Mike Cahill é um daqueles diretores com poucos trabalhos no currículo, isso porque ele costuma ter uma visão bem definida do que pretende colocar em seus filmes, a maioria deles sendo narrativas com elementos de ficção científica, mas indo além disso, com uma atenção maior para o componente humano. Seu primeiro longa, A Outra Terra (Another Earth, 2011), uma produção independente com conceitos criativos envolvendo o surgimento de um novo planeta idêntico ao nosso, e um enredo com temas bem estabelecidos sobre redenção. Cahill continuou sua combinação de ficção científica carregada de drama e debates íntimos sobre a condição humana em O Universo no Olhar (I, Origin 2014), onde trouxe um elenco maior e uma proposta mais ambiciosa, sem contar que repetiu a sua parceria com a excelente Brit Marling, atriz que também ficou conhecida por seu trabalho escrevendo o roteiro da série The OA (cancelada cedo demais após apenas duas temporadas).
Então, para aumentar ainda mais a escala, o diretor trouxe Bliss: Em Busca da Felicidade (apenas Bliss no original), com um elenco principal de rostos conhecidos e uma narrativa sobre… bem, sobre tópicos familiares para os fãs de ficção científica, mas que podem ser considerados spoilers pesados. Então, para essa crítica, deixarei os spoilers separados em uma categoria própria, assim você pode ler antes e depois de assistir ao filme. Vamos ao que interessa:
Greg Wittle e seus pensamentos
Preso em um trabalho monótono e sem saída, Greg Wittle (Owen Wilson) passa a maior parte de seu tempo desenhando e imaginando novos mundos onde pode descansar sua mente e não precisa lidar com seu recente divórcio ou a dificuldade para se conectar com os filhos. Mas depois de ser demitido, ou quase, Greg conhece Isabel Clemens (Salma Hayek), uma mulher misteriosa e convencida de que o mundo à sua volta não passa de uma simulação. Mesmo relutante, ele decide ouvir a mulher e ver até onde ela acredita em sua teoria, mas não demora para que Greg comece a perceber padrões e coincidências na conspiração que Isabel criou sobre sua realidade.
Antes mesmo de assistir ao filme, a primeira coisa que me pareceu estranha foi a decisão de ter Owen Wilson e Salma Hayek como os personagens principais. São dois atores competentes, cada um já teve sua parcela de ótimos filmes (Owen com Meia Noite em Paris e Salma com Frida) e alguns desastres (Owen em Gênios do Crime e Salma em Gente Grande), mas nunca os imaginei protagonizando um filme desses. E talvez eu nunca tenha pensado nisso por um motivo, porque a dupla não consegue oferecer tudo que seus personagens precisam em algumas partes.
Salma até consegue um bom trabalho alternando entre uma pessoa extravagante e intimidadora, indo para uma personagem mais contida; mas Wilson mantém seu tom ao longo do filme, e não é como se ele estivesse apenas mantendo a consistência de um personagem com ansiedade. Ele é constantemente bombardeado por novas revelações e, mesmo quando chega em um ponto de completa realização pessoal, nunca parece deixar isso claro. Mas há a chance de tudo isso estar ligado à temática da obra, o que eu não descarto, mas ainda assim não vejo como uma justificativa forte o suficiente.
O que Cahill faz é entregar uma ambiguidade entre realidade e fantasia, revelando sequências absurdas, mas ao mesmo tempo contrabalanceando com pequenos momentos capazes de estabelecer de forma “objetiva” o que estamos vendo, e mesmo assim, não há certeza (talvez consistência seja uma palavra melhor) em qualquer uma das duas perspectivas. Em certo ponto, assistimos Greg se livrar de um grupo de criminosos de uma forma que literalmente desafia as leis da física, mas o próprio enredo do longa estabelece que isso pôde ser realizado por conta de um produto que, aparentemente, Isabel é uma das poucas pessoas capazes de conseguir. Ao mesmo tempo que o filme define uma regra para seus eventos mais absurdos, ele também apresenta uma terceira camada, quase como uma incerteza causada pela própria regra que estabeleceu.
Esse é o tipo de abordagem que eu espero de um diretor como Shane Carruth (do independentíssimo Primer; e o menos independente, mas também menos conhecido Upstream Color), que também adora se aproveitar de narrativas especulativas ou fantasiosas para criar um drama maior através de metáforas e símbolos (falarei deles mais pra frente). Mas enquanto Carruth abraça completamente o abstrato, o que talvez fizesse mais sentido para a ambiguidade que Bliss tenta propor, Cahill chega a flertar com sequências oníricas e jogos de câmera que tentam representar a confusão dos personagens, mas a tentativa de conciliar o drama do protagonista com a dúvida causada pela trama deixa a verdadeira proposta do filme mais óbvia do que o necessário, e em certo ponto surge a sensação de estarmos assistindo um truque de mágica longo demais porque, em algum momento no meio do caminho, acabamos descobrindo como o truque é feito.
Ao Regresso Infinito: Os Temas e as Referências de Bliss
(Spoilers, pule para a Conclusão se quiser evitá-los)
Por mais que na superfície a proposta caminhe em um território fantasioso, não demora para ficar claro que estamos lidando com um roteiro que utiliza a ficção científica de forma simbólica, um pano de fundo para debater tópicos mais delicados, nesse caso, o vício. Na primeira cena podemos ver Greg tomando pílulas controladas, e pelo que seu diálogo indica, elas acabaram. Além disso, o protagonista sofre ao tentar manter-se limpo das drogas, mas acaba tendo uma recaída ao encontrar Isabel, que o induz a tomar cristais capazes de fazê-lo “acordar da falsa realidade em que vive”.
Por mais que o filme aparente criar uma certa estabilidade na forma como suas sequências mais surreais são apresentadas, o diretor nunca nos deixa sozinhos tempo o suficiente com nossos pensamentos. A intenção é clara e tudo com o que ficamos é a incerteza sobre as regras daquele mundo e a percepção de realidade do protagonista, mas quando essa dúvida é rapidamente deixada de lado (logo na cena em que os dois são liberados da prisão, podemos ver a entrada para um centro de reabilitação), o filme continua com sua estrutura de procurar nos deixar (desnecessariamente) em uma área mais nebulosa, alternando entre a jornada de Greg e o desespero de sua filha em ajudá-lo.
Outro tema bastante explorado por Bliss é o argumento da regressão infinita, envolvendo uma batalha entre nosso conhecimento e crenças, e assim Greg está constantemente questionando sua realidade, mas ao mesmo tempo, tentando justificá-la. Em uma cena-chave temos uma personagem interpretada pelo divulgador científico Bill Nye, que menciona a expressão “Turtles all the way down”, que é basicamente uma das principais representações desse conceito, envolvendo uma tartaruga apoiada no casco de outra tartaruga, e depois outra, e por aí vai. Essa ideia do constante retorno, da tentativa de justificar algo com um argumento que apenas dificulta a compreensão do que foi estabelecido originalmente é uma que já foi interpretada em outras mídias, como em It: A Coisa, de Stephen King, ou os livros da série Discworld, de Terry Pratchett.
E já que estou mencionando participações especiais (Bill Nye interpreta uma personagem, mas é basicamente ele), uma que me pegou de surpresa foi a do filósofo Slavoj Zizek, que aqui está em um de seus monólogos sobre ideologia social, mas como um holograma na “verdadeira realidade” apresentada por Isabel. Na cena, ele menciona como talvez o conceito de inferno não seja tão ruim quanto dizem, e continua com seus maneirismos, o que foi bem divertido de ver, sem contar que ele não poderia fazer uma ponta no filme sem mandar um de seus “And so on”.
Conclusão
O envolvimento de Cahill no projeto me deixou animado para o que esse filme pudesse ser, e o fato de ele estar por trás do roteiro fez com que tudo parecesse ainda mais seguro. Por mais que os temas sejam genuinamente interessantes, é a forma como o filme trabalha seus símbolos que realmente me fez considerar esse um de seus trabalhos mais fracos. Ainda há muito o que ser aproveitado aqui, como a trama principal da filha de Greg o procurando pela cidade, ou a perseguição nos minutos finais, mas a tentativa de transformar uma narrativa especulativa em uma metáfora para assuntos mais delicados não terminou bem, e ficamos com uma execução rasa e previsível para o que poderia ser um estudo de personagem bem mais envolvente.
Não desistirei de Mike Cahill tão fácil, mas talvez seja hora dele lembrar porque seus filmes menores foram tão queridos, e não foi pelo elenco mais famoso ou um maior orçamento, mas pela forma inteligente com que conduzia seu enredo.
“Bliss: Em Busca da Felicidade” está disponível na Amazon Prime Video
Convenhamos que o ano 2020 foi um desastre em quase todos os aspectos. Além de toda a tragédia das vidas perdidas por conta do vírus COVID-19, a indústria do audiovisual também teve suas baixas, principalmente as salas de cinema, que não puderam receber os espectadores e ficaram fechadas por meses, dando bastante prejuízo para os exibidores. Mas o que é entretenimento e comércio perto de vidas humanas?
Esse pode ter sido o pior ano da indústria cinematográfica (nem mesmo em tempos de guerra tivemos uma reação em cadeia tão grande de salas sendo fechadas), mas a TV e os serviços de streaming conseguiram manter suas séries em dia, isso porque a maioria já tinha sido filmada e só precisou passar pelo tratamento na pós produção. E por mais que eu queira indicar séries pouco reconhecidas, comoTruth Seekers(disponível no Amazon Prime Video), o meu compromisso aqui é com ficção científica, e não há elementos o suficiente para poder estabelecer essa série como algo do gênero, mas fica a dica mesmo assim.
Agora vamos para as regras:
1. Nos anos anteriores, as retrospectivas têm seguido um formato um pouco diferente, no qual listo e faço pequenos comentários sobre cada produção que merece um destaque naquele ano. Mas por destacar apenas as que eu gostei, deixei de fora outras séries que, por mais que eu não considere essenciais, podem acabar agradando alguém. Por isso, esse ano decidi desenvolver a retrospectiva em forma de lista, indo da pior para a melhor.
2. Entram na lista apenas as séries que tiveram exibição em 2020, e para alguns casos, eu incluí produções que tiveram início no ano anterior, mas terminaram em 2020, assim como produções que tiveram início em 2020 e terminarão em 2021. Pelo menos metade da temporada precisa ter sido exibida durante o ano da retrospectiva.
3. Infelizmente, como sou apenas uma pessoa, não fui capaz de assistir TUDO que foi lançado no ano, mas acredito que o número de produções mencionadas nesse texto será satisfatório. Séries como Doctor Who, Stranger Things, Agents of S.H.I.E.L.D e Future Man acabaram sendo deixados como MENÇÃO HONROSA simplesmente porque (ainda) não assisti as novas temporadas, mas deixo aqui como indicação já que nunca chegaram a decepcionar, então merecem ao menos esse pequeno reconhecimento. E perdão aos fãs de Lovecraft Country, porque ainda não terminei a temporada, mas até onde vi, estava muito boa, então… menção honrosa também.
4. Obviamente, a ordem da lista segue minha opinião completamente subjetiva, já que gosto é gosto, mas a principal função desse texto é lembrar, criticar e indicar o que saiu de melhor (e pior) na ficção científica de 2020.
Agora, vamos ao que interessa: O ranking das 21 séries de ficção científica de 2020, da pior para a melhor.
21º Lugar | AWAY (2020)
Desenvolvida por Andrew Hinderaker Disponível na Netflix
Com um elenco mais do que competente, nem mesmo as atuações da premiada Hilary Swank e Josh Charles conseguem salvar o melodrama original da Netflix, que vem tentando emplacar mais produções de ficção especulativa nos últimos anos, mas com sua política de prezar por quantidade no lugar da qualidade, o catálogo do serviço de streaming acaba trazendo séries como Outra Vida ou The I-Land, e esse ano com Away.
A astronauta Emma Green (Swank) está prestes a embarcar em uma missão arriscada com uma equipe internacional, mas não está pronta para deixar seu marido e filha sozinhos na Terra. A proposta de desenvolver um drama mais íntimo é boa, e a série chegou a ser uma das mais assistidas em sua semana de lançamento, mas o enredo fraco e repetitivo fez com que o público perdesse o interesse rapidamente, e como a Netflix baseia suas renovações de série quase exclusivamente em “audiência”, Away foi cancelada.
Hilary Swank esteve no elenco de um dos melhores filmes FC de 2019, o thriller independente I am Mother. Depois de ter entregado uma atuação tão boa e o filme ter recebido certo reconhecimento entre os fãs do gênero, é uma pena ver que Away não foi a melhor escolha para aproveitá-la. Não foi uma série ruim, mas facilmente a mais esquecível da lista (uma grande parte já sumiu da minha memória).
20º Lugar | UTOPIA (2020)
Desenvolvida por Gillian Flynn Disponível na Amazon Prime Video
Em 2013, Dennis Kelly foi responsável por uma das séries mais loucas da TV britânica. Utopia é protagonizada por um grupo de de amigos virtuais que acabam se encontrando para debater sua teoria da conspiração favorita, uma revista em quadrinhos que aparentemente contém informações capazes de revelar um enorme segredo envolvendo futuras ameaças, como sabotagem corporativa ou até mesmo uma pandemia. Durante sua exibição original, a série não atraiu tanto o público quando merecia, mas ao longo dos anos passou a ser reconhecida como uma produção bastante cultuada por quem é apaixonado por ficção científica.
Mas como toda boa obra lançada em qualquer parte do mundo, chega o momento em que algum estúdio decide adaptar a história para o público norte-americano. Só que dessa vez, tínhamos os nomes de David Fincher e Gillian Flynn no comando, os mesmos responsáveis pelo excelente filme Garota Exemplar, então talvez dessa vez a versão estadunidense pudesse trazer algo de novo, ainda mais considerando toda a premissa absurda e o contexto de um 2020 tomado por uma pandemia.
Para a tristeza de alguns, David Fincher acabou saindo do projeto para se dedicar ao seu próximo longa-metragem, o drama Mank. Ainda assim, Flynn é uma realizadora inteligente, o que acalmou o público. Mas depois de lançar sua primeira temporada, a versão norte-americana de Utopia se mostrou apenas uma colagem dos melhores momentos da série original, mas sem o mesmo impacto visual das cores e movimentos de câmera criativos, ou a forma como a trama era muito bem executada, dando igual atenção para cada núcleo dramático. Mesmo com um ótimo elenco, que inclui Rainn Wilson e John Cusack, Utopia tentou respeitar o material original, mas esqueceu que toda boa adaptação precisa de mudanças, então ficamos com uma temporada cheia de bons efeitos visuais e atuações, mas sem charme algum.
19º Lugar | ADMIRÁVEL MUNDO NOVO (2020)
Desenvolvida por Grant Morrison, Brian Taylor e David Wiener Sem distribuição no Brasil. Disponível no streaming Peacock.
Adaptar o clássico de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, não é tarefa fácil. Por isso, o estreante serviço de streaming Peacock decidiu trazer três showrunners para desenvolver a série. De primeira, fiquei curioso com o envolvimento de Grant Morrison, um quadrinista que adoro e sempre tem idéias bem mirabolantes para suas histórias. Por um lado, ele realmente colaborou para uma construção de mundo mais contemporânea, utilizando elementos do livro original para formar um comentário intrigante sobre entretenimento, mídia e excesso. Mas ao mesmo tempo que sua visão diferente cria um tom único para a série, também a compromete por não dar a mesma atenção aos personagens.
Ao contrário de Utopia, Admirável Mundo Novo soube adaptar o material e transformá-lo em algo novo, mas o drama e enredo fraco fizeram com que tudo isso fosse uma grande oportunidade desperdiçada, tanto que a série foi cancelada antes do ano acabar.
18º Lugar | DARK (2017-2020)
Desenvolvida por Baran Bo Odar e Jantje Friese Disponível na Netflix
Foi apenas esse ano que finalmente decidi maratonar a aclamada série alemã, Dark, o drama que conta a história de quatro famílias na pequena cidade de Winden. Cheia de segredos entre seus habitantes, a cidade também esconde um mistério envolvendo o desaparecimento de suas crianças em datas diferentes, mas circunstâncias similares.
Em uma jornada envolvendo viagem temporal e realidades alternativas, o público ficou fascinado pela forma que a série trabalhou seus temas nas duas primeiras temporadas, e por isso havia uma grande expectativa pela sua terceira e última.
Com tantos personagens, conceitos e elementos complexos, Dark teve dificuldade ao tentar equilibrá-los, o que resultou em uma temporada final mais inconsistente e apressada, que precisou dar tanta atenção para explicar seus conceitos, mas acabou esquecendo de desenvolver o que fez dela um sucesso em primeiro lugar: o drama dos personagens.
17º Lugar | WESTWORLD (2016- )
Desenvolvida por Jonathan Nolan e Lisa Joy Exibido pela HBO e disponível na HBO GO
Adaptação seriada do clássico Westworld: Onde Ninguém tem Alma, de 1973, Westworld tem sido uma das minhas séries favoritas desde sua estréia, com uma primeira temporada impressionante, não só em escala por conta do investimento nos efeitos visuais, mas no ótimo enredo, com uma narrativa inventiva e cheia de diálogos impecáveis, ainda mais quando interpretados por alguém do calibre de Anthony Hopkins. Mas ele não é o único destaque, já que o elenco é um dos pontos altos da obra, com nomes como Evan Rachel Wood e Ed Harris.
Mas como uma série tão incrível foi parar em uma posição tão desfavorecida quanto essa? Infelizmente, depois de uma segunda temporada menos impactante do que a primeira, a terceira procurou por revelações e tramas ainda mais impressionantes. O problema é que ela tentou demais ao ponto de ter desenvolvido sua narrativa inteira em volta de reviravoltas, muitas delas previsíveis e desnecessárias, que simplesmente davam em nada, com subtramas abandonadas aleatoriamente. Nem mesmo incluir Aaron Paul no elenco ajudou, e Westworld foi da série mais criativa da HBO para uma ficção científica voltada para um cyberpunk quase sem identidade.
16º Lugar | RAISED BY WOLVES (2020-)
Desenvolvida por Aaron Guzikowski Sem distribuição nacional. Disponível apenas no streaming HBO MAX.
Uma série sobre androides cuidando das últimas crianças humanas depois de uma guerra na Terra? Quero! Produzida por Ridley Scott? QUERO MESMO! E por mais que eu tenha me animado bastante com os visuais incríveis e boas atuações, Raised By Wolves cai na mesma armadilha de Westworld e Dark, e parece se enroscar no emaranhado de símbolos e metáforas religiosas que tenta conciliar com elementos de ficção científica.
Não é a primeira vez, e não será a última, que Ridley Scott se aproveita de conceitos existenciais e religiosos para desenvolver um comentário sobre a moralidade humana. Os temas e os mistérios são intrigantes, há muitas ideias boas na proposta, mas a execução peca ao tratá-las de forma superficial, criando conclusões sem muito peso para o drama dos personagens. Com exceção de uma direção de arte belíssima, Raised by Wolves se beneficiaria ainda mais de um roteiro menos carregado.
Ainda assim, que final foi aquele? Conte comigo para a segunda temporada!
15º Lugar | SNOWPIERCER (2020-)
Desenvolvida por Josh Friedman e Graeme Manson Disponível na Netflix
Adaptação de um quadrinho de mesmo nome, o filme Snowpiercer (Expresso do Amanhã) foi lançado em 2013, e pode não ter recebido tanta atenção na época, mas começou a ganhar fôlego com o passar dos anos, principalmente pelo conceito de transformar um trem em uma alegoria para a batalha de classes, com cada vagão servindo como uma representação de alguma casta social. E a popularidade pode ter aumentado ainda mais por conta de seu diretor, Bong Joon Ho, que venceu o Oscar 2020 com seu filme Parasita.
Como (quase) tudo que faz sucesso no cinema, Snowpiercer recebeu uma versão seriada, estrelada pelo carismático Daveed Diggs. Mas para que a narrativa funcione em um formato episódico, a saída foi transformar a alegoria política do filme em um thriller policial, com um protagonista que, ao invés de apenas tentar mudar o sistema, agora precisa usar suas habilidades como detetive para resolver um caso de assassinato.
Com um bom elenco e um enredo competente, Snowpiercer não chega a ter todo o impacto visual do longa de 2013, mas é uma boa pedida para quem procura uma série policial em um futuro pós-apocalíptico.
14º Lugar | STAR TREK: PICARD (2020-)
De Alex Kurtzman, Akiva Goldsman, Michael Chabon e Kirsten Beyer. Disponível na Amazon Prime Video
Nada me deixou tão ansioso quanto o retorno de Jean-Luc Picard, um dos capitães mais adorados da franquia e protagonista da série Jornada nas Estrelas:A Nova Geração (The Next Generation), interpretado por Patrick Stewart. Essa foi uma série que tinha diversos obstáculos em seu caminho, como ter que agradar o público da série original e conquistar novos espectadores.
O resultado é um híbrido entre a ação rápida da timeline Kelvin e da série Discovery, com toques de A Nova Geração, dando espaço para pequenos momentos de reflexão e silêncio (pequenos mesmo, infelizmente). Talvez nem todos concordem com essa decisão, mas particularmente considero um compromisso necessário, desde que tenhamos um enredo e personagens consistentes.
Mas infelizmente, para cada acerto, a temporada também cometeu erros enormes. Além de toda a violência gratuita e as subtramas mal construídas, Picard parece um coadjuvante em sua própria série, dando espaço para personagens bem menos interessantes.
13º Lugar | UPLOAD (2020-)
Desenvolvida por Greg Daniels Disponível na Amazon Prime Video
Nathan é um jovem programador procurando por investidores, mas depois de sofrer um acidente de carro, recebe a chance de ser integrado a uma realidade virtual onde você pode salvar a sua consciência antes de morrer e continuar sua segunda vida em um paraíso chamado Lakeview.
Mesmo relutante, acaba aceitando a oferta de sua namorada, mas agora vive em uma realidade controlada por computadores. Mesmo tendo um avatar físico e outras consciências com quem conversar, Nathan se sente mais sozinho do que nunca; mas as coisas mudam quando ele conhece Nora, uma das atendentes trabalhando para manter Lakeview e seus clientes satisfeitos.
Upload têm problemas, alguns deles podem te tirar completamente da série, mas essa primeira temporada tem seus momentos e sabe se divertir com as regras do seu mundo. Pode não ser imperdível, mas pode te entreter com boas piadas e um roteiro mais consistente do que imaginei que seria, principalmente considerando a premissa e todos os conceitos apresentados.
12º Lugar | STAR TREK: LOWER DECKS (2020-)
Desenvolvida por Mike McMahan Sem distribuição nacional. Disponível no streaming CBS ALL ACCESS.
Voltando para o universo de Jornada nas Estrelas, Lower Decks é uma série que foca na parte menos glamurosa das naves da Federação, seguindo a equipe de oficiais de baixa patente, que fazem todo tipo de trabalho servindo de assistentes para a tripulação principal. Eles tem que consertar replicadores de comida, fazer catalogações de novas espécies, limpeza geral, manutenção dos holodecks e toda aquela coisa que ninguém gosta de fazer.
Seguindo o mesmo estilo de animação e o humor de séries como Rick and Morty, Lower Decks tem boas idéias, e se dá bem quando quer faz algo original e engraçado, mas um enorme problema é a dependência dos roteiristas em nostalgia, o que faz com que os roteiros sejam cheios de referências vazias que, por mais obscuras que sejam, não servem propósito algum. Quando não foca nisso, Lower Decks fica bem melhor.
11º Lugar | STAR TREK: DISCOVERY (2017-)
Desenvolvida por Bryan Fuller e Alex Kurtzman Disponível na Netflix.
Depois de duas temporadas sem parecer saber qual seu propósito, Discovery finalmenteencontrou uma solução para poder desenvolver uma narrativa própria. Ao transportar a história de Burnham e companhia para um futuro distante, a série conseguiu se livrar da obrigatoriedade em tentar equilibrar uma tecnologia mais avançada com a estética mais “clássica” da linha temporal. Não é como se eles já estivessem fazendo um bom trabalho nesse departamento, mas com essa desculpa narrativa Discovery pode explorar a mitologia de Jornada sem se preocupar tanto com anacronismos.
Mantendo os efeitos visuais de qualidade, introduzindo novos personagens interessantes e subtramas mais envolventes, vamos torcer para que não tenhamos mais mudanças inesperadas nos bastidores que causem a bagunça que foi a temporada anterior.
10º Lugar | SOLAR OPPOSITES (2020-)
Desenvolvida por Mike McMahan e Justin Roiland Ainda não tem distribuição nacional. Disponível no streaming Hulu
Em Solar Opposites seguimos o cotidiano de uma família alienígena que precisou fugir de Schlorp, seu planeta-natal utópico que acabou atingido por um asteroide. Mas na procura por um novo lar, sua nave cai na Terra, onde eles agora vivem e reclamam dos costumes e rituais humanos. Os aliens Korvo e Terry são os guardiões de dois replicantes infantis, Yumyulack e Jesse. Juntos, eles tentam se adequar aos costumes terráqueos.
Solar Opposites pode ter seus defeitos, mas é quando explora o caos do cotidiano que realmente brilha, e isso porque o comediante e dublador Justin Roiland é excelente em humor improvisado. Terminamos a temporada com algumas pontas soltas, e por mais que essa não tenha sido uma das animações mais marcantes do ano, talvez eu volte para mais no futuro. São apenas oito episódios e eles passam voando.
Desenvolvida por Pedro Aguilera Disponível na Netflix.
Nina Peixoto (Carla Salle) trabalha para uma enorme empresa de vigilância, e as coisas parecem ir bem até o dia em que seu pai é assassinado misteriosamente e o sistema que acredita ser infalível não é capaz de revelar um culpado. Assim, Nina procura uma maneira de descobrir o responsável enquanto tenta burlar o sistema e as câmeras em sua volta.
Produção nacional, Onisciente não se limita às referências do gênero, como Asimov e Philip K Dick, e cria um universo próprio, com personagens e regras bem estabelecidas. Essa série é mais um passo para o avanço de produções de gênero no mercado nacional, um que ainda pode ser bastante influenciado por material norte-americano, mas carrega uma voz cada vez mais forte.
Eu admito não ser o maior fã de Star Wars, mas The Mandalorian conseguiu me conquistar pelas narrativas contidas e a estrutura de western que aquece meu coração. Os efeitos especiais são impressionantes, com um orçamento gigantesco, que acaba se justificando com sequências de ação maravilhosas. Além disso, personagens carismáticos e diretores convidados de alto calibre, como Taika Waititi e Robert Rodriguez.
A primeira temporada foi facilmente a melhor produção no universo de Star Wars em décadas, e por mais que a segunda temporada não tenha me conquistado do mesmo jeito, por conta das conveniências do roteiro e o excesso de fan service nostálgico desnecessário (a conclusão da segunda temporada não me emocionou, não deu), ainda assim foi uma das mais divertidas do ano, com aventuras que não perdem o fôlego e enriquecem o universo da série cada vez mais.
7º Lugar | RICK AND MORTY (2013-)
Desenvolvida por Dan Harmon e Justin Roiland Disponível na Netflix.
Rick and Morty é uma das animações mais aclamadas da TV. Mesmo não sendo reconhecida em seus primeiros anos, começou a ganhar enorme atenção no Brasil assim que teve seus episódios disponibilizados pelo serviço de streaming Netflix. Depois das duas primeiras temporadas, a série parece ter perdido um pouco de fôlego, mas com a estréia da quarta temporada, sinto que eles estão voltando aos trilhos.
Eu nem preciso falar demais dessa série porque, convenhamos, ela está popular em um nível de uma parcela dos fãs ter se tornado insuportável. Alguns acreditam que a animação perdeu toda a graça, mas ainda vejo muito material que pode ser explorado no futuro.
6º Lugar | MOONBASE 8 (2020-)
De Fred Armisen, Tim Heidecker, John C. Reilly e Jonathan Krisel Sem distribuição nacional. Disponível na SHOWTIME.
Antes mencionei a série Away, que pode não ter elementos de ficção científica o suficiente, mas ainda assim traz uma narrativa de exploração espacial e, convenhamos, todo fã do gênero adora uma história envolvendo astronautas. Em 2020 tivemos duas comédias que focam nos bastidores da NASA, a primeira sendo Space Force, estrelada por Steve Carell; a segunda foi uma bem menos popular, Moonbase 8. A diferença entre as duas é que Space Force parece apenas uma grande sátira feita às pressas para brincar com uma força tarefa espacial proposta por Donald Trump (nenhuma surpresa), enquanto Moonbase 8 tem uma escala bem menor e aproveita seu elenco para criar situações hilárias.
Estrelada por Fred Armisen, Tim Heidecker e John C. Reilly, a série segue três astronautas em uma base de testes, onde eles treinam para uma futura missão lunar. Ao longo de oito episódios assistimos os três comediantes improvisando diálogos e protagonizando situações ridículas por conta do seu comprometimento com a missão. Como se os três não fossem o suficiente, o espectador começa a questionar como a NASA decidiu contratar pessoas tão incompetentes, o que cria uma linha narrativa curiosa. É uma das séries menos conhecidas dessa lista, mas vale muito a pena para quem procura uma comédia bem feita.
5º Lugar | AVENUE 5 (2020-)
Desenvolvida por Armando Iannucci Disponível na HBO GO.
Eu demorei para assistir a primeira temporada de Avenue 5 por conta das diversas críticas negativas, mas quando comecei a assistir percebi que a maioria delas envolvia o humor da série, idealizada por Armando Iannucci, mais conhecido por seu trabalho em comédias como Veep. E talvez esse seja o problema, o humor de Iannucci é muito específico, sem punchlines ou nada que te faça gargalhar, mas é o tipo de comédia na qual os diálogos entregam mensagens conflitantes e o espectador precisa questionar o quanto daquilo é real, e o quanto é baboseira. Sim, é um humor muito específico, mas se ele não te pegar, a série com certeza não funciona.
A história gira em torno dos tripulantes de um cruzeiro espacial de luxo, que depois de um acidente tem o seu curso alterado, fazendo com que todos fiquem presos lá por bem mais tempo do que imaginavam. Além de lidar com as notícias ruins, os clientes precisam aturar o capitão e sua equipe, que são fazem idéia do que fazer.
A temporada passa a pegar mais fôlego e ficar mais dinâmica com o decorrer dos episódios, mas até lá, muitas pessoas já abandonaram, o que é uma pena porque a série tem ótimas atuações de Hugh Laurie e Zach Woods, além de efeitos especiais de qualidade (orçamento HBO). Para quem não gosta do humor, essa série vai ser um desastre, mas para quem procura uma comédia mais sutil, vai adorar tanto quanto eu.
4º Lugar | THE MIDNIGHT GOSPEL (2020-)
Desenvolvida por Duncan Trussell Disponível na Netflix.
Clancy comanda um podcast espacial chamado The Midnight Gospel, onde entrevista seres diversos de planetas em extinção. Com um simulador de multiversos, ele pode enviar um avatar com a sua consciência para estes planetas e gravar longas conversas, que podem ir de um simples questionamento sobre a legalização da maconha até uma viagem através dos sentidos, com debates sobre ética existencial e identidade.
Não se deixe enganar por elementos como barcos carregados pela energia positiva de gatos ou unicórnios que vomitam sorvete, The Midnight Gospel é uma experiência única através do espaço e da alma.
Desenvolvida por Nathaniel Halpern Disponível na Amazon Prime Video
Inspirado nos livros de Simon Stålenhag, que participa da série como roteirista e produtor executivo, Tales From The Loop segue a rotina dos habitantes de uma pequena cidade localizada acima de uma instalação de pesquisa, onde se encontra uma máquina chamada The Loop, capaz de explorar diversos mistérios do universo. Isso acaba afetando os habitantes, que experienciam situações inusitadas envolvendo inconsistências temporais, forças que desafiam as leis da física e outras coisas que poderiam ter saído de alguma obra de ficção científica.
Tales From The Loop é uma série que segue os moldes de outros grandes sucessos, mas se destaca na execução, apresentando mundos e personagens diversos sem depender de suas referências, explorando o que há de mais complexo na ficção científica, o ser humano.
Desenvolvida por Alex Garland Disponível na FOX Premium
Alex Garland fez sua carreira com a ficção científica, como os filmes Ex_Machina e Aniquilação, o que atraiu os fãs do gênero, mas assustou os estúdios por conta do orçamento gasto com efeitos visuais, e roteiros que não seguem uma linha narrativa tão tradicional. Então, quando decidiu desenvolver uma história sobre uma instalação de pesquisa capaz de visitar o passado e observar o futuro, o formato seriado foi o mais apropriado.
DEVS foi produzida pelo canal FX, e em oito episódios consegue trazer um espetáculo visual impressionante, tão bom que não fica devendo aos seus filmes. Mas além dos visuais e da trilha musical assustadora, há também um enredo complexo e intrigante, e um drama construído para casar perfeitamente com os temas da série. Nem todas as atuações são impecáveis como a parte técnica, mas os pontos altos conseguem apagar completamente os defeitos da temporada. Amito que ela não seja para todos por causa do ritmo lento e a direção quase experimenta em alguns episódios, mas para quem procura algo totalmente diferente, DEVS é uma experiência única.
1º Lugar | THE EXPANSE (2015-)
Desenvolvida por Daniel Abraham, Mark Fergus, Ty Franch e Hawk Ostby Disponível na Amazon Prime Video.
E como já era esperado, mais uma vez The Expanse é a série essencial para todo fã de ficção científica. Efeitos visuais de qualidade, conceitos originais, tramas emocionantes e uma abordagem mais realista de exploração espacial e política nas narrativas especulativas, essa série tem de tudo. Ela pode ter uma primeira temporada lenta, que demora estabelecendo as regras do mundo, mas quando passa a focar nos personagens e nas missões, The Expanse é o que o gênero tem de melhor para oferecer.
A tripulação da nave Rocinante continua sua jornada em busca de respostas para os eventos misteriosos que acabara de presenciar, enquanto precisam se envolver em um longo conflito entre a Terra, Marte e os membros do cinturão de asteroides de Ceres. Em 2020 tivemos a estréia de sua quinta temporada (felizmente, depois de ser cancelada pelo canal SYFY, a Amazon comprou os direitos da série), e por mais que seja a série mais avançada em episódios dessa lista, é uma das que mais vale a pena, se não for a melhor. E é por isso que ela continua no topo.
Então é isso! Sentiu falta de alguma série?
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Com uma filmografia competente, George Clooney já provou há um bom tempo que não é apenas o rosto bonito que começou a chamar a atenção por sua participação na série E/R (no Brasil conhecido por Plantão Médico), criada por Michael Crichton, o mesmo responsável por Parque dos Dinossauros e O Enigma de Andrômeda. Clooney logo começou a pegar papéis mais desafiadores e se destacar em filmes como E Aí, Irmão, Cadê Você, o que o deixou cada vez mais famoso e interessado em dirigir seus próprios filmes. Admito não ser fã da maior parte de seu trabalho por trás da câmera, mesmo considerando Boa Noite e Boa Sorte um ótimo filme, e é por isso que quando soube do lançamento da ficção científica O Céu da Meia-Noite, fiquei interessado no que ele poderia fazer em um território no qual já atuou, mas nunca dirigiu.
Adaptação do livro Good Morning, Midnight, de Lilly Brooks-Dalton, O Céu da Meia-Noite é ambientado em um futuro pós apocalíptico, no qual parte da humanidade foi extinta por conta de um cataclismo misterioso. Enquanto todos planejam uma evacuação do planeta, o cientista Augustine (Clooney) decide ficar para trás e cuidar da base de pesquisa no Ártico, onde trabalha sozinho procurando por possíveis planetas habitáveis.
Sem saber dos eventos que acabaram de acontecer na Terra, a astronauta Sully (Felicity Jones) e sua tripulação estão retornando para casa depois de sua missão de exploração espacial, o que obriga Augustine a tentar avisá-los, mas para isso ele precisa enfrentar os riscos do Ártico, além de cuidar de uma criança deixada para trás durante a retirada do planeta.
Vamos tirar logo do caminho o que realmente funciona nessa obra, que é todo o apelo visual. Mais uma vez colaborando com Clooney na direção de arte está Martin Ruhe, com um bom olho para composição de algumas sequências de tensão bem arquitetadas, principalmente as tomadas espaciais, que podem evidenciar o CGI, mas há movimentos de câmera “impossíveis” que conseguem diminuir a sensação de estranhamento, exatamente por compreender que a melhor maneira de filmar uma cena inteira com uso pesado de efeitos visuais seria simplesmente trabalhá-la quase completamente na pós-produção.
Mas isso entra mais no departamento de efeitos visuais, que fez o trabalho mais consistente e sem exageros, apenas uma atenção maior para coisas como a textura do casco das naves, por exemplo. Isso pode parecer pouca coisa, mas faz uma enorme diferença em alguns filmes e evita tirar completamente o espectador da experiência.
Ainda sobre a direção de arte, por mais bonita, essa também cai em um problema bem comum de filmes do gênero, que é uma fotografia quase monótona, com estruturas e um visual limpo demais, quase sem identidade. Parece algo contraditório, mas é uma pena ver filmes com a possibilidade de explorar visuais bem mais criativos por conta de sua premissa de ficção científica, mas não parecem ter a coragem de seguir isso até o fim – ou seja, visuais bem feitos de um ponto de vista técnico, mas sem uma personalidade capaz de dar uma voz única para o filme; o que não é uma obrigação, mas faz falta quando os visuais são o elemento de maior destaque da obra.
Quanto ao enredo de Martin L. Smith, imaginei que ele fosse trabalhar a premissa batida de O Céu da Meia-Noite com uma execução tão boa quanto a que fez em outros roteiros, como o do inventivo Operação Overlord. O conceito do cientista solitário em procura de humanidade e redenção, toda a ambientação pós apocalíptica de cataclismas ou astronautas explorando possíveis planetas para habitar são alguns dos elementos mais comuns do gênero, o que é totalmente válido aqui, mas se você não procura sair de uma estrutura formulaica, ficamos apenas com um filme previsível e a sensação de estarmos assistindo uma colagem de outras obras bem melhores que poderíamos estar vendo no lugar (Não gosto de fazer muitas comparações quando faço uma crítica, mas A Chegada, Ad Astra e o próprio Gravidade, onde Clooney atuou, são exemplos de filmes que abordam temas similares, porém com melhor atenção ao drama, essencial para narrativas como essa).
Por falar no drama, há um sério problema de caracterização dos personagens, que mesmo mencionando e até mostrando pequenos vislumbres de suas vidas passadas, não conseguem carregar peso algum. Com exceção de Augustine, interpretado por um Clooney abatido, o resto dos personagens não parecem possuir algo além de características básicas e arquétipos, como “o pai que sente falta da família” ou “a jovem inexperiente”. Até mesmo Felicity Jones, que estava grávida durante as gravações e pôde adaptar isso em sua personagem, não recebe muito com o que trabalhar, e na maior parte da rodagem do filme parece apenas entediada e confusa.
Essa falta de personagens melhor definidos fica difícil de ignorar quando o terceiro ato decide se apoiar em um desenvolvimento mais emotivo, que ao invés disso, acaba soando melodramático. Também não ajuda o fato do longa dividir-se em dois núcleos dramáticos, que mesmo ligados de forma direta, não trazem paralelos capazes de fortalecer seus temas principais, o que cria um ritmo inconsistente enquanto alterna entre essas duas linhas narrativas. Como se não fosse o suficiente, quando o filme realmente procura uma conexão na esperança de entregar um final surpreendente e enternecedor, somos deixados com uma reviravolta tão previsível que seria mais inesperado se ela não existisse.
Talvez Clooney precise continuar assistindo mais alguns filmes do gênero como referência (desde que fique longe da versão norte-americana de Solaris, também estrelada por ele). O Céu da Meia-Noite busca uma abordagem introspectiva e tocante, mas o resultado acaba sendo uma experiência cansativa e uma ficção científica cheia de escolhas óbvias, que não procura fugir da fórmula, mas também não se esforça o suficiente para se destacar.
“Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental que as leis, interesses e emoções humanas não possuem valor ou significância na vastidão do cosmos”
Conhecido também por ficção lovecraftiana ou até cosmicismo, o Horror Cósmico vem crescendo cada vez mais entre os fãs de ficção científica. E como dá para perceber pelo nome, a ficção lovecraftiana existe por conta do escritor Howard Phillips Lovecraft. Mas como gêneros literários são fenômenos em constante mudança e movimento, nunca é simples demais definir quem criou o quê de maneira tão simples.
Temos o próprio Edgar Allan Poe, que já trazia elementos de horror cósmico em suas obras antes de Lovecraft, tanto que Lovecraft se inspirou muito nele. Mas como o foco das narrativas de Poe é voltado para a escrita policial e de mistérios macabros, não só no horror cósmico, é compreensível porque foi na escrita de Lovecraft que o gênero tomou mais corpo. Suas obras são carregadas de elementos que marcaram o gênero, como sua atmosfera apocalíptica, horror corporal, um mal ancestral e indescritível, parasitas espaciais, entre vários outros. E é aí que entra a pergunta: O que é o horror cósmico, afinal?
Em seu ensaio “O horror sobrenatural na literatura”, de 1927, H.P. Lovecraft tenta explicar melhor o que ele considera uma verdadeira história de ficção Weird, que é um gênero no qual o horror cósmico se encaixa:
“O verdadeiro weird tale tem algo mais do que apenas homicídios, ossos ensanguentados ou uma lista de regras estabelecidas. Há uma certa atmosfera ofegante e um temor inexplicável de que forças siderais e desconhecidas possam estar presentes”.
Podemos seguir essa definição do próprio Lovecraft, o que muitos fazem, mas vamos debater mais sobre esse assunto. O horror cósmico é um gênero que explora o inevitável e o desconhecido. Diversas vezes falando sobre o encontro do ser humano com uma informação ou descoberta que não é capaz de compreender. Muitos chegam a ficar loucos por conta disso, e por isso a paranóia é bem comum em narrativas como essa.
Essa incapacidade de simplesmente não ter como reagir ou descrever o que está vendo, por conta de ser algo que desafia completamente a sua percepção do que é possível e real, é muito bem representado em um dos contos mais conhecidos de Lovecraft, “O Chamado de Cthulhu”, onde o autor descreve uma criatura que lembra uma mistura entre um polvo, um dragão e uma caricatura humana, com metros de altura e um par de asas.
Mesmo que o horror cósmico tenha monstros e outros tipos de criaturas que ajudam na construção da trama, essa é uma narrativa que também explora a insignificância humana comparada a vastidão do universo. É por conta disso que algumas pessoas costumam atribuir ao gênero uma característica de niilismo existencial, essa morte do sentido e da realidade. Por conta disso, os protagonistas costumam confrontar o pensamento de que sua existência é fútil comparada ao resto do universo, que o trata com indiferença.
Isso acaba trazendo um tom bem pessimista para o núcleo dramático do horror cósmico, o que faz com que muitos personagens simplesmente concluam sua jornada através do suicídio. Essas narrativas são caracterizadas pela falta de esperança.
Podemos usar o termo desespero do event horizon, ou o desespero do ponto de não-retorno. Esse termo (inspirado em um conceito da cosmologia) fala dessa linha, que uma vez atravessada, acaba com qualquer sentimento de esperança. Aqui, um personagem desistiu de tudo, seja sua missão, uma pessoa ou até a própria vida, e não há volta.
O gênero influenciou bastante a literatura, com autores como Stephen King, que entrou de cabeça na atmosfera do horror cósmico, e acabou criando um estilo próprio, que até serve de contraste para a abordagem Lovecraftiana, com suas obras IT: A coisa e O Iluminado. Além dele, temos a pesquisadora Julia Kristeva, que estuda a sensação de melancolia na literatura e a abjeção em narrativas de horror, como fez em Powers of Horror. E eu não posso deixar de mencionar Alan Moore, o mago dos quadrinhos, que já homenageou Lovecraft diversas vezes, principalmente em suas obras Neonomicon e Providence.
A televisão também foi bastante influenciada por Lovecraft, como a recente produção da HBO, Lovecraft Country, uma série que se utiliza dos elementos narrativos do horror cósmico, mas vai além e traz uma inteligente análise do racismo, uma das características mais problemáticas do autor.
Outra série da HBO que bebeu da fonte Lovecraftiana é a primeira temporada de True Detective, onde o personagem Rust Cohle, interpretado por Matthew McConaughey, está constantemente fazendo monólogos sobre a insignificância dos rituais humanos dentro do contexto cósmico. Além disso, há várias referências visuais e menções à obras de Robert W. Chambers, Ambrose Bierce e, claro, o próprio Lovecraft.
Muitos costumam usar a animação Rick and Morty como exemplo para alguns dos temas do gênero, principalmente a crise existencial e o já mencionado desespero do ponto de não-retorno, mas uma outra animação que conseguiu carregar a mesma atmosfera e até referenciou algumas obras do autor em seus monstros da semana, foi a divertida e assustadora Coragem, o Cão Covarde.
No cinema, o horror cósmico tem sido um desafio para muitos diretores, principalmente Guillermo Del Toro, que tenta financiar uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, mas nunca consegue. Além disso, não é uma tarefa fácil representar visualmente um gênero conhecido por confrontar o indescritível.
Mas tivemos bons filmes, como O Nevoeiro, de Frank Darabont, onde um grupo de pessoas se esconde em um supermercado para fugir de uma tempestade, mas logo uma neblina toma conta da cidade e uma ameaça maior pode estar próxima. E também temos o drama Aniquilação, de Alex Garland, que discute o desconhecido e o inexplicável, quando um grupo de cientistas precisa investigar uma anomalia alienígena.
Mas o filme que talvez tenha melhor representado a paranóia e os elementos do horror cósmico de maneira inteligente seja O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter. Na trama, uma equipe de pesquisa na Antártida é aterrorizada por uma criatura alienígena capaz de assumir a aparência de qualquer ser vivo. Assim, todos precisa lidar com o fato de que eles possam ser a criatura.
Além da excelente direção de Carpenter, os efeitos visuais impecáveis e a música do mestre Ennio Morricone, O Enigma de Outro Mundo é um roteiro fortemente influenciado por Lovecraft, principalmente a sua obra Nas Montanhas da Loucura, onde o protagonista narra os eventos de uma expedição desastrosa à Antártida, na esperança de evitar que mais alguém tente retornar ao local.
O horror cósmico é um gênero que traz incontáveis possibilidades. E por isso é decepcionante ver como algumas narrativas de horror cósmico se limitando apenas aos elementos que causam o susto barato através das criaturas, que são ótimas, mas quando encaixadas em um bom enredo, um em que todo esse confronto humano com o vazio e o cósmico pode ser uma boa oportunidade para questionarmos a vastidão de nossa própria identidade.
Por que estou aqui? Qual o meu propósito? E se realmente existir vida lá fora, além da Terra? Não é questão de realmente ver o indescritível, muitas vezes é apenas o pensamento do que pode estar escondido nas sombras que aterroriza a mente humana.
A ficção científica dispõe de diversas narrativas capazes de experimentar possíveis realidades distópicas, seja através dos governos totalitários ou até a opressão por conta de uma certa utopia alienadora. Muitas vezes, essas histórias são protagonizadas por um herói insatisfeito com a sua condição, que por fim se rebela contra o sistema e consegue trazer uma mudança no pensamento de todos, acabando com a figura opressora. Para a autora Octavia E. Butler, esse herói não existe, mas a mudança é possível, apenas exige muito esforço.
Em seu livro A Parábola do Semeador, lançado originalmente em 1993, Butler comenta a maneira na qual a história se repete através do comportamento humano. Seguindo a filosofia de vida de Nina Simone, na qual afirma que “o dever do artista é refletir sobre sua realidade”, Butler especula sobre nossos caminhos e os obstáculos que negligenciamos, principalmente os econômicos e ambientais.
A Parábola do Semeador começa em 2024 e é narrado por Lauren Oya Olamina, uma jovem vivendo em uma sociedade falida, afetada por mudanças climáticas e escassez de recursos básicos, como a própria água. Além disso, as cidades são controladas por grandes corporações, e quem não trabalha para elas, simplesmente tenta sobreviver como pode.
Lauren mora na Califórnia, em uma comunidade pequena, onde todos precisam andar armados e revestir os muros em volta com arame farpado e pedaços de vidro, isso porque são constantemente invadidos por pessoas procurando roubar seus poucos pertences, isso quando não possuem intenções ainda mais malígnas. Como se a situação não fosse ruim o suficiente, Lauren lida com um fenômeno chamado hiper empatia, que faz com que ela compartilhe a dor e o prazer de outras pessoas. Em um mundo onde existe apenas tristeza e solidão, sentir em demasia pode ser mortal.
“Mas se todos pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer dor desnecessária a alguém?”
A literatura de Butler é carregada de símbolos, e por ser uma autora preta que começou a escrever ficção científica, gênero constituído majoritariamente por homens brancos, em uma época em que as manifestações por direitos iguais para a comunidade afro-descente nos Estados Unidos estava no auge, é fácil afirmar que seu ponto de vista era mais do que necessário, e isso explica o impacto de seu texto e a força com a qual retornou nos últimos anos, principalmente influenciando diretamente movimentos literários como o Afrofuturismo. No Brasil, suas obras têm sido publicadas pela editora Morro Branco (que também fez um excelente trabalho de resgate de outro grande autor, Samuel R. Delany).
A Parábola do Semeador carrega, em sua maior parte, um tom pessimista e deprimente, considerando a quantidade de violência “gráfica” durante os momentos mais pesados da obra, marcados por sangue e abuso. Octavia é uma escritora sem rodeios, seu texto é protesto e ela não tem medo de comentar temas arriscados de forma visceral. Sexo, religião, política e racismo são tópicos indispensáveis; e por mais que essa seja considerada uma expressão batida, poucos autores realmente “permanecem relevantes e atuais” como Butler.
Entre as diversas subtramas apresentadas no livro, mesmo que estejam acontecendo em segundo plano, temos um personagem chamado Donner, um político vivendo pela sua promessa em “trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século XX”. As semelhanças com o contexto político atual não é uma previsão, mas as preocupações de uma autora capaz de estudar a humanidade e nos lembrar como a história é cíclica, e vive se repetindo.
“Os fracos podem vencer os fortes se os primeiros resistirem. Persistir nem sempre é seguro, mas costuma ser necessário”
Butler nos traz uma protagonista complexa. Lauren é jovem e impulsiva, mas também é inteligente e sua empatia faz com que o senso de comunidade seja mantido mesmo em um cenário tão desolador. A relação de Lauren com sua religião, e por extensão seu Deus, é outro grande diferencial da obra. Para a personagem, Deus representa mudança, mas é indiferente, não favorece ou detesta, apenas é. Essa abordagem mais filosófica encaixa bem com a natureza da narrativa, principalmente considerando sua ambientação.
A escrita da autora é quase cinematográfica, com descrições rápidas, mas eficientes. Um diálogo pode mudar completamente o rumo de tudo; há atenção aos detalhes, como pequenos trejeitos dos personagens; as sequências de ação são cheias de tensão por conta do texto limpo e objetivo, mas impactante.
Há até espaço para que Butler crie sua própria corrida espacial, introduzindo elementos como exploração e colonização do espaço, que continua acontecendo, mesmo com todos os problemas na Terra de 2024. Esse pode ser um comentário da autora sobre os movimentos pelos direitos civis da década de 1960, onde era possível ver o contraste entre a comunidade afro-americana lutando por igualdade racial enquanto o resto da atenção dos EUA se voltava à chegada do homem à lua.
A Parábola do Semeador é um livro intenso e corajoso. Até onde o ser humano consegue aguentar e seguir em frente, mesmo que todos pareçam estar contra você? A jornada de Lauren é difícil e perigosa, mas é necessária apenas uma semente de empatia para que uma enorme mudança aconteça.
Distribuído pelo serviço de streaming Amazon Prime Video, A Vastidão da Noite (The Vast of Night, 2019), explora uma noite na pequena cidade fictícia de Cayuga, onde um apresentador de rádio e uma operadora de telefone captam uma frequência misteriosa e decidem investigar, mas esse é só o primeiro dos absurdos que a noite separou para eles.
O filme já está disponível no Prime Video, mas infelizmente não tem recebido a atenção merecida, então decidi trazer uma rápida crítica para indicar essa obra independente e cheia de estreantes na equipe, mas muito bem executada.
“Somos alienígenas, trabalhamos de forma misteriosa. Não podemos ser julgados por padrões humanos”.
Toda vez que surge uma nova animação, principalmente uma com temática sci-fi, já corro para assistir. No caso de Solar Opposites, a expectativa é ainda maior por conta dos nomes envolvidos na produção. Desenvolvida por Mike McMahan e Justin Roiland, o primeiro sendo um dos roteiristas e o segundo o co-criador de Rick and Morty, respectivamente, é óbvio que há uma cobrança por parte dos fãs.
Em Solar Opposites seguimos o cotidiano de uma família alienígena que precisou fugir de Schlorp, seu planeta-natal utópico que acabou atingido por um asteroide. Mas na procura por um novo lar, sua nave cai na Terra, onde eles agora vivem e reclamam dos costumes e rituais humanos. Os aliens Korvo e Terry são os guardiões de dois replicantes infantis, Yumyulack e Jesse. A interação entre eles acaba sendo similar a de um casal cuidando de suas crianças adotivas, assim temos Korvo e Terry procuram maneiras de se adequar a nova vida, enquanto Yumyulack e Jesse são matriculados em uma escola para aprender mais sobre os terráqueos.
A animação tem uma proposta comum de comédias situacionais (sitcoms). A primeira que me veio em mente foi a divertida Uma Família de Outro Mundo (3rd Rock From the Sun, no original), e é claro que Alf, o Eteimoso também explora essa premissa. Mas por termos alguém como Justin Roiland por trás da série, não conte com o tom leve e descontraído das produções que acabei de mencionar. Essa nova animação é insana, escatológica e cheia de humor negro.
Ao longo da curta temporada de apenas oito episódios, grande parte da comédia vem das tentativas – sem sucesso – dos alienígenas em se adaptar ao estilo de vida dos humanos. Situações absurdas como ter uma crise existencial ao perceber que um mascote da TV não é real ou ficar indignado com a forma como os humanos se satisfazem ao assistir um truque de máquina faz com que a solução dos alienígenas seja usar todo tipo de ferramenta ou tecnologia extraterrestre (como eles dizem, “baboseira sci-fi”) para tentar compreender as pessoas.
Vale mencionar que a maior parte dos humanos da série servem apenas como vítimas para os planos dos protagonistas, ou seja, há uma boa quantidade de violência e sangue na temporada. Mesmo que não seja oficial, Solar Opposites pode ser visto como um spin off de Rick and Morty, não só por compartilhar parte da equipe criativa, incluindo os animadores, mas pelo tom indiferente e anarquista das tramas.
Por mais que tenha algumas ótimas piadas e desenvolva bem as suas regras e limitações, talvez a falta de alguém como Dan Harmon (com quem Roiland criou Rick and Morty) tire um pouco do brilho dessa nova série. Harmon é responsável pela maior parte do humor metalinguístico e referencial de toda produção em que se envolve, e sua habilidade de elaborar comentários inteligentes e ácidos sobre a estrutura narrativa da TV seriam bem-vindos aqui.
Essa nova série está constantemente fazendo menções e inserindo piadas sobre outros programas, de clássicos como Quinta Dimensão até o sucesso Harry Potter. Chegam a colocar um Justin Roiland animado logo no primeiro episódio como easter egg. Mas nada disso parece ser o suficiente e na maioria das vezes essas referências soam vazias e sem razão. Se por um lado conseguem brincar com os roteiros e personagens de Gilmore Girls de um jeito que contribua para a narrativa, por outro tentam fazer um meta-comentário sobre o serviço de streaming Hulu, onde a animação é exibida, mas repetindo a mesma crítica em diversos episódios. Uma vez é engraçado, duas tudo bem, mas quase todo episódio tem uma piada assim, e essa repetição não contribui para o enredo, apenas distrai e nos lembra de algo que já sabemos. Harmon faz isso com um propósito, Roiland parece um pouco perdido nessa parte.
Continuando nas similaridades entre projetos, já que é inevitável compará-los, a dublagem mantém a mesma qualidade, mas fica difícil distinguir Korvo de Rick, já que os dois são personagens inteligentes dublados por Roiland e tem a mesma atitude sarcástica e arrogante. Mas isso pode ser mais um problema na construção dos personagens, que mesmo tendo características distintas, não tem arcos dramáticos atraentes o suficiente, resultando em conclusões pouco satisfatórias.
Outro indício de que os personagens principais precisam de mais do que apenas traços definidores é o fato de uma subtrama sobre humanos encolhidos e aprisionados no quarto dos aliens por vezes rouba a atenção e parece mais intrigante do que a trama principal. Nessa subtrama, temos uma narrativa clássica sobre ascensão e queda de distopias, o que é simples mas eficaz, principalmente porque os roteiristas parecem estar se divertindo mais ao criar uma nova civilização em volta desses humanos prisioneiros, com ratos servindo de locomoção ou M&Ms como moeda de troca, ao invés das aventuras de Korvo, Terry, Yumyulack e Jesse. O núcleo distópico é tão divertido e engraçado ao ponto de ter um episódio inteiro dedicado exclusivamente a ele, o que é bom mas nos faz lembrar que a trama secundária é envolvente que a principal.
Solar Opposites pode ter seus defeitos, mas é quando explora o caos do cotidiano que realmente brilha, e isso porque Justin Roiland é excelente em humor improvisado. Terminamos a temporada com algumas pontas soltas, e por mais que essa não tenha sido uma das animações mais marcantes do ano, talvez eu volte para mais no futuro. Por enquanto, vale a pena assistir: são apenas oito episódios e eles passam voando.
Essa não é uma matéria comum por aqui, mas passei tempo demais sem poder combinar duas grandes paixões da minha vida: a ficção científica e a música da Queen, a maior e melhor banda que já existiu (comprovado cientificamente). Brincadeiras à parte, é curioso notar como os integrantes da banda foram inspirados e também conseguiram influenciar os gêneros da ficção científica e fantasia.
Uma das características que melhor representa a Queen é a forma como cada membro carrega gostos e interesses diferentes, mas de alguma maneira consegue trazê-los organicamente para o repertório da banda. Freddie Mercury, Brian May, Roger Taylor e John Deacon já se arriscaram em diversos estilos musicais, e eu não estou exagerando quando digo que foram muitos.
Além do clássico hard rock e heavy metal casando com elementos de ópera e balé, músicas como The March of the Black Queen, Bohemian Rhapsody e Innuendo foram o máximo da experimentação, com assinaturas de tempo incomuns para as rádios. A banda também já brincou com o punk em Sheer Heart Attack (Freddie já chegou a se desentender com o cantor Sid Vicious), trocou os seus instrumentos padrões por guitarras espanholas, maracas e campana em Who Needs You, e eu não sei explicar o que acontece em Mustapha, onde Freddie Mercury canta inglês, árabe, persa e outra língua inventada. Faz parte da banda explorar novas loucuras para inserir em seus álbuns, e eu mencionei apenas os primeiros exemplos que me vieram na cabeça.
Mas vamos ao que interessa. Mesmo que Queen seja o maior acontecimento da história da música (nem um pouco hiperbólico), esse é um site sobre ficção científica, e é hora de lembrar como esses dois mundos se encontram.
A primeira coisa que devemos notar é que os próprios integrantes da banda sempre tiveram um pé na ciência. O baterista Roger Taylor tem um diploma em biologia e o guitarrista, Brian May, possui um PhD em astrofísica. May chegou a colaborar com a NASA no projeto New Horizons, que tinha como um de seus objetivos fotografar e estudar Plutão.
E como se isso não fosse o suficiente, a carreira solo dos dois é ainda mais ligada à ficção científica. Os dois primeiros álbuns de Roger Taylor foram intitulados Fun in Space (Diversão no Espaço) e Strange Frontier (Estranha Fronteira), enquanto May se envolveu em projetos musicais com nomes como Star Fleet (Frota Estelar) e 1984 (referência direta ao livro de George Orwell), sua primeira banda.
Seguindo uma linha cronológica, a primeira ligação da banda com o gênero está no álbum A Night At The Opera (1975).
Queen já havia criado uma narrativa de fantasia entre seus álbuns Queen (1973)e Queen II (1974), mas foi só com A Night at the Opera, título inspirado no filme de mesmo nome estrelado pelos Irmãos Marx, um grupo conhecido por várias comédias clássicas, que a banda teve sua primeira música com temática de ficção científica.
Escrita e cantada por Brian May, a canção ´39 traz a banda inteira cantando em harmonia a história de um grupo de astronautas que embarca em uma viagem de um ano. Mas ao retornar, percebem que por conta da dilatação temporal, centenas de anos já se passaram. A música segue o ponto de vista desses astronautas, que agora percebem como todos que deixaram para trás estão velhos ou mortos.
Para contrastar a narrativa melancólica, May decide seguir com um arranjo folk, ao estilo das músicas skiffle, que mesclam jazz, blues e country. Nas apresentações ao vivo, Freddie Mercury geralmente cantava no lugar de May, que ficava ocupado no violão. Pessoalmente, prefiro a versão do álbum, mas esse ao vivo com Roger Taylor berrando é o que melhor representa a atmosfera da canção:
O próximo exemplo não está em uma música, mas sim em uma ilustração. Além do álbum News of The World (1977) trazer hinos da banda, como We Will Rock e We are The Champions, a primeira coisa a chamar atenção é a sua arte de capa.
A arte revela um robô gigante segurando a banda em suas mãos mecânicas e ensanguentadas, com uma expressão aparentemente triste. Para quem acha essa capa aleatória, ela tem a ver com a paixão do baterista Roger Taylor pelas clássicas revistas de ficção científica que você podia encontrar em qualquer banca na década de 1950 e 60.
A ilustração do robô gigante apareceu pela primeira vez na capa da revista Astounding Science Fiction, e a arte original foi feita por Frank Kelly Freas. O artista chegou a explicar a imagem, dizendo que ela representa um robô acidentalmente destruindo um ser orgânico, mas triste por não poder consertar. A edição da revista trazia a história The Gulf Between, do escritor Tom Godwin, sobre uma civilização futurista onde os robôs podem trabalhar como qualquer ser humano, mas devem seguir as regras sem questioná-las.
24 anos depois do lançamento da revista, a banda contratou Freas para recriar a imagem, dessa vez trocando o humano da capa original pelos integrantes da banda.
Agora podemos seguir para as trilhas sonoras. Por mais que Queen esteja presente em incontáveis filmes, não foram muitos para os quais eles prepararam uma trilha sonora original. A primeira delas foi para o filme Flash Gordon (1980), longa inspirado no herói das tiras de jornal criado por Alex Raymond.
Principal concorrente de Bucky Rogers, Gordon é um homem forte e corajoso, que acaba preso no planeta Mongo, comandado pelo tirano Ming. As histórias eram simples e logo se transformaram em uma ópera espacial maior e mais épica. Em questão de adaptações, Flash Gordon teve séries, animações e mais de um filme, mas o mais conhecido continua sendo a versão de 1980, que contava com a trilha sonora original feita por Queen.
O álbum Flash Gordon (1981) tem uma arte de capa incrível e Brian May queria criar a música mais explosiva e heróica que imaginou. Além da faixa-tema, Flash’s Theme, o álbum trazia ótimas canções como The Hero e a melhor versão da Marcha Nupcial que você já ouviu.
Foi durante a turnê desse álbum que Freddie Mercury inventou de se apresentar montado em cima dos ombros de Dart Vader. É engraçado quando você lembra que a letra da música Bycicle Race contém o verso “I don’t like Star Wars” (“Eu não gostou de Guerra nas Estrelas”).
O próximo álbum da banda seria Hot Space (1982), um dos mais arriscados. A ideia do baixista John Deacon em criar uma mistura de funk com disco não agradou os outros membros, mas seguiram com a proposta mesmo assim. O resultado foi um dos álbuns mais criticados da banda, mas ainda assim contendo faixas excelentes como Under Pressure.
Não há referências sci-fi nas letras das canções, mas o clipe da música Calling All Girls, de Roger Taylor, é uma paródia do filme THX 1138 (1971), uma distopia escrita e dirigida por George Lucas antes de ficar conhecido com Star Wars. O videoclipe é considerado um dos mais raros da banda, mas finalmente começou a receber atenção ao aparecer em DVDs da banda e no seu canal do Youtube.
Mas se Calling All Girls não fez sucesso, a banda conseguiu compensar isso com o lançamento do álbum The Works (1984), um dos seus mais vendidos. Além de ter músicas como Machines (Back to Human), uma das primeiras vezes que a banda decidiu usar sintetizadores, com o propósito de dar o ar futurista que o álbum pedia, a maior referência ao gênero está no videoclipe de Radio Gaga, música escrita por Roger Taylor.
Com visuais inspirados no clássico filme do expressionismo alemão, Metrópolis (1927), dirigido por Fritz Lang, Queen estava de volta ao topo e decidiu gastar um pouco mais com esse vídeo, recriando cenários e a fotografia do filme. O clipe foi dirigido por David Mallet e não teve uma produção tão simples.
Com o lançamento de uma versão restaurada do filme Metrópolis, a música Love Kills, de Freddie Mercury, foi usada. Em troca, ele recebeu a permissão para usar imagens do filme no clipe da banda, mas eles ainda tiveram que comprar os direitos de exibição do governo alemão.
Cinco anos depois de Flash Gordon, a banda lança o álbum A Kind of Magic (1986). A arte de capa é horrível, mas esse acaba sendo um dos maiores sucessos da banda, incluindo a faixa-título, escrita por Roger Taylor. Esse também foi um lançamento inovador, porque além de ser o primeiro gravado digitalmente pela banda, traz faixas comuns ao lado de músicas originais criadas para o filme Highlander (1986), composições como Princes of the Universe, escrita por Mercury; One Year of Love, de Deacon; e Who Wants to Live Forever, de Brian May.
A turnê do álbum foi a de maior sucesso da banda, rendendo apresentações memoráveis como as de Budapeste e do Estádio Wembley, em Londres. Os shows foram gravados em película 35mm e lançados em alguns dos DVDs e Blu-rays mais vendidos da música.
A música Who Wants to Live Forever é uma das mais belas do catálogo da banda, mas seu clipe não foi tão impactante quanto o de Princes of the Universe, este aproveitando imagens e cenários de Highlander, tendo até a presença do ator principal, Christopher Lambert, recriando a batalha final do filme, com Freddie Mercury.
Eu posso ter esquecido uma coisa ou outra, mas já valeu a pena passar esse tempo escrevendo sobre Queen, o que acabou sendo uma desculpa para passar o dia ouvindo todos os álbuns.
Essa são algumas das principais ligações que você pode encontrar entre a banda e a ficção científica. Se eu esqueci de mencionar algo, deixe nos comentários. Até a próxima.