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MEGALÓPOLIS | Um épico frágil e equivocado

Megalópolis é um dos projetos mais ambiciosos da carreira de Francis Ford Coppola. Um filme interessado em debater o declínio do império estadunidense e da indústria Hollywoodiana utilizando como paralelo a história do império romano, assim como algumas de suas figuras mais conhecidas. Megalópolis acompanha a jornada de César Catalina (Adam Driver), um inventor genial que percebe como sua civilização está à beira do colapso. Assim ele pretende reconstruir a cidade de Nova Roma usando um material transformador chamado megalon. Mas para que consiga atingir sua utopia tecnológica, precisa ir contra a elite, os políticos e a mídia, tudo isso com a ajuda de Júlia (Nathalie Emmanuel), a filha do prefeito Cícero (Giancarlo Esposito), que obviamente odeia essa ideia. 

Considerando todos os obstáculos que Coppola teve pra fazer esse filme, o debate sobre a importância de imaginar uma utopia se faz pertinente por conta da situação atual do sistema estadunidense, uma conversa que o diretor estende para a indústria de cinema e a forma como o lucro costuma estar acima da criatividade por conta de um monopólio de estúdios conservadores que prezam por repetição de fórmulas e a falta de interesse em assumir riscos.

O conceito de utopia é sempre frágil porque a maioria de suas interpretações costuma imaginar um mundo no qual conflitos são inexistentes, algo que já foi erroneamente atribuído a narrativas como Jornada nas Estrelas, onde há uma sociedade mais igualitária que abandonou alguns conceitos individualistas do passado, porém ainda há bastante conflito social, político e econômico, já que eles precisam de um sistema funcional. A única diferença é que os conflitos são resolvidos muitas vezes através de diálogos, deixando a força bruta como último recurso, algo que obviamente varia de acordo com a versão de Jornada nas Estrelas que estamos explorando.

Falo isso porque Coppola parece ser o tipo de pessoa que cresceu acreditando nesse ideal de sociedade que ele considera utópica, mas nunca parou para realmente questionar os contextos dessa sociedade, sejam eles políticos, econômicos ou religiosos. Existe esse conceito de tratar a utopia como um método de vida, não como algo que se atinge de verdade, e o filme menciona algo parecido com isso quando temos a cena do Cesar respondendo perguntas e dizendo que a utopia está em desejar um futuro melhor, ela está nesse cenário de discussão e debate produtivo. O diretor entende essa ideia, mas também fica cego pela própria visão otimista, mas bastante inocente e equivocada, de que para atingirmos essa utopia bastam apenas discursos bonitos e uma vontade de mudança que seria capaz de resolver todos os problemas do mundo. Isso fica visível na forma como constroi seu Megalópolis, um filme cheio de boas intenções e muitos pontos positivos, mas que no geral se perde na essência do que ele mesmo considera um futuro melhor. Isso é algo que vou abordar novamente daqui a pouco.

Todo o apelo visual, que tem sido um dos aspectos mais elogiados do longa, é algo que eu gostei na superfície, mas tenho minhas ressalvas quanto ao uso dele dentro da narrativa geral. Não dá pra negar que Coppola fez um esforço descomunal para conseguir construir algumas das composições desse filme, com a quantidade de técnicas de transição e colagens que são belíssimas, ou quando usa split screens para representar essa profusão de ideias na mente visionária do protagonista, com a tela se dividindo em três partes ou mais em uma apresentação de imagens em alta velocidade, o que dá essa sensação de que os pensamentos do protagonista são difíceis de acompanhar.

Ainda que seja lindo de ver e a fotografia conte bastante quando é considerada isoladamente, nem todas as ideias se conectam para criar uma coesão temática, com exceção de algumas tomadas mais estáticas que casam bem com o drama de alguma personagem, como quando mostram o prefeito Cícero sendo engolido pelas areias do tempo, quase como um Ozymandias vendo seus feitos se esvaindo para dar lugar a outra figura mais poderosa. Esse tipo de representação visual é constante, e Coppola não é nada sutil ou econômico na quantidade de referências e alusões à figuras histórias – obviamente o foco maior são nos paralelos com o império romano, desde a cidade de Nova Roma sendo utilizada no lugar de Nova York, o nome da maioria das personagens principais e alguns pontos da trama que envolvem muita traição e conflitos de poder.

Nathalie Emmanuel em megalópolis

Admito não me incomodar com a falta de sutileza nesses casos que mencionei, acho até que o filme abraça bem o absurdo e ridículo, como quando faz sua crítica exibindo símbolos de um discurso neofascista, muito deles através da personagem de Shia LaBeouf, que está bem confortável em um papel mais excêntrico, do jeito que ele gosta. Também há toda a sequência em que Júlia segue o carro de César para descobrir seus segredos, e no caminho temos uma das minhas cenas favoritas, com as estátuas em ruínas representando a decadência do sistema e símbolos estadunidenses de justiça e moral.

Normalmente gosto desse tipo de comentário mais explícito, ainda mais quando vem representado com visuais tão impactantes, mas tem horas que Megalópolis precisar “pegar na mão do espectador” de forma didática ao ponto de incomodar; seja com os vários interlúdios com frases esculpidas em mármore ou a narração da personagem de Lawrence Fishburne. Quando você tira a camada de metáfora, não sobra muito para se aproveitar do enredo, mas pelo menos os visuais e as personagens mantêm essa proposta teatral de Coppola, com diálogos artificiais e atuações mais caricatas.

Aqui funciona pra mim, como acontece com os trejeitos farsescos do protagonista interpretado pelo Adam Driver, um ator que tem feito parte de outros projetos ambiciosos de outros grandes diretores, com o Ferrari, de Michael Mann; Silêncio, de Scorsese e O Homem que Matou Dom Quixote, de Terry Gilliam. Por vezes carismático, outras intimidador, a personalidade do César de Adam Driver que se espelha muito no próprio Coppola, o que ao mesmo tempo traz essa metalinguagem interessante, mas também é um nível de vaidade absurda considerando o quanto ele trata esse protagonista como um gênio incompreendido, e as coisas pioram quando debatemos as intenções da personagem. 

O elenco tem nomes grandes em papeis coadjuvantes, como Jon Voight e Dustin Hoffman, mas o que importa mesmo é assistir Aubrey Plaza se divertindo como uma repórter sensacionalista procurando causar o caos em cada cena que aparece. O maior desperdício da história está no potencial da personagem de Julia Cícero, a filha do prefeito, interpretada por Nathalie Emmanuel. Sua relação com César recebe bastante espaço, e eles possuem uma boa dinâmica, mas não parece ter o mesmo peso que outros núcleos dramáticos, sem contar a forma como Julia precisa representar uma figura de enorme importância para César, mas quando isso precisa ser colocado à prova, é difícil acreditar nessa mudança na dinâmica entre eles. No começo, a conexão entre Júlia e Caesar é algo pragmático e temos que acreditar que há peso nessa relação.

Aubrey Plaza em Megalópolis

Abri esse texto lembrando como esse filme é ambicioso, e Coppola tem essa fama de investir nos seus projetos e arriscar, independente de um resultado desastroso de bilheteria ou uma experiência ruim de filmagem. Se você assistir os bastidores caóticos de Apocalypse Now ou como ele tentou revolucionar a indústria com O Fundo do Coração, um dos meus filmes favoritos, sabe que ele vai fazer o impossível para conseguir passar sua visão para o projeto. E no fim eu gosto de Megalópolis como uma ideia do que é possível ser feito no cinema, uma expressão crua e genuína de um diretor entregando tudo que ele acredita, como se fosse seu manifesto sobre a importância de se colocar a arte como uma necessidade humana. Coppola imagina o futuro com um otimismo inabalável, mas meu maior problema com Megalópoles, e porque considero ele um épico equivocado, está na forma como ele esconde nessa camada de idealismo uma ideologia bem mais conservadora e individualista através de seu protagonista.

Infelizmente, vou me repetir falando de Matrix Resurrections por aqui, mas são dois filmes com ideias e até apelo visual similares, ambos debatendo esse conceito de arte e indústria. A utopia de Coppola se faz pela destruição do antigo e reconstrução total, ao contrário dos ideais de diretoras como as Wachowski, que veem uma necessidade na restauração do antigo e uma construção do novo que funcione para todos, não apenas um grande gênio com todas as respostas. Por vezes a visão de Megalópolis parece cínica e mais limitadora na sua forma de expressar essa necessidade por mudança, que ele vê como algo que deve ser respondido por um indivíduo excepcional, enquanto Matrix Resurrections vê a salvação do mundo em declínio como um esforço coletivo, com esperança nas pessoas que conseguem se unir, ainda que oprimidas por um sistema mais poderoso que elas.

Muito dessa visão de Coppola fica clara no texto que fecha o longa. Não chega a ser um grande spoiler, mas é o tipo de coisa que se espera de alguém que vende um conceito subjetivo como liberdade de expressão e criatividade, mas que ainda vê a resposta para uma civilização avançada por uma ótica estadunidense, chegando ao ponto de terminar a obra com uma mensagem que serve para representar o futuro da humanidade, mas é basicamente uma releitura do juramento à bandeira dos Estados Unidos. Mesmo com todos os meus problemas com o enredo e o debate mal aproveitado do filme, Megalópolis é uma experiência que não se vê todos os dias e eu valorizo o risco que o diretor tomou. Eu respeito a proposta geral que Coppola tentou trazer com seu projeto de paixão, assim como o elenco e os visuais que já fazem valer a pena assistir o filme outra vez no futuro, mas não respeito a forma como ele executa algumas de suas ideias.

Crítica em vídeo:

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River | (Mais) dois minutos além do infinito

Em 2020 tivemos o lançamento de Dois minutos além do infinito, uma pérola da ficção científica independente que chamou atenção em festivais e depois conseguiu uma visibilidade maior no Brasil quando chegou no catálogo do streaming Max (finada HBO Max). Primeiro longa do diretor Junta Yamaguchi, o filme conta a história de um grupo de amigos tentando entender como uma TV passou a exibir imagens do futuro, especificamente dos próximos dois minutos. É uma obra de apenas uma hora e dez minutos, mas bem esperta no formato, brincando com a câmera que está constantemente flutuando no ambiente como o ponto de vista do espectador confuso que vai descobrindo as informações junto das personagens, e -quase- tudo realizado em plano sequência, um chamariz que geralmente não me impressiona, mas nesse filme se destaca por conta da complexidade da cadeia de eventos, então filmar um filme de anomalia temporal em um formato que ignora as convenções da edição cinematográfica é algo bem criativo.

Para seu segundo filme, Yamaguchi mantém a temática de viagem no tempo, repetindo alguns elementos para criar um tipo de conexão entre as obras. Enquanto Dois minutos além do infinito se passa no pequeno restaurante do protagonista, River (lançado em 2023, mas ainda sem título ou data de lançamento no Brasil) é ambientado numa típica pousada ryokan chamada Fujiya, em Kyoto. Assistimos a atendente Mikoto (Riko Fujitani) interagindo com os seus colegas de trabalho e hóspedes do hotel; tudo parece um dia normal, porém ela tem a sensação de um déjà vu quando se vê repetindo uma mesma conversa com seu patrão.

River novo filme do diretor de dois minutos além do infinito
Munenori Nagano e Riko Fujitani debatem sobre os eventos temporais da pousada

Logo o que era estranho fica pior quando Mikoto se vê constantemente voltando dois minutos no passado, a partir do mesmo ponto, na frente do rio Kibune, paralelo ao estabelecimento. Para piorar a situação, outros funcionários e hóspedes passam a relatar eventos bizarros, como uma bebida quente que nunca atinge a temperatura certa ou um mingau que não termina mesmo que você coma o prato inteiro. Todos estão presos no mesmo loop temporal, e a cada dois minutos o tempo volta para o mesmo ponto de partida, felizmente com suas memórias intactas, sendo essa a única vantagem que as pessoas têm para bolar um plano e sair dessa prisão temporal.

Yamaguchi estrutura o longa de uma forma similar ao seu filme anterior, dessa vez tendo um ambiente diferente e mais exploração do espaço, que além de maior em escala é bem mais complexo por conta da quantidade de escadas, corredores e cômodos nos quais a câmera precisa transitar para estabelecer a posição de cada personagem dentro do loop temporal. O que ajuda bastante é a evolução das ferramentas do diretor, que fez o filme anterior em seu smartphone, mas aqui ele tem uma câmera digital e um orçamento maior, então há mais possibilidades e um trabalho melhor no tratamento visual, ainda que o tratamento de cores não seja perfeito e em alguns momentos o branco fica mais estourado, mas é coisa pequena considerando que o foco do longa está nessa noção de movimento.

Por conta da natureza da narrativa de loop temporal o filme consegue escapar até de possíveis erros de continuidade, principalmente aqueles envolvendo a neve em volta da pousada, que está sempre mudando de forma, mas com cada nova instância de linha temporal reiniciada o clima é tratado como uma personagem na trama principal. Por falar nisso, enquanto o primeiro longa do diretor estava mais focado na cadeia de eventos, sem muito desenvolvimento das personagens, aqui temos personagens com dramas mais claros e melhor desenvolvidos, principalmente o da protagonista, Mikoto, que está em sua própria batalha interna contra o tempo e sua inevitabilidade. Além da atriz Riko Fujitani, quase todo o elenco de Dois minutos além do infinito retorna para River, como Gôta Ishida, Masashi Suwa e Munenori Nagano.

Gôta Ishida e Masashi Suwa surpresos com a comida que nunca acaba

O filme é quase inteiramente formado por planos sequências que se limitam à regra de dois minutos, assim retornando para o ponto inicial com um corte seco. O mais divertido é assistir as personagens passando pelos mesmos eventos ou procurando maneiras diferentes de alterar sua realidade. O mais impressionante é ver como Yamaguchi consegue cronometrar a duração das tomadas com a distribuição das personagens no cenário e o enquadramento da câmera. Se você já assistiu o filme anterior do diretor, em alguns momentos é esperado que sinta como se estivesse assistindo uma versão em maior escala da mesma história, muito mais por conta das batidas da trama do que a história em si, o que não atrapalha e até cria uma conexão temática entre as obras – talvez indício de que teremos mais um filme pra formar a trilogia de anomalia temporal?

Se Dois minutos além do infinito revelou Junta Yamaguchi como um nome para se prestar atenção quando falamos de narrativas de ficção científica envolvendo viagem temporal, em River ele consegue se superar na escala e construção de suas personagens, com mais um filme divertido e criativo sobre a iminência do tempo e a importância da memória.

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Asteroid City (2023, Crítica) | Wes Anderson explora a natureza da narrativa

Não tente entender a história. Apenas continue contando-a.

O cinema de Wes Anderson tem algumas marcas registradas tão evidentes que já chegaram a viralizar ou virar piada até entre quem nunca assistiu um filme do diretor.  Muitas pessoas resumem a linguagem dele em personagens excêntricos e uma fotografia colorida com bastante atenção em uma composição simétrica, até mesmo a tipografia das legendas dos seus filmes viraram referência para trends das redes sociais. Por mais que muito disso seja engraçado e real, e ele use mesmo essas técnicas, essa é uma leitura mais limitada de todos os seus aspectos técnicos, já que ele tem um ritmo cômico mais específico, e a direção dos atores envolve mais humor corporal do que lembram.

Nos seus últimos filmes, Wes Anderson parece estar cada vez mais confortável com essa linguagem, dando muito mais atenção para precisão técnica, ao ponto de ignorar qualquer tipo de naturalismo em seu cinema para abraçar completamente o meta-comentário, que ele tem trabalhado por anos, e tem ficado mais forte desde O Grande Hotel Budapeste, e com seu novo filme isso tem se mostrado um elemento ainda mais importante para ele.

Asteroid City é ambientada em uma versão retro futurista dos anos 1950, e conta duas histórias paralelas, uma delas sendo a encenação de uma peça sobre eventos bizarros em uma convenção de ciências na fictícia Asteroid City, a outra sobre os bastidores da criação dessa mesma peça. A peça nos apresenta o protagonista Augie Steenbeck, um fotógrafo de guerra levando seu filho para a convenção de ciências. Nos bastidores, assistimos o ator que interpreta Augie tento dúvidas sobre sua personagem e os rumos da produção.

Scarlett Johansson e Jason Schwartzman em Asteroid City Novo Filme de Wes Anderson
Scarlett Johansson e Jason Schwartzman

Trazendo muito do que já é esperado de Anderson, o filme tem um grande triunfo na exploração do conceito de estrutura narrativa, e a brincadeira do diretor em estar constantemente movendo a câmera para reenquadrar um plano é sempre divertido, assim como quando provoca o espectador com as mudanças na razão de aspecto, alternando a tela widescreen e colorida que representa a peça entre o preto e branco e a configuração do tamanho das telas das TVs da década.

Asteroid City está rodeado de boas propostas, com temas que podem ir desde alegorias à pandemia, até comentários mais sarcásticos sobre o papel dos Estados Unidos nas guerras e a exploração atômica. Contudo, a decisão de Anderson em abandonar o seu lado mais realista e se entregar ao surreal pode arriscar um pouco a efetividade de um possível arco dramático para as personagens, assim como o enredo, que está cheio de boas ideias, mas não parece saber conectá-las de uma forma mais coesa. Criativo, com certeza, mas os testes do diretor com o conceito de narrativa correm o risco de comprometer o lado mais emocional por uma virtuosidade na sua própria linguagem que é admirável, mas não parece estar completamente refinada.

Ainda falta algum elemento em Asteroid City para que ele pareça menos artificial em sua apresentação, e com certeza essa experimentação narrativa de Anderson tem todo seu mérito e merece atenção do mesmo jeito, principalmente o uso de técnicas diferentes, incluindo animação em stop motion (em uma das melhores sequencias do longa) ou adesão aos conceitos de outras mídias, mas não consigo deixar de imaginar o quão poderoso poderia ser esse filme se ele também fosse um pouco mais delicado com alguns núcleos dramáticos e tramas que poderiam render grandes momentos de reflexão, e por isso as melhores cenas acabam sendo as de pequenas interações entre esses “atores” sobre suas vidas e como enxergam seus personagens.

Jason Schwartzman

Em certo ponto do filme é reforçada a ideia de que “Não tente entender a história. Apenas continue contando-a”, o que seria um ótimo conselho direto do diretor para o espectador, se a história não se empenhasse tanto para passar essa ideia, ao invés de simplesmente tentar contar uma história mais simples.

Asteroid City (2023)
Direção de Wes Anderson
Roteiro de Wes Anderson e Roman Coppola
Atuações de Scarlett Johansson, Jason Schwartzman, Tom Hanks, Bryan Cranston, Jeffrey Wright, Edward Norton, Maya Hawke, Sophia Lillis…
1h 45 min.

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Mrs. Davis | Jesus vs Inteligência Artificial, Ciência vs Religião

“Redirecionando, 1042… Redirecionando, 1042, Sandy Springs…”

Em uma era de remakes e adaptações, uma obra original é sempre bem-vinda. Mrs. Davis”, nova minissérie original do streaming Peacock (o mesmo que tentou emplacar aquela adaptação de Admirável Mundo Novo), chegou sem fazer muito barulho, com uma proposta muito mais do que original e um tanto inusitada: que tal misturar religião cristã e ficção científica?

Tornando-se uma das adições para TV mais cativantes dos últimos meses, a série criada por Tara Hernandez (The Big Bang Theory) e Damon Lindelof (The Leftovers, Lost, Watchmen) tem conquistado o público. Estrelada por Betty Gilpin (Glow), que trabalhou com Lindelof em A Caçada (The Hunt, 2020), a minissérie Mrs. Davis aborda diversos assuntos, mas tentarei fazer um resumo muito breve da premissa.

Em um mundo comandado pela inteligência artificial denominada Mrs. Davis, a freira Simone (interpretada por Betty Gilpin), tenta viver desconectada em um convento afastado da modernidade, desfrutando de seu dom único: a capacidade de visitar Jesus Cristo (interpretado por Andy McQueen) em um restaurante no plano celestial. Simone culpa Mrs. Davis pela morte de seu pai, um famoso mágico, e tem uma relação pra lá de complicada com sua mãe, interpretada magnificamente por Elizabeth Marvel (Manifesto). Assim, Simone evita qualquer contato com a tecnologia que supostamente é a fonte de todas as suas dores.

No entanto, após várias tentativas frustradas, Davis alcança Simone e negocia sua autodestruição em troca de que ela embarque em uma missão para encontrar um objeto mítico, ao qual apenas ela poderia ter acesso. A partir daí, Simone precisa se juntar a um antigo conhecido, Wiley (interpretado por John McDorman), em uma missão cheia de absurdos, em que religião e ciência se misturam de forma super criativa.

A minissérie não tem medo de explorar alguns terrenos “polêmicos” enquanto faz comentários pertinentes, sem se limitar aos temas iniciais, trazendo arcos muito interessantes sobre a relação entre pais e filhos, o uso descontrolado das inteligências artificiais no nosso dia a dia e qual papel a religião ocupa no mundo moderno. Os primeiros episódios jogam o espectador nesse mundo sem muitas explicações, deixando para eles a tarefa de entender como as engrenagens da narrativa funcionam. Essa é uma das marcas de Lindelof, algo que fez com maestria em Watchmen e The Leftovers.

Outra peça fundamental de Mrs. Davis é a escolha do elenco, pela qual eu tenho que dar meus parabéns, são escolhas fantásticas. O grande destaque aqui realmente fica para Betty Gilpin, que não economiza em lágrimas e expressões, mas todo o elenco também está muito bem. Dando a impressão de que é apenas mais uma obra descompromissada, a minissérie tem momentos emotivos marcantes, principalmente quando se aproxima de sua reta final, como uma cena esplêndida no último episódio entre as personagens de Andy McQueen e Betty Gilpin. E ainda conta com a agradável aparição surpresa de Shohreh Aghdashloo, a eterna Chrisjen Avasarala de The Expanse, em um papel um tanto inesperado.

Divertida, irreverente e inteligente, Mrs. Davis é uma pérola e, com certeza, merece atenção. Planejada como uma série limitada, a obra se fecha satisfatoriamente em seu oitavo e último episódio. Infelizmente, a série ainda não conseguiu distribuição no Brasil, mas deve chegar em breve devido à boa repercussão dos episódios finais.

Mrs Davis (2023) – Minissérie
Peacock, 8 Episódios de aprox. 40 – 50 Min.
Criada por Tara Hernandez e Damon Lindelof
Com Betty Gilpin, Jake McDorman, Andy McQueen, Chris Diamantopoulos, Katja Herbers, Elizabeth Marvel e outros.

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Olá, Amanhã! | Crítica da Primeira Temporada

Se você balançar uma árvore de séries de ficção científica, são grandes as chances de cair alguma produção com a estética cyberpunk ou uma ópera espacial estilo Battlestar Galactica ou The Expanse (que eu adoro, à propósito), mas não é todo dia que cai algo com uma ambientação retrofuturista. Claro que há exemplos, como o clássico Os Jetsons ou algo mais recente em Loki, que trouxe muito desse subgênero capaz de imaginar um possível futuro ambientado em um possível passado, principalmente nas sequências do protagonista nas instalações da agência TVA, que mesmo controlando toda a linha temporal do universo, é administrada através de muita papelada e modelos de computadores comuns do século passado.

Com muito do seu apelo envolvendo uma mescla do estilo art déco com a nostalgia pela estética das décadas de 1950 e 60, há temas que podem ser explorados em narrativas retrofuturistas que vão além da ficção científica das máquinas alimentadas por energia nuclear ou a tecnologia retrô, com máquinas de escrever, aquelas tvs de tubo gigantes, telefones de disco, e outras imagens que as futuras gerações vão precisar pesquisar para visualizar o que estou escrevendo.

O retrofuturismo também pode ser uma forte ferramenta de crítica política e social, principalmente considerando o contraste entre a cultura do século passado e o que vivemos – ou está por vir -, fazendo comentários sobre os costumes conservadores da época, como o “papel” da mulher nas relações sociais, o que pode render uma narrativa complexa sobre sexismo e abuso doméstico, se for bem trabalhado e não cair em um território insensível ou sensacionalista. O retrofuturismo costuma explorar os conceitos de burocracia, corrupção corporativa e a manipulação da mídia através da propaganda, temas bem trabalhados em obras como Brazil, de Terry Gilliam. 

Considerando o cenário atual de crise econômica, ascensão de ideologias fascistas, violência contra minorias e desastres ambientais, uma série ambientada em um mundo retrofuturista tem todas as oportunidades para ser combustível tanto de nostalgia, quanto de crítica social. Assim, a série Olá, Amanhã!, distribuída pelo serviço de streaming Apple+, tinha potencial para ser uma grande obra de ficção científica, com apoio de um bom orçamento e ótimo elenco.

No mundo retrofuturista de Olá, Amanhã!, acompanhamos o cotidiano de Jack Billings (Billy Crudup), um carismático vendedor que lidera uma equipe profissional na missão de realizar os sonhos de seus clientes através de uma nova vida, convencendo-os a comprar uma residência na lua. A proposta é grande, mas a lábia de Jack e seus parceiros é maior, ao ponto de negociarem o impossível. Entre promessas absurdas, dívidas de jogos, familiares ausentes e uma cidade cheia de habitantes excêntricos, é apenas questão de tempo para algum desastre acontecer.

Levando em conta os elementos mencionados anteriormente, a série tem de tudo para construir um bom enredo e personagens envolventes, mas adianto que esse não é o forte da série. Há um excelente trabalho de ambientação por conta dos departamentos de figurino e fotografia, além do design de produção, com a arquitetura da cidade e os automóveis clássicos. É uma pena a série fazer tão pouco com essa ambientação, que é ótima, mas não parece afetar tanto a construção de mundo e a narrativa geral, em alguns episódios parece ser apenas um véu de apelo estético bem feito, mas de pouca interação com as personagens.

Billy Crudup em Hello Tomorrow

Outra oportunidade desperdiçada é o elenco de qualidade, que foi limitado a personagens sem muita dimensão, resumidos em alguma característica ou chamariz que tem graça nos primeiros minutos, mas logo se esgota. Billy Crudup e Haneefah Wood são os que recebem mais atenção do roteiro e possuem personagens mais envolventes, com tramas, subtramas e dramas pessoais bem estabelecidos. Embora seja ótimo assistir os dois – e algumas das melhores cenas dessa primeira temporada envolvem alguns embates e trocas de diálogo entre a dupla -, a série se apoia demais na sua muleta de “cidade cheia de habitantes excêntricos”, o que faz com que quase todo o resto do elenco seja obrigado a representar personagens que não vão além da sua caricatura, deixando atores e atrizes mais que competentes, como Hank Azaria e Alison Pill, representando papéis tão limitados que seus arcos se repetem mais de uma vez ao longo de dez episódios de apenas meia hora, e a sensação é de que o ritmo lento da série não ajuda.

Geralmente, adoro séries com um ritmo mais vagaroso, como acontece com Outer Range ou Invasão, mas Olá, Amanhã! parece confusa com suas próprias intenções, e por vezes parece emular a construção de tensão e a atmosfera misteriosa de produções como Ruptura (Severance), que também é da Apple+, mas trabalha com sucesso seus personagens caricatos (no bom sentido: eles são uma caricatura na superfície, mas muito melhor trabalhados). Talvez minha maior decepção com as personagens foi a presença de Matthew Maher, um ator tão engraçado e carismático que tentou ao máximo trazer algum charme e identidade para seu papel, mas ainda sofreu com o enredo repetitivo e caracterização preguiçosa.

Olá, Amanhã! tinha tudo para ser a próxima grande série de ficção científica da Apple+, mas não consegue construir bem seu mistério e personagens da mesma forma que as concorrentes do seu próprio serviço de streaming. Bem ambientado, ótimo apelo visual e um elenco de primeira, mas nenhum desses elementos consegue atingir seu potencial em uma história tão repetitiva que cansa.

Dewshane Williams, Hank Azaria e Haneefah Wood em Hello Tomorrow

Olá, Amanhã! / Hello, Tomorrow (2023) – Primeira Temporada
Apple, 10 Episódios de aprox. 30 Min.
Criada por Amit Bhalla e Lucas Jansen
Com Billy Crudup, Haneefah Wood, ALison Pill, Nicholas Podany, Dewshane Williams, Hank Azaria, Matthew Maher e outros.

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M3GAN | Inteligência artificial na zona de conforto

O que não falta do cinema de horror são filmes em que algum brinquedo, no caso um boneco ou boneca, se torna o principal objeto de construção de suspense, seja ele um assassino que tomou conta do “corpo” de um boneco através de magia ou só a manifestação de algum mal maior. Podemos colocar nessa lista filmes como Annabelle, Gritos Mortais ou Boneco do Mal, mas provavelmente a figura mais popular desse subgênero acabou sendo Chucky, da franquia Brinquedo Assassino, que até o momento conta com sete filmes originais, um reboot e uma série de TV que já está indo para a terceira temporada. Esses são apenas os mais populares que me vieram à cabeça, portanto fica o questionamento sobre M3GAN, produção do estúdio Blumhouse, dirigido por Gerard Johnstone.

Cady (Violet McGraw) perde os pais em um acidente de carro e precisa se ajustar à nova vida morando com sua tia, Gemma (Allison Williams), uma engenheira trabalhando em uma grande empresa de tecnologia. Ambas têm dificuldades para lidar com o trauma, mas Gemma tenta se aproximar da sobrinha desenvolvendo um projeto ambicioso que vai agradar a pequena Cady, além de ajudar a melhorar a imagem da engenheira com o seu chefe de trabalho impaciente. Assim surge Megan, uma boneca com inteligência artificial que promete impressionar investidores, assim como fazer companhia para Cady. Contudo, o protótipo de Megan passa a ter um comportamento estranho e pessoas próximas de Gemma e Cady são assassinadas.

À primeira vista, M3GAN apresenta um elemento que poderia destacá-la entre os filmes listados anteriormente. Ter a boneca título como uma inteligência artificial quebra um pouco com a expectativa de terror envolvendo uma história de origem mais mística, sem o elemento “amaldiçoado” que filmes desse tipo carregam, e isso faz com que ela entre em um território mais familiar da ficção científica. Para ser justo, não vamos esquecer que o próprio Chucky recebeu esse tratamento “científico” em seu reboot de 2019, aquele com a voz do Mark Hamill e sem o envolvimento de Don Mancini, o criador da personagem. Então, por mais que não seja o padrão, também não estou dizendo que Gerard Johnstone fez a coisa mais original do mundo.

Megan Filme de Ficção Científica e Horror da Blumhouse

Mantendo o sistema Blumhouse de produção e lançamento, a proposta inicial de M3GAN é ser um longa de orçamento pequeno (considerando outros lançamentos do circuito), mas eficaz, com a principal função de atrair o público com uma história competente e personagens marcantes o suficiente para render sequencias. A estratégia tem tido sucesso nos últimos anos, e M3GAN mantém a linha do estúdio de produções pequenas, mas intrigantes, e já rendeu bilheteria o suficiente para que os custos fossem pagos. Porém, por seguir esse caminho devem-se acatar limitações além do orçamento, como renunciar à certas liberdades criativas por conta da decisão de manter uma faixa etária mais abrangente (o diretor mencionou a possibilidade de uma versão sem cortes, mas esse texto foca exclusivamente em seu lançamento original).

Levando em conta a proposta de M3GAN em funcionar mais como um evento e entrada de franquia, o filme tem sucesso completo em conquistar público com todo o marketing da boneca, principalmente depois de um clipe curto de Megan dançando viralizou rápido. Embora seja uma vitória para o estúdio, o filme poderia ter trabalhado melhor alguns pontos narrativos, com uma trama melhor trabalhada, sem tantas repetições e decisões óbvias ao ponto de deixar o enredo previsível. A direção de Johnstone também não chama atenção, é o típico filme encomendado por estúdio, mais controlado pelos produtores, como Jason Blum e o nosso arroz de festa favorito do terror, James Wan.

No fim, o que mantém o público entretido é a dinâmica entre as personagens e uma história que pode ter sido contada milhares de vezes, mas diverte com a abordagem cômica, quase satírica, que algumas cenas carregam – convenhamos, esse filme sabe exatamente o que é e como as pessoas reagirão à ele. Allison Williams finalmente encontrou sua própria franquia de terror para estrelar, e Violet McGraw acaba carregando a maior parte do drama, felizmente ela também é a atriz mais empenhada em transmitir uma emoção menos caricata, como acontece com o comediante Ronny Chieng, que está mais exagerado atuando como o antagonista coorporativo aqui do que em qualquer uma de suas apresentações de stand-up.

Megan Filme de Ficção Científica e Horror da Blumhouse

Não espere do longa algo além do que promete em suas campanhas virais, e quer saber? Isso é ótimo, acabo respeitando bem mais um filme que sabe o que quer e executa de forma clara do que uma bagunça pretensiosa que acaba ficando mais confusa do que complexa. M3GAN diverte e intriga, tem potencial para uma franquia provocante e capaz de experimentar bem mais agora que deu certo com o público (nem tanto com a crítica, como deu pra ver, mas não acredito que estejam se importando com isso), o único problema é que esse tipo de sucesso deixa cada vez mais clara a intenção de uma produtora como a Blumhouse em continuar na sua zona de conforto.

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Adaptando FUNDAÇÃO, o clássico de Isaac Asimov

Sempre foi um mistério para mim como obras clássicas da literatura de ficção científica, como Duna ou O Guia do Mochileiro das Galáxias, receberam mais de uma adaptação para filmes e séries, enquanto Fundação, que é um dos pilares do gênero, e inspiração para os dois que mencionei, nunca foi traduzido para essas mídias.

Fundação só saiu do papel quando o streaming da Apple, o Apple TV+, assumiu o controle e investiu pesado na produção, colocando Josh Friedman e David S. Goyer como responsáveis. Mas valeu a pena? Nessa crítica da primeira temporada vamos debater os conceitos, teorias e o que faltou para a série alcançar seu potencial máximo.

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MEN: Faces do Medo | Não é fácil escapar de relacionamentos abusivos

Alex Garland é um diretor que tenho seguido o trabalho há muito tempo, desde que ele escrevia roteiros para os filmes de Danny Boyle, com os ótimos Extermínio (2002) e Sunshine – Alerta Solar (2007). Depois, também foi responsável por uma das adaptações mais fiéis dos quadrinhos, quando fez o texto para Dredd: O Juíz do Apocalipse (2012), e fez sua estréia como diretor em 2014, com Ex_Machina, um filme de pequena escala e orçamento modesto, mas com grandes atuações e roteiro de Garland, um escritor que sabe explorar os elementos de ficção científica dentro da narrativa como poucos – sem contar que o longa tem a cena do Oscar Isaac dançando ao som de Oliver Cheatham, o que automaticamente faz com que qualquer filme seja um pouco melhor.

Por ter trabalhado quase sempre com ficção científica, seguindo Ex_Machina com Aniquilação (2018) e a série DEVS (2020), alguns já esperavam que seu próximo filme fosse outra obra do gênero; o que até faz parte, mas de fato está mais voltado para o suspense. Men: Faces do Medo (típico subtítulo desnecessário, vai entender) está mais voltado para o thriller psicológico, um estudo de personagem com temas sobre masculinidade tóxica e violência, mas principalmente é uma narrativa sobre relacionamentos abusivos.

Jessie Buckley em Men Faces do Medo
Jessie Buckley

Harper (Jessie Buckley) sai do centro de Londres para se isolar em um chalé e lidar com o trauma de ter perdido seu marido. Procurando superar o luto, enfrenta emoções conflitantes por conta das memórias de uma relação violenta e tóxica, ao mesmo tempo que sente certa responsabilidade e culpa pelos eventos. Ao caminhar no campo e explorar o ambiente, Harper percebe que está sendo observada, logo surgem figuras misteriosas e o mesmo rosto passa a persegui-la. Em uma trama tensa, Men é o típico thriller psicológico da produtora A24, o que dependendo da pessoa pode ser algo bom, entretanto nem sempre é o caso.

Queridinha do público interessado em um cinema mais “cult”, a A24 é uma boa produtora, com alguns dos meus filmes favoritos, como Sob a Pele (2014) e Bom Comportamento (2017), e onde Garland trabalhou antes, mas ela também tem seus tropeços; não podemos esquecer Tusk: A Transformação. E há uma certa síndrome A24 que nem todos querem admitir, mas não dá pra negar que mais de uma vez por ano temos algum filme com premissa intrigante, bom elenco e um diretor competente, geralmente em um thriller psicológico (não vamos debater pós-horror aqui, tá proibido), mas que escondem um enredo repetitivo ou sem muito desenvolvimento em diversas camadas de metáforas e alegorias. 

Antes de tudo, deve-se levar em consideração que, obviamente, essa é uma opinião pessoal, como toda crítica é; e cada obra de arte atinge as pessoas de maneiras diferentes, essa é a graça, e por isso debatê-las é tão enriquecedor e causa emoções fortes. O segundo comentário que preciso evidenciar aqui é o fato de que narrativas com temáticas pertinentes como as de Men são sempre bem-vindas, entretanto elas são somente uma parte de um todo, e não fazem do filme algo melhor por conta exclusiva disso – apenas números de dança fazem isso.

Men Faces do Medo

De início, Men se utiliza de uma ambiguidade na trama para criar uma experiência sensorial bem construída, com a tensão e paranoia dos eventos que perturbam a protagonista, e nos faz questionar a realidade de Harper e daquele mundo. Contudo, logo vem meu maior problema com o filme, a forma como ele tenta objetivar vários aspectos da história, explicando pontos que seriam melhor deixados em dúvida, tanto que logo quando a proposta do longa fica clara, e isso acontece mais cedo do que você imagina, ele perde grande parte do seu apelo, que antes se apresentava com um tom e atmosfera sustentada por essa incerteza na trama.

Esse é o típico filme com um debate promissor e vários temas que podem render um estudo de personagem complexo e significativo, explorando violência doméstica, perpetuação da masculinidade tóxica, abuso psicológico e outros assuntos que em um roteiro melhor trabalhado seriam examinados com cuidado e seriedade. Infelizmente, Garland parece estar interessado em falar de tudo isso, mas não consegue se aprofundar em nenhum desses temas com propriedade por conta de sua responsabilidade maior com viradas na trama, principalmente todo o terceiro ato, que se debruça em horror corporal acreditando que sua crítica é suficiente para sustentar um enredo pouco desenvolvido, tanto que o filme tem ao seu dispor dois atores excelentes, Jessie Buckley e Rory Kinnear, mas nenhum arco dramático ou “evolução” parece existir nas personagens, tendo o talento dos atores como a única coisa que sustenta a maior parte da obra.

Jessie Buckley e Rory Kinnear em Men Faces do Medo
Jessie Buckley e Rory Kinnear

Men tem seu auge na ambientação, trabalho de som, direção de arte, atmosfera tensa com segmentos oníricos e atuações de Jessie Buckley e Rory Kinnear. Esses elementos fazem com que o longa tenha um começo forte, mas logo muito disso se perde por conta de um enredo sem foco, o que é uma pena vindo de alguém como Alex Garland. Ainda assim, continuo ansioso por qualquer um de seus próximos projetos.

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Cinema

After Blue (Paradis Sale), Dogma 95 e o Manifesto da Incoerência

“Ser incoerente significa ter fé no cinema, ter uma abordagem mais romântica, sem moldes, livre, perturbadora e onírica, uma narração épica. Incoerência que evidencia uma falta de cinismo, mas não de ironia, abraçando o gênero sem penetrá-lo”.

Sempre estou à procura de todo tipo de ficção científica possível, principalmente quando tem uma proposta tão criativa e experimental quanto a de After Blue, uma jornada de faroeste psicodélico com um enredo sem muito brilho, mas um ótimo chamariz visual e bastante charme. A premissa é bizarra, mas fácil de entender. Distante da Terra, provavelmente depois de sua destruição, temos um planeta alienígena distópico que serve de colônia apenas para os humanos “dotados de ovários” (quem não possuir um, morre logo após o parto). É nesse cenário que conhecemos a criminosa Katarzyna Buzowska (Agata Buzek), mais conhecida como Kate Bush (sem relação direta com a cantora), enterrada em um deserto rosa pela polícia espacial, até que um dia é libertada pela jovem e confusa Roxy (Paula Luna). Como punição, Roxy e sua mãe, Zora (Elina Löwensohn), recebem a ordem para caçar e exterminar Bush, para evitar que a criminosa cause ainda mais destruição no planeta After Blue.

O filme foi distribuído na mesma semana que a música Running Up That Hill estourou por conta da quarta temporada de Stranger Things, e talvez por conta disso ele tenha recebido certa atenção de algumas pessoas; sem contar que o diretor do longa, o francês Bertrand Mandico, não é um estreante. Seu primeiro longa, Os Garotos Selvagens, esteve no topo da lista de favoritos da revista Cahiers du Cinema em 2018. After Blue é mais um exemplo do seu cinema experimental, principalmente um apelo estético que se destaca pela forma como reproduz o visual de obras independentes (até trash) de ficção científica entre as décadas de 1970 e 80, com cenários claramente artificiais, atuações mais caricatas e efeitos de câmera com filtro carregado.

Paula Luna no filme After Blue

Essas são algumas das características propostas pelo Manifesto da Incoerência (Incoherence Manifesto), idealizado por Mandico, ao lado da diretora e produtora Katrín Ólafsdóttir. Quando você dá uma olhada nas regras, fica fácil lembrar do conhecido Dogma 95, estabelecido por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, mas a ideia de Mandico-Ólafsdóttir traz alguns conceitos bem interessantes que os diferencia da dupla dinamarquesa, mesmo que algumas categorias realmente sejam um comentário em cima do Dogma 95. Há mudanças no roteiro, efeitos, geografia, direção de arte e até atuação. 

Para o Manifesto da Incoerência deve-se ignorar qualquer convenção cinematográfica de roteiro, os efeitos precisam ser práticos, as gravações devem ser feitas em película que “passou da validade” (elas ainda funcionam normalmente, mas trazem um resultado diferente) e a maior parte do trabalho de som é feito apenas na pós-produção. Se por um lado o Dogma 95 propõe que as obras não devem se encaixar em qualquer gênero específico, o Manifesto da Incoerência dita que todo filme deve ser um híbrido entre, pelo menos, dois gêneros (After Blue mescla ficção científica, fantasia e faroeste). Quanto à autoria, Dogma afirma que o diretor não deve ser creditado, enquanto Incoerência determina que o diretor é o autor máximo, comandando câmera e direção de arte.

Paula Luna e Elina Löwensohn no filme After Blue

After Blue procura se manter fiel à proposta, pelo menos em sua maior parte, e acredito que o filme fique mais envolvente se o espectador for assisti-lo tendo antes em mente todo o conceito do manifesto de Mandico-Ólafsdóttir, o que cria uma conexão maior com a obra e faz de tudo uma experiência mais completa. Contudo, isso também atua contra o longa, que não parece oferecer algo além de uma ideia muito bem elaborada, mas de execução frágil. Enquanto o mundo de After Blue é rico em elementos visuais peculiares e nos transporte com facilidade à um planeta cheio de fauna e flora surreal, figurinos, cenário e explosão de cores e saturação que fortalecem a ambientação onírica, ao mesmo tempo eles não compensam uma narrativa repetitiva, com personagens sem muita carisma e um enredo previsível.

É claro que muito disso pode tentar ser justificado no argumento de que “o diretor propõe acabar com qualquer convenção de roteiro”, como eu mesmo disse nesse texto, mas se o resultado para uma tentativa de quebrar com as regras for uma história tediosa, que consegue explorar todos os seus temas na primeira hora e depois segue se arrastando desnecessariamente para mais uma hora, então talvez seja melhor se “manter ao roteiro”.

Não faltam temas fascinantes para explorar no mundo misterioso e erótico de Mandico, mas com tudo que o filme poderia ter dito, chega um ponto em que o enredo repetitivo afeta o ritmo e faz com que até o visual torne-se repetitivo, e assistimos a protagonista vagar em mais um deserto, floresta ou caverna, dizendo nada de novo. After Blue é original e se apresenta muito bem, sendo facilmente um dos destaques do ano, mas fica difícil não pensar em como ele teve mais sucesso na promessa do que na execução.

Agata Buzek como Kate Bush no filme After Blue

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Literatura

O Homem do Castelo Alto | As diversas realidades de Philip K Dick

Para qualquer leitor familiarizado com os textos de Philip K. Dick (ou PKD), não é surpresa encontrar uma narrativa que apresenta personagens transtornados e conceitos complexos ao explorar identidade e natureza humana, sem contar o tópico favorito do autor: questionar tanto a realidade do universo que cria em seus livros, quanto a do próprio leitor.

Responsável por diversas obras intrigantes que conseguiram estabelecer seu nome como um dos maiores expoentes do movimento new wave da ficção científica, caracterizado por uma abordagem mais experimental do gênero, Philip K. Dick também teve grande parte de suas obras adaptadas para o cinema, como aconteceu com Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, traduzido para a grande tela por Ridley Scott no clássico Blade Runner (1982). Entre a lista de leituras essenciais do autor, como Ubik ou Fluam, minhas lágrimas, disse o policial, costumo dizer que O Homem do Castelo Alto é a sua obra mais completa. As distopias sempre foram reconhecidas na ficção científica como uma ferramenta de crítica social e política, mas nem todas sabem aproveitar a premissa ou desenvolver o enredo tão bem quanto O Homem do Castelo Alto.

A obra examina uma realidade alternativa da história, na qual os países do eixo conseguem derrotar os “aliados” na Segunda Guerra Mundial, fazendo com que o Japão e uma Alemanha nazista tornem-se as maiores potências mundiais, enquanto outras nações sejam destruídas, outras dividias, como acontece com os Estados Unidos. Assim, seguimos o drama de personagens completamente diferentes, tentando sobreviver em um mundo instável, como o inseguro Robert Childan, um antiquário de peças americanas para colecionadores; o operário judeu, Frank Frink, que tenta esconder sua origem; Nobosuke Tagomi, um burocrata lidando com delicadas relações políticas; e Juliana Frink, ex-esposa de Frank, e instrutora de judô, que fica obcecada por um livro proibido que fala sobre um universo alternativo no qual os nazistas perderam e a guerra foi vencida pelos “aliados”.

Um mundo psicótico, este em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disso?

Por mais que hoje a proposta pareça óbvia, e sequer foi a primeira vez que narrativas envolvendo realidades distópicas pós-guerra foram feitas, o diferencial de O Homem no Castelo Alto está na abordagem de Philip K. Dick, provavelmente o autor que passou mais tempo explorando a concepção de realidade do que qualquer outro. Por esse motivo, a sua construção de mundo envolve um tremendo exercício de imaginação, mas também, uma dedicação em manter um pé na nossa realidade (ou o que se passa por ela) para explorar um efeito borboleta de eventos que coincidem na vitória do eixo. Mas antes de mencioná-los, é necessário descermos ainda mais na toca do coelho e explorar a metalinguagem da obra.

philip k dick
Philip K Dick

Considere isso: você, leitor, está com O Homem do Castelo Alto, escrito por Philip K. Dick em mãos. No universo apresentado nos parágrafos anteriores, os personagens entram em contato com um livro, escrito por um homem chamado Hawthorne Abendsen, intitulado “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, que explora uma realidade na qual o eixo na verdade perdeu a guerra. Essa é a primeira camada da metanarrativa de PKD, que não acaba por aí, já que a possível realidade do texto fictício (difícil usar palavras como essa nessa resenha com firmeza) de Abendsen revela um mundo similar ao nosso, mas não o mesmo, já que nesse uma grande guerra envolve Estados Unidos e Inglaterra. Ou seja, temos uma realidade em cima de outra, em cima de outra. Tendo isso em mente, podemos seguir em frente.

No livro dentro do livro, um dos principais acontecimentos responsáveis pela vitória dos nazistas está na morte do presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, circunstância que manteria o país na crise da Grande Depressão, o enfraquecendo no futuro. É esse tipo de atenção aos detalhes e criatividade que faz o texto de PKD um experimento tão consistente, sem contar que, mesmo inserindo tanta informação, temos um enredo limpo e objetivo, e isso considerando o fato do universo da obra também introduzir elementos como exploração espacial, o que fica apenas em segundo plano e serve mais como parte da construção de mundo, mas surpreendentemente combina perfeitamente com a proposta de expansão dos países vitoriosos do eixo, que decidiram também dominar o espaço.

Enquanto os alemães estavam ocupados em lançar no espaço enormes sistemas robotizados, os japoneses queimavam as florestas do interior do Brasil, erguendo edifícios de apartamentos de oito andares, de barro, para ex-caçadores de cabeças. Até os japoneses lançarem seu primeiro foguete, os alemães tinham posto o sistema solar no bolso. P.19

Mas há outra obra literária de enorme importância dentro da narrativa, assim como para o próprio autor. Em O Homem do Castelo Alto, a maior parte da população tem o costume de consultar o I Ching, o Livro das Mutações, uma obra que ajudou a popularizar parte da filosofia chinesa para o resto do mundo, atuando como um oráculo, ou apenas apresentando textos de sabedoria. Ao contrário de “O Gafanhoto Torna-se Pesado”, o I Ching não existe apenas na realidade dos personagens de O Homem do Castelo Alto, mas na nossa, e Philip K. Dick o utilizou constantemente no desenvolvimento de seu livro. Esses detalhes enriquecem a construção de mundo, introduzindo detalhes sobre suas esferas sociais e políticas, mas ao mesmo tempo, essa não é uma leitura complexa. O autor consegue uma narrativa limpa e clara, ainda que insira bastante informação em apenas uma página. O livro não promete reviravoltas explosivas na trama, mas não deixa de trazer surpresas, e a maior parte do conflito é desenvolvido em cima da tensão entre países e núcleos dramáticos específicos.

São vários personagens, alguns se encontram, outros não, e pode ser necessário uma atenção extra para lembrar todos os nomes, já que alguns personagens possuem mais de um, mas é uma preocupação que pode ser deixada de lado rapidamente porque, assim que as subtramas começam a convergir, tudo passa a ficar mais claro. Aqui temos, provavelmente, o livro em que o autor melhor aproveita suas personagens. É comum que autores de ficção científica prezem por uma narrativa com um foco maior na trama, principalmente para destacar os elementos do gênero em suas histórias, e Philip K. Dick entra nessa categoria diversas vezes. Talvez por esse motivo O Homem do Castelo Alto tenha se tornado, para muitos, a obra máxima do autor, a que melhor utilizou o enredo em função das personagens, construindo ótimos diálogos e fortalecendo suas interações com o universo alternativo.

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O Homem do Castelo Alto, série da Amazon Prime Video

Além disso, mesmo sendo um grande fã do autor, sempre critiquei a forma que ele deixa as mulheres em segundo plano no seu texto, atuando como coadjuvantes, quando sequer possuem essa função (esse foi outro problema da ficção científica por anos), mas aqui temos Juliana Frink, uma das melhores personagens de sua biblioteca, uma mulher forte e inteligente que passa a ser uma peça essencial para os momentos finais do livro – e que final espetacular, mas não vou mencioná-lo aqui para evitar estragar alguma coisa. Quanto aos temas da obra, ela não se limita aos debates sobre realidade, mas ao que conhecemos como a verdade.

Pegando emprestado conceitos da filosofia chinesa, o livro está constantemente nos fazendo pensar o conceito de historicidade, ou seja, no valor histórico de algo. No livro, temos as peças de Childan, que são importantes apenas por conta da história que contam, principalmente os artefatos vindos dos EUA, já que o país foi tomado pelos nazistas e sua cultura só possui qualquer valor por conta disso (o que rende uma das revelações mais engraçadas do livro, envolvendo um relógio com uma ilustração de Mickey Mouse). O contraste inteligente feito pelo autor está no fato de estarmos debatendo o que é real ou não enquanto Childan percebe que parte de suas peças são falsificadas.

A verdade é tão terrível quanto a morte, apenas mais difícil de encontrar.

Philip K Dick nunca deixa de brincar com nossas certezas e arrancar o leitor da zona de conforto à força, o que faz em certo ponto quando chega a jogar uma de suas personagens em outra realidade (talvez a nossa, mais uma camada de metanarrativa), apenas para que tenha um vislumbre das possibilidades. Inclusive, o autor arranja espaço para debater a própria ficção científica e as experimentações que oferece. Tudo acontece em apenas uma página, através de um diálogo, mas dá para notar como PKD defende o gênero (aprende, Margaret Atwood).

O Homem do Castelo Alto é um livro relativamente pequeno (considerando a quantidade de informação que o autor introduz em cada página), mas com um universo e personagens fortes o suficiente para torná-lo uma das obras mais estudadas de Philip K Dick. Por conta do formato e estrutura narrativa, esse acaba sendo o trabalho mais distintos da biblioteca do autor, um que sempre quis nos lembrar como é frágil nossa realidade, isso porque ele foi o único capaz de estar em todas ao mesmo tempo.

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