Por mais que alguns de seus detratores tentem limitar o cinema nacional à narrativas de drama genérico ou comédia caricata, o nosso cinema é bem mais rico do que isso, e uma das provas está no trabalho de diretores como Adirley Queirós, de obras como Branco Sai, Preto Fica e Era uma Vez Brasília, dois longas que além de serem um olhar crítico da vida periférica em Brasília em relação ao centro politico do país, também são duas obras que exploram um gênero que, infelizmente, tem sido pouco explorado no nosso cinema, a ficção científica. Em outro texto, falo melhor de Branco Sai, Preto Fica, e a importância de sua análise sobre violência, trauma e brutalidade policial, mas também a forma como mescla comentário social com elementos do gênero especulativo, incluindo na trama um viajante do tempo para investigar a sociedade que tem oprimido a população preta.
Indo para Era uma Vez Brasília, temos um olhar que pode até soar completamente pessimista na superfície, muito por conta dessa ambientação que traz uma certa ansiedade existencial por conta do tema principal que explora. O filme tem outra mescla interessante de ficção científica e drama político, contando a história de um agente intergaláctico que recebe a missão de vir para a Terra matar o presidente Juscelino Kubitschek em 1959, mas a personagem acaba se perdendo durante sua viagem temporal e cai na Ceilândia de 2016, no Distrito Federal, quando o país está prestes a presenciar o golpe de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff.
Seria possível criar um paralelo entre esses dois filmes, que evidenciam o caos iminente a caminho de um país que se permitiu flertar com o fascismo, e o próximo longa de Queirós, Mato Seco em Chamas, que representa o país tomado pelo bolsonarismo, além de trazer um questionamento sobre as chances de um recomeço, mesmo em um sistema completamente quebrado.
Codirigido entre Joana Pimenta e Adirley Queirós, Mato Seco em Chamas é mais uma obra que representa a periferia de Ceilândia, em Brasília. Na trama, as irmãs Chitara e Léa lideram uma gangue feminina que consegue roubar petróleo de um oleoduto, refiná-lo e transformar em combustível para os motoqueiros da favela Sol Nascente. Em um presente (ainda mais) distópico, com toques de recolher e barreiras físicas se formando entre as classes sociais, a gangue de gasolineiras cria uma fortaleza em sua refinaria improvisada e precisa se defender de possíveis ataques de qualquer um que queira acabar com sua operação.
Com uma ambientação que, mais uma vez, mescla gêneros como faroeste e ficção científica, fica fácil referenciar esse filme como um “Mad Max” brasileiro, mas isso seria apenas a superfície. Mato Seco em Chamas se utiliza bastante do formato documental e cria uma linha temporal que alterna entre essa narrativa ficcional de ação e uma experimentação documental que explora as histórias das mulheres do presídio Colméia, com depoimentos das próprias ex-presidiárias, que agora interpretam as gasolineiras da ficção. Assistimos as mulheres em sua jornada de redescoberta por identidade depois do aprisionamento, lidando com um Brasil cada vez mais difícil de reconhecer.
“Procuramos mulheres que tinham uma história que trazem uma melancolia, cujos rostos e corpos são marcados por essa história de liberdade e aprisionamento. Uma geração inteira que foi encarcerada e tem o sentimento de não saber se está no presente, passado ou futuro. Você vai para a prisão e o que para você é um dia, para o resto do mundo são anos. É quase coisa de ficção-científica. O tempo é relativo” (Joana Pimenta)
É uma combinação docu-ficção que poderia ser confusa ou artificial na mão de outro diretor sem a mesma sensibilidade, mas Pimenta e Queirós constroem uma narrativa poderosa que faz com que o real e o ficcional passem a ser um só, não só por conta da vivência das atrizes, mas a liberdade criativa em cima do roteiro, aberto ao improviso, o que faz com que as suas protagonistas tragam a realidade em diálogos e atuações autênticas, seja em momentos de descontração, falando de comida ou sexo, mas também – e principalmente – quando retrata a revolta das mulheres contra forças opressoras. Na ficção, elas têm o poder, comandam a distribuição de combustível e tem grande influência no local, embora ainda enfrentem a ascensão da extrema direita durante manifestações de apoio a um verdadeiro criminoso e os milicianos, aqui representados por um grupo de fanáticos controlando drones, de tocaia em um camburão cheio de monitores, luzes e discursos de um “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Realmente, ficção e realidade ficam cada vez mais difíceis de distinguir.
Em complemento a forte atuação das mulheres, principalmente a dinâmica entre Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva e Andreia Vieira, o filme se aproveita de uma câmera estática e um excelente tratamento de cores para representar a favela como um território rico em cultura, mas também a eterna tensão com a possibilidade de uma invasão da força miliciana. A música também tem um papel importante, tanto que o título vêm de uma canção da Banda Muleka 100 Calcinha (ninguém tem mais criatividade que grupos de Forró e Tecnobrega na hora de criar esses nomes), e o longa alterna entre a diversão e extravagância dos bailes de rua com os hinos da igreja, outra figura essencial para deixar clara essa transição pelo qual as personagens passam.
Mato Seco em Chamas traz debates que tem sido essenciais para compreender o Brasil de hoje, desde críticas ao sistema carcerário até a ascensão do fascismo, e cada elemento fortalece a narrativa geral, que mesmo tendo a ficção científica em segundo ou terceiro plano, conta a história dessas mulheres com vidas que viajam entre passado e futuro. Com atuações impressionantes, um enredo orgânico construído em cima de uma crítica política pesada, o longa ficará marcado para sempre na cabeça de muitos por conta dos depoimentos das personagens e o retrato assustador do que foi e continua sendo o pior lado do conservadorismo no país. Na superfície, o sentimento é de tristeza, mas também a possibilidade de mudança, muito disso representado na poderosa cena final do longa. Talvez tão iminente quanto foi o bolsonarismo, é a revolta que nos obriga a derrubá-lo.
2022 foi um dos anos em que eu menos assisti filmes, mas não deixei de lado a ficção científica. De forma geral, foi um ano bem positivo pro gênero, na TV tivemos a estreia de Ruptura, a conclusão de The Expanse e finalmente uma produção de Star Wars que eu gostei. Quanto ao cinema, esse foi um ano bem diverso, com obras originais marcantes, franquias clássicas se renovando com sucesso (prey) – outras nem tanto (jurassic) – e produções independentes que chamaram bastante a atenção.
Como faço todo ano, esse é meu ranking de todos os filmes de ficção científica que assisti em 2022, os piores e os melhores! Com as mesmas regras de sempre. Primeiro, entra aqui todo filme que foi lançado originalmente em 2022, seja no cinema, plataforma de streaming ou festival. Ou seja, tem filme aqui com a data de 2020, mas porque só chegou nas salas do Brasil após dois anos, ou filmes que podem estar agendados para 2023, mas foi exibido em algum festival e eu consegui assistir, então antecipo logo por aqui.
Como vou destacar apenas as obras que valem a pena algum comentário, vamos direto pras menções desonrosas, aqueles filmes que eu não consegui terminar de tão ruim, ou só evitei assistir mesmo.
E também mencionar rapidamente os que eu deixei de lado porque não consegui assistir por falta de tempo ou acesso ao material.
Na lista do que NÃO assisti ainda, ficam filmes como Cryo, Deus, Lola, Next Exit, Rubikon, The Antares Paradox e Viking.
Esses são os que eu não pude ver por falta de acesso ou não deu tempo mesmo. Tem apenas dois filmes que comecei e larguei, e acho que ninguém vai se importar muito com eles, que são Don’t Worry Darling, aquele desastre da Olivia Wilde, e o caça-níquel de nostalgia Jurassic World Dominion, que eu só tentei ver pela Laura Dern, mas não aguentei o núcleo do Chris Pratt e os diálogos feitos por um algoritmo.
Ah, e como é de costume, eu não incluo filmes de super-herói porque eles viraram meio que um gênero próprio, então não tem Pantera Negra, Batman ou Adão Negro, por mais que sejam bons ou ruins, eles só não entram porque não fazem parte do meu corte particular pra lista.
Dito isto, vamos finalmente para o que vale, a lista de Assistidos de 2022, em ordem de pior para melhor.
O que não falta do cinema de horror são filmes em que algum brinquedo, no caso um boneco ou boneca, se torna o principal objeto de construção de suspense, seja ele um assassino que tomou conta do “corpo” de um boneco através de magia ou só a manifestação de algum mal maior. Podemos colocar nessa lista filmes como Annabelle, Gritos Mortais ou Boneco do Mal, mas provavelmente a figura mais popular desse subgênero acabou sendo Chucky, da franquia Brinquedo Assassino, que até o momento conta com sete filmes originais, um reboot e uma série de TV que já está indo para a terceira temporada. Esses são apenas os mais populares que me vieram à cabeça, portanto fica o questionamento sobre M3GAN, produção do estúdio Blumhouse, dirigido por Gerard Johnstone.
Cady (Violet McGraw) perde os pais em um acidente de carro e precisa se ajustar à nova vida morando com sua tia, Gemma (Allison Williams), uma engenheira trabalhando em uma grande empresa de tecnologia. Ambas têm dificuldades para lidar com o trauma, mas Gemma tenta se aproximar da sobrinha desenvolvendo um projeto ambicioso que vai agradar a pequena Cady, além de ajudar a melhorar a imagem da engenheira com o seu chefe de trabalho impaciente. Assim surge Megan, uma boneca com inteligência artificial que promete impressionar investidores, assim como fazer companhia para Cady. Contudo, o protótipo de Megan passa a ter um comportamento estranho e pessoas próximas de Gemma e Cady são assassinadas.
À primeira vista, M3GAN apresenta um elemento que poderia destacá-la entre os filmes listados anteriormente. Ter a boneca título como uma inteligência artificial quebra um pouco com a expectativa de terror envolvendo uma história de origem mais mística, sem o elemento “amaldiçoado” que filmes desse tipo carregam, e isso faz com que ela entre em um território mais familiar da ficção científica. Para ser justo, não vamos esquecer que o próprio Chucky recebeu esse tratamento “científico” em seu reboot de 2019, aquele com a voz do Mark Hamill e sem o envolvimento de Don Mancini, o criador da personagem. Então, por mais que não seja o padrão, também não estou dizendo que Gerard Johnstone fez a coisa mais original do mundo.
Mantendo o sistema Blumhouse de produção e lançamento, a proposta inicial de M3GAN é ser um longa de orçamento pequeno (considerando outros lançamentos do circuito), mas eficaz, com a principal função de atrair o público com uma história competente e personagens marcantes o suficiente para render sequencias. A estratégia tem tido sucesso nos últimos anos, e M3GAN mantém a linha do estúdio de produções pequenas, mas intrigantes, e já rendeu bilheteria o suficiente para que os custos fossem pagos. Porém, por seguir esse caminho devem-se acatar limitações além do orçamento, como renunciar à certas liberdades criativas por conta da decisão de manter uma faixa etária mais abrangente (o diretor mencionou a possibilidade de uma versão sem cortes, mas esse texto foca exclusivamente em seu lançamento original).
Levando em conta a proposta de M3GAN em funcionar mais como um evento e entrada de franquia, o filme tem sucesso completo em conquistar público com todo o marketing da boneca, principalmente depois de um clipe curto de Megan dançando viralizou rápido. Embora seja uma vitória para o estúdio, o filme poderia ter trabalhado melhor alguns pontos narrativos, com uma trama melhor trabalhada, sem tantas repetições e decisões óbvias ao ponto de deixar o enredo previsível. A direção de Johnstone também não chama atenção, é o típico filme encomendado por estúdio, mais controlado pelos produtores, como Jason Blum e o nosso arroz de festa favorito do terror, James Wan.
No fim, o que mantém o público entretido é a dinâmica entre as personagens e uma história que pode ter sido contada milhares de vezes, mas diverte com a abordagem cômica, quase satírica, que algumas cenas carregam – convenhamos, esse filme sabe exatamente o que é e como as pessoas reagirão à ele. Allison Williams finalmente encontrou sua própria franquia de terror para estrelar, e Violet McGraw acaba carregando a maior parte do drama, felizmente ela também é a atriz mais empenhada em transmitir uma emoção menos caricata, como acontece com o comediante Ronny Chieng, que está mais exagerado atuando como o antagonista coorporativo aqui do que em qualquer uma de suas apresentações de stand-up.
Não espere do longa algo além do que promete em suas campanhas virais, e quer saber? Isso é ótimo, acabo respeitando bem mais um filme que sabe o que quer e executa de forma clara do que uma bagunça pretensiosa que acaba ficando mais confusa do que complexa. M3GAN diverte e intriga, tem potencial para uma franquia provocante e capaz de experimentar bem mais agora que deu certo com o público (nem tanto com a crítica, como deu pra ver, mas não acredito que estejam se importando com isso), o único problema é que esse tipo de sucesso deixa cada vez mais clara a intenção de uma produtora como a Blumhouse em continuar na sua zona de conforto.
Para a alegria de muitos fãs, a adaptação do clássico de Frank Herbert, Duna, pelo diretor Denis Villeneuve, foi indicado ao Oscar 2022 em dez categorias. Enquanto gravo esse vídeo, a premiação ainda não aconteceu, então não sabemos todas as categorias que o filme pode ter vencido, MAS já é um grande feito e vitória para um gênero que costuma ser geralmente ignorado em grandes premiações mais prestigiosas. Ainda assim, admito que não estou otimista demais porque, tirando categorias técnicas e raros casos de roteiro e atuação, nunca tivemos um filme de ficção científica ganhando o principal prêmio de Melhor Filme do Ano nos Oscars.
Por mais que a premiação tenha sofrido com uma queda de audiência nos últimos anos, muito disso por conta da péssima administração nos bastidores do que o interesse do público, ela ainda tem um grande impacto na indústria cinematográfica e influência no público geral. O que tem de estúdio por aí que esperou alguma indicação ou vitória no Oscar pra finalmente anunciar seu filme nem dá pra contar.
Mas ainda que tenha esse obstáculo de audiência, os Oscars continuam sendo uma premiação de prestígio e muitos produtores consideram a validação por parte da academia um grande feito. É por isso que filmes de herói, como Marvel e DC, vivem procurando formas de serem indicados. Não vou entrar no mérito de filmes de arte ou não, ou em todo o problema da Disney monopolizando as salas de cinema, mas é curioso como filmes de herói conseguem uma bilheteria estratosférica, mas nunca são reconhecidos pelos Oscars, sendo que eles devem representar a indústria e, queira ou não, os filmes de herói fizeram bastante sucesso.
Você pode não gostar dos filmes de boneco, eu mesmo tenho meus problemas com alguns deles – talvez mais com o sistema do que os filmes em si -, mas convenhamos que desde que O Cavaleiro das Trevas recebeu 8 indicações, mas não foi sequer indicado Melhor Filme, dava pra ver como a premiação era mais parcial com esse tipo de filme. Tudo bem que o filme levou de Melhor edição de Som e entregou a vitória póstuma pro Heath Ledger como ator coadjuvante, mas por mais que eu tenha gostado de Quem quer ser um Milionário?, e o Danny Boyle é um dos meus diretores favoritos, é difícil não aceitar que O Cavaleiro das Trevas acabou sendo o filme que ditou o tom de várias obras – não só de herois, mas de ação – dos anos seguintes. É só lembrar a fase de entrevistas com diretores que prometiam um filme “realista e sombrio”.
É curioso como Birdman, um filme que comenta a indústria de super heróis, foi aclamado pelas premiações e venceu o prêmio de Melhor Filme – enquanto Logan, obra que também procura analisar o próprio gênero enquanto apresenta uma despedida bem construída através de uma narrativa western, e tem algumas das melhores atuações das carreiras de Hugh Jackman e Patrick Stewart, recebeu apenas uma indicação de roteiro adaptado. Talvez se o filme fosse vendido como um longa em plano sequência, como foi Birdman, talvez animasse mais a galera votante do Oscar, que adora um chamariz narrativo ou nostalgia pela antiga hollywood e a segunda guerra mundial – não duvido nada que alguns conservadores até sintam saudade desse último, MAS seguindo em frente.
Voltando para a ficção científica, temos o caso de Argo, que venceu a categoria principal em 2013. O enredo apresenta uma história de ficção científica dentro da história principal, um drama político sobre um agente da CIA em uma operação para resgatar reféns norte-americanos no Irã. É curioso como dentro da narrativa a ficção científica contribuiu para ajudar os agentes em uma missão arriscada, mas o filme só levou o prêmio mesmo porque o gênero estava em segundo plano, o que venceu foi o drama político. No mesmo ano tivemos A Viagem, das irmãs Wachowski, um filme que dividiu bastante as críticas e o público, mas ele é bem melhor que O Lado Bom da Vida, então podia ter roubado o espaço dele na categoria – se bem que todo mundo sabe que o vencedor moral daquele ano foi Django Livre.
A História da Ficção Científica no Oscar
Quando a gente para pra perceber alguns filmes clássicos da ficção científica que não receberam indicações na categoria principal, dá pra perceber a clara indiferença da academia por filmes de gênero. Na maioria das vezes, são lembrados apenas nas categorias de efeitos especiais ou maquiagem.
Duas adaptações de obras de um dos pais da ficção científica moderna, H.G.Wells, se tornaram um marco do gênero no cinema, mas nas premiações da academia receberam apenas um prêmio, na mesma categoria, de Melhores Efeitos Especiais – o primeiro sendo para A Guerra dos Mundos de 1953, e no começo da década seguinte, A Máquina do Tempo, de 1960. Hoje os dois filmes são considerados essenciais para quem tem o interesse em conhecer melhor a ficção científica no cinema, e é uma pena não terem sido reconhecidos por uma instituição que deveria entender sobre a sétima arte. Planeta Proibido, outro clássico da época, também recebeu o prêmio na mesma categoria, mas é triste lembrar que O dia em que a Terra Parou não foi lembrado em categoria alguma.
Mas isso foi algo mais recorrente na década de 1950, as décadas seguintes foram diferentes, obviamente.
Só que não.
Nos anos seguintes tivemos uma sequência de filmes sendo reconhecidos em outras categorias, mas continuaram vencendo apenas em efeitos especiais, e em raros casos, em direção de arte. É como se a Academia nem tivesse os assistido – o que é uma possibilidade considerando alguns vencedores na história do Oscar – e parece que eles só viam ficção científica como uma desculpa para diretores colocarem aliens e naves na tela.
Na década de 1960, Viagem Fantástica venceu em direção de arte e efeitos visuais e em 1969, Planeta dos Macacos conseguiu um prêmio honorário por maquiagem para John Chambers – o que, vamos considerar, é pouco para um filme tão importante quanto esse. O roteiro é do Rod Serling, criador de Além da Imaginação, em um dos seus melhores trabalhos, e ele merecia ao menos ter sido indicado.
No mesmo Oscar de Planeta dos Macacos tivemos uma das obras primas de Stanley Kubrick, 2001: Odisseia no Espaço. Ele conseguiu indicações em algumas categorias importantes, como “direção”, “roteiro” e “direção de arte”, e com certeza merecia vencer em todas, mas como você já deve estar imaginando, o filme venceu apenas uma categoria. Efeitos visuais.
O próprio Stanley Kubrick, um dos diretores mais conhecidos e reverenciados da indústria, também é um dos menos premiados nos Oscars, e nunca levou uma estatueta por melhor direção. A única que recebeu, em toda sua carreira, foi a de efeitos visuais em Odisseia no Espaço.
É ainda mais decepcionante lembrar que Kubrick conseguiu quebrar parte da maldição do scifi nos oscars com Laranja Mecânica, em 1971. A obra foi indicada em direção, roteiro, edição, e finalmente, em melhor filme. Foi a primeira vez que uma ficção científica teve a chance de receber o principal prêmio da noite.
E é claro que perdeu.
Mas pelo menos neste ano o grande ganhador foi Operação França, então Laranja Mecânica não perdeu para um filme qualquer.
Em seguida, chegamos na década de 70, e a mesma coisa: todos receberam apenas prêmios de efeitos visuais. Isso aconteceu com Fuga do Século 23, e até o Alien de Ridley Scott. Já Contatos Imediatos do Terceiro Grau, um dos clássicos do Spielberg, conseguiu várias indicações, em “atriz coadjuvante”, “direção”, “direção de arte”, “som”, “edição”, “efeitos visuais” e “trilha sonora original”, mas só venceu em edição de som. Também, seria um crime se perdesse nessa categoria.
Isso começou outra tendência. Além de premiar scifi com efeitos visuais, os Oscars passaram a colocar o gênero na categoria de som o tempo todo.
Na década de 80, isso aconteceu com Aliens: O Resgate, Robocop e De Volta para o Futuro. Quanto à Blade Runner, ele esteve presente nas categorias de efeitos visuais e direção de arte, mas saiu de mãos vazias.
Entre os anos 70 e 80, apenas dois filmes se destacaram ao ponto de receber indicações em categorias principais, incluindo a de melhor filme: mais um do Spielberg, o charmoso e divertido E.T. e um tal de Star Wars, que não fez muito sucesso.
E.T. foi indicado em diversas categorias, como direção, roteiro, direção de arte e edição, e venceu melhor som, edição de som, efeitos visuais (obviamente) e trilha sonora.
Já Star Wars foi em ator coadjuvante, direção e roteiro, vencendo em vários, como direção de arte, figurino, som, edição, efeitos visuais, trilha sonora e um prêmio especial por efeitos sonoros.
Como eu disse, os dois também receberam indicações de Melhor Filme, mas infelizmente, não venceram.
Depois disso, houve um espaço de quase 30 anos sem qualquer filme de ficção científica indicado na categoria principal. Não é como se tivesse faltando bons filmes do gênero.
A década de 90 teve algumas obras incríveis, que até receberam indicações, mas aquelas que você já esperava. Vingador do Futuro em efeitos visuais, O Exterminador do Futuro 2 com som, maquiagem e o obrigatório de efeitos visuais, e Homens de Preto também levando a estatueta por maquiagem. O maior esnobado dessa vez sendo Jurassic Park, que até venceu em tudo que foi indicado, nas categorias de “som” e, se prepare… “efeitos visuais”. Mas considerando que era um filme do Spielberg, um queridinho da academia, é estranho o filme não ter sido reconhecido como deveria.
“Ah, Roberto, para de reclamar, ele ganhou uns três Oscars”.
“Estamos falando de uma premiação em que Shakespeare Apaixonado levou 7 estatuetas e disse que Green Book é o melhor filme do ano, ganhando de filmes bem melhores que ele, você acha que apenas 3 vitórias é o suficiente para um filme que nos trouxe Jeff Goldblum sem camisa?” [jeff goldblum]”
Esse padrão de premiar a ficção científica nas mesmas categorias evidencia a falta de vontade da Academia em reconhecer filmes de gênero, não só scifi, mas horror e comédia, que até hoje são ignorados, mesmo que horror já tenha recebido certo amor dos Oscars quando Silêncio dos Inocentes fez a limpa em todas as categorias principais, merecidamente. É a galera aqui do scifi que nunca recebe um carinho.
Esse é um fenômeno que foi apelidado de sci fi gueto, ou o gueto da ficção científica. Ele reflete um preconceito que algumas obras de ficção científica sofrem por parte de muitas pessoas, que desmerecem o potencial de uma produção pelo simples fato dela possuir características do gênero. Hoje nem tanto, mas já foi bastante comum termos críticos e acadêmicos negligenciando a ficção científica por considerá-la uma forma de arte inferior. Uma das maiores evidências disso são aquelas pessoas que continuam usando os termos “alta” e “baixa” literatura, colocando apenas clássicos literários com foco no drama como um tipo de “alta qualidade”, criada para atrair aqueles interessados em arte. Enquanto obras de gênero, como ficção científica, horror e fantasia, são apenas entretenimento, sem o mesmo peso.
O curioso dessa história toda é que diversas obras de gênero são constantemente incluídas em listas de “alta literatura” ou como clássicos essenciais, mas nunca são mencionados como ficção científica.
1984 de George Orwell está em quase todas as listas de leitura obrigatória, mas raramente é lembrado que ela é tecnicamente uma ficção científica, já que se utiliza a distopia como recurso narrativo. Alguns acreditam que por ser mais carregado em comentário político, a obra deve ser colocada em prateleiras de alta literatura, não misturada com histórias sobre naves e aliens, sendo que esses dois elementos são apenas uma parte minúscula do que o gênero tem. Uma pena ver que a Octavia Butler faz uma distopia ainda mais atual e assustadora em Parábola do Semeador, mas não recebe a atenção merecida porque é jogada em prateleiras de ficção científica.
Muito dessa ideia do scifi se resumir em naves, lasers e alienígenas vem das revistas pulp, que existem desde o fim de 1800, mas eram dominadas por terror e suspense. O formato consistia de uma revista acessível, bem barata, com histórias curtas e voltado para um público jovem, com foco na ação e aventura, onde se popularizaram personagens como Buck Rogers e John Carter.
A ficção científica passou a dominar as revistas mesmo em meados da década de 1920, principalmente com a chegada da revista Amazing Stories, que introduziu para o mundo autores que logo viraram referência no gênero, como Isaac Asimov e Ursula K Le Guin. E com a chegada de outras revistas, como Astounding Science Fiction e Isaac Asimov’s Magazine, ainda mais nomes hoje essenciais do gênero foram surgindo, como Philip K Dick e Frank Herbert. O Brasil teve sua própria revista, com material melhor, mas inspirada nas clássicas pulp, que foi o caso da Magazine de Ficção Científica, com material selecionado por Jeronymo Monteiro, conhecido como o pai da ficção científica no Brasil.
Mesmo tendo autores que seriam respeitados por obras como Duna ou O homem do Castelo Alto, a ficção científica foi, por décadas, considerada apenas entretenimento para o público jovem, sem poder passar disso. Mesmo que hoje o conceito do scifi guetto e preconceito literário seja algo mais conhecido entre os leitores, ele ainda existe. Até autores do gênero, como a Margaret Atwood, afirmam veemente que não querem ser considerados escritores de ficção científica, e vem com aquele papo de ficção especulativa e um monte de regras pra evitar se misturar com a galera que gosta de navinhas, sendo que ela adora uma distopia ou universo pós apocalíptico, né. Ela ficou mais flexível sobre o assunto com o passar dos anos, mas ainda assim, prefiro seguir a Ursula K Le Guin, que sabe se divertir e abraçar o gênero sem nojinho. [fazer algum fancam com a margaret atwood]
É curioso como tantas pessoas ignoram o gênero, mas colocam algumas obras como essenciais para a literatura, sem jamais mencionar que são scifi. Isso costuma acontecer muito com Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451 e O Conto da Aia, sempre chamados apenas de “distopias”, e tem Frankenstein, que só é lembrado como “horror”, e o belo Flores para Algernon, que vivia nas prateleiras de “drama”, principalmente nos Estados Unidos.
Vale mencionar que esse debate do scifi guetto é diferente em lugares como China, Japão e partes da Europa, onde o gênero é mais abraçado, por isso rende até algumas obras bem mais criativas do que diversos clássicos dos Estados Unidos.
Quando falamos de cinema, muitos atores e diretores aclamados acabam ignorados por se envolverem com filmes de gênero. O próprio Boris Karloff, reconhecido por muitos como um dos melhores atores da sua época, quando começou a interpretar seu memorável Frankenstein, raramente recebia o reconhecimento que merecia, muito disso pelo simples fato de estar carregado de maquiagem e interpretando um monstro.
O mesmo acontece hoje com Andy Serkis, que mesmo tendo impressionado o público com sua interpretação como Gollum, em Senhor dos Anéis, ou Caesar, em Planeta dos Macacos, nunca foi reconhecido nas categorias de atuação. A desculpa é que ele trabalha com captura de movimentos, mas os computadores capturam a atuação dele, então o argumento é completamente falho, principalmente quando notamos a diferença entre seus personagens, e entre outros atores conhecidos por captura de movimento, como Benedict Cumberbatch interpretando Smaug, ou o Bill Nighy em Piratas do Caribe, como Davy Jones.
O próprio James Cameron, que sempre faz um sucesso incrível de bilheteria, é conhecido por seus trabalhos de ficção científica, produzindo ou dirigindo obras como Alita, Exterminador do Futuro, Aliens: O Resgate e o gigantesco Avatar, mas só foi reconhecido pela academia quando lançou seu drama, o épico Titanic, único de sua carreira que venceu o prêmio de Melhor Filme.
Esse assunto é maior do que você imagina, talvez eu faça um roteiro inteiro só sobre isso, debatendo preconceitos entre os próprios leitores do gênero, não só autores e críticos, mas isso é um debate para outro dia.
As Chances de Mudança
Com a virada do século, a ficção científica continuou presa nas mesmas indicações e vitórias de décadas anteriores. Interstellar e Blade Runner 2049 receberam indicações em som e design de produção, mas levaram a previsível estatueta de efeitos visuais, com Blade Runner recebendo também a de direção de arte para o Roger Deakins, finalmente.
Como mencionei antes, E.T. foi o último filme do gênero a receber uma indicação na categoria principal, e isso aconteceu no começo da década de 80. Foram quase 30 anos depois que finalmente tivemos outra ficção científica concorrendo em Melhor Filme: em 2009, uma rara indicação dupla, com Avatar e Distrito 9. O filme de Blomkamp não venceu qualquer estatueta, mas o sucesso de James Cameron levou direção de arte, efeitos visuais e design de produção, deixando pra trás direção, edição, trilha sonora, mixagem e edição de som, e a chance de uma vitória em Melhor Filme.
Nos anos seguintes, a ficção científica passou a comparecer mais vezes entre os indicados da categoria principal. Podemos atribuir isso a algumas mudanças nos bastidores da academia, como a entrada de novos membros, principalmente depois de toda a controvérsia sobre a premiação não possuir diversidade o suficiente em sua lista de votantes.
Isso aconteceu em 2010 com Inception, de Christopher Nolan, e em 2013 tivemos mais uma dose dupla, com o tenso Gravidade, de Alfonso Cuarón,e o melancólico Ela sendo indicados para o prêmio de Melhor Filme. Como deu pra notar pelo padrão que esse vídeo mostra, nenhum dos dois venceu, e eu aceitei as derrotas, mas até hoje me dói como A Chegada perdeu em 2016. Pelo menos foi para Moonlight, que é um ótimo filme, mas eu queria que Denis Villeneuve tivesse levado bem mais por Arrival do que por Duna.
E por falar nele, finalmente chegamos ao grande questionamento desse vídeo: será que Duna leva o Oscars 2022 de Melhor Filme?
Como esse vídeo deve ser lançado ANTES da premiação de 2022, essa parte pode ter um efeito diferente dependendo do vencedor da categoria principal. Se Duna vencer, esse vídeo pode ser um documento para registrar o momento histórico de Duna, ou para evidenciar um problema na indústria que, infelizmente, persiste.
Mas quanto às chances de Duna nos Oscars, eu admito que talvez tenhamos um déjà vu da premiação de 2015, quando Mad Max: Estrada da Fúria era a nossa maior chance de ter um scifi levando o prêmio para cara.
Assim como Duna, Mad Max foi indicado em 10 categorias, e eles dividem algumas, como edição, figurino, maquiagem e penteado, direção de arte, design de produção e, para a surpresa de ninguém, efeitos visuais.
Há algumas diferenças. A primeira sendo a categoria de som. Antes tínhamos mixagem e edição de som, mas aparentemente os membros da academia não sabem a diferença entre os dois, já que os mesmos filmes sempre eram indicados nas duas, então hoje temos apenas uma categoria chamada “som”, que engloba edição e mixagem. Se você quiser, pode considerar que Duna foi indicado em 11 categorias, já que duas foram unidas no último ano. E além dessa, Duna tem uma chance bem grande de levar a estatueta por melhor trilha sonora original pelo trabalho do Hans Zimmer.
A maior diferença entre os dois é que Duna tem uma indicação para melhor roteiro adaptado, o que Mad Max não recebeu. Embora seja ótimo, é uma pena como Duna não recebeu uma indicação por direção. Enquanto George Miller foi lembrado, pelo menos indicado, como melhor diretor, Denis Villeneuve ficou de fora. É sempre estranho ver quando um filme está concorrendo ao prêmio principal da noite, mas a pessoa que o fez não está. Isso aconteceu em Argo, que venceu de melhor filme, mas o diretor, Ben Affleck, sequer foi indicado. Se formos seguir esse padrão, talvez seja uma chance para Duna em melhor filme, mas acho pouco provável. É uma pena, mas se isso acontecer, não será uma surpresa.
Erros dos Oscars
A Academia nunca teve a intenção de reconhecer filmes de gênero, e mesmo com mudanças consideráveis nos bastidores, acho pouco provável termos Duna levando o principal prêmio da noite. Não falo isso só pelos outros indicados serem muito bons e merecedores, mas na forma como os Oscars, que deveriam compreender as tendências da indústria, parecem completamente perdidos. Eu sempre penso desse jeito: quem mais poderia ter feito Mad Max daquele jeito se não George Miller?
A definição de “melhor” é subjetiva, mas deveria seguir algum tipo de exigência. Seria ótimo se os Oscars premiassem filmes por sua identidade, seu diferencial. Em 2019 tivemos Pantera Negra, que claramente não é um filme perfeito, poucos são, mas se o compararmos com o vencedor, The Green Book, vale a pena a pergunta: qual dois dois realmente causou um impacto cultural? Não falo de bilheteria, mas de influência.
Eu mesmo concordo com as colocações do Scorsese sobre o cinema de herói estar dominando as salas e tirando outras obras do lugar – e nem vem com papo de oferta e demanda porque não é assim que a distribuição cinematográfica funciona. Mas, convenhamos que Pantera Negra foi um sucesso por motivos que vão além de ser um filme de herói da Marvel, foi uma produção quase inteiramente realizada por uma minoria que foi representada por décadas da pior maneira possível pela indústria. Ao invés de celebrar essa mudança dando o prêmio para Pantera Negra, os Oscars decidiram dar a estatueta para um filme sobre um homem branco ensinando como um homem negro deveria se comportar.
Eu sei, é uma forma meio reducionista de falar do filme, mas convenhamos que ele também não foi feito pelas pessoas mais bem intencionadas do mundo.
Esse não é o primeiro, nem o último caso da Academia premiando alguém que claramente não era o favorito no bolão de alguém. Voltamos para o George Miller, que fez o excelente Estrada da Fúria, um filme que marcou o ano e continua memorável por conta de suas sequências de ação frenéticas, boas atuações, com uma excelente Charlize Theron interpretando Furiosa, e a direção poderosa de Miller, que na época tinha 70 anos, mas com mais fôlego que qualquer diretor jovem de hoje no seu melhor dia.
Você lembra quem venceu no lugar dele? Spotlight: Segredos Revelados.
Spotlight foi um bom filme, teve excelentes atuações e é um drama muito bem feito, mesmo que alguns resumam apenas como “uma obra importante”, o que quer dizer nada em essência. Mas é só isso, um bom filme, que merece completamente todos os elogios, e não digo que não mereceu o prêmio, mas vamos parar pra pensar. Qual desses dois parecia algo novo, criativo e, principalmente, qual deles você lembra?
Estou sendo completamente subjetivo, é claro, mas a premiação também é, e só um desses filmes foi comentado o ano inteiro, continua sendo debatido e está com uma continuação aguardada em andamento. E o mais importante, Mad Max: Estrada da Fúria parecia diferente, o tipo de filme que só o George Miller poderia fazer, tem sua marca em cada segundo, cada fotograma. Você bate o olho e reconhece.
Já Spotlight, esse pode ser confundido facilmente com outros dramas do gênero, como Todos os Homens do Presidente ou The Post: A Guerra Secreta. Quando falamos de Estrada da Fúria, ele nem pode ser confundido com outros Mad Max, e são do MESMO diretor.
A Ficção Científica nos Oscars?
É decepcionante ver como os Oscars são a noite mais aclamada na temporada de premiações, mas é uma das que menos reconhecem os filmes que melhor representam o cinema de sua época. Duna pode não ser perfeito, e se perder na premiação é compreensível, há filmes ótimos para levar no seu lugar, mas a Academia já teve diversas chances de reconhecer a ficção científica em filmes que podemos considerar os destaques daquele ano. Como acontece na literatura, ainda há um enorme preconceito por parte de crítica e público quando se fala de obras de gênero, e essas pessoas perdem a chance de conhecer produções incríveis que podem divertir e emocionar tanto quanto aquelas consideradas de “alta qualidade”, com um enorme diferencial de envolver ocasionalmente uma viagem no tempo, realidade alternativa ou inteligência artificial tomando consciência e controlando a humanidade.
Se a gente parar para pensar, talvez as tentativas de evitar naves e aliens seja apenas medo de se divertir com algo novo. Porque é para isso que serve a ficção científica, fugir do que é óbvio e explorar novas possibilidades.
Sempre foi um mistério para mim como obras clássicas da literatura de ficção científica, como Duna ou O Guia do Mochileiro das Galáxias, receberam mais de uma adaptação para filmes e séries, enquanto Fundação, que é um dos pilares do gênero, e inspiração para os dois que mencionei, nunca foi traduzido para essas mídias.
Fundação só saiu do papel quando o streaming da Apple, o Apple TV+, assumiu o controle e investiu pesado na produção, colocando Josh Friedman e David S. Goyer como responsáveis. Mas valeu a pena? Nessa crítica da primeira temporada vamos debater os conceitos, teorias e o que faltou para a série alcançar seu potencial máximo.
Alex Garland é um diretor que tenho seguido o trabalho há muito tempo, desde que ele escrevia roteiros para os filmes de Danny Boyle, com os ótimos Extermínio (2002) e Sunshine – Alerta Solar (2007). Depois, também foi responsável por uma das adaptações mais fiéis dos quadrinhos, quando fez o texto para Dredd: O Juíz do Apocalipse (2012), e fez sua estréia como diretor em 2014, com Ex_Machina, um filme de pequena escala e orçamento modesto, mas com grandes atuações e roteiro de Garland, um escritor que sabe explorar os elementos de ficção científica dentro da narrativa como poucos – sem contar que o longa tem a cena do Oscar Isaac dançando ao som de Oliver Cheatham, o que automaticamente faz com que qualquer filme seja um pouco melhor.
Por ter trabalhado quase sempre com ficção científica, seguindo Ex_Machina com Aniquilação (2018) e a série DEVS (2020), alguns já esperavam que seu próximo filme fosse outra obra do gênero; o que até faz parte, mas de fato está mais voltado para o suspense. Men: Faces do Medo (típico subtítulo desnecessário, vai entender) está mais voltado para o thriller psicológico, um estudo de personagem com temas sobre masculinidade tóxica e violência, mas principalmente é uma narrativa sobre relacionamentos abusivos.
Harper (Jessie Buckley) sai do centro de Londres para se isolar em um chalé e lidar com o trauma de ter perdido seu marido. Procurando superar o luto, enfrenta emoções conflitantes por conta das memórias de uma relação violenta e tóxica, ao mesmo tempo que sente certa responsabilidade e culpa pelos eventos. Ao caminhar no campo e explorar o ambiente, Harper percebe que está sendo observada, logo surgem figuras misteriosas e o mesmo rosto passa a persegui-la. Em uma trama tensa, Men é o típico thriller psicológico da produtora A24, o que dependendo da pessoa pode ser algo bom, entretanto nem sempre é o caso.
Queridinha do público interessado em um cinema mais “cult”, a A24 é uma boa produtora, com alguns dos meus filmes favoritos, como Sob a Pele (2014) e Bom Comportamento (2017), e onde Garland trabalhou antes, mas ela também tem seus tropeços; não podemos esquecer Tusk: A Transformação. E há uma certa síndrome A24 que nem todos querem admitir, mas não dá pra negar que mais de uma vez por ano temos algum filme com premissa intrigante, bom elenco e um diretor competente, geralmente em um thriller psicológico (não vamos debater pós-horror aqui, tá proibido), mas que escondem um enredo repetitivo ou sem muito desenvolvimento em diversas camadas de metáforas e alegorias.
Antes de tudo, deve-se levar em consideração que, obviamente, essa é uma opinião pessoal, como toda crítica é; e cada obra de arte atinge as pessoas de maneiras diferentes, essa é a graça, e por isso debatê-las é tão enriquecedor e causa emoções fortes. O segundo comentário que preciso evidenciar aqui é o fato de que narrativas com temáticas pertinentes como as de Men são sempre bem-vindas, entretanto elas são somente uma parte de um todo, e não fazem do filme algo melhor por conta exclusiva disso – apenas números de dança fazem isso.
De início, Men se utiliza de uma ambiguidade na trama para criar uma experiência sensorial bem construída, com a tensão e paranoia dos eventos que perturbam a protagonista, e nos faz questionar a realidade de Harper e daquele mundo. Contudo, logo vem meu maior problema com o filme, a forma como ele tenta objetivar vários aspectos da história, explicando pontos que seriam melhor deixados em dúvida, tanto que logo quando a proposta do longa fica clara, e isso acontece mais cedo do que você imagina, ele perde grande parte do seu apelo, que antes se apresentava com um tom e atmosfera sustentada por essa incerteza na trama.
Esse é o típico filme com um debate promissor e vários temas que podem render um estudo de personagem complexo e significativo, explorando violência doméstica, perpetuação da masculinidade tóxica, abuso psicológico e outros assuntos que em um roteiro melhor trabalhado seriam examinados com cuidado e seriedade. Infelizmente, Garland parece estar interessado em falar de tudo isso, mas não consegue se aprofundar em nenhum desses temas com propriedade por conta de sua responsabilidade maior com viradas na trama, principalmente todo o terceiro ato, que se debruça em horror corporal acreditando que sua crítica é suficiente para sustentar um enredo pouco desenvolvido, tanto que o filme tem ao seu dispor dois atores excelentes, Jessie Buckley e Rory Kinnear, mas nenhum arco dramático ou “evolução” parece existir nas personagens, tendo o talento dos atores como a única coisa que sustenta a maior parte da obra.
Men tem seu auge na ambientação, trabalho de som, direção de arte, atmosfera tensa com segmentos oníricos e atuações de Jessie Buckley e Rory Kinnear. Esses elementos fazem com que o longa tenha um começo forte, mas logo muito disso se perde por conta de um enredo sem foco, o que é uma pena vindo de alguém como Alex Garland. Ainda assim, continuo ansioso por qualquer um de seus próximos projetos.
“Ser incoerente significa ter fé no cinema, ter uma abordagem mais romântica, sem moldes, livre, perturbadora e onírica, uma narração épica. Incoerência que evidencia uma falta de cinismo, mas não de ironia, abraçando o gênero sem penetrá-lo”.
Sempre estou à procura de todo tipo de ficção científica possível, principalmente quando tem uma proposta tão criativa e experimental quanto a de After Blue, uma jornada de faroeste psicodélico com um enredo sem muito brilho, mas um ótimo chamariz visual e bastante charme. A premissa é bizarra, mas fácil de entender. Distante da Terra, provavelmente depois de sua destruição, temos um planeta alienígena distópico que serve de colônia apenas para os humanos “dotados de ovários” (quem não possuir um, morre logo após o parto). É nesse cenário que conhecemos a criminosa Katarzyna Buzowska (Agata Buzek), mais conhecida como Kate Bush (sem relação direta com a cantora), enterrada em um deserto rosa pela polícia espacial, até que um dia é libertada pela jovem e confusa Roxy (Paula Luna). Como punição, Roxy e sua mãe, Zora (Elina Löwensohn), recebem a ordem para caçar e exterminar Bush, para evitar que a criminosa cause ainda mais destruição no planeta After Blue.
O filme foi distribuído na mesma semana que a música Running Up That Hill estourou por conta da quarta temporada de Stranger Things, e talvez por conta disso ele tenha recebido certa atenção de algumas pessoas; sem contar que o diretor do longa, o francês Bertrand Mandico, não é um estreante. Seu primeiro longa, Os Garotos Selvagens, esteve no topo da lista de favoritos da revista Cahiers du Cinema em 2018. After Blue é mais um exemplo do seu cinema experimental, principalmente um apelo estético que se destaca pela forma como reproduz o visual de obras independentes (até trash) de ficção científica entre as décadas de 1970 e 80, com cenários claramente artificiais, atuações mais caricatas e efeitos de câmera com filtro carregado.
Essas são algumas das características propostas pelo Manifesto da Incoerência (Incoherence Manifesto), idealizado por Mandico, ao lado da diretora e produtora Katrín Ólafsdóttir. Quando você dá uma olhada nas regras, fica fácil lembrar do conhecido Dogma 95, estabelecido por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, mas a ideia de Mandico-Ólafsdóttirtraz alguns conceitos bem interessantes que os diferencia da dupla dinamarquesa, mesmo que algumas categorias realmente sejam um comentário em cima do Dogma 95. Há mudanças no roteiro, efeitos, geografia, direção de arte e até atuação.
Para o Manifesto da Incoerência deve-se ignorar qualquer convenção cinematográfica de roteiro, os efeitos precisam ser práticos, as gravações devem ser feitas em película que “passou da validade” (elas ainda funcionam normalmente, mas trazem um resultado diferente) e a maior parte do trabalho de som é feito apenas na pós-produção. Se por um lado o Dogma 95 propõe que as obras não devem se encaixar em qualquer gênero específico, o Manifesto da Incoerência dita que todo filme deve ser um híbrido entre, pelo menos, dois gêneros (After Blue mescla ficção científica, fantasia e faroeste). Quanto à autoria, Dogma afirma que o diretor não deve ser creditado, enquanto Incoerência determina que o diretor é o autor máximo, comandando câmera e direção de arte.
After Blue procura se manter fiel à proposta, pelo menos em sua maior parte, e acredito que o filme fique mais envolvente se o espectador for assisti-lo tendo antes em mente todo o conceito do manifesto de Mandico-Ólafsdóttir, o que cria uma conexão maior com a obra e faz de tudo uma experiência mais completa. Contudo, isso também atua contra o longa, que não parece oferecer algo além de uma ideia muito bem elaborada, mas de execução frágil. Enquanto o mundo de After Blue é rico em elementos visuais peculiares e nos transporte com facilidade à um planeta cheio de fauna e flora surreal, figurinos, cenário e explosão de cores e saturação que fortalecem a ambientação onírica, ao mesmo tempo eles não compensam uma narrativa repetitiva, com personagens sem muita carisma e um enredo previsível.
É claro que muito disso pode tentar ser justificado no argumento de que “o diretor propõe acabar com qualquer convenção de roteiro”, como eu mesmo disse nesse texto, mas se o resultado para uma tentativa de quebrar com as regras for uma história tediosa, que consegue explorar todos os seus temas na primeira hora e depois segue se arrastando desnecessariamente para mais uma hora, então talvez seja melhor se “manter ao roteiro”.
Não faltam temas fascinantes para explorar no mundo misterioso e erótico de Mandico, mas com tudo que o filme poderia ter dito, chega um ponto em que o enredo repetitivo afeta o ritmo e faz com que até o visual torne-se repetitivo, e assistimos a protagonista vagar em mais um deserto, floresta ou caverna, dizendo nada de novo. After Blue é original e se apresenta muito bem, sendo facilmente um dos destaques do ano, mas fica difícil não pensar em como ele teve mais sucesso na promessa do que na execução.
Para qualquer leitor familiarizado com os textos de Philip K. Dick (ou PKD), não é surpresa encontrar uma narrativa que apresenta personagens transtornados e conceitos complexos ao explorar identidade e natureza humana, sem contar o tópico favorito do autor: questionar tanto a realidade do universo que cria em seus livros, quanto a do próprio leitor.
Responsável por diversas obras intrigantes que conseguiram estabelecer seu nome como um dos maiores expoentes do movimento new wave da ficção científica, caracterizado por uma abordagem mais experimental do gênero, Philip K. Dick também teve grande parte de suas obras adaptadas para o cinema, como aconteceu com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, traduzido para a grande tela por Ridley Scott no clássico Blade Runner (1982). Entre a lista de leituras essenciais do autor, como Ubikou Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, costumo dizer que O Homem do Castelo Alto é a sua obra mais completa. As distopias sempre foram reconhecidas na ficção científica como uma ferramenta de crítica social e política, mas nem todas sabem aproveitar a premissa ou desenvolver o enredo tão bem quanto O Homem do Castelo Alto.
A obra examina uma realidade alternativa da história, na qual os países do eixo conseguem derrotar os “aliados” na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Japão e uma Alemanha nazista tornem-se as maiores potências mundiais, enquanto outras nações sejam destruídas, outras dividias, como acontece com os Estados Unidos. Assim, seguimos o drama de personagens completamente diferentes, tentando sobreviver em um mundo instável, como o inseguro Robert Childan, um antiquário de peças americanas para colecionadores; o operário judeu, Frank Frink, que tenta esconder sua origem; Nobosuke Tagomi, um burocrata lidando com delicadas relações políticas; e Juliana Frink, ex-esposa de Frank, e instrutora de judô, que fica obcecada por um livro proibido que fala sobre um universo alternativo no qual os nazistas perderam e a guerra foi vencida pelos “aliados”.
Um mundo psicótico, este em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disso?
Por mais que hoje a proposta pareça óbvia, e sequer foi a primeira vez que narrativas envolvendo realidades distópicas pós-guerra foram feitas, o diferencial de O Homem no Castelo Alto está na abordagem de Philip K. Dick, provavelmente o autor que passou mais tempo explorando a concepção de realidade do que qualquer outro. Por esse motivo, a sua construção de mundo envolve um tremendo exercício de imaginação, mas também, uma dedicação em manter um pé na nossa realidade (ou o que se passa por ela) para explorar um efeito borboleta de eventos que coincidem na vitória do eixo. Mas antes de mencioná-los, é necessário descermos ainda mais na toca do coelho e explorar a metalinguagem da obra.
Considere isso: você, leitor, está com O Homem do Castelo Alto, escrito por Philip K. Dick em mãos. No universo apresentado nos parágrafos anteriores, os personagens entram em contato com um livro, escrito por um homem chamado Hawthorne Abendsen, intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que explora uma realidade na qual o eixo na verdade perdeu a guerra. Essa é a primeira camada da metanarrativa de PKD, que não acaba por aí, já que a possível realidade do texto fictício (difícil usar palavras como essa nessa resenha com firmeza) de Abendsen revela um mundo similar ao nosso, mas não o mesmo, já que nesse uma grande guerra envolve Estados Unidos e Inglaterra. Ou seja, temos uma realidade em cima de outra, em cima de outra. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.
No livro dentro do livro, um dos principais acontecimentos responsáveis pela vitória dos nazistas está na morte do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, circunstância que manteria o país na crise da Grande Depressão, o enfraquecendo no futuro. É esse tipo de atenção aos detalhes e criatividade que faz o texto de PKD um experimento tão consistente, sem contar que, mesmo inserindo tanta informação, temos um enredo limpo e objetivo, e isso considerando o fato do universo da obra também introduzir elementos como exploração espacial, o que fica apenas em segundo plano e serve mais como parte da construção de mundo, mas surpreendentemente combina perfeitamente com a proposta de expansão dos países vitoriosos do eixo, que decidiram também dominar o espaço.
Enquanto os alemães estavam ocupados em lançar no espaço enormes sistemas robotizados, os japoneses queimavam as florestas do interior do Brasil, erguendo edifícios de apartamentos de oito andares, de barro, para ex-caçadores de cabeças. Até os japoneses lançarem seu primeiro foguete, os alemães tinham posto o sistema solar no bolso. P.19
Mas há outra obra literária de enorme importância dentro da narrativa, assim como para o próprio autor. Em O Homem do Castelo Alto, a maior parte da população tem o costume de consultar o I Ching, o Livro das Mutações, uma obra que ajudou a popularizar parte da filosofia chinesa para o resto do mundo, atuando como um oráculo, ou apenas apresentando textos de sabedoria. Ao contrário de “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, o I Ching não existe apenas na realidade dos personagens de O Homem do Castelo Alto, mas na nossa, e Philip K. Dick o utilizou constantemente no desenvolvimento de seu livro. Esses detalhes enriquecem a construção de mundo, introduzindo detalhes sobre suas esferas sociais e políticas, mas ao mesmo tempo, essa não é uma leitura complexa. O autor consegue uma narrativa limpa e clara, ainda que insira bastante informação em apenas uma página. O livro não promete reviravoltas explosivas na trama, mas não deixa de trazer surpresas, e a maior parte do conflito é desenvolvido em cima da tensão entre países e núcleos dramáticos específicos.
São vários personagens, alguns se encontram, outros não, e pode ser necessário uma atenção extra para lembrar todos os nomes, já que alguns personagens possuem mais de um, mas é uma preocupação que pode ser deixada de lado rapidamente porque, assim que as subtramas começam a convergir, tudo passa a ficar mais claro. Aqui temos, provavelmente, o livro em que o autor melhor aproveita suas personagens. É comum que autores de ficção científica prezem por uma narrativa com um foco maior na trama, principalmente para destacar os elementos do gênero em suas histórias, e Philip K. Dick entra nessa categoria diversas vezes. Talvez por esse motivo O Homem do Castelo Alto tenha se tornado, para muitos, a obra máxima do autor, a que melhor utilizou o enredo em função das personagens, construindo ótimos diálogos e fortalecendo suas interações com o universo alternativo.
Além disso, mesmo sendo um grande fã do autor, sempre critiquei a forma que ele deixa as mulheres em segundo plano no seu texto, atuando como coadjuvantes, quando sequer possuem essa função (esse foi outro problema da ficção científica por anos), mas aqui temos Juliana Frink, uma das melhores personagens de sua biblioteca, uma mulher forte e inteligente que passa a ser uma peça essencial para os momentos finais do livro – e que final espetacular, mas não vou mencioná-lo aqui para evitar estragar alguma coisa. Quanto aos temas da obra, ela não se limita aos debates sobre realidade, mas ao que conhecemos como a verdade.
Pegando emprestado conceitos da filosofia chinesa, o livro está constantemente nos fazendo pensar o conceito de historicidade, ou seja, no valor histórico de algo. No livro, temos as peças de Childan, que são importantes apenas por conta da história que contam, principalmente os artefatos vindos dos EUA, já que o país foi tomado pelos nazistas e sua cultura só possui qualquer valor por conta disso (o que rende uma das revelações mais engraçadas do livro, envolvendo um relógio com uma ilustração de Mickey Mouse). O contraste inteligente feito pelo autor está no fato de estarmos debatendo o que é real ou não enquanto Childan percebe que parte de suas peças são falsificadas.
A verdade é tão terrível quanto a morte, apenas mais difícil de encontrar.
Philip K Dick nunca deixa de brincar com nossas certezas e arrancar o leitor da zona de conforto à força, o que faz em certo ponto quando chega a jogar uma de suas personagens em outra realidade (talvez a nossa, mais uma camada de metanarrativa), apenas para que tenha um vislumbre das possibilidades. Inclusive, o autor arranja espaço para debater a própria ficção científica e as experimentações que oferece. Tudo acontece em apenas uma página, através de um diálogo, mas dá para notar como PKD defende o gênero (aprende, Margaret Atwood).
O Homem do Castelo Alto é um livro relativamente pequeno (considerando a quantidade de informação que o autor introduz em cada página), mas com um universo e personagens fortes o suficiente para torná-lo uma das obras mais estudadas de Philip K Dick. Por conta do formato e estrutura narrativa, esse acaba sendo o trabalho mais distintos da biblioteca do autor, um que sempre quis nos lembrar como é frágil nossa realidade, isso porque ele foi o único capaz de estar em todas ao mesmo tempo.
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Desde que foi anunciado, Medida Provisória foi um dos filmes que mais aguardei o lançamento oficial, não só por ser uma obra nacional, mas por marcar a estreia de Lázaro Ramos, um ator que respeito e admiro, na direção de um longa de ficção. A obra é inspirada na peça Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação, que Ramos chegou a dirigir, então podemos considerar que há uma forte conexão entre ele e o material original e sua premissa intrigante.
Em um futuro (próximo) não definido, o governo brasileiro emite uma medida provisória obrigando que todas as pessoas de “melanina acentuada” (denominação para os negros na realidade do filme) sejam enviados para a África como uma desculpa de “reparação história” para todo afro-descendente. Isso faz com que os cidadãos sejam mandados para fora do país à força, e com o caos tomando conta das ruas, o advogado Antônio Rodrigues (Alfred Enoch) fica desesperado para encontrar sua esposa, a doutora Capitu (Taís Araújo), que conseguiu se refugiar em um afro-bunker (aqui comparados aos quilombolas).
O maior destaque do filme são as atuações e personagens. O ator Alfred Enoch provavelmente é mais conhecido por seus papéis na franquia Harry Potter ou na série How to Get Away With Murder – e como aqui é um site de ficção científica, também vale lembrar que ele interpretou Raych Foss na primeira temporada de Fundação-, mas nem todos sabem que ele também tem nacionalidade brasileira e fala português muito bem. Nessa obras ele tem a atuação mais “formal” de todo o elenco, não só na fala mas na interpretação corporal, mas considerando como seu personagem precisa dessa personalidade mais reservada, Enoch funciona no papel.
Um aspecto curioso do elenco é que algumas atuações, como as interações entre Seu Jorge e Adriana Esteves, fazem com que o tom do filme oscile entre o drama político e uma sátira de teor cômico. Isso pode ser um obstáculo porque contribui para uma inconsistência rítmica que compromete até a atmosfera de tensão que o filme procura estabelecer em diversos momentos, mas acaba resultando em uma abordagem confusa. Contudo, mesmo servindo como um alívio cômico, a personagem de André (Seu Jorge) também carrega uma tragédia que combina bem com a proposta do filme. Nesse caso, até podemos relevar muitos desses momentos por conta das atuações, e eu ainda não mencionei Taís Araújo, que nem precisa de elogios por ser o tipo de profissional capaz de ser o destaque em qualquer cena, e aqui ela mostra mais uma vez um talento para personagens dramáticos com enorme presença.
Mas quando deixamos o elenco de lado, Medida Provisória revela uma estrutura que parece confusa com a própria premissa. A “distopia” sempre foi a abordagem narrativa preferida de quem tem a intenção de construir uma crítica social e política através da ficção, e essa obrachega em um ponto da história em que o mundo vê uma onda crescente de fascismo e neonazismo, sem contar que a pauta sobre racismo é sempre relevante, mas embora o filme tenha uma intenção nobre e genuína sobre o assunto, apresentando o enredo através de uma visão de resistência mais pacifista, ele também sofre com um debate que parece quase superficial considerando sua execução.
Através de um texto redundante e uma direção insegura de Lázaro Ramos, ficamos com um filme em que o apelo estético carrega pouco peso, com uma direção de arte formulaica e uma narrativa visual que funcionaria bem para uma minissérie, mas perde fácil o fôlego em um formato cinematográfico, onde ela tem uma cronometragem limitada. Fica difícil falar de todos os detalhes da montagem de uma forma que não entregue detalhes da trama, mas por vezes o filme tenta trazer uma crítica que, em papel funciona, mas quando traduzida para a linguagem cinematográfica, perde muito do impacto por conta da fotografia que já mencionei, que tem pouca interação entre seus símbolos e parece não ter uma unidade na identidade visual, isso sem contar uma sequência onde a montagem tenta construir um paralelo dramático em um clímax de tensão racial, mas gera um resultado quase contraditório à mensagem do filme.
Medida Provisória é repleto de boas intenções, mas sem a força necessária para sustentar um debate que vá além das salas de cinema, e assim ficamos com uma mensagem quase óbvia e um texto seguro demais, carregado de frases de efeito que com certeza são relevantes, mas sem a eficácia que imaginam.
Eu queria muito ter gostado mais da obra, sou muito fã do trabalho de Lázaro Ramos e apoio o sucesso do cinema nacional contra uma indústria quase completamente dominada pelo mercado norte-americano, mas não posso ser desonesto com minha opinião. Ainda assim, é essencial reforçar como nosso cinema precisa de apoio, então mesmo que eu não tenha gostado, dê uma chance para o filme, precisamos de mais Brasil nas salas de cinema.
Produções independentes de ficção científica sempre chamam a minha atenção pelo potencial do que pode ser feito com um orçamento reduzido, e na maioria das vezes são surpresas positivas, compensando efeitos visuais com um enredo e personagens bem construídos. É claro que existem casos onde, mesmo com pouco dinheiro, um filme consegue realizar efeitos visuais de qualidade, afinal o que importa não é só ter a ferramenta, mas saber usá-la (já falei de vários por aqui, como Riqueza Tóxica, A Vastidão da Noite ou I am Mother).
Distribuída pela Netflix, Capitã Nova (Captain Nova) é uma produção holandesa dirigida por Maurice Trouwborst, com uma premissa conhecida entre os fãs de ficção científica. Em um futuro devastado por desastres ambientais, a astronauta Nova (Anniek Pheifer) volta no tempo para alertar a humanidade sobre os eventos catastróficos, mas um efeito colateral da viagem faz com que a astronauta volte à ser uma pré-adolescente, o que faz com que ninguém leve a sério sua mensagem. Com a ajuda de Nas (Marouane Meftah), um garoto que a salva depois de um pouso forçado, Nova (agora interpretada por Kika van de Vijver) parte em sua missão.
Antes de tudo, o que é bom. Sempre aprecio o esforço da equipe responsável pelos equipamentos e efeitos práticos em produções independentes como essa. Aqui as armas “futuristas” plásticas podem entregar um pouco sua artificialidade por conta de uma iluminação ruim nas tomadas que se passam de dia (aí é mais culpa da direção de arte mesmo), mas há dois elementos que recebem mais atenção, a nave e o robô assistente de Nova. O robô, ADD (dublado por Sander Van de Pavert) serve como alívio cômico, e mesmo que não seja engraçado, foi um bom trabalho da equipe, incluindo circuitos para fazê-lo piscar e realizar pequenos movimentos, mesmo limitado a ficar nos ombros de Nova. Quanto à nave, excelente trabalho com a textura e a pintura, e acredito que a própria equipe ficou bastante orgulhosa com o resultado, considerando como adoram deixar a câmera nela, rendendo até uma sequência em que uma personagem encontra a nave e temos um ângulo completo dela.
Elogiar componentes aparentemente simples como uma nave e um robô podem parecer algo supérfluo para o público atual, acostumado com efeitos visuais mais avançados, mas devo dar crédito onde ele merece ser dado, e um filme de orçamento limitado como esse deve receber o elogio pelo bom trabalho de efeitos práticos. Contudo, assim como a obra recebe ser parabéns, tem seus pontos baixos, os maiores deles sendo o enredo e as atuações.
Capitã Nova tem uma promessa clara de crítica ambiental, mas é incapaz de cumpri-la por conta de um enredo remendado por conveniências e uma trama previsível, e muito disso se dá por conta das personagens e suas ações “questionáveis”. É quase cômico como personagens estão constantemente fazendo as piores decisões possíveis e sendo completamente incompetentes em suas ações. Isso parece exagero, mas é frustrante assistir duas crianças invadindo casas e até uma base militar sem qualquer obstáculo, nem uma câmera de segurança ou porta trancada, mas quando assistimos o núcleo dramático da detetive Clair (Hannah van Lunteren), ela está rodeada por homens armados, prontos para atirar em duas crianças que estão apenas com uma arma que paralisa os oponentes e um robô que não sabe fazer piadas.
Outro enorme incômodo são as personagens principais, sem qualquer desenvolvimento além de suas características básicas (Nova é a astronauta séria e Nas é o jovem rebelde o filme inteiro), tanto que até o antagonista principal, com apenas dez minutos de tela, tem um drama pessoal mais elaborado, envolvendo a relação com um pai abusivo. Sendo bem honesto, a personagem de Nas é a mais desnecessária do filme porque ele só segue Nova durante toda sua jornada, mas como ela já conhece a Terra e sabe com quem falar e onde ir, ele não serve sequer para introduzir algum elemento para ela ou o espectador, é apenas uma criança sem expressão. Tudo piora quando uma das revelações da trama envolve a relação de Nova com Nas, fazendo parecer que ele está no filme com um único propósito: servir de interesse amoroso para a versão adulta de Nova (o roteiro é previsível nesse nível).
Algumas pessoas podem dizer que não posso ser tão rígido com a atuação de uma criança, mas algumas das melhores atuações da história do cinema vieram de papéis infantis (Spielberg basicamente fez sua carreira em cima disso), e Marouane Meftah esbanja uma falta de carisma inacreditável, tentando manter a mesma cara séria por mais de uma hora de duração do longa. Kika van de Vijver também não se salva da crítica porque tenta emular a seriedade da versão adulta de Nova, mas sem qualquer emoção, parece um cosplay do Juiz Dredd, mas sem capacete, ou graça alguma. Tudo bem, brincadeiras à parte, as atuações não estão inspiradas, e isso afeta personagens que também não são bem escritos.
Capitã Nova é uma produção independente com orçamento o suficiente para efeitos práticos decentes e uma direção de arte competente (mais em tomadas noturnas, porque as de dia não são tão boas assim), mas parece não ter se importado com o que realmente faz obras do tipo se destacarem, trazendo personagens fracos e um roteiro preguiçoso.
Capitã Nova (Captain Nova, 2021 – Países Baixos)
Direção de Maurice Trouwborst
Roteiro de Lotte Tabbers e Maurice Trouwborst
Atuações de Kika van de Vijver, Marouane Meftah, Anniek Pheifer, Joep Vermolen, Steef Cuijpers, Sander Van de Pavert