Categorias
Cinema

AI: Inteligência Artificial | Spielberg, Kubrick e a Fada Azul

Spoilers!!!

Talvez o longa mais polarizante do currículo de Steven Spielberg seja AI: Inteligência Artificial, de 2001. Alguns consideram um ótimo trabalho de um diretor mais que competente que conseguiu unir sua técnica com a de outro realizador de visão única, mas no outro canto do ringue ficamos com quem considera este um trabalho sem imaginação e desnecessário. Eu aposto meu dinheiro no primeiro grupo e vou dizer porquê. Mas antes, contexto:

Assim como muitos diretores, Stanley Kubrick deixou alguns projetos em aberto antes de sua morte, em 1999. Além do roteiro para uma possível megaprodução sobre a vida de Napoleão, foi revelado um novo projeto que o traria de volta para a ficção científica (onde já realizou clássicos como 2001: Uma Odisseia no Espaço e Laranja Mecânica), sobre a jornada de um robô para tornar-se um garoto de verdade. Mas a ideia não chegou a sair do papel e várias anotações e artes conceituais foram deixadas para trás, até que Steven Spielberg, por mais inesperado que pareça, decidiu continuar a visão de seu amigo.

Os dois possuem uma filmografia completamente diferente, seja em linguagem cinematográfica ou sensibilidade. Como levantou o site AV Club: “Temos o filosófico ‘2001: Uma Odisseia no Espaço’ de Kubrick em um lado, e o emocional ‘Contatos Imediatos do Terceiro Grau’ de Spielberg em outro; ou o cínico ‘Nascido Para Matar’ contra o patriótico ‘O Resgate do Soldado Ryan’. Se tivermos que escolher um, seria uma duvida entre um analista da condição humana e um humanista”. Ainda assim, os diretores eram fãs um do outro, o que não deixa de ser curiosa a decisão de Kubrick em deixar seu projeto final nas mãos de Spielberg. A resposta é mais simples do que se imagina, e está na própria carreira deles. O filme tinha todos os elementos para uma boa ficção científica, mas precisava de um que seria essencial; se você tem uma história onde seu protagonista é um robô que anseia pela humanidade, há uma necessidade por uma carga emocional que o público está acostumado a conseguir em obras como E.T.: O extraterrestre ou Jurassic Park, realizados pela mesma pessoa. Por isso, considero essa a melhor decisão possível.

Baseado no conto de Brian Aldiss, Supertoys Last All Summer Long(“Superbrinquedos Duram o Verão Inteiro”, lançado no Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2001), AI: Inteligência Artificial nos apresenta David, uma criança robô criada por uma equipe de cientistas com a promessa de desenvolver a primeira inteligência artificial capaz de “amar” seu administrador. Monica e Henry Swinton decidem “adotar” David ao descobrir que seu filho possui uma doença aparentemente incurável. A família consegue conviver mesmo com o comportamento robótico do mecha, mas as coisas ficam complicadas quando o filho do casal é liberado do hospital e volta para testar e se vingar de David por ter tomado seu lugar.

A primeira decisão certeira de Spielberg foi contratar Haley Joel Osment, provavelmente o ator mirim mais requisitado naquele ano, depois de ter agradado público e crítica ao estrelar longas como O Sexto Sentido (1999) e A Corrente do Bem (2000). Osment era diferente da maioria dos atores de sua idade, se destacando por conseguir executar papéis complexos de maneira convincente, tanto que chegou a ser uma das pessoas mais novas a concorrer ao Oscar. E não é como se o resto do elenco ficasse devendo, já que tinha nomes como Jude Law e William Hurt. Com um diretor comprometido em apresentar narrativas e personagens memoráveis, o maior desafio de Spielberg seria trazer a visão do amigo para a luz, sem perder sua identidade.

Steven Spielberg e Haley Joel Osment revisando o roteiro

AI possui três atos bastante distintos. O primeiro tem foco total no cotidiano familiar, introduzindo David e seu antagonista, o filho biológico dos Swinton, Martin. Aqui fica aparente a fidelidade ao visual e atmosfera de Kubrick que Spielberg tenta manter. A claustrofobia de cenas simples como um jantar em família é sentida mesmo na grande casa. Os corredores estão sempre vazios, o silêncio predomina, e mesmo com a chegada de Teddy, um robô na forma de ursinho de pelúcia, a diferença é pequena.

Neste momento, a composição fotográfica é centralizada — como era comum de Kubrick. Temos ângulos incomuns, porém uma direção de arte limpa e uma câmera mais estática, com poucos movimentos, mas geralmente reveladores, como quando Monica tenta preparar um café e David observa no canto da mesa, ou no reflexo causado por ele atrás de um vidro. O ponto de vista inicial vem de Monica: é ela quem seguimos, e isso serve para termos um pouco de sua perspectiva deste mundo antes que a humanidade torne-se definitivamente apenas espectadores da jornada de David, assim como todos nós assistindo.

Cena AI

Essa abordagem atravessa o filme, mas deixa de ser a regra assim que chegamos no segundo ato, resultado de uma atitude difícil tomada pela mãe, por conta das competições entre David e Martin, que ficam cada vez mais perigosas. É um dos momentos mais dramáticos do filme e o desespero do robô é tão realista que a mãe não consegue segurar o choro.

A estrutura narrativa de AI lembra a de Nascido Para Matar, outro filme de Kubrick com um primeiro ato em poucas localidades, mais fechado, que força uma abertura para o mundo real em sequencia. Aqui saímos da casa sufocante dos Swinton para um mundo de sucata e neon. Deixamos os humanos para trás e é a hora dos mechas tomarem conta da trama.

É neste mundo que David, acompanhado de Teddy, encontra Gigolo Joe, um mecha adulto (interpretado por Jude Law) que trabalha usando suas ferramentas de sedução. Somos apresentados ao personagem de maneira inusitada, quando ele foge da cena de um crime que não cometeu. Isso faz com que os dois parem em um ferro-velho, no meio de outros de sua espécie, abandonados ou escondidos. A partir de agora Spielberg nos entrega alguns dos visuais mais impressionantes do filme, com uma fotografia mais suja e planos abertos, reveladores como os de Kubrick, mas em escala, como o balão que surge no horizonte e ilumina a noite. É curioso como esse balão parece replicar a famosa imagem da lua usada pelo diretor em E.T.- O Extraterrestre, que mais tarde viria a ser a logo da produtora de Spielberg, Amblin.

Cena E.T.

Durante o segundo ato podemos ver uma mudança na abordagem do filme, que expande seu próprio universo, mostrando outros mecha e sua relação — nada boa — com os humanos. Fica claro que a partir de agora estamos lidando com a linguagem de Spielberg, um ritmo mais rápido e orgânico. É claro que a cena de um sintético com a fisionomia e a voz do comediante Chris Rock sendo atirado de um canhão como uma bola não é o que você espera em um momento tão desesperador para David, então eu dou ponto para o time que não gosta do filme por essa parte.

Não demora para visitarmos Rogue City, o centro de luxúria e cobiça, mas também de tecnologia e informação. É a parte mais extravagante do filme não só em questão de espetáculo visual e uso de efeitos especiais. Alguns consideram isso uma forma de Spielberg tomar conta do filme e deixar as coisas mais grandiosas do que o necessário, mas esse é um dos vários casos onde ele apenas seguiu o que Kubrick já tinha planejado. De acordo com o próprio artista conceitual, Chris Baker, que esteve envolvido no projeto desde o início: “Se eu fizesse a cidade hoje, seria um pouco mais sutil. Eu teria evitado que fosse excessivamente feminina. Talvez mesclar tudo para que não fosse tão óbvio”. Não sabemos se Kubrick traria essa sutileza, mas a ideia era dele e tudo que seu amigo fez foi seguir com ela. No fim, tivemos uma direção de arte mais que competente e alguns ambientes incríveis.

Após consultar uma enciclopédia holográfica, David esbarra na fábula de Pinóquio e fica mais empenhado em descobrir como se tornar um garoto de verdade. Até aqui eram notáveis as ligações metafóricas do filme com o conto do brinquedo de madeira, mas é a partir deste instante que Inteligência Artificial assume por completo sua missão de realizar os desejos de David, mesmo que eles não venham da forma que desejou.

Cena Inteligência Artificial

E assim chegamos no polêmico terceiro ato, que afastou tantas pessoas e aparentemente destruiu suas experiências. David e Teddy encontram a fada azul (na verdade, uma estátua sobrevivente das ruínas da civilização), a mesma que concebeu o desejo de Pinóquio e o transformou em uma criança de verdade. David faz seu pedido e espera ao lado de seus companheiros, na esperança de que em algum momento a fada os ouça.

Anos, décadas e séculos se passam e eles não saíram dali. A superfície da água agora é gelo, a humanidade não parece ter sobrevivido, mas os circuitos das personagens continuam funcionais. Os dois são acordados por figuras que conseguem fazer uma leitura de tudo que David presenciou em sua vida. Logo descobrimos estar na presença de um grupo de mechas, em uma versão muito mais avançada (SIM, são mechas! Não são alienígenas, como alguns pensam até hoje). Diante da ânsia do pequeno garoto sintético, eles decidem realizar seu último desejo, de passar mais um dia com sua mãe. É tudo uma simulação, mas David não se importa. Ele pode falar, andar e tocar, e assim passa horas brincando em sua antiga casa, com sua mãe, como se ele fosse um menino de verdade. Assim, ele pode ser desligado tendo uma sensação de paz. E se vai.

Todo o terceiro ato do filme é considerado por alguns como desnecessário e fantasioso demais. O próprio autor do livro original, Brian Aldiss, não estava feliz com a motivação envolvendo Pinóquio. Então, por que Spielberg fez isso? A obra poderia ter terminado assim que David encontra a fada. Este poderia ser um final lógico, mesmo que desolador.
A imagem do mecha no fundo do mar é prevista no primeiro ato, quando David afunda na piscina dos Swinton. Mas a intenção de Spielberg é ser o menos convencional possível, ir além do que se espera. Pode soar óbvio, e é por isso que, de acordo com Spielberg, o próprio Kubrick queria ultrapassar esta barreira e revelar um desfecho satisfatório para David, um que envolvia aproveitar o que nunca conseguiu, abraçando aquela realidade como ninguém. Ficamos com um momento de catarse, e a atuação de Osment ajuda muito nisso. É uma sequencia mais calma, de doçura e alegria, mas que também traz uma sensação conflitante quando percebemos o quão depressivo e desesperador foi para David nunca ter isso e como ele dedicou sua existência procurando por um sentimento que agora está perdido em um futuro congelado.

Spielberg fez o máximo que pôde para manter o visual e a narrativa de Kubrick, isso sem deixar de lado sua própria habilidade para desenvolver personagens e drama realistas, e é uma tarefa ainda mais difícil fazer isso em uma trama com pouco elemento humano. Inteligência Artificial tem seus defeitos, como o ritmo inconsistente e a falta de uma música mais memorável de alguém tão talentoso como John Williams (responsável pela trilha sonora do filme), mas ainda é um longa com vários pontos positivos e um debate intrigante sobre a condição humana através de uma perspectiva incomum. Estou do lado que considera Spielberg a escolha certa para o projeto, e também acredito que ele tenha sido um bom amigo no fim.

Ator AI
Categorias
Literatura

Guerra Sem Fim | Marcado pelo campo de batalha

Uma das características mais representativas da ficção científica é a capacidade do gênero em apresentar uma crítica de maneira única, se beneficiando de metáforas para construir a narrativa. Joe Haldeman decidiu exorcizar seus demônios da Guerra do Vietnã em sua obra The Forever War, traduzida para o Brasil como Guerra Sem Fim. No livro, Haldeman questiona a importância da guerra, suas contradições, a perda e a solidão constante e a maneira como somos condicionados a participar de atos inumanos.

William Mandella (quase um anagrama para Haldeman) é um recruta convocado para a batalha. Ele não se sente confortável com aquilo, mas decide aceitar toda a experiência, já que não há muita opção. Somos situados em 1997, e a humanidade consegue viajar pelo tempo e espaço através do que chamam de salto colapsar, que são como pontos de acesso servindo como portais para buracos de minhoca. Os soldados tem a missão de enfrentar os taurianos (nome que receberam por conta da constelação de Taurus), uma raça alienígena que sequer conhecem, mas através de estímulos mentais introduzidos pelo próprio governo conseguem matar várias criaturas, mesmo que elas não tenham o mesmo poder de fogo para responder. É uma carnificina gratuita, a raça humana mostra a que veio.

A obra é dividida nos quatro momentos mais importantes da carreira de Mandella, passando por todas as suas patentes. Ainda assim, a estrutura narrativa é linear e cada uma dessas partes possui uma abordagem diferente dos problemas enfrentados por muitos veteranos da Guerra Fria. Tudo começa com o treinamento dos recrutas, em um texto de Haldeman totalmente focado na ação. O autor toma como prioridade, assim como um soldado, o reconhecimento de terreno e todos os elementos do ambiente, além de nos ensinar sobre o equipamento e as táticas marine necessárias para “matar um homem de maneira furtiva”. Este segmento do livro tem todos os atributos que fazem dele uma excelente reprodução da sensação de estar no meio do campo de batalha, mesmo que sacrifique um pouco o desenvolvimento dos personagens. Aqui Guerra Sem Fim tem comparações óbvias com outro sci-fimilitar, o clássico de Robert A. Heinlein, Tropas Estelares. Felizmente, Haldeman não cai nas mesmas armadilhas de ter sua obra confundida com propaganda (não me entenda errado, Tropas Estelares é ótimo, mas tem seus defeitos) e logo assume a responsabilidade se espelhando em Mandella, um jovem estudante de física (assim como o autor) indignado com o caminho tomado pela humanidade.

O que teria acontecido se tivéssemos nos sentado e tentado nos comunicar? (p. 111)

Chegando na segunda parte, Haldeman toma seu tempo e foca nas relações do protagonista. Por conta da relatividade na física das viagens interestelares, há uma dilatação temporal que afeta os soldados. Na sua primeira visita de volta para Terra, Mandella nota que uma década se passou durante sua ausência, mesmo que para ele tenha sido menos da metade disso. Ele visita sua mãe e passa mais tempo com Marigay, uma companheira de campo. Para sua infelicidade tudo está diferente: o crime aumentou, a saúde é precária, houve uma “Guerra do Racionamento”, e uma nova forma de controle da natalidade o deixa confuso. É como se Mandella fosse o alienígena em sua própria terra.

Fica evidente como o autor tem uma facilidade para manter uma consistência narrativa, isso sem contar a habilidade para implementar termos técnicos de forma orgânica, muitos baseados em táticas militares. Há uma sequencia gráfica e realista envolvendo uma contagem regressiva, logo na primeira parte da obra, que eu não duvido ter sido influenciada diretamente por algum acontecimento dos tempos de guerra do autor. Cada baixa da equipe é sentida com um peso e uma dolorosa sinceridade. E talvez o mais impressionante seja a coragem de Haldeman, ainda no auge do debate sobre a guerra (o livro saiu em 1974), em criticar o comportamento dos norte-americanos no Vietnã, com toda destruição desenfreada que não se importou com as crianças e as mulheres inocentes. O primeiro encontro com os taurianos é a mais assustadora e realista tradução disso.

Soldado Mandella

A escolha de dedicar uma parte do livro na perspectiva de Mandella tentando compreender a vida na Terra é uma que nem todo autor pensa em inserir, achando que o público está interessado apenas na ação. Mas como o drama não é o forte de Haldeman, há tropeços. O retorno do protagonista tem alguns bons diálogos e construção de personagem, mas é um pouco difícil digerir a forma quase cômica na qual ele mostra o aumento da criminalidade, dando a sensação de termos um saqueador em cada esquina. No entanto, é também nesse ponto do livro que o personagem reflete sobre a morte e a trivialidade com a qual ela é tratada em campo.

No século 20, estabeleceu-se, para satisfação de todos, que “eu estava apenas seguindo ordens” era uma desculpa adequada para condutas desumanas. (p. 111)

Outra coisa que deve ser considerada, provavelmente a maior, seja a abordagem do autor sobre sexo e sexualidade. É claro que o contexto sempre deve ser levado em conta, como a mentalidade da época, então é esperado ver pensamentos do protagonista como “Porque pegamos as mais cansadas quando estamos com fogo e as mais fogosas quando estamos cansados?”. A maior questão surge mesmo quando Mandella revela seu lado homofóbico, o que felizmente é mencionado e corrigido pelo personagem aos poucos. O controle de natalidade da Terra só é possível por conta da dominância de cidadães homossexuais. É inteligente de Haldeman fazer um tratamento mais acolhedor das pessoas, o que entra em outra crítica ao jeito que o exército trata os gays, mas incomoda um pouco vê-los tendo atitudes efeminadas quase caricatas em alguns momentos. A versão brasileira lançada pela editora Aleph traz uma introdução, do próprio Haldeman, sobre isso. Ele admite não ter a tido a sutileza necessária para tocar no assunto, “Em Guerra Sem Fim, há sexo gay, é claro, mas normalmente entre mulheres ou entre homens efeminados. Minha única desculpa é que era assim que eu via o mundo, na época em que escrevi”.

Guerra Sem Fim é considerado, merecidamente, um clássico da ficção científica militar. Você encontra elementos da obra em várias mídias, seja em filmes como Interestelar Nascido Para Matar, ou até mesmo no episódio Men Against Fire, da série Black Mirror. Haldeman desenvolve uma narrativa devastadora sobre manipulação e as cicatrizes da guerra. É uma leitura essencial para conhecer um dos trabalhos mais influentes do gênero e relembrar uma das maiores manchas da história.

Capa do Livro Guerra Sem Fim

Guerra Sem Fim (The Forever War)
de Joe Haldeman

Editora Aleph, 2019

Capa de Gustavo Perg

354 páginas

Tradução de Leonardo Castilhone

Categorias
Literatura

O Salmão da Dúvida | As Confissões de Douglas Adams

Douglas Adams é uma das figuras mais instigantes da ficção científica, não só pelo seu texto, mas por ter um comportamento despreocupado e honesto com os fãs e, aparentemente, a própria carreira. Tendo O Guia do Mochileiro das Galáxias como a maior referência em sci-fi cômica, é curioso saber mais sobre os bastidores da criação de Adams.

O Salmão da Dúvida é o livro póstumo do autor, que morreu aos 49 anos em 2001, e reúne várias anotações, entrevistas e manuscritos. A edição brasileira, lançada em 2014 pela editora Arqueiro, segue o modelo do original, com uma introdução feita pelo escritor Stephen Fry. A obra consiste de três partes, intituladas obviamente como A Vida, sobre algumas histórias de vida do autor; O Universo, com algumas observações divertidas do tipo que só Adams conseguia; e a conclusão com E Tudo Mais, onde fica a parte mais interessante para os fãs, com uma versão diferente do conto Young Zaphod Plays it Safe, intitulado Perfeitamente Seguro na versão traduzida, e alguns capítulos até então inéditos sobre uma possível nova aventura envolvendo o detetive holístico Dirk Gently, chamada de O Salmão da Dúvida. Adams, como sempre, ficou na duvida sobre a história e passou um tempo em conflito sobre continuar uma narrativa para Gently ou talvez transformar a nova obra em mais uma entrada no Guia. No fim, a obra ficou inacabada — o que faz do título um tipo de piada feita pelo próprio Adams.

O Salmão de Dúvidas

E outra coisa surpreendente, mas praticamente inofensiva, é como toda essa informação foi encontrada no computador do autor. Adams passou anos zombando a tecnologia e a dependência das pessoas nas máquinas, mas com o passar dos anos, assumiu uma relação saudável com o monitor e o teclado, utilizando seu Macintosh para quase tudo envolvendo escrita. Foi em seu computador que manteve os capítulos inéditos, comentários sobre sua infância e o tamanho do nariz, assim como um ensaio filosófico sobre a existência de Deus.

O livro abre com anotações de Adams para o editor e um relato sobre os tempos de escola e o impacto que os Beatles tiveram na sua infância. Há pequenas menções à Graham Chapman, o integrante do grupo de comediantes Monty Python, onde Douglas participou brevemente colaborando nos roteiros e fazendo bagunça com a equipe. Aqui aviso logo que esta não é uma biografia; O Salmão da Dúvida engloba o universo do autor do seu próprio ponto de vista, o que é ótimo mas também sofre um pouco com a ausência de contexto. Se você já não segue o trabalho do escritor, vai ficar um pouco perdido. Indico a leitura de Não Entre em Pânico, da editora Novo Século, uma biografia de Douglas Adams escrita por ninguém menos que Neil Gaiman. Ela foca bastante na criação da série Mochileiro das Galáxias, e o texto de Gaiman é tão leve que tudo pode ser lido em um dia. Também existe a biografia Wish You Were Here, de Nick Webb, mas essa ainda não tive a chance de ler.

O Salmão de Dúvidas

Voltando ao livro, Douglas faz questão de contar mais uma vez um incidente conhecido dos fãs, envolvendo um jornal e um pacote de biscoito. Felizmente, é uma piada que não perde a graça. Entre as opiniões do autor, descobrimos o que ele pensa sobre cachorros, visitas inesperadas e vídeo-games, sem contar uma lição humorada (mas SÉRIA) sobre a execução apropriada para uma excelente xícara de chá:

“Os americanos nunca conseguem entender por que os ingleses dão tanta importância ao chá porque a maioria deles NUNCA TOMOU UMA XÍCARA DE CHÁ DECENTE. Mas para dizer a verdade, a maioria dos ingleses também já não sabe preparar um bom chá e prefere beber café instantâneo barato”

É uma pena não termos a continuação da nova aventura de Dirk Gently, mas é uma alegria ler um pouco do que estava preparado, principalmente com a louca premissa envolvendo o desaparecimento de apenas metade de um gato. O conto envolvendo Zaphod não é tão divertido, mas quem sou eu para reclamar de qualquer coisa nova no universo do Guia ¯\_(ツ)_/¯

Douglas Adams pode não ter vivido o suficiente, mas é um dos maiores gênios da comédia. Suas séries literárias (Guia Dirk Gently) são algumas das mais lembradas e adoradas da ficção científica, e sua contribuição para a cultura pop e o humor é incalculável, bem maior que 42.

Capa O Salmão de Dúvidas

O Salmão da Dúvida (The Salmon of Doubt)
de Douglas Adams

Editora Arqueiro, 2014

Capa de Ana Paula Daudt Brandão

304 páginas

Tradução de Fabiano Morais

Categorias
Cinema Quadrinhos

Alita: Anjo de Combate | A Nova Experiência de Robert Rodrigues

Independente do que ache sobre a filmografia de Robert Rodrigues, não podemos negar que ele tenta se reinventar algumas vezes. Eu comecei a seguir o diretor há muito tempo, quando ainda era criança e morava em frente à locadora da rua. Ao lado de Sam Raimi e Quentin Tarantino, ele estava na capa da maioria das fitas que eu alugava. O Mariachi, seu primeiro filme, é um sólido começo com uma história divertida e uma identidade forte. Não demorou muito para ele começar sua amizade com Tarantino e desenvolver o ótimo longa sanguinário Um Drink No Inferno, em 1996.

Rodrigues nunca chegou a ser um dos meus diretores favoritos, mas era aquele nome que eu seguia por instinto, como se fosse um hábito involuntário. E se você notar, provavelmente já assistiu algumas obras dele, mesmo sem saber. Depois de sua fase trash pistoleira, Rodrigues seguiu um rumo completamente diferente e dirigiu o longa infantil Pequenos Espiões, em 2001. Foi a primeira vez que o diretor atingiu um público maior, obviamente por conta de ter feito um filme mais acessível para toda a família (que rendeu mais três continuações em sua mão).

Ele passou por uma fase morna, sem grandes lançamentos, focando em curtas e documentários. Mas em 2005, comandou Sin City: A Cidade do Pecado, uma adaptação cinematográfica da HQ de Frank Miller bastante fiel à atmosfera e o estilo narrativo do quadrinista. Rodrigues mais uma vez envolvia-se com um projeto original e seu nome voltou a ser lembrado. O longa foi bem recebido pela crítica e recebeu vários elogios sobre sua abordagem com uma fotografia estilizada de preto e branco que parece ter saído direto das páginas do quadrinho noir.

Com Sin City, Rodrigues lentamente voltava ao seu mundo de sujeira e crime, mas o retorno foi real apenas quando, ao lado de Tarantino, desenvolveu Grindhouse, uma homenagem dos diretores ao movimento da década de 60/70, no qual dois filmes eram exibidos em sequencia durante as sessões, geralmente de obras trash com um pouco de gore. Grindhouse consistia de À Prova de Morte (de Tarantino)e Planeta Terror (de Rodrigues). Depois disso, o diretor fez dois longas para Machete e uma continuação para Sin City, mas nada que tenha impressionado.Finalmente, em 2019 tivemos Alita: Anjo de Combate, um projeto que esteve em desenvolvimento há mais de uma década nas mãos de outro diretor: James Cameron; mas sabemos como ele acabou ficando ocupado por conta de Avatar, então confiou em Rodrigues para seguir com o filme. Cameron continuou como produtor e assina como um dos roteiristas, ao lado de Laeta Kalogridis.

Cameron e Rodrigues

Baseado no mangá Gunnm, de Yukito Kishiro, Alita é a jornada de uma ciborgue à procura de sua identidade perdida. É uma premissa conhecida, mas há elementos o suficiente para fazer dessa história algo próprio. É uma premissa que envolve batalhas entre outras máquinas e ao mesmo tempo deve desenvolver uma protagonista carismática capaz de carregar uma possível franquia. Por esse motivo entendo a decisão de chamarem Rodrigues para comandar o projeto. Ele já provou conseguir criar boas sequencias de ação “cartunesca” com seus Sin City e Machete, mas também sabe apelar para o lado mais infantil, o que ajudou no desenvolvimento de Alita, uma guerreira de personalidade forte, mas com o entusiasmo de uma criança para coisas novas.

O maior desafio do filme foi manter a promessa de deixar Alita visualmente parecia com a figura que saiu de um mangá, com os olhos gigantes e tudo. Felizmente, Cameron é um gênio quando se fala de efeitos visuais, então mais uma vez conseguiu arranjar uma maneira de executar sua ideia. A captura de movimentos da personagem, através da atriz Rosa Salazar, foi um sucesso e impressiona como deu certo quando poderia facilmente ter caído em território de vale da estranheza. É claro que nem toda colaboração de Cameron é necessária, como sua presença nos roteiros, que são a parte mais fraca do longa. Toda a trama de Alita é divertida e traz bons momentos de personagens, mas alguns diálogos podem beirar o cliché (há instâncias onde não só beira, como se joga completamente neles) e a segunda metade do filme já chega com o conflito interno principal da protagonista resolvido, então perdemos um pouco do interesse no drama dos personagens.

Ao lado de Salazar, o elenco conta com Christoph Waltz (que já trabalhou com Tarantino e provavelmente foi uma indicação), Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein e Keean Johnson. Waltz e Johnson tem a maior presença e servem, respectivamente, como uma figura paterna e um interesse amoroso. Connelly e Ali estão pagando a reforma da cozinha, mas ainda assim se dedicam, mesmo com a atuação caricata necessária para seus papéis antagônicos. Skrein, como sempre, parece se divertir independente do orçamento do filme.

Outra contribuição de Cameron foi o 3D. Particularmente, tenho uma raiva do uso excessivo de 3D em filmes, e é óbvio que a técnica é usada até hoje para aumentar o preço dos ingressos no cinema, mas aqui ele é bem atribuído. Sequencias de ação, como as do torneiro de Motorball, e algumas batalhas entre Alita e outros ciborgues se beneficiaram da técnica, utilizando profundidade nos personagens para criar um senso de espaço melhor. Essa noção de espaço é também um ponto positivo para um filme onde batalhas de CGI acontecem constantemente. Pode-se perceber a dimensão da cidade onde o filme se passa, e a importância dada aos espaços que introduz. Há um bar onde os caçadores de recompensa se encontram para beber e se gabar de seus feitos, nesta sequencia temos a introdução de alguns conceitos e personagens que mostram como aquele mundo pode ser explorado no futuro.

Alita

Alita: Anjo de Combate se despede confiante, com um gancho para uma possível sequencia. Até o momento, o filme se pagou na bilheteria, mas não foi nada estrondoso. Ainda que tenha seus problemas, Alita encontrou as pessoas certas para sua adaptação, que talvez seja a primeira competente envolvendo a de um anime feito pelos norte-americanos. Até mesmo os olhos grandes tiveram uma explicação mais plausível e aceitável que as modificações de outra adaptação estrelada por um ciborgue, o decepcionante live action de Ghost in the Shell, de 2017.

Robert Rodrigues se encontra mais uma vez no holofote, com um filme que mescla seu olhar para ação e desenvolve o início para o que pode ser uma franquia divertida e despretensiosa, mas carregada de conceitos e efeitos visuais que funcionam muito bem e tem a chance de continuar experimentando sem medo, talvez com um roteiro melhor e uma ameaça mais original.

Ficha Técnica
Título Original: Alitta: Battle Angel (2019)
Direção: Robert Rodrigues
Roteiro: James Cameron e Laeta Kalogridis
Baseado na obra de Yukito Kishiro
Elenco: Rosa Salazar, Christoph Waltz, Jennifer Connelly, Mahershala Ali, Ed Skrein, Keean Johnson

Categorias
Séries Quadrinhos

Patrulha do Destino | “Puppet Patrol” (s01e03)

Estamos apenas no terceiro episódio e já posso afirmar que, se Patrulha do Destino fosse cancelada neste exato momento, a série seria considerada uma das melhores coisas já produzidas para a TV envolvendo um material da editora DC. Preacher é claramente um deleite de sangue e humor negro, mas a equipe de desajustados da Patrulha conseguiu em apenas poucas semanas entregar personagens bem desenvolvidos, um tratamento visual de qualidade e um enredo competente e criativo.

Em Puppet Patrol a equipe fuça os arquivos do Chefe e descobre informações que os levam para o Paraguai. Na verdade, eles não são levados, é mais questão de tentarem chegar lá por uma boa parte do episódio. Ciborgue não consegue contribuição financeira de seu pai e como ainda não é um membro da Liga da Justiça, não pode pegar um jato emprestado. A solução é carregar todos em um ônibus surrado (para ser generoso com os adjetivos). Não sendo apenas uma decisão criativa da série para evitar gastos no orçamento, obviamente (e há uma cena onde fica ainda mais claro como um simples corte — bem feito — na edição ajudou bastante nessa economia), essa acabou sendo uma daquelas ideias que abrem espaço para várias situações cômicas, como cada integrante do grupo tentando (e falhando) botar a mão no volante ou Crazy Jane tentando se matar por conta do tédio, literalmente. Há uma pausa em um hotel na beira da estrada que também serve para conhecermos mais da rotina de Rita e exibir o humor inconveniente de Cliff, que joga nomes como Batman Aquaman no ar com a intenção de irritar Ciborgue.

Preparados para a Fuchtopia

Com o primeiro episódio dando um foco maior na história de Cliff e a relação com sua filha, e o seguinte explorando as origens de Ciborgue e a superfície do que aconteceu com Jane, é chegada a hora de falarmos um pouco mais sobre Larrye os relacionamentos que mantinha, com sua esposa e o colega de trabalho, que acaba se tornando um amante. É mais uma das jornadas trágicas da série, de um homem tomado pelo arrependimento que decide se distanciar de tudo e todos. Mais um bom trabalho do roteiro em apresentar uma certa despedida através do ponto de vista das figuras que mais decepcionou, de um lado um adeus seco e triste de uma esposa traída; do outro uma partida sutil, mas cheia de sentimento, de um homem que perdeu uma das conexões mais fortes que tinha. Matt Bomer atua nas sequencias de flashback e em um momento importante do clímax do episódio, onde tem um embate com sua entidade mal-vinda. Como foi com Brendan Fraser anteriormente, esse é outro caso de um membro do elenco se dedicando ao papel e abraçando o absurdo da série.

Por falar em absurdo, esse episódio tem de sobra, e olha que nem tivemos a narração do Mr. Nobody (fez falta, mas não afetou negativamente a experiência em momento algum). À caminho de Paraguai, o grupo é separado novamente. Rita e Ciborgue ficam em um hotel (contra suas vontades), onde debatem a importância da ex-atriz para a equipe. Esse é o núcleo mais “normal” do episódio, e serve como um alívio cômico reverso, como se colocasse um pé no chão depois de sair da realidade. Por isso também é uma parte que sofre um pouco por não ser tão intrigante quanto a trama paralela, envolvendo Larry, Cliff e Jane chegando (de forma propositalmente conveniente) no seu destino, o ponto turístico provavelmente menos movimentado do país: Fuchtopia (sim, se escreve com h. Tire a cabeça do esgoto). Fantoches que revelam informações sobre o passado do Chefe e Von Fuchs, camponeses prontos para a batalha e a introdução de outra figura bizarra dos quadrinhos são algumas das coisas que me deixam cada vez mais animado para onde esta série pode ir. E pode ir para qualquer lugar.

Puppet Patrol é mais um ótimo episódio de uma série que vem se provando como uma das mais criativas e irreverentes dos últimos anos, e isso com apenas três episódios, mas também com uma trama que está se desenvolvendo muito bem e um trabalho de direção cada vez mais peculiar, com um filtro quase sépia que dá aquela sensação de estarmos vendo uma fotografia velha de algo abandonado há um tempo. É assim que os personagens se sentem e não deixamos de torcer por uma possível luz no fim do túnel para cada um deles.

Que visual ❤

Ficha Técnica:
Puppet Patrol, S01E03
Direção de Rachel Talalay
Roteiro de Tamara Becher e Tom Farrell
Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brendan Fraser

Categorias
Séries Quadrinhos

Patrulha do Destino | “Donkey Patrol” (s01e02)

Possíveis spoilers.

Terminamos o episódio anterior com a chegada de Eric Morden, o Mr. Nobody. O vilão não mede esforços para impressionar logo de cara e é responsável por uma sequencia envolvendo um burro flatulento e um buraco que suga uma cidade inteira com toda sua população (hilário como representaram isso através da contagem de habitantes em uma placa), incluindo uma barata histérica. Alan Tudyk mais uma vez prova porque é a escolha certa para qualquer projeto, e aqui ele tem dois trabalhos difíceis: atuar e narrar. E nos dois, ele é ótimo. Durante o episódio, podemos ver o tamanho do seu poder, ou pelo menos o que ele permite que vejamos.

Nobody é intimidador e suas habilidades de moldar “tempo e espaço” impulsionam a narrativa desenvolvendo os membros da Patrulha, ao criar simulações que revelam os maiores medos e frustrações dos personagens. E sobre a narração, esse é um dos aspectos que melhor funciona por conta de toda a atmosfera absurda e o olhar atento do antagonista sobre a trama. É como se Eric soubesse a temporada inteira e esteja revelando os detalhes aos poucos para a própria série (não vou mentir, isso pode ser verdade). Mas vamos falar mais sobre isso daqui a pouco — hora de focar no que foi introduzido no episódio.

Joivan Wade interpreta Victor Stone, o Cyborg. Eu admito geralmente me preocupar com a introdução de personagens mais populares em séries onde a lógica não existe, com medo deles se destacarem de uma maneira estranha, talvez se desvencilhando do tom da produção, mas eu não sei o que acontece com Patrulha do Destino para conseguir realizar com perfeição tudo que tenta, incluindo a apresentação de Victor. Em apenas um episódio tivemos uma jornada por dentro de um burro, uma cidade destruída e uma história de origem (duas se contarmos as revelações sobre Crazy Jane), e ainda assim cada um desses elementos é executado muito bem, principalmente a trama de Cyborg (é a primeira vez que me importo com o personagem desde a animação original de Teen Titans). É um alívio ver algo tão positivamenteridículo e divertido, ainda mais vindo de pessoas que escreveram séries mais genéricas como The Vampire Diaries ¯\_(ツ)_/¯.

Neste episódio, a equipe procura pelo Chief, o Dr. Niles Caulder, raptado por Eric. Essa promete ser a trama principal ao longo da temporada, e com a presença de Mr. Nobody, temos uma ameaça constante pairando à cabeça dos heróis. As subtramas continuam fortes, como a evolução da relação de Cliff e Jane, ou o receio de Larry e Rita em participar de toda a loucura. Jane tem o tempo e a história de origem que não recebeu no primeiro episódio, e isso foi uma boa decisão, porque aqui temos a oportunidade de focar em algumas de suas personalidades e na manifestação de seus poderes. As tentativas de Cliff em se aproximar de Jane talvez sejam as cenas mais frustantes quando levamos em conta tudo que aconteceu com ele e o dilema que passa por conta de sua filha. Fraser pode estar emprestando apenas sua voz para o personagem, mas há uma tristeza convincente que me faz apreciar mais o ator.

Patrulha do Destino

Também é um episódio sobre arrependimentos, como visto no monólogo de Cyborg sobre uma promessa que fez para sua mãe. Joivan Wade é carismático e um pouco arrogante, mas também prova seu valor moral sem aceitar propostas fáceis e ameaças vazias. Enquanto isso, Rita revive seus dias de glória e Larry pilota mais uma vez. A intenção é ser uma tortura mental da parte de Eric, mas isso não impede os dois de aproveitarem o momento, rendendo boas sequencias cômicas (nada tão histérico quanto uma barata desesperada, claro). Toda a representação visual do interior do burro é outro atestado de como o design de produção da série está de parabéns, e a ideia de materializar as palavras de Jane e transforma-las em armas foi uma das coisas mais quadrinhos que já vi na TV.

Por falar em quadrinhos, Eric chega a mencionar Grant Morrison. Eu geralmente acho referências e menções gratuitas algo desnecessário e sem graça (essa coisa de “ser fã e querer service” não faz sentido algum), mas Mr. Nobody é um dos personagens mais estranhos e intrigantes no qual o roteirista já colocou as mãos, e as marcas registradas de metalinguagem e ridículo levado a sério do autor são traduzidas perfeitamente para a tela. Agora é esperar por mais personagens maravilhosamente estúpidos como Danny, a rua ambulante (será que os eventos desse episódio servem como uma forma de origem para a personagem?) ou a Irmandade do Dadaísmo. Ansioso por mais e preparado para episódios cada vez mais abstratos e Morrisonianos.

Ficha Técnica:
Donkey Patrol, S01E02
Direção de Dermott Downs
Roteiro de Neil Reynolds 
Shoshana Sachi
Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brenda Fraser, Timothy Dalton

Categorias
Séries

The Expanse | 1ª Temporada: “Remember the Cant!”

Texto totalmente livre de spoilers!

Baseada na série de livros de James S.A. Corey (pseudônimo usado pela dupla Daniel Abraham e Ty Franch), The Expanse tem sido uma das séries mais interessantes de se seguir nos últimos anos. É uma pena que tenha sido criada pelo canal SYFY, que não tem muito respeito pelas suas produções e decidiu cancelar a série depois da terceira temporada. Felizmente, o Prime Video (serviço de streaming da Amazon) assumiu a tarefa de continuar as histórias da tripulação da Rocinante. Com a adição das temporadas em sua nova casa, decidi falar um pouco sobre elas antes que a nova chegue.

The Expanse nos carrega 200 anos no futuro, para uma sistema solar colonizado. Há tensão entre os povos por conta da exploração de matéria-prima, e protestos acabam piorando a situação. A humanidade está dividida em três polos principais: Terra, Marte e o cinturão de asteroides. Por enquanto não visitamos Marte, mas ela é uma potência militar considerável e a sua presença está nos terráqueos que colonizaram o planeta e servem de grande influência na movimentação espacial. Passamos mais tempo em Ceres, um dos asteroides do cinturão, onde seus habitantes são chamados de Belters (beltpode ser traduzido para cinturão). Eles são os principais descendentes de mecânicos e engenheiros, responsáveis pelas colônias, e tem seu próprio “sindicato” (o que não agrada nem um pouco a Terra ou Marte, que o consideram uma organização terrorista). Por conta da gravidade baixa, acabaram sendo alterados fisicamente ao longo dos anos, e também sofrem com a falta de água. Enquanto isso, na Terra, temos o comando firme das Nações Unidas, que resolve as coisas da maneira que bem entenderem.

A trama começa realmente onde menos se imagina, por conta de uma nave coletora de gelo que habita o espaço aberto, a Canterbury. O maior mistério da temporada envolve a destruição da nave, junto de sua tripulação. Isso faz com que a tensão aumente e uma guerra pode estar mais próxima do que se imagina. O mais intrigante é que um pequeno grupo conseguiu sobreviver a explosão da Canterbury por estarem a bordo de sua nave auxiliar investigando um pedido de socorro: James Holden, o segundo oficial; Naomi Nagata, a engenheira-chefe; Amos Burton, mecânico; Alex Kamal, piloto; e Shed Garvey, médico.

Sobreviventes da Canterbury

Holden vira uma figura importante no meio de todo o debate sobre quem poderia ter destruído a nave, então ele e sua tripulação decidem resolver o mistério, mesmo que tenham membros de todos os cantos do sistema solar interessados em sua história. Paralelamente, somos apresentados ao detetive Joe Miller, de Ceres, designado em um caso cada vez mais perigoso envolvendo o desaparecimento de Julie Mao, a filha de um dos homens mais influentes da Terra.

Essas duas tramas são o foco principal de uma temporada de manipulação, conspirações e debates sobre as responsabilidades de figuras poderosas. O enredo é construído em cima da animosidade entre os povos, por isso é notável o ótimo trabalho da equipe para manter todos os núcleos consistentes e, ao lado da direção, construir um universo provocativo, com um design de produção que consegue ir da sujeira das ruas durante os protestos no cinturão para a elegância monótona das instalações governamentais da Terra. Isso também se aplica às sequencias espaciais, onde há um excelente trabalho do departamento de efeitos especiais, ainda mais quando consideramos que esta é uma série com orçamento de TV para um canal como o SYFY, que não é um dos mais ricos (eu sei que pareço um pouco como um disco quebrado falando deles, mas foram tantas decepções que ainda não tive tempo para perdoar). Se eu tivesse que escolher um problema da temporada, seria talvez a forma que demore um pouco para realmente nos envolvermos com os personagens, já que os primeiros episódios dão mais importância a apresentação do mundo e a trama principal, mas isso não demora muito, e quando tudo está alinhado perfeitamente temos uma ficção científica política de qualidade em mãos.

Thomas Jane e Shohreh Aghdashloo são os rostos mais conhecidos do elenco. Jane interpreta o detective Miller, com uma atitude que lembra a de um Blade Runner, assim como sua narrativa segue uma linha noir. Já Aghdashloo é uma intimidadora e influente figura das Nações Unidas. Ainda que os dois tenham personagens importantes, o resto do elenco não deixa a desejar. Steven Strait e Dominique Tipper tem uma ótima relação como a dupla Holden e Nagata, e há o contraste entre a atitude confiante de Wes Chatham, como Amos, e a cautela de Cas Anvar, como o piloto Alex. Jared Harris tem uma participação menor, mas é o tipo de ator que “rouba a cena”, então vale a pena mencioná-lo.

Alex. Jared Harris

Com debates e questionamentos de temas realistas que fazem de The Expanseuma obra original e relevante, essa é uma das indicações mais sólidas que faço por aqui. Não demora para que você se encontre cada vez mais ansioso para saber o que acontece com os tripulantes da Rocinante e como Miller se enrosca em sua missão mais complicada.

Ficha Técnica:
The Expanse, S01
Criada por 
Mark Fergus e Hawk Ostby
Direção de Breck Eisner, Jeff Woolnough, Terry McDonough…
Roteiro de Hallie Lambert, Georgia Lee, Naren Shankar…
Atuações de Thomas Jane, Shohreh Aghdashloo, Steven Strait, Dominique Tipper, Jared Harris.

Categorias
Séries Quadrinhos

Patrulha do Destino | “A mente é o Limite” (s01e01)

Eu ainda não assisti a primeira temporada de Titãs. Admito que não estou muito interessado na série, mas fiquei animado quando soube que a Patrulha do Destino foi introduzida por lá. Eu adoro o grupo e é um daqueles que merecia mais atenção do público, então é óbvio que estou feliz pelo spin-off(tecnicamente a versão live action do grupo foi originada em Titãs) ter começado com o pé direito.

E antes que as comparações comecem, vou logo tirar isso do caminho: existem alguns elementos essenciais da premissa que podem ser similares aos do famoso grupo mutante, X-Men: um líder rico e inteligente em cadeira de rodas e um grupo de desajustados tentando trabalhar em equipe; mas a HQ de Patrulha do Destino foi originalmente lançada apenas alguns meses ANTES da primeira revista de X-Men — Ou seja, não sabemos se Stan Lee deu uma passada nos escritórios da DC ou o contrário (acredite, esse tipo de coisa era comum entre as duas editoras), mas pelo menos podemos esclarecer logo isso.

Patrulha do Destino (ou Doom Patrol, no original) foi criada pelo trio Arnold Drake, Bob Haney e Bruno Premiane, em 1963, na revista My Greatest Adventure. Eles foram tão bem recebidos que a HQ foi renomeada com o título do grupo. A série de TV traz os membros do grupo original, mas tem uma trama mais parecida com a fase escrita por Grant Morrison, que foi uma das mais aclamadas pelos leitores.

Comandados pelo Dr. Niles Caulder, mais conhecido como Chief, um grupo de pessoas com habilidades inacreditáveis lida com a perda de suas vidas passadas. Larry Trainor era um piloto da Nasa; Ritta Farr, uma atriz renomada; Cliff Steele, um campeão em corridas automobilísticas. Todos sofreram acidentes que mudaram suas vidas. Agora são, respectivamente, Homem Negativo, Mulher Elástica e Homem-Robô. Cada um com características distintas e motivos diferentes para permanecer na casa de Niles. Além deles, temos Crazy Jane, uma jovem com múltiplas personalidades, cada uma com um poder diferente.

O elenco da série é notável, com nomes como Matt Bomer (de White Collar) e o misterioso Timothy Dalton, sem contar o retorno de Brendan Fraser, que esteve de volta algumas vezes em séries menores, mas nada com a visibilidade de uma adaptação de quadrinhos da DC. Vale ressaltar que Bomer e Fraser são os únicos personagens que tem seu rosto completamente coberto, e por isso apenas emprestaram suas vozes para os heróis (claro que em cenas de flashback, temos os dois atuando em suas vidas “normais”). É engraçado, mas pelo menos não afeta a experiência. Dalton está charmoso como sempre e April Bowlby tem a elegância necessária para uma personagem como Ritta Farr. A minha adição favorita ao elenco é Alan Tudyk, que geralmente rouba a cena e acaba sendo a melhor parte em qualquer coisa que participa, e aqui seu talento é mais do que necessário, já que interpreta o Sr. Ninguém, talvez o principal antagonista da temporada.

Patrulha do Destino

Não se fala muito sobre Crazy Jane no primeiro episódio, mas ela tem um bom tempo de desenvolvimento de personagem durante suas conversas com o Homem-Robô. E por falar nele, o drama principal do episódio envolve as tentativas de Cliff para lembrar o que aconteceu antes de se tornar uma máquina, no acidente que fez com que a única coisa que sobrasse dele fosse seu cérebro. Os flashbacks, assim como a narração (feita por Tudyk, o que achei criativo e espero que seja assim até o fim), foram inseridos pontualmente, sem atrapalhar o que está acontecendo com os personagens no presente. Cliff lembra do acidente constantemente, mas talvez sua mente esteja lhe enganando. A série abre caminho para um arco envolvendo sua filha, e podemos ver logo de cara como ela é importante para ele. Algumas das sequencias mais marcantes do episódio envolvem a luta de Cliff para tentar movimentar seu novo corpo de metal, e essa parte é muito bem executada, com excertos de memórias de sua filha onde o presente invade o passado.

Mesmo que Cliff seja o destaque do episódio, pode-se ver a preocupação em contar a história de cada elemento do grupo. O clímax do episódio envolve um passeio pela cidade, com cada personagem procurando algo diferente para fazer: Ritta decide comer algo em um restaurante com temática clássica e Larry quer apenas pedir uma cerveja. O que vem em seguida é um pouco da demonstração do que eles podem fazer com suas habilidades.

Esse é apenas o episódio piloto, mas é um ótimo começo que estabelece cada personagem e trama muito bem. A direção é competente e não traz muita experimentação, o que não é problema mas seria muito bem vindo em uma série onde uma mulher vira uma gosma nojenta, um homem consegue atravessar os cabos de energia e um jumento surge no meio da estrada para soltar uma mensagem no ar feita com sua própria flatulência. É bizarra, boca suja e bastante ridícula, Patrulha do Destino pode ser uma das melhores séries de herói do momento, mesmo que a própria não aceite isso.

Ficha Técnica:
Pilot, S01E01
Direção de Glen Winter
Roteiro de Jeremy Carver
Atuações de Diane Guerrero, April Bowlby, Alan Tudyk, Matt Bomer, Brenda Fraser, Timothy Dalton

Categorias
Literatura

Kindred: Laços de Sangue | Nunca esqueça o passado

Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco (Octavia E. Butler)

Dana está de mudança para um novo apartamento com seu marido, Kevin. Mas não há tempo para descanso depois de carregar todas as caixas, porque começa a sentir o chão desaparecer e antes que perceba, está à beira de uma mata, ajoelhada, próxima de um rio, onde uma criança está se afogando. Ela salva a criança, mas logo nota que encara a ponta de uma espingarda. O susto aparentemente a traz de volta para seu apartamento, e a prova de que tudo não foi um sonho são suas roupas encharcadas. Tudo volta ao normal, mas não demora para que aconteça de novo.

A premissa de Kindred: Laços de Sangue é talvez uma das melhores que eu já li, nos colocando no meio da ação, introduzindo todos os elementos e preparando o terreno para o que está por vir. Octavia E. Butler tem um texto dinâmico e constrói fortes personagens, cada um com características muito bem definidas – tudo que eu procuro em um livro; sem contar o comentário social que Butler aborda de maneira inteligente (afinal, uma das coisas que a ficção científica faz melhor que qualquer gênero é encontrar maneiras originais de estudar a condição humana).

No livro, Dana logo descobre que está sendo mandada constantemente para o século XIX, onde se encontra no pior lugar e época possível para uma jovem negra como ela: uma Maryland pré-Guerra Civil, onde a escravidão durou duzentos anos e as leis eram extremamente rígidas, até mesmo comparadas com outros estados. É nesse ambiente que Dana precisa resistir para poder ajudar Rufus, o garoto que salvou no rio e precisa salvar mais vezes. Mesmo que seja um futuro alcoólatra dono de escravos, ele também será o pai de um dos antepassados de Dana, o que faz a relação deles mais complicada do que deveria.

Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.

Kindred é uma narrativa que se encaixa facilmente no Afrofuturismo, graças ao uso da ficção científica especulativa para criar um debate sobre a história negra e a forma como os eventos repercutem até hoje (e infelizmente parecem querer se repetir na cabeça de alguns). Dana é originalmente de 1976, vivendo em um Estados Unidos que passou por radicais mudanças depois dos movimentos de igualdade racial. Butler foi extremamente pertinente ao lançar uma obra como essa em 1979, aproveitando o momento para continuar tocando na ferida. Hoje esse é um dos melhores exemplos de como a ficção serve para analisar a sociedade e a forma como interpretamos o passado.

Rufus é uma personagem complexa, assim como sua relação com Dana. Ele a conhece ainda garoto e a encontra constantemente, sempre que precisa de ajuda, seja botando fogo nas cortinas de sua casa ou bêbado em uma poça de lama alguns anos depois. Seu comportamento abusivo é insuportável, mas Dana é compreensível e humaniza Rufus, independente de sua família e o que ele pode acabar se tornando. Esse contraste pode passar a impressão de que Dana seria ingênua de aceitar as decisões ruins de Rufus, mas ela se torna uma protagonista mais forte ao tentar conversar e fazer com que o jovem entenda onde errou e como pode se redimir. Os dois vivem trocando farpas e Dana encontra obstáculos cada vez maiores para superar.

Kindred é uma leitura rápida, mas pesada (você vai querer largar o livro por alguns minutos). O que Butler narra não é apenas uma tragédia na vida de uma figura negra, mas um retrato de uma cultura que sofreu mais do que imaginou por conta da ignorância e preconceito. Há um momento em que Dana está em sua casa, em 1976, e lê um livro sobre a Segunda Guerra, apenas para ficar deprimida com toda agressão, doença e tortura. “Como se os alemães tivessem tentando fazer, em apenas alguns anos, o que os americanos praticaram por quase dois séculos”. A autora não se contém e faz questão de lembrar quanto sangue inocente foi derramado para que a história pudesse ser feita, e como continuamos derramando quando o ser humano decide descontar sua raiva em quem é diferente. Esse é um livro importante e cheio de significados, com referências e paralelos que farão você notar que nem tudo é tão ficcional quanto parece, e a importância de jamais esquecer o passado. Jamais.

capa kindred

Kindred: Laços de Sangue (Kindred)
de Octavia E. Butler

Editora Morro Branco, 2017

Capa de Mecob

432 páginas

Tradução de Carolina Caires Coelho

Fontes
*Sobre Maryland e a emancipação tardia de seus escravos (em inglês).

Categorias
Séries

The OA | O jardim de caminhos bifurcados (através da dança)

“Existir é sobreviver a escolhas injustas”

The OA é um grande mistério para seus fãs, não só pela sua narrativa mas pelo tempo que está demorando para lançar sua segunda temporada. A série foi lançada pela Netflix em 2016 e até o momento de encerramento desse texto, tudo que temos é a promessa de que coisa nova está por vir. Eu fui um dos que deixou a série passar despercebida quando foi lançada, então decidi me atualizar antes que a nova temporada saia, finalmente. Havia uma dúvida sobre escrever sobre a série, mas depois de ler algumas reações negativas pensei em falar um pouco sobre ela, porque achei uma das séries mais intrigantes que já vi.

Antes de tudo, eu vou dar uma recapitulada para quem não lembra (haverão leves spoilers ao longo do texto, mas nada que prejudique a experiência).

A jovem Praire Johnson (Brit Marling) volta para casa depois de desaparecer por quase uma década. O mais chocante não foi ela ter sido encontrada depois de pular de uma ponte, mas sim a revelação de que ela recuperou sua visão de alguma maneira, visão essa que perdeu depois de uma experiência quase-morte na infância. Sua história fica conhecida e a cidade não fala de outra coisa, mesmo que todos os detalhes permaneçam um mistério. Isso pode ser uma boa ideia, já que sua narrativa envolve uma infância na Russia, um cientista obcecado por um experimento peculiar, um grupo mantido em cativeiro, uma entidade mística e um movimento de dança que pode influenciar a maneira que interpretamos o conceito de tempo e espaço. Praire agora se intitula a “OA” e ela está pronta para compartilhar os eventos que mudaram sua vida e podem mudar a de um grupo que, ao contrário de muitos, acredita no milagre da jovem.

Criada por Brit Marling (que estrelou alguns filmes sci-fi de baixo orçamento muito bons, como A Outra Terra, de 2011) e Bat Batmanglij (A Seita Misteriosa, de 2011, estrelado por Marling), essa é a primeira vez que a dupla produz uma série, e não fez um trabalho ruim.

O que me atrai em premissas como a de The OA é a forma como todos os elementos são apresentados, como o narrador não confiável, um artificio bastante utilizado quando uma produção decide criar a sensação de confusão não apenas em seus personagens, mas em quem assiste. A narração é uma parte crucial da série e a maior parte da temporada se passa nas interpretações do que Praire nos conta. Ao lado da “OA” seguem cinco personagens: quatro jovens da mesma escola e, por incrível que pareça (como se já não estivesse estranho), uma das professoras. Todos distintos em personalidade, mas igualmente envolvidos no que Praire tem a dizer. Em questão de elenco, a série tem uma equipe competente mas os verdadeiros destaques são a própria Brit Marling e Jason Isaacs, esse segundo interpretando o Dr. Hunter Aloysius Percy (ou HAP, para ser mais rápido).

The OA

Outro ponto alto da série é a direção de arte. Alguns visuais são simplesmente incríveis e contribuem para o mundo de The OA tão bem que acabaram se tornando uma de suas principais características. Há uma atmosfera misteriosa até mesmo na cidade, que costuma ser retratada com longas estradas de curvas intermináveis e uma escuridão quase melancólica que assola as noites — talvez uma ligação com o que a trama aborda nos episódios seguintes. Ao lado disso, aproveito para levantar a importância do departamento musical. Além da composição de violino que embala o primeiro episódio, algumas músicas fizeram a diferença, dando enorme impacto emocional, como Full Circle, da banda HÆLOS, e a depressiva Downtown, da Majical Cloudz, que conclui o quinto episódio.

The OA é uma mescla de gêneros (mesmo que esse conceito seja complexo). A série é uma ficção científica na superfície, com seu caráter especulativo sobre o que entendemos de física, por exemplo. Mas há o elemento fantasioso, a protagonista não deixa de tentar reafirmar a existência de uma entidade mística que a conferiu com uma informação valiosa sobre uma forma de nos comunicarmos com outras dimensões através de “movimentos rítmicos”.

Parece bizarro. E é. Mas faz sentido.

Solidão, abuso e trauma são alguns dos temas principais da série, mas ela também entra em debates conhecidos da ficção científica, o principal deles sendo a interpretação de muitos mundos, um conceito da física quântica que sugere a possibilidade de existirem múltiplos universos paralelos.

Apresentada por Hugh Everett III, a interpretação de muitos mundos parte da premissa que vivemos em um multiverso, onde o tempo está em constante ramificação, o que acaba criando mundos diferentes, cada um com uma versão diferente do que você é. Essa é uma maneira bem simplificada de explicar, mas é basicamente essa a ideia. É um conceito absurdo; nem todos o apoiam, é claro, mas ele poderia contribuir para a resposta de várias questões da física quântica — por exemplo, a interpretação de Copenhague, responsável por afirmar que pode haver mais de um estado para um fenômeno não observado. É como o famoso exemplo de Schrödinger: um gato em uma caixa está vivo e/ou morto ao mesmo tempo, a única confirmação vem através da abertura da caixa. Na interpretação de muitos mundos o gato teria se divido em dois caminhos, um no qual esteja vivo e em outro, morto.

É claro que, como o nome diz, é apenas uma interpretação. Não há (ainda) fatos que comprovem os muitos mundos, e também existe o Paradoxo de Olbers, que utiliza a escuridão do céu para descartar a possibilidade de “muitos mundos”, mas The OA consegue escapar disso utilizando outras dimensões e o argumento de que a passagem de uma linha temporal para outra seria “invisível”.

Na série, a OA recebe movimentos (que acabamos chamando de dança, mas isso seria resumir demais o contexto, então vou chamar de performance, para ser mais preciso) através de visões e experiências com uma entidade chamada Khatun. Estes movimentos são capazes de realizar coisas inacreditáveis, como curar ferimentos e até abrir um caminho para outras dimensões. Khatun assume a forma feminina e é um compilado de várias culturas; desde seu nome, de origem árabe, até a marca no formato braile em seu rosto, em alemão. Ela vive sozinha, aparentemente, em um espaço coberto de estrelas, como se caminhasse por entre as galáxias, e é ela quem dá o título de OA para Praire (que mais tarde descobrimos ser uma abreviação de Original Angel: o anjo original). É um conceito “fantasioso” que bate de frente com o debate científico que personagens como o Dr. Hunter carregam, mas que ainda assim faz total sentido narrativo, principalmente quando lembramos que este é o ponto de vista de Praire, então talvez tudo isso seja apenas uma forma de lidar com o trauma. É só ter em mente que nenhum outro personagem teve contato com Khatun. Mas aí estamos entrando em território onde o spoiler é mais frágil, então vou me conter.

Praire sendo acalentada por Khatun

O sexto episódio da primeira temporada é intitulado Forking Paths, oque fortalece ainda mais a relevância das realidades alternativas na história. Esse título é uma referência à “O jardim de caminhos que se bifurcam” (The Garden of Forking Paths, em inglês), o conto literário de Jorge Luis Borges que talvez seja mais importante pra série do que se imagina.

A história segue o Dr. Yu Tsun, um professor que também é um espião correndo contra o tempo para evitar ser capturado por um agente do governo. No meio do caminho encontra o Dr. Stephen Albert, que é fascinado por um ancestral de Tsun, um homem que dedicou sua vida construindo um labirinto e escrevendo um romance absurdo e contraditório onde, entre outras coisas fora do comum, personagens estão mortos em um momento para surgirem vivos em outro. Essa é uma das coisas que The OA também trouxe para sua narrativa, já que é apenas através das experiências de quase morte que descobrimos cada vez mais sobre o mistério dos movimentos.

No conto, Albert diz para Tsun como interpreta a obra de seu ancestral:

Numa charada cujo tema é o xadrez, qual é a única palavra proibida?” 
Refleti um momento e respondi, “A palavra xadrez”. 
“Exatamente” disse Albert, “O jardim de veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo […] é uma imagem incompleta, mas não falsa […] seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange 
todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe o senhor e não eu; em outros, eu, não o senhor; em outros, os dois”.
(Baseando na tradução da versão: “ Obras completas Jorge Luis Borges”, de 1998, da editora Globo S.A.)

Albert entende que o labirinto sugere uma bifurcação temporal. Ele explica como na literatura, um personagem pode escolher apenas uma das alternativas que lhe são apresentadas; mas aqui, um personagem escolhe — simultaneamente — todas elas. Aqui ele cria diversos futuros que proliferam e bifurcam também (no cinema ou em séries, costumam explicar esse conceito utilizando um galho de árvore como exemplo, com os ramos crescendo para novos caminhos e criando novas realidades. A série Legion, baseada nos quadrinhos da Marvel,faz isso e também fala bastante sobre a interpretação de muitos mundos, sem contar que é uma ótima série e merece ser assistida).

Em The OA, os movimentos podem ser apenas uma forma de Praire lidar com o trauma de ter sido raptada. A série deixa em aberto a veracidade da história da OA, mas isso não anula como ela afetou o grupo que ouviu sua história. Essa é uma série com vários temas intrigantes e ótimos personagens, então é óbvio que eu estou ansioso para a segunda temporada.

CADÊ A SEGUNDA PARTE DE THE OA?

==================
ps: Antes que alguém diga algo sobre o desfecho da temporada, que alguns consideraram “ter vindo do nada”, já digo que discordo completamente da afirmação. Houveram vários indícios do que estava por vir, era só prestar atenção nos sonhos de Praire e no que era dito nas rádios. Se quiserem, posso fazer um texto só sobre isso ¯\_(ツ)_/¯

ps²: O título do conto de Borges também pode ser traduzido como “O Jardim de Veredas que se Bifurcam”, mas trocar “veredas” por “caminho” fez mais sentido dentro da proposta da série.

Fontes:
*Para quem tiver curiosidade, o curta de Borges pode ser encontrado aqui, mas em inglês. 
*Hipótese de Muitos Mundos: https://www.allaboutscience.org/portuguese/hipotese-de-muitos-mundos.htm e https://hypescience.com/interpretacao-de-muitos-mundos-vai-dar-um-no-na-sua-cabeca/