram perto de se igualar ao original), são as interações entre os personagens. Spielberg é conhecido por criar figuras e construí-las com carisma e charme suficiente para sustentar a maior porção do filme apenas com bons diálogos. Essas conversas entre os cientistas antes mesmo de chegarem ao parque, já são envolventes e acredito ser a maior força desse filme, ao lado de toda a aventura e aquela sensação de maravilhamento — nossa e dos personagens — que traz um coração e alma impossível de replicar.
O elenco é impecável. Richard Attenborough é o magnata com sorriso acolhedor e entusiasmo de sobra, mesmo quando não merece nossa admiração, fica difícil ficar bravo com ele. A mesma coisa vale para Jeff Goldblum, que está interpretando ele mesmo (nada de novo aí) no papel de Malcolm, mas com uma dose extra de personalidade e confiança. Ele serve como a personificação de tudo que é legal nesse mundo, mesmo quando fica impossibilitado de entrar em ação por um bom tempo.
A adição de duas crianças, Tim e Lex, interpretados por Joseph Mazzello e Ariana Richards, respectivamente, não corre o risco de cair na armadilha de tantos filmes que vieram depois. Geralmente, os personagens infantis servem como um obstáculo para a jornada de alguém ou só um rosto fofo para alívio cômico, mas aqui eles tem um propósito narrativo ligado diretamente ao arco dramático de Grant e sua incerteza em criar uma família. Ademais, a dupla é divertida, inteligente e ajuda na missão.
Em uma das cenas principais, Grant (Sam Neill) começa a chorar e fica sem reação ao confirmar que os dinossauros se comportam do jeito que ele sempre imaginou, enquanto isso, Ellie (Laura Dern) o consola e vê um momento de vulnerabilidade no companheiro, que estava sendo o mais cético até o momento. A decisão de manter a câmera no rosto dos atores e em suas reações por mais tempo do que nos próprios dinossauros é uma das mais inteligentes de Spielberg. E isso não é para fugir de algum tipo de inconsistência nos efeitos especiais, porque esses continuam incríveis até hoje.
Não temos tantos dinossauros em tela quanto nos filmes seguintes da franquia, o que contribui para meu argumento anterior sobre eles não serem o motivo desse filme ser tão bom, ou pelo menos não serem o motivo principal. Mas já que estamos falando deles, aí vai mais uma vitória do filme: os efeitos práticos.
O uso de animatrônicos para representar as criaturas acaba sendo a melhor saída. A técnica envelhece bem e não sofre tanto quanto o CGI, que torna-se obsoleto rapidamente se não for bem utilizado. A textura fica estranha sem um tratamento meticuloso do visual e um estudo da fisiologia animal do que está sendo representado com os “bonecos”. Felizmente, Jurassic Park não sofre disso. O triceratope doente encontrado pelos personagens é expressivo e realista, e quando o Dr. Grant o abraça, o mecanismo reproduz a respiração fraca do animal — uma particularidade que faz a diferença no resultado final.
Não que as partes em CGI sejam ruins. Algumas sequencias envolvendo modelagem digital para representar as imagens da tela de computador dos técnicos do parque talvez necessitem de uma atualização, mas outras, como o vídeo ensinando o funcionamento do DNA através de uma animação, tem um charme próprio. Claro que o destaque vai para as interações entre os dinossauros, principalmente em uma cena com a dupla de velociraptors e o T-Rex, que rende a minha composição favorita do filme e uma das melhores que já vi no cinema (não coloquei em destaque na matéria à toa).
Horror é um componente presente nas aventuras de Spielberg. Para ele, não importa se o tom do filme é leve e divertido, um susto aqui e ali é bem-vindo. Os dinossauros impressionam e encantam quem vê, você quer chegar perto e descobrir a sensação de encostar em um, mas são aterrorizantes ao mesmo tempo, feitos para criar a tensão constante depois que as coisas começam a dar errado no parque e as criaturas estão livres para devorar e pisotear quem quiserem.
O terceiro enorme diferencial (“triunfo”, para ser consistente) é a música de John Williams. O compositor é um dos mais aclamados da indústria cinematográfica e, assim como Spielberg, confirma novamente seu nome como um dos maiores que já existiu. Sua orquestra, conhecida pela harmonia que traz a magnitude capaz de celebrar o espetáculo visual do parque e suas criaturas.
Poucos filmes carregam a grandiosidade encontrada em Jurassic Park. O enredo é simples, mas você encontra algo novo em cada canto, os diálogos são memoráveis, a ação é mais ainda, o elenco é único, a música é perfeita e como já disseram uma vez: “Se você não viu Jurassic Park, você não viu coisa alguma”. *
*Jurassic Park é mencionado durante uma conversa no filme Swiss Army Man (2016).
Produzida pela Conaco (do apresentador e comediante, Conan O´Brian), Final Space foi distribuída pelo canal TBS e, como no caso do Brasil, no serviço de streaming da Netflix. Criada por Olan Rogers e David Sacks, a série animada é uma boa pedida para quem está sofrendo com o intervalo entre temporadas de Rick and Morty. Ambas tratam o gênero da ficção científica com bom humor e irreverência, sem medo de mostrar um pouco de sangue no caminho — e aqui deve ficar bem claro que as duas séries mencionadas não são indicadas para crianças, mesmo apresentando um humor mais imaturo.
Em Final Space, seguimos o capitão Gary Goodspeed (dublado pelo próprio Olan Rogers), que na verdade não é capitão algum e só está tentando converter sua situação de prisioneiro espacial em uma nave do governo. Todos os seus dias são iguais, tentando roubar cookies da máquina sem permissão, aturando o robô inconveniente, KVN (Fred Armisen), e tendo como companheiro apenas o computador HUE (Tom Kenny) e -talvez- Quinn (Tika Sumpter), a cadete da Guarda Infinita que o colocou ali. Gary está quase livre, sua sentença está próxima do fim, mas ele encontra Mooncake, uma criatura fofa e divertida capaz de destruir um planeta inteiro.
Como já mencionei, a série tem algumas similaridades com Rick and Morty, mas é menos “ complexa” na abordagem de alguns temas sérios e tem um drama mais sólido, como a relação entre Gary e seu pai, um famoso astronauta que morreu em missão. Aí entra outra comparação, com Guardiões da Galáxia, não só nessa relação familiar que move a trama, mas no protagonista, que tem uma personalidade que parece ter sido retirada diretamente de Peter Quill, só que menos interessante, o que é o ponto fraco da série. Gary tem seus momentos e muitas das piadas da série funcionam, mas seu comportamento exagerado e impaciente nem sempre caem bem e soam como um alívio cômico sem efeito. Ainda assim, ele não chega a ser um incômodo do tamanho de KVN, o robô dublado por Fred Armisen (ator que eu adoro), que está cantarolando e irritando a tripulação constantemente. Não importa se é intencional, isso irrita até quem assiste, porque independente da situação, ele está falando ou cantando algo que já deixou de fazer graça episódios antes.
Falando assim, parece que estou desmerecendo os personagens, mas tirando esses dois do caminho, todo o elenco é mais que competente, e olha que a série tem algumas vozes bem populares, como David Tennant, dublando o vilão Lord Commander, e Keith David fazendo uma ponta como a entidade Bolo. Ron Perlman (o único Hellboy possível) é o pai de Gary, e Steven Yeunfaz Little Cato, o filho de Avocato (Coty Galloway), um dos novos companheiros de Gary.
A animação é boa, principalmente nas cenas de ação, com perseguições e explosões que tem um apelo visual maior, como em uma cena envolvendo um campo gravitacional e um planeta em ruínas. O pequeno Mooncake serve quase como um MacGuffin — aquele objeto que serve para impulsionar a trama — , com seus poderes que ainda não podemos medir, mas já houveram demonstrações de grande energia.
Muito da comédia é feita em cima do protagonista, ele é o alvo das piadas e é até melhor serem feitas “com ele” do que “por ele”, como a corrida para pegar uma boa nave, que não dá muito certo, ou o seu primeiro acidente quase mortal. Outro personagem bem engraçado, que infelizmente tem pouco tempo em tela, é Tribore (Olan Rogers, mais uma vez), o alienígena da Guarda Infinita que se comunica usando uma retórica peculiar, perguntando e respondendo as coisas ao mesmo tempo.
Final Space mescla boas piadas com conceitos divertidos da ficção científica que podem render muitas temporadas, e ainda sobra espaço para um pouco de drama mais pra frente. É um bom começo para a série e uma boa indicação para quem procura algo descompromissado, mas criativo.
Se tivesse esperado mais um ano para ser lançado, Nausicaä do Vale do Vento (Kaze no tani no Naushika) seria o primeiro longa oficial de Ghibli, o estúdio japonês de animação aclamado pela crítica e público (mesmo não sendo um sucesso de bilheteria no nível Disney), com produções como Meu Amigo Totoro (1998) e A Viagem de Chihiro (2001). Independente, Nausicaä foi responsável por atrair ainda mais atenção para o nome de Hayao Miyazaki, que depois se tornaria um dos diretores mais influentes do país.
Baseado no mangá de mesmo nome, de autoria do próprio Miyazaki, que basicamente lançou o material como uma forma de dar visibilidade para a produção do filme, Nausicaä do Vale do Vento é um anime com algumas características únicas que logo fariam parte do repertório do diretor, como os debates sobre natureza e críticas ao abuso de poder; sem esquecer sua decisão em manter uma personagem feminina (bem construída) como protagonista, uma prática que, mesmo não sendo uma exclusividade, acabou se tornando uma marca registrada.
Nosso mundo está poluído demais, corremos risco de todos os lados, seja a guerra entre os povos ou criaturas gigantescas, parasitas, capazes de destruir cidades inteiras em questão de segundos. No meio disso, temos a princesa Nauticaä, uma inteligente aventureira que gosta de ajudar todos da sua vila, sem discriminações, mas quando a vida de seus amigos passa a ser ameaçada, ela tem a experiência necessária para seguir em uma missão cheia de naves, explosões e inimigos. O filme tem um enredo bem simples, porém competente e charmoso, entregando talvez muita informação, mas esse é um detalhe que podemos relevar por conta dos personagens e a audaciosa jornada da protagonista, que fornece um mundo criativo e intrigante, com elementos que ficam melhores em uma segunda assistida.
A direção de Miyazaki alcança resultados incríveis quando tem a intenção de criar um espetáculo visual, com suas batalhas, seja ela aérea ou com uma espada empunhada. Sua aptidão ao construir os elementos da cena é uma das razões deste filme funcionar, com mil coisas que podem ser ditas em uma plano estático, ou em um movimento rápido demais para nossos olhos. Os rasantes da protagonista insinuam momentos de introspecção, por isso a ação, quando se aproxima, tem um peso maior. Sequencias como esta são fundamentais para Miyazaki, e é compreensível sua raiva ao descobrir que parte importantes do filme foram cortadas e o longa foi exibido como uma versão editada para os EUA e Europa, que recebeu o título de “Warriors of the Wind”.
Como mencionado, o filme tem um problema com o excesso de informações. O argumento, por mais que seja compreensível e aceitável, não tem uma narrativa tão atraente quanto a visual, há componentes com pouco aproveitamento. A trama principal funciona e alguns diálogos fortalecem uma cena ou outra, como as interações entre Nausicaä e seus companheiros, alguns bem inusitados. E por falar em companheiros, em certo ponto da história, temos a introdução de um personagem que não contribui substancialmente para a jornada, com exceção de ser um pouco conveniente.
Com bons personagens, debates pertinentes (por mais “batido” que seja) e animação de encher os olhos, Nausicaä do Vale do Vento é um enorme passo na carreira de Miyazaki, que um ano depois começa a moldar uma geração de pessoas apaixonadas pela sétima arte e a força de produções animadas, que você já deve saber, requer talento, muita criatividade e jamais deve ser subestimada.
Sempre que entro em algum debate sobre histórias em quadrinhos que surpreenderam com a abordagem do mito do herói, escuto respostas como Watchmen ou Planetary, por exemplo. Eu adoro essas duas obras, a primeira é escrita pelo maior roteirista da nona arte, e isso nem é um debate (pode vir nos comentários), mas nessas conversas, sinto falta de alguém defendendo a maravilha que é Astro City, e geralmente sou eu quem precisa dar o primeiro passo. Por isso, decidi criar logo uma sequencia de textos analisando e criando um debate leve por aqui sobre todas as coisas que fazem dessa série uma das melhores que eu já li.
Criada por Kurt Busiek e Brent Anderson, roteirista e desenhista, respectivamente, Astro City é um exercício de criatividade único. Mas para falar dele, precisamos mencionar Marvels, o trabalho que Busiek lançou, através da famosa editora que inspirou o nome do quadrinho, um ano antes.
Em Marvels, Busiek une forças com as ilustrações de Alex Ross para trazer uma história sobre o cotidiano de todos aqueles cidadãos que convivem com os super-heróis do universo Marvel, como Homem-Aranha e a equipe do Quarteto Fantástico. É como se a ideia original de Stan Lee em criar tramas que se interligam entre personagens de séries diferentes em uma mesma edição mensal, mas interpretado de um ponto de vista mais trivial, ou seja, o nosso. A HQ até hoje é um sucesso e está presente em qualquer ranque das melhores obras da editora.
No ano seguinte, quando Busiek decidiu criar uma nova série, agora para a iniciante editora Image Comics, aproveitou a oportunidade para manter a dinâmica de Marvels, só que com novos personagens e um universo próprio. Astro City chegou as bancas pelo selo Wildstorm, da Image, com uma premissa simples e objetiva, mas de portas abertas para incontáveis interpretações e críticas ao formato e o gênero.
Uma das melhores está logo no começo da série, na primeira edição, em uma história intitulada “Em Sonhos”. Na edição temos a figura de um homem nu, porém sorridente, feliz por estar voando sem preocupações. Mas ele logo desperta. Era tudo um sonho e agora ele tem que continuar com sua vida deprimente, como um dos maiores heróis que Astro City já viu: o Samaritano.
Assim como Alan Moore fez diversas vezes em sua carreira (com Watchmen e Miracleman, principalmente), Busiek nos proporciona uma nova perspectiva do que compreendemos como um super-herói. O que alguém pode ver como uma benção, o herói vê como maldição. Pisando um pouco em território filosófico aqui, apenas para um rápido embasamento teórico (mesmo que eu seja mais um entusiasta no assunto do que um estudante), vamos para o “existencialista” Jean-Paul Sarte. De acordo com o filósofo, a liberdade é uma escolha feita por nós, mas não apenas isso, essa escolha evidencia outras possíveis escolhas. Vivemos pelas nossas escolhas e são através delas que deixamos nossa marca. Mas essa noção de liberdade pode se transformar em uma questão angustiante para quem é e pode mais do que um ser humano normal, como o protagonista da HQ.
O Samaritano é um comentário sagaz de Busiek ao mito da figura mais imponente dos quadrinhos, o homem de aço: Superman. Desde o visual e a fachada de rapaz desajustado para manter as aparências, até mesmo a profissão (assim como Superman, Samaritano também trabalha em um jornal), fica bem óbvia a comparação que o autor faz aqui. Vale lembrar que esse tipo de estudo de personagem baseado em personagens e num imaginário coletivo de outras editoras acontece constantemente em Astro City, é basicamente uma das características principais da série.
Em um dos painéis mais importantes da edição, o Samaritano reflete sobre a possibilidade de viver apenas sua identidade civil, o jornalista Asa Martin. Mas essa decisão significaria não ter mais tempo para atividades heroicas e isso o faz entrar em uma crise existencial.
Se ficamos fascinados pelas aventuras do homem de aço com toda sua força e habilidades, o que faz do Samaritano algo moderno e criativo é o paralelo criado entre os dois personagens e o contraste na personalidade. Enquanto um considera sua atividade como super-herói um bem necessário, outro vive o desconforto de dedicar sua vida combatendo o crime e ajudando as pessoas. Isso não implica que o Samaritano seja uma pessoa ruim, ele apenas sofre com o peso da responsabilidade que é colocada em seus ombros.
Como privar o mundo de um poder tão grande? Ele deve sacrificar sua liberdade pelo bem de todos? Esse é um dos debates abertos por Busiek, e isso apenas na primeira edição.
Como já disse, Astro City é um enorme estudo de personagem dentro dos quadrinhos. Utilizar o voo, uma das maiores habilidades do Superman, como uma representação das limitações do Samaritano no mundo real é a melhor maneira de entregar um comentário poderoso. Nos sonhos ele está nu, sem seu uniforme, isso é mais que um sonho, é uma ânsia pela liberdade.
Essa é a precisão com a qual Busiek consegue se aproveitar do universo dos quadrinhos para trazer uma reflexão única e novas perspectivas do que pode ser feito com as narrativas sobre super-heróis.
Recentemente assisti a adaptação cinematográfica do quadrinho (AKA “gibi”) de Joe Kelly, I Kill Giants, e enquanto assistia não conseguia deixar de lado a sensação de que algo estava faltando, mesmo com o filme sendo bastante fiel em muitos pontos narrativos. Não sei se era questão de dinamismo durante as cenas de ação, de entrega dramática em momentos mais íntimos entre os personagens ou a direção pouco imaginativa… espera, era isso aí mesmo. Faltava imaginação, algo novo. É tudo bem parecido, o visual é bem atraente e a história segue basicamente cada capítulo na mesma ordem de acontecimentos, pelo menos a maior parte, diria que é bastante fiel ao enredo da HQ, e é aí que entra aquele meu problema com o longa.
Mas, vocês sabem, eu preciso contextualizar tudo e explicar ou refrescar a memória das pessoas sobre a premissa.
Lançada em 2008 pela editora Image Comics, I Kill Giants é desenvolvida por Joe Kelly e J. M. Ken Niimura, e é protagonizada por Barbara Thorson, uma menina com poucos amigos, mas que consegue reunir uma mesa de RPG para horas e horas jogando Dungeons and Dragons, onde ela geralmente cumpre o papel de “Mestre” (aquele que narra e conduz a aventura imaginária), mostrando seu lado mais criativo, lado este que está sempre presente, mas ela tem que tomar cuidado para não se desviar de seu verdadeiro objetivo: “encontrar gigantes, caçar gigantes e matá-los”. Sua obsessão pelas criaturas é tamanha que se acha na obrigação de alertar todos de um ataque iminente e devastador, e munida de seu poderoso martelo, Kovaleski, segue em sua missão.
A trama de Joe Kelly traz uma proposta divertida e promessa de muita ação, mas também é o drama de uma personagem lidando com temas complexos para alguém da sua idade, então a única coisa que pode fazer é recorrer à um mundo fantástico onde ela acredita ser o melhor caminho para continuar negando a realidade. E é só o que vou dizer sobre a trama porque eu não quero estragar a experiência já que a HQ é ótima e facilmente uma das melhores da última década. Mas como nada passa despercebido pelo olhar da indústria cinematográfica, era óbvio que uma adaptação estava chegando.
Devo deixar aqui uma observação sobre o filme Sete Minutos Depois da Meia-Noite (A Monster Calls, 2016), já que muita gente fez comparações com I Kill Giants, mesmo que erroneamente. A HQ original de Joe Kelly saiu antes do livro, lançado em 2011, então temos uns três anos de diferença aí.
Dirigido pelo estreante Anders Walter, o filme é uma adaptação bem fiel ao material original, ainda mais considerando que os próprios responsáveis pela HQ são creditamos como roteiristas. Então isso é tudo, caso encerrado, não precisamos de mais nada além disso, não é?
Então porque ainda fica aquela sensação de que algo está faltando?
Uma afirmação que todos estão fadados a bater de frente, principalmente dentro da “comunidade nerd” (por falta de uma denominação melhor) é a de que “uma adaptação só pode ser boa se for fiel ao material original em todos os aspectos”. E é uma consideração válida, nós queremos ver aquele livro ou quadrinho sendo respeitado, seguindo a exata visão de seus criadores em cada detalhe, sem que nada mude. A essência tem que estar lá. Mas por algum motivos algumas destas mesmas pessoas também não se incomodam com a visão de Christopher Nolan para sua trilogia sobre o Cavaleiro das Trevas.
Como Del Toro, temos casos onde o responsável pela adaptação é um apaixonado pelo material original. Sam Raimi dirigiu a primeira trilogia de Homem-Aranha (fiz alguns textos sobre a ameaça aracnídea, é só clicar), estrelada por Tobey Maguire. Mesmo com pequenas modificações na roupa e outra que pode não ter agradado alguns envolvendo os cartuchos de teia –culpe James Cameron por isso -, ainda assim fica evidente como Raimi mescla a comédia e as breguices típicas de quadrinhos do gênero, mas desenvolve seus personagens e nunca deixa de lado o drama pessoal de Peter Parker, o que ele considera o coração de todas as histórias clássicas de Stan Lee e Steve Ditko.
E aí fica uma grande razão para não dependermos demais apenas da fidelidade ao material original: No cinema temos a visão de um diretor mais interessado em criar um espetáculo visual e uma narrativa envolvente do que apenas referências e easter eggs para os fãs acharem, e isso pode parecer um comentário óbvio, mas ainda assim nos apegamos demais aos personagens e suas histórias que fica um pouco difícil aceitar uma interpretação divergente da nossa. Porém o formato é diferente e as necessidades são outras. Vamos usar de exemplo um querido do público, Clube da Luta. Um livro impactante com uma mensagem forte no centro, cheia de metalinguagem e ironia narrativa, coisas que as palavras conseguem revelar de uma forma completamente diferente do cinema. Se em um momento Tyler Durden está fazendo um discurso real demais para as páginas do livro, no filme essa sensação é extrapolada e executada de forma inusitada, com o enquadramento saindo do lugar, a câmera trêmula e o ator olhando diretamente para nós, como se o filme estivesse queimando e fugindo do projetor. Isso foi uma liberdade tomada pelo diretor David Fincher, que fez um trabalho excelente e acabou recebendo elogios do próprio autor do livro, Chuck Palahniuk, sobre como a obra conseguiu criar algo novo e diferente sem sair da proposta de seu trabalho original.
Mas e quando o próprio criador está envolvido na adaptação, assim como Frank Miller esteve em Sin City (2005), dirigido por Robert Rodrigues? Também é complicado, e é um caso bem parecido com o de I Kill Giants, só que em Sin City o responsável pelas decisões narrativas e a direção era Rodrigues, enquanto Miller ficava mais ocupado supervisionando tudo e, quando podia, até dirigia algumas cenas (isso o motivou a realizar seu próprio filme em 2008, uma versão Millerizada de Spirit, o que não deu muito certo). Um dos maiores feitos de Sin City foi manter a paleta monocromática da HQ sem que ficasse estranho, mas sim convidativo e intrigante. É este tipo de adaptação que não faz apenas um longa ser um bom filme baseado em quadrinhos, mas apenas um bom filme.
Com tudo isso não quero dizer que devemos dar uma de Jodorowsky e violar completamente o material original e a visão de seu criador, mas aceitar novas interpretações e formas diferentes de contar uma história podem ser uma experiência incrível. Podemos até ver uma mudança total em perspectiva, como Tropas Estelares, com um livro e um filme com o mesmo tema, mas o debate passa longe de ser o mesmo. A versão cinematográfica de Paul Verhoeven é bem mais leve e cômica (alguns diriam “boba”) em tom e aborda seu comentário político de maneira mais satírica e niilista, uma interpretação que diverge muito da escrita mais intelectual de Robert A. Heinlein(independente de sua opinião política, Heinlein traz questionamentos que vão além da superficialidade da qual o roteiro do filme sofre).
O que eu quero não é fidelidade, mas um compromisso com o material, um que não precise impedir a fidelidade. O que os cineastas deveriam se perguntar não é “Como posso trazer essa história para a tela sem perder coisa alguma” e sim “O que eu quero enfatizar deste material?” (Scott Tobias, do AV CLUB).
Com isso em mente, voltamos para I Kill Giants.
O filme pode ser bem fiel, mas também toma pequenas liberdades. Ah, e nessa parte eu tentarei o máximo para não ultrapassar o território de spoilers.
Como na HQ, Barbara interage com criaturas assustadoras e outras nem tanto, já no filme muito dessa manifestação criativa da protagonista é executada de uma forma que posso definir apenas como “genérica”. Não só transformam algo relevante do material original em um grupo de figuras assustadoras (algumas só presentes no filme) sem qualquer personalidade, como perdem a relevância narrativa. Se na HQ o comportamento de Barbara e seu mundo desenvolvem a trama, aqui parecem apenas pontos obrigatórios que o filme precisava riscar da lista para chegar logo no final. E não me entenda mal, eu gostei do filme, achei bem divertido e me entreteve na maior parte, mas mesmo se nunca tivesse lido o trabalho de Joe Kelly, ainda assim estaria com essa indiferença, ou talvez até achasse pior sem conhecer o original.
No fim, fica difícil simpatizar com alguns personagens, principalmente quando não ganham espaço no roteiro. Imaginei que talvez a mudança na bully que intimida Barbara pudesse ser uma boa ideia, mas a sua presença no filme e total falta de importância evidencia ainda mais o que falei sobre “riscar pontos da lista”. A irmã de Barbara e sua melhor amiga estão mais conectados aos dilemas e obstáculos da protagonista, no entanto aqui a atenção do filme é maior nas interações com a psicóloga da escola, a senhorita Mollé, e eu não consigo deixar de imaginar que isso é por conta dela ser interpretada pela Zoe Saldana, o nome mais famoso no elenco, mas eu não quero entrar em debate sobre a indústria cinematográfica agora, então vamos seguir em frente.
O cinema é uma arte visual e é sempre bom quando um filme consegue mostrar muito dizendo pouco (aquele famoso “show, don´t tell”). E mesmo em cenas com longos diálogos como os do roteirista Aaron Sorkin (A Rede Social, A Grande Jogada), eles servem a favor da narrativa e não mastigam informação desnecessária para o público. Mas os quadrinhos são uma mídia diferente e às vezes as partes mais interessantes podem acontecer entre os painéis, onde você é o diretor e sua mente preenche com a imaginação.
Um ótimo exemplo disso (no caso, de como não fazer) é a vergonhosa versão de Ang Lee para o gigante esmeralda em Hulk (2003), um filme cheio de transições e inserções para criar divisões na tela como se fossem os painéis do quadrinho. Sério, é uma das coisas mais feias que eu já vi na vida – e eu gosto do Ang Lee.
Todas as noções de tempo, ritmo e movimento variam de acordo com o formato, e é a mesma coisa quando comparamos o cinema com os quadrinhos.
“É por isso que acho um erro ver os quadrinhos apenas como um hibrido das artes gráficas e da prosa de ficção. O que acontece entre os painéis é uma coisa mágica que só os quadrinhos podem criar”.
Assistir I Kill Giants pode ter sido legal, mas não me prendeu como fã de cinema, não é memorável ou traz qualquer coisa nova, diferente ou arriscada, e olha que com uma premissa dessas o que não falta é oportunidade. O filme pode ser bem fiel, repete algumas falas da HQ, recria algumas cenas e faz várias referências, mas nunca tenta ser algo mais e se é para ver a mesma história, não é melhor ficar logo no quadrinho original?
Não sou daqueles que pensa que um filme PRECISA ter uma mensagem grandiosa ou crítica política para ser bom. Ser divertido já é o suficiente, todos gostam de assistir Curtindo a Vida Adoidado para passar um tempo com Ferris Bueller e seus amigos, mas para fazer com que o público continue voltando e se fascinando com o mesmo filme e os mesmos rostos, acredito que ele PRECISA acreditar no que está dizendo e ter coração, e isso não é coisa fácil, mas se você se esforçar, tem horas que sai um Homem-Aranha 2 ou Cavaleiro das Trevas. Tudo que precisa fazer é ser fiel aos princípios e os temas que fizeram o material original tão incrível, daí pra frente é só mostrar para todos o impacto que isso teve em você e compartilhar seu ponto de vista. Só assim podemos ter uma boa conversa.