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Medida Provisória | A distopia da reparação histórica

Desde que foi anunciado, Medida Provisória foi um dos filmes que mais aguardei o lançamento oficial, não só por ser uma obra nacional, mas por marcar a estreia de Lázaro Ramos, um ator que respeito e admiro, na direção de um longa de ficção. A obra é inspirada na peça Namíbia, Não!, de Aldri Anunciação, que Ramos chegou a dirigir, então podemos considerar que há uma forte conexão entre ele e o material original e sua premissa intrigante.

Em um futuro (próximo) não definido, o governo brasileiro emite uma medida provisória obrigando que todas as pessoas de  “melanina acentuada” (denominação para os negros na realidade do filme) sejam enviados para a África como uma desculpa de “reparação história” para todo afro-descendente. Isso faz com que os cidadãos sejam mandados para fora do país à força, e com o caos tomando conta das ruas, o advogado Antônio Rodrigues (Alfred Enoch) fica desesperado para encontrar sua esposa, a doutora Capitu (Taís Araújo), que conseguiu se refugiar em um afro-bunker (aqui comparados aos quilombolas).

O maior destaque do filme são as atuações e personagens. O ator Alfred Enoch provavelmente é mais conhecido por seus papéis na franquia Harry Potter ou na série How to Get Away With Murder – e como aqui é um site de ficção científica, também vale lembrar que ele interpretou Raych Foss na primeira temporada de Fundação -, mas nem todos sabem que ele também tem nacionalidade brasileira e fala português muito bem. Nessa obras ele tem a atuação mais “formal” de todo o elenco, não só na fala mas na interpretação corporal, mas considerando como seu personagem precisa dessa personalidade mais reservada, Enoch funciona no papel. 

Seu Jorge e Alfred Enoch no filme Medida Provisoria
Seu Jorge e Alfred Enoch no filme Medida Provisória

Um aspecto curioso do elenco é que algumas atuações, como as interações entre Seu Jorge e Adriana Esteves, fazem com que o tom do filme oscile entre o drama político e uma sátira de teor cômico. Isso pode ser um obstáculo porque contribui para uma inconsistência rítmica que compromete até a atmosfera de tensão que o filme procura estabelecer em diversos momentos, mas acaba resultando em uma abordagem confusa. Contudo, mesmo servindo como um alívio cômico, a personagem de André (Seu Jorge) também carrega uma tragédia que combina bem com a proposta do filme. Nesse caso, até podemos relevar muitos desses momentos por conta das atuações, e eu ainda não mencionei Taís Araújo, que nem precisa de elogios por ser o tipo de profissional capaz de ser o destaque em qualquer cena, e aqui ela mostra mais uma vez um talento para personagens dramáticos com enorme presença.

Mas quando deixamos o elenco de lado, Medida Provisória revela uma estrutura que parece confusa com a própria premissa. A “distopia” sempre foi a abordagem narrativa preferida de quem tem a intenção de construir uma crítica social e política através da ficção, e essa obra chega em um ponto da história em que o mundo vê uma onda crescente de fascismo e neonazismo, sem contar que a pauta sobre racismo é sempre relevante, mas embora o filme tenha uma intenção nobre e genuína sobre o assunto, apresentando o enredo através de uma visão de resistência mais pacifista, ele também sofre com um debate que parece quase superficial considerando sua execução.

Através de um texto redundante e uma direção insegura de Lázaro Ramos, ficamos com um filme em que o apelo estético carrega pouco peso, com uma direção de arte formulaica e uma narrativa visual que funcionaria bem para uma minissérie, mas perde fácil o fôlego em um formato cinematográfico, onde ela tem uma cronometragem limitada. Fica difícil falar de todos os detalhes da montagem de uma forma que não entregue detalhes da trama, mas por vezes o filme tenta trazer uma crítica que, em papel funciona, mas quando traduzida para a linguagem cinematográfica, perde muito do impacto por conta da fotografia que já mencionei, que tem pouca interação entre seus símbolos e parece não ter uma unidade na identidade visual, isso sem contar uma sequência onde a montagem tenta construir um paralelo dramático em um clímax de tensão racial, mas gera um resultado quase contraditório à mensagem do filme.

Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge em Medida Provisória
Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge em Medida Provisória

Medida Provisória é repleto de boas intenções, mas sem a força necessária para sustentar um debate que vá além das salas de cinema, e assim ficamos com uma mensagem quase óbvia e um texto seguro demais, carregado de frases de efeito que com certeza são relevantes, mas sem a eficácia que imaginam.

Eu queria muito ter gostado mais da obra, sou muito fã do trabalho de Lázaro Ramos e apoio o sucesso do cinema nacional contra uma indústria quase completamente dominada pelo mercado norte-americano, mas não posso ser desonesto com minha opinião. Ainda assim, é essencial reforçar como nosso cinema precisa de apoio, então mesmo que eu não tenha gostado, dê uma chance para o filme, precisamos de mais Brasil nas salas de cinema.

Aproveite e leia meu texto sobre Bacurau AQUI

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O Homem Ideal (Ich bin dein Mensch, 2021) | A complexa relação entre mulher e máquina

Se fosse realizado por algum grande estúdio de Hollywood, talvez O Homem Ideal tivesse uma sensibilidade completamente diferente da que temos na adaptação de Maria Schrader, baseada no conto de Emma Braslavsky. Há uma mistura estranha de drama, ficção científica e comédia que funciona bem, muito disso por conta do excelente roteiro de Jan Schomburg e a própria Schrader, e as atuações de Maren Eggert e Dan Stevens. O espectador também pode encontrar similaridades na premissa com filmes como Ex Machina, de Alex Garland, ou o episódio Be Right Back, da segunda temporada de Black Mirror (quando ainda era criativa e a Netflix não forçava temporadas com mais episódios).

A proposta de O Homem Ideal é tão simples quanto a execução, e é por conta disso que o resultado soa tão genuíno. Alma (Maren Eggert), é uma arqueóloga que precisa de recursos para finalizar sua pesquisa, então aceita participar de um experimento no qual passa a conviver com o robô humanoide, Tom (Dan Stevens), programado com a principal função de fazer Alma feliz. Quase uma comédia romântica na superfície, o filme surpreende com a maneira que explora cada aspecto da vida de Alma, e os diversos debates levantados por conta da sua relação com Tom.

Felizmente, esse é um dos raros casos onde souberam aproveitar o talento de Dan Stevens, um ator que fez papéis memoráveis, como na série Legion, ou o filme O Hóspede, mas muitas vezes é escalado para personagens que ficariam ótimos se ele tivesse mais liberdade para explorá-los, e é aqui que Maria Schrader mostra sua força como diretora, construindo um enredo inteligente em volta de atuações mais complexas do que a premissa parece indicar.

Maren Eggert e Dan Stevens no filme O Homem Ideal

Tom começa como um companheiro perfeito para Alma, citando poetas como Rilke, respondendo toda pergunta com um elogio e dançando rumba com a precisão que apenas uma máquina como ele poderia ter, embora o charme de Dan Stevens dê uma dimensão maior para a personagem. Isso faz com que cenas como a tentativa do robô em comprar um café seja uma das mais engraçadas do filme, mas também há momentos mais dramáticos, como quanto precisa lidar com o comportamento avesso de Alma, que não está confortável lidando com uma mudança tão drástica do seu cotidiano, bem mais agitado, de apartamento bagunçado e uma rotina de trabalho pouco saudável, sem contar que, por baixo de toda a frustração de Alma, há um trauma que o roteiro lida com bastante cuidado, e fortalece o drama de um jeito orgânico, sem atrapalhar o humor e o romance que foram estabelecidos anteriormente.

Como mencionei, no começo as interações entre Tom e Alma parece algo saído de uma comédia romântica previsível (algumas são ótimas, mas convenhamos que outras são muito fracas), e realmente não há muitas surpresas na forma como a trama se desenrola, mas cada novo diálogo e cena revela uma enorme evolução na dinâmica entre eles, e por conta da habilidade do robô em evoluir através de experiências frustradas, assim como uma inteligência artificial, o filme passa a apresentar debates mais existenciais, questionando as limitações fundamentais de Tom, as implicações morais e éticas de sua relação com Alma e a dificuldade cada vez maior de definir a humanidade.

O Homem Ideal escapa da possibilidade de sofrer por conta de sua mistura de ficção científica, romance e comédia, e encontra uma maneira de consolidar personagens, enredo e temas com sucesso. Um dos destaques do ano, e muito disso por conta do excelente trabalho de direção de Maria Schrader e sua sensibilidade para explorar tantos elementos de uma forma simples, mas emocionante.

Dan Stevens no filme O Homem Ideal

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DUNA (2021) – Finalmente, o épico de Villeneuve está entre nós!

Finalmente, DUNA está entre nós. A adaptação de Denis Villeneuve, do clássico livro de Frank Herbert, já liberou a sua primeira parte. O filme é um épico, mas será que foi tão perfeito quanto esperávamos?

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RAISED BY WOLVES: A série de Ridley Scott na HBO MAX – Crítica S01

Finalmente chegou ao Brasil no catálogo da HBO MAX a série Raised by Wolves, produzida por Ridley Scott, o mesmo de Alien e Blade Runner.

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Bliss: Em Busca da Felicidade (2021) | Quantas realidades somos capazes de suportar?

Mike Cahill é um daqueles diretores com poucos trabalhos no currículo, isso porque ele costuma ter uma visão bem definida do que pretende colocar em seus filmes, a maioria deles sendo narrativas com elementos de ficção científica, mas indo além disso, com uma atenção maior para o componente humano. Seu primeiro longa, A Outra Terra (Another Earth, 2011), uma produção independente com conceitos criativos envolvendo o surgimento de um novo planeta idêntico ao nosso, e um enredo com temas bem estabelecidos sobre redenção. Cahill continuou sua combinação de ficção científica carregada de drama e debates íntimos sobre a condição humana em O Universo no Olhar (I, Origin 2014), onde trouxe um elenco maior e uma proposta mais ambiciosa, sem contar que repetiu a sua parceria com a excelente Brit Marling, atriz que também ficou conhecida por seu trabalho escrevendo o roteiro da série The OA (cancelada cedo demais após apenas duas temporadas).

Então, para aumentar ainda mais a escala, o diretor trouxe Bliss: Em Busca da Felicidade (apenas Bliss no original), com um elenco principal de rostos conhecidos e uma narrativa sobre… bem, sobre tópicos familiares para os fãs de ficção científica, mas que podem ser considerados spoilers pesados. Então, para essa crítica, deixarei os spoilers separados em uma categoria própria, assim você pode ler antes e depois de assistir ao filme. Vamos ao que interessa:

Greg Wittle e seus pensamentos

Salma Hayek e Owen Wilson no filme Bliss Em Busca da Felicidade Disponivel na Amazon Prime Video

Preso em um trabalho monótono e sem saída, Greg Wittle (Owen Wilson) passa a maior parte de seu tempo desenhando e imaginando novos mundos onde pode descansar sua mente e não precisa lidar com seu recente divórcio ou a dificuldade para se conectar com os filhos. Mas depois de ser demitido, ou quase, Greg conhece Isabel Clemens (Salma Hayek), uma mulher misteriosa e convencida de que o mundo à sua volta não passa de uma simulação. Mesmo relutante, ele decide ouvir a mulher e ver até onde ela acredita em sua teoria, mas não demora para que Greg comece a perceber padrões e coincidências na conspiração que Isabel criou sobre sua realidade.

Antes mesmo de assistir ao filme, a primeira coisa que me pareceu estranha foi a decisão de ter Owen Wilson e Salma Hayek como os personagens principais. São dois atores competentes, cada um já teve sua parcela de ótimos filmes (Owen com Meia Noite em Paris e Salma com Frida) e alguns desastres (Owen em Gênios do Crime e Salma em Gente Grande), mas nunca os imaginei protagonizando um filme desses. E talvez eu nunca tenha pensado nisso por um motivo, porque a dupla não consegue oferecer tudo que seus personagens precisam em algumas partes.

Salma até consegue um bom trabalho alternando entre uma pessoa extravagante e intimidadora, indo para uma personagem mais contida; mas Wilson mantém seu tom ao longo do filme, e não é como se ele estivesse apenas mantendo a consistência de um personagem com ansiedade. Ele é constantemente bombardeado por novas revelações e, mesmo quando chega em um ponto de completa realização pessoal, nunca parece deixar isso claro. Mas há a chance de tudo isso estar ligado à temática da obra, o que eu não descarto, mas ainda assim não vejo como uma justificativa forte o suficiente.  

O que Cahill faz é entregar uma ambiguidade entre realidade e fantasia, revelando sequências absurdas, mas ao mesmo tempo contrabalanceando com pequenos momentos capazes de estabelecer de forma “objetiva” o que estamos vendo, e mesmo assim, não há certeza (talvez consistência seja uma palavra melhor) em qualquer uma das duas perspectivas. Em certo ponto, assistimos Greg se livrar de um grupo de criminosos de uma forma que literalmente desafia as leis da física, mas o próprio enredo do longa estabelece que isso pôde ser realizado por conta de um produto que, aparentemente, Isabel é uma das poucas pessoas capazes de conseguir. Ao mesmo tempo que o filme define uma regra para seus eventos mais absurdos, ele também apresenta uma terceira camada, quase como uma incerteza causada pela própria regra que estabeleceu. 

Esse é o tipo de abordagem que eu espero de um diretor como Shane Carruth (do independentíssimo Primer; e o menos independente, mas também menos conhecido Upstream Color), que também adora se aproveitar de narrativas especulativas ou fantasiosas para criar um drama maior através de metáforas e símbolos (falarei deles mais pra frente). Mas enquanto Carruth abraça completamente o abstrato, o que talvez fizesse mais sentido para a ambiguidade que Bliss tenta propor, Cahill chega a flertar com sequências oníricas e jogos de câmera que tentam representar a confusão dos personagens, mas a tentativa de conciliar o drama do protagonista com a dúvida causada pela trama deixa a verdadeira proposta do filme mais óbvia do que o necessário, e em certo ponto surge a sensação de estarmos assistindo um truque de mágica longo demais porque, em algum momento no meio do caminho, acabamos descobrindo como o truque é feito. 

Ao Regresso Infinito: Os Temas e as Referências de Bliss

(Spoilers, pule para a Conclusão se quiser evitá-los)

Salma Hayek e Owen Wilson em uma pista de patinacao no filme Bliss em busca da felicidade Disponivel na Amazon Prime Video

Por mais que na superfície a proposta caminhe em um território fantasioso, não demora para ficar claro que estamos lidando com um roteiro que utiliza a ficção científica de forma simbólica, um pano de fundo para debater tópicos mais delicados, nesse caso, o vício. Na primeira cena podemos ver Greg tomando pílulas controladas, e pelo que seu diálogo indica, elas acabaram. Além disso, o protagonista sofre ao tentar manter-se limpo das drogas, mas acaba tendo uma recaída ao encontrar Isabel, que o induz a tomar cristais capazes de fazê-lo “acordar da falsa realidade em que vive”.

Por mais que o filme aparente criar uma certa estabilidade na forma como suas sequências mais surreais são apresentadas, o diretor nunca nos deixa sozinhos tempo o suficiente com nossos pensamentos. A intenção é clara e tudo com o que ficamos é a incerteza sobre as regras daquele mundo e a percepção de realidade do protagonista, mas quando essa dúvida é rapidamente deixada de lado (logo na cena em que os dois são liberados da prisão, podemos ver a entrada para um centro de reabilitação), o filme continua com sua estrutura de procurar nos deixar (desnecessariamente) em uma área mais nebulosa, alternando entre a jornada de Greg e o desespero de sua filha em ajudá-lo.

Outro tema bastante explorado por Bliss é o argumento da regressão infinita, envolvendo uma batalha entre nosso conhecimento e crenças, e assim Greg está constantemente questionando sua realidade, mas ao mesmo tempo, tentando justificá-la. Em uma cena-chave temos uma personagem interpretada pelo divulgador científico Bill Nye, que menciona a expressão “Turtles all the way down”, que é basicamente uma das principais representações desse conceito, envolvendo uma tartaruga apoiada no casco de outra tartaruga, e depois outra, e por aí vai. Essa ideia do constante retorno, da tentativa de justificar algo com um argumento que apenas dificulta a compreensão do que foi estabelecido originalmente é uma que já foi interpretada em outras mídias, como em It: A Coisa, de Stephen King, ou os livros da série Discworld, de Terry Pratchett. 

E já que estou mencionando participações especiais (Bill Nye interpreta uma personagem, mas é basicamente ele), uma que me pegou de surpresa foi a do filósofo Slavoj Zizek, que aqui está em um de seus monólogos sobre ideologia social, mas como um holograma na “verdadeira realidade” apresentada por Isabel. Na cena, ele menciona como talvez o conceito de inferno não seja tão ruim quanto dizem, e continua com seus maneirismos, o que foi bem divertido de ver, sem contar que ele não poderia fazer uma ponta no filme sem mandar um de seus “And so on”.

Conclusão

O envolvimento de Cahill no projeto me deixou animado para o que esse filme pudesse ser, e o fato de ele estar por trás do roteiro fez com que tudo parecesse ainda mais seguro. Por mais que os temas sejam genuinamente interessantes, é a forma como o filme trabalha seus símbolos que realmente me fez considerar esse um de seus trabalhos mais fracos. Ainda há muito o que ser aproveitado aqui, como a trama principal da filha de Greg o procurando pela cidade, ou a perseguição nos minutos finais, mas a tentativa de transformar uma narrativa especulativa em uma metáfora para assuntos mais delicados não terminou bem, e ficamos com uma execução rasa e previsível para o que poderia ser um estudo de personagem bem mais envolvente. 

Não desistirei de Mike Cahill tão fácil, mas talvez seja hora dele lembrar porque seus filmes menores foram tão queridos, e não foi pelo elenco mais famoso ou um maior orçamento, mas pela forma inteligente com que conduzia seu enredo. 

“Bliss: Em Busca da Felicidade” está disponível na Amazon Prime Video

Trailer:

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O Céu da Meia-Noite (2020) | George Clooney retorna ao espaço (ou quase).

Com uma filmografia competente, George Clooney já provou há um bom tempo que não é apenas o rosto bonito que começou a chamar a atenção por sua participação na série E/R (no Brasil conhecido por Plantão Médico), criada por Michael Crichton, o mesmo responsável por Parque dos Dinossauros e O Enigma de Andrômeda. Clooney logo começou a pegar papéis mais desafiadores e se destacar em filmes como E Aí, Irmão, Cadê Você, o que o deixou cada vez mais famoso e interessado em dirigir seus próprios filmes. Admito não ser fã da maior parte de seu trabalho por trás da câmera, mesmo considerando Boa Noite e Boa Sorte um ótimo filme, e é por isso que quando soube do lançamento da ficção científica O Céu da Meia-Noite, fiquei interessado no que ele poderia fazer em um território no qual já atuou, mas nunca dirigiu.

Adaptação do livro Good Morning, Midnight, de Lilly Brooks-Dalton, O Céu da Meia-Noite é ambientado em um futuro pós apocalíptico, no qual parte da humanidade foi extinta por conta de um cataclismo misterioso. Enquanto todos planejam uma evacuação do planeta, o cientista Augustine (Clooney) decide ficar para trás e cuidar da base de pesquisa no Ártico, onde trabalha sozinho procurando por possíveis planetas habitáveis.

Sem saber dos eventos que acabaram de acontecer na Terra, a astronauta Sully (Felicity Jones) e sua tripulação estão retornando para casa depois de sua missão de exploração espacial, o que obriga Augustine a tentar avisá-los, mas para isso ele precisa enfrentar os riscos do Ártico, além de cuidar de uma criança deixada para trás durante a retirada do planeta. 

A atriz Felicity Jones no filme O Ceu da Meia Noite

Vamos tirar logo do caminho o que realmente funciona nessa obra, que é todo o apelo visual. Mais uma vez colaborando com Clooney na direção de arte está Martin Ruhe, com um bom olho para composição de algumas sequências de tensão bem arquitetadas, principalmente as tomadas espaciais, que podem evidenciar o CGI, mas há movimentos de câmera “impossíveis” que conseguem diminuir a sensação de estranhamento, exatamente por compreender que a melhor maneira de filmar uma cena inteira com uso pesado de efeitos visuais seria simplesmente trabalhá-la quase completamente na pós-produção.

Mas isso entra mais no departamento de efeitos visuais, que fez o trabalho mais consistente e sem exageros, apenas uma atenção maior para coisas como a textura do casco das naves, por exemplo. Isso pode parecer pouca coisa, mas faz uma enorme diferença em alguns filmes e evita tirar completamente o espectador da experiência.  

Ainda sobre a direção de arte, por mais bonita, essa também cai em um problema bem comum de filmes do gênero, que é uma fotografia quase monótona, com estruturas e um visual limpo demais, quase sem identidade. Parece algo contraditório, mas é uma pena ver filmes com a possibilidade de explorar visuais bem mais criativos por conta de sua premissa de ficção científica, mas não parecem ter a coragem de seguir isso até o fim – ou seja, visuais bem feitos de um ponto de vista técnico, mas sem uma personalidade capaz de dar uma voz única para o filme; o que não é uma obrigação, mas faz falta quando os visuais são o elemento de maior destaque da obra.

Quanto ao enredo de Martin L. Smith, imaginei que ele fosse trabalhar a premissa batida de O Céu da Meia-Noite com uma execução tão boa quanto a que fez em outros roteiros, como o do inventivo Operação Overlord. O conceito do cientista solitário em procura de humanidade e redenção, toda a ambientação pós apocalíptica de cataclismas ou astronautas explorando possíveis planetas para habitar são alguns dos elementos mais comuns do gênero, o que é totalmente válido aqui, mas se você não procura sair de uma estrutura formulaica, ficamos apenas com um filme previsível e a sensação de estarmos assistindo uma colagem de outras obras bem melhores que poderíamos estar vendo no lugar (Não gosto de fazer muitas comparações quando faço uma crítica, mas A Chegada, Ad Astra e o próprio Gravidade, onde Clooney atuou, são exemplos de filmes que abordam temas similares, porém com melhor atenção ao drama, essencial para narrativas como essa).

George Clooney estrela a FC Ceu da Meia Noite
George Clooney

Por falar no drama, há um sério problema de caracterização dos personagens, que mesmo mencionando e até mostrando pequenos vislumbres de suas vidas passadas, não conseguem carregar peso algum. Com exceção de Augustine, interpretado por um Clooney abatido, o resto dos personagens não parecem possuir algo além de características básicas e arquétipos, como “o pai que sente falta da família” ou “a jovem inexperiente”. Até mesmo Felicity Jones, que estava grávida durante as gravações e pôde adaptar isso em sua personagem, não recebe muito com o que trabalhar, e na maior parte da rodagem do filme parece apenas entediada e confusa.

Essa falta de personagens melhor definidos fica difícil de ignorar quando o terceiro ato decide se apoiar em um desenvolvimento mais emotivo, que ao invés disso, acaba soando melodramático. Também não ajuda o fato do longa dividir-se em dois núcleos dramáticos, que mesmo ligados de forma direta, não trazem paralelos capazes de fortalecer seus temas principais, o que cria um ritmo inconsistente enquanto alterna entre essas duas linhas narrativas. Como se não fosse o suficiente, quando o filme realmente procura uma conexão na esperança de entregar um final surpreendente e enternecedor, somos deixados com uma reviravolta tão previsível que seria mais inesperado se ela não existisse.

Talvez Clooney precise continuar assistindo mais alguns filmes do gênero como referência (desde que fique longe da versão norte-americana de Solaris, também estrelada por ele). O Céu da Meia-Noite busca uma abordagem introspectiva e tocante, mas o resultado acaba sendo uma experiência cansativa e uma ficção científica cheia de escolhas óbvias, que não procura fugir da fórmula, mas também não se esforça o suficiente para se destacar.