Categorias
Séries

Solar Opposites (1ª Temporada) | A Trivialidade no Caos

“Somos alienígenas, trabalhamos de forma misteriosa.
Não podemos ser julgados por padrões humanos”. 

Toda vez que surge uma nova animação, principalmente uma com temática sci-fi, já corro para assistir. No caso de Solar Opposites, a expectativa é ainda maior por conta dos nomes envolvidos na produção. Desenvolvida por Mike McMahan e Justin Roiland, o primeiro sendo um dos roteiristas e o segundo o co-criador de Rick and Morty, respectivamente, é óbvio que há uma cobrança por parte dos fãs. 

Em Solar Opposites seguimos o cotidiano de uma família alienígena que precisou fugir de Schlorp, seu planeta-natal utópico que acabou atingido por um asteroide. Mas na procura por um novo lar, sua nave cai na Terra, onde eles agora vivem e reclamam dos costumes e rituais humanos. Os aliens Korvo e Terry são os guardiões de dois replicantes infantis, Yumyulack e Jesse. A interação entre eles acaba sendo similar a de um casal cuidando de suas crianças adotivas, assim temos Korvo e Terry procuram maneiras de se adequar a nova vida, enquanto Yumyulack e Jesse são matriculados em uma escola para aprender mais sobre os terráqueos. 

A animação tem uma proposta comum de comédias situacionais (sitcoms). A primeira que me veio em mente foi a divertida Uma Família de Outro Mundo (3rd Rock From the Sun, no original), e é claro que Alf, o Eteimoso também explora essa premissa. Mas por termos alguém como Justin Roiland por trás da série, não conte com o tom leve e descontraído das produções que acabei de mencionar. Essa nova animação é insana, escatológica e cheia de humor negro. 

Ao longo da curta temporada de apenas oito episódios, grande parte da comédia vem das tentativas – sem sucesso – dos alienígenas em se adaptar ao estilo de vida dos humanos. Situações absurdas como ter uma crise existencial ao perceber que um mascote da TV não é real ou ficar indignado com a forma como os humanos se satisfazem ao assistir um truque de máquina faz com que a solução dos alienígenas seja usar todo tipo de ferramenta ou tecnologia extraterrestre (como eles dizem, “baboseira sci-fi”) para tentar compreender as pessoas. 

Solar Opposites nova serie do co-criador de Rick and Morty

Vale mencionar que a maior parte dos humanos da série servem apenas como vítimas para os planos dos protagonistas, ou seja, há uma boa quantidade de violência e sangue na temporada. Mesmo que não seja oficial, Solar Opposites pode ser visto como um spin off de Rick and Morty, não só por compartilhar parte da equipe criativa, incluindo os animadores, mas pelo tom indiferente e anarquista das tramas.  

Por mais que tenha algumas ótimas piadas e desenvolva bem as suas regras e limitações, talvez a falta de alguém como Dan Harmon (com quem Roiland criou Rick and Morty) tire um pouco do brilho dessa nova série. Harmon é responsável pela maior parte do humor metalinguístico e referencial de toda produção em que se envolve, e sua habilidade de elaborar comentários inteligentes e ácidos sobre a estrutura narrativa da TV seriam bem-vindos aqui.

Essa nova série está constantemente fazendo menções e inserindo piadas sobre outros programas, de clássicos como Quinta Dimensão até o sucesso Harry Potter. Chegam a colocar um Justin Roiland animado logo no primeiro episódio como easter egg. Mas nada disso parece ser o suficiente e na maioria das vezes essas referências soam vazias e sem razão. Se por um lado conseguem brincar com os roteiros e personagens de Gilmore Girls de um jeito que contribua para a narrativa, por outro tentam fazer um meta-comentário sobre o serviço de streaming Hulu, onde a animação é exibida, mas repetindo a mesma crítica em diversos episódios. Uma vez é engraçado, duas tudo bem, mas quase todo episódio tem uma piada assim, e essa repetição não contribui para o enredo, apenas distrai e nos lembra de algo que já sabemos. Harmon faz isso com um propósito, Roiland parece um pouco perdido nessa parte.

Continuando nas similaridades entre projetos, já que é inevitável compará-los, a dublagem mantém a mesma qualidade, mas fica difícil distinguir Korvo de Rick, já que os dois são personagens inteligentes dublados por Roiland e tem a mesma atitude sarcástica e arrogante. Mas isso pode ser mais um problema na construção dos personagens, que mesmo tendo características distintas, não tem arcos dramáticos atraentes o suficiente, resultando em conclusões pouco satisfatórias.

Solar Opposites nova serie de Justin Roiland co criador de Rick and Morty

Outro indício de que os personagens principais precisam de mais do que apenas traços definidores é o fato de uma subtrama sobre humanos encolhidos e aprisionados no quarto dos aliens por vezes rouba a atenção e parece mais intrigante do que a trama principal. Nessa subtrama, temos uma narrativa clássica sobre ascensão e queda de distopias, o que é simples mas eficaz, principalmente porque os roteiristas parecem estar se divertindo mais ao criar uma nova civilização em volta desses humanos prisioneiros, com ratos servindo de locomoção ou M&Ms como moeda de troca, ao invés das aventuras de Korvo, Terry, Yumyulack e Jesse. O núcleo distópico é tão divertido e engraçado ao ponto de ter um episódio inteiro dedicado exclusivamente a ele, o que é bom mas nos faz lembrar que a trama secundária é envolvente que a principal.

Solar Opposites pode ter seus defeitos, mas é quando explora o caos do cotidiano que realmente brilha, e isso porque Justin Roiland é excelente em humor improvisado. Terminamos a temporada com algumas pontas soltas, e por mais que essa não tenha sido uma das animações mais marcantes do ano, talvez eu volte para mais no futuro. Por enquanto, vale a pena assistir: são apenas oito episódios e eles passam voando.  

Categorias
Séries

The Midnight Gospel | Adeus aos Sentidos

“Amor! A única coisa que minha armadura não aguenta”

Clancy comanda um podcast espacial chamado The Midnight Gospel, onde entrevista seres diversos de planetas em extinção. Com um simulador de multiversos, ele pode enviar um avatar com a sua consciência para estes planetas e gravar longas conversas, que podem ir de um simples questionamento sobre a legalização da maconha até uma viagem através dos sentidos, com debates sobre ética existencial e identidade. Mas para entender de verdade a proposta dessa nova animação da Netflix, que leva o mesmo nome do podcast de Clancy, é necessário conhecer um pouco dos bastidores.

Todos os episódios de The Midnight Gospel, a série, tem como destaque os diálogos, as entrevistas de Clancy, que na verdade são excertos retirados diretamente de um podcast real, o Duncan Trussell Family Hour. Duncan Trussell é um ator, comediante e dublador que costuma receber todo tipo de convidado em seu programa: celebridades como Dan Harmon, o criador de Community e Rick and Morty; o músico e professor espiritual, David Nichtern; ou até mesmo figuras como Damien Echols, condenado por homicídio em um famoso caso dos Estados Unidos onde três garotos foram mortos no que foi confirmado como um “ritual satânico”. Um dos exemplos faz uma ponta na animação, mas vou deixar você descobrir enquanto assiste.

A série é desenvolvida por Pendleton Ward, mais conhecido como o criador da animação Hora de Aventura. Mas deu para notar que a abordagem de The Midnight Gospel é restrita ao público adulto, principalmente por conta de toda a profanidade e violência. Mesmo que Hora de Aventura tenha momentos brilhantes de questionamentos envolventes, a nova produção de Ward segue uma linha mais voltada para as crises existenciais de Bojack Horseman, com uma dose do absurdismo encontrado em Rick and Morty

Nova serie da Netflix a animacao The Midnight Gospel

Mesmo que a maior parte dos diálogos venha das conversas de Trussell e seus convidados, há uma narrativa própria na série. Assistimos às tentativas de Clancy em conhecer melhor seus vizinhos, conseguir novas amizades, colecionar artefatos de suas viagens e lidar com os defeitos de sua máquina, que precisa ser lubrificada constantemente (a semelhança de seu simulador de multiversos com um órgão sexual feminino faz parte da linguagem mais infantil e do humor escatológico de Ward, que se estende pela temporada representado em todo tipo de excremento que lhe vem à cabeça). Mas Clancy também tem alguns segredos e parece estar fugindo para novos mundos na intenção de esquecer o seu. 

Considerando o formato, há uma estrutura base para a maioria dos episódios, colocando as entrevistas em primeiro plano, com uma animação de fundo que nem sempre parece estar conectada ao assunto das conversas entre o protagonistas e os seres que encontra no caminho, mas rende alguma piada visual engraçada ou cria um segundo debate que parece complementar de certa maneira o tema geral de um episódio. Como se não fosse o suficiente, sobra espaço para alguns números musicais aleatórios, algo que Ward trouxe de seus outros trabalhos, mas falaremos disso em breve. Parece loucura resumir tudo dessa maneira, mas é uma daquelas coisas que só seria capaz de explicar desenhando, confirmando como a animação pode ser um recurso narrativo tão poderoso. 

E por falar em animação, se você estiver acostumado com os desenhos de traço mais infantil dos trabalhos anteriores de Ward, aqui temos algo similar, mas carregado de sangue e vísceras, o que não distrai demais da construção de mundo louca e cheia de referências e piadas do cenário. As cores também são mais vibrantes e garantem uma viagem psicodélica, inclusive por conta da movimentação, com menos fotogramas, que causa certo estranhamento em algumas sequências. Se ainda não ficou claro, até mesmo a data oficial de lançamento da série acabou caindo em 20 de abril (brincadeira entre os usuários de maconha, que usam o termo 4:20); então, você não está sendo guiado em uma jornada louca como essa sem motivo – o universo pode ser aleatório, mas as intenções de Ward e Trussell não.

A louca e experimental serie The Midnight Gospel da Netflix

Como mencionei antes, a temporada conta com ótimas músicas originais, um compilado de rock, metal, jazz e folk, com algumas letras bobas e ridículas, mas um pouco assustadoras se você prestar atenção no que algumas estão dizendo. Não temos nada no nível de Hora de Aventura, mas se quiser versões mais estranhas de Marilyn Manson, Tom Waits ou Beck, não vai se decepcionar. 

Embora pareça, na superfície, uma novelização de conversas descontraídas sobre temas delicados como a relevância das religiões, os riscos de se apoiar na esperança, as limitações da criatividade ou outros diversos questionamentos desse nível (é muito mais do que isso), a série se aproveita da jornada emocional do protagonista para executar momentos tocantes e explorar dúvidas essenciais para cada um de nós. Não se deixe enganar por elementos como barcos carregados pela energia positiva de gatos ou unicórnios que vomitam sorvete, The Midnight Gospel é uma experiência única através do espaço e da alma. 

Categorias
Cinema Quadrinhos

Akira | Abrindo as portas para a animação japonesa

Uma das obras definitivas da animação japonesa, Akira foi lançado em 1988, uma adaptação do mangá homônimo de 1982, publicado originalmente na revista Young Magazine. O filme teve algumas vantagens na transição das páginas para a tela, a principal sendo o envolvimento do autor responsável pelo mangá, Katsuhiro Ôtomo, também assumindo a direção do longa. 

Dividido em seis volumes, seria impossível desenvolver todos os elementos do mangá para um filme de menos de duas horas. A solução foi aproveitar uma parcela do primeiro volume e pular diretamente para o último, o que pode afetar negativamente a execução da versão cinematográfica, mas falamos disso em breve.

Além disso, é curioso perceber que o material original foi concluído apenas em 1990, dois anos após o filme já ter feito um enorme sucesso no mercado japonês, deixando claro que a adaptação complementa o mangá e cria uma forma de narrativa transmidiática. Mesmo assim, ambas funcionam independentemente, e o foco desse texto é no filme de 1988, que abriu as portas para a invasão da animação japonesa no resto do mundo. 

Ambientado na futurista e pós apocalíptica Neo-Tokyo de 2019, seguimos Kaneda, o líder de uma gangue de motoqueiros. Eles representam a juventude punk de um país afetado pelas sequelas da guerra, opressão do estado, tensão política e o aumento da violência, esse último conta com a contribuição de Kaneda e seus companheiros.

Anime Akira um dos mais relevantes para o cinema japones

Depois de um confronto entre gangues, Tetsuo, amigo de infância e parceiro no crime de Kaneda, encontra uma figura misteriosa e é capturado por agentes de um projeto secreto do governo. Tetsuo acorda com dores de cabeça e descobre possuir habilidades psíquicas, mas ele logo se mostra mentalmente instável, sendo assim considerado uma ameaça para todos. 

Akira costuma ser creditado como o filme responsável por popularizar a animação japonesa em outros países, fazendo enorme sucesso na crítica e bilheteria ao redor do mundo, sendo um dos lançamentos mais rentáveis do ano. Tirando o investimento na divulgação da obra, o que pode ter chamado a atenção de outros públicos é a representação da juventude através de personagens carismáticos, ao mesmo tempo discutindo sua alienação e temas como corrupção e a crescente insatisfação da sociedade com seu governo. Também há o diferencial de explorar um país ainda assombrado pelos horrores da bomba atômica, então é fácil sentir a angústia e paranóia no ar.

O filme é marcante até na maneira como foi animado, trazendo mais fotogramas por segundo do que o normal, o que hoje não é surpresa alguma, mas foi uma escolha que apenas contribuiu para o filme, detalhando melhor alguns elementos das cenas e criando uma fluidez no desenho como poucos já viram. As cores também tiveram um papel importante na obra, e algumas precisaram ser criadas já que boa parte da trama se passa de noite ou em ambientes escuros.

Animacao Akira foi um marco do cinema japones

A deterioração na relação entre Kaneda e Tetsuo é o cerne dramático da obra, que pode ficar um pouco confusa na apresentação de alguns elementos, principalmente pela já mencionada solução de adaptar apenas o primeiro e sexto volumes do mangá. Você pode assistir e aproveitar a trama principal sem problemas, isso porque o foco não deixa de ser o embate entre os dois amigos de infância, mas qualquer um interessado em estudar os aspectos mais metafóricos do longa, talvez precise visitar o material original antes. 

Influente até hoje, inspirando desde jogos como The King of Fighters (o personagem K9999 é uma clara homenagem à Tetsuo) até cantores como o rapper Kanye West, que chegou a reproduzir sequências do filme no vídeo da música Stronger, Akira é um marco da animação e do cinema japonês, uma jornada com bastante ação e sangue ao som de uma trilha marcante e uma cidade cyberpunk viva e colorida, e como todo bom punk, sem respeito algum pelas regras.