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O Hotel do Alpinista Morto | O único SCIFI da Estônia (Vídeo)

Os irmãos Strugatsky são uma dupla de autores soviéticos que podem não ser tão populares na ficção científica quanto um Asimov ou Philip K Dick, mas tem grande influência no gênero, não só pela narrativa de seus livros, mas pelas adaptações que eles já renderam pra TV e cinema. Talvez a obra mais conhecida deles seja a novela Piquenique na Estrada, que se transformou no filme Stalker, um clássico do diretor Andrei Tarkovski. Outras traduções pro cinema que se destacam são filmes como Os Dias de Eclipse, que foi dirigido pelo Aleksandr Sokurov e traz muita experimentação dele, também tivemos a distopia É Difícil ser um Deus, que chegou a ser adaptado mais de uma vez. Todos possuem algum elemento de ficção científica, seja alteração da realidade por um acidente espacial, ou um mundo que os alienígenas invadiram, mas logo abandonaram. Já o longa Hotel do Alpinista Morto é uma obra que traz, além do scifi, o mistério de uma narrativa investigativa, com uma atmosfera absurda e única que pode agradar qualquer fã de Twin Peaks ou Arquivo X.

O cinema da União Soviética era gigante, a maioria vindo do lado russo, mas pouco se fala sobre as produções que saíram da Estônia, ainda mais quando prestamos atenção na ficção científica. A maioria dos filmes do gênero eram curtas, e por isso Hotel do Alpinista Morto se destaca como – provavelmente – o único longa de ficção científica do país. Mesmo sendo único, o filme consegue ser uma obra-prima que compensa essa ausência e representa muito bem o potencial do cinema soviético, e por isso virou um clássico do leste europeu.

Como já mencionei, o filme é baseado em uma obra homônima da dupla Arkady e Boris Strugatsky, mas ao contrário de outros livros mais populares deles, que eram mais voltados pra ficção científica filosófica e introspectiva, Hotel do Alpinista Morto carrega um mistério mais voltado para o thriller policial, ainda que continue sendo, em essência, um scifi mais cabeça.

Hotel do Alpinista Morto Filme SciFi Ficção Científica

A trama acompanha o oficial Glebsky, que parte em uma missão urgente envolvendo um resort isolado entre montanhas congeladas chamado hotel do alpinista morto, que levou esse nome exatamente por conta de um acidente com um aventureiro que morreu ao cair de um penhasco, uma memória sempre presente por conta do enorme quadro na entrada do hotel, representando o homem morto. Quando chega no local, o oficial percebe eventos e pessoas estranhas, mas não faz ideia de qual crime deve solucionar. Antes que pudesse ir embora e desistir do caso, Glebsky fica preso no local por conta de uma avalanche que corta as conexões do lugar com o resto do mundo, e é nesse cenário que a investigação começa de verdade, quando vítimas surgem e eventos misteriosos passam a acontecer, fazendo com que todos os hospedes virem suspeitos.

E você pode estar se perguntando onde entra a ficção científica nisso tudo!?

Parte da surpresa do filme envolve exatamente o elemento scifi, o que pode dar uma dica do que está por vir. Costumo evitar entregar spoilers muito grandes da trama, a não ser que seja necessário. Aqui é difícil estragar a experiência revelando detalhes da história porque esse filme é muito mais sobre a própria jornada do que a conclusão. Ainda assim, ele tem uma baita conclusão, do tipo que deixa uma certa ambiguidade em elementos estabelecidos no começo, mas deixa outros aspectos bem claros para o espectador, incluindo uma cena de quebra da quarta parede que explica muita coisa e deixa ainda mais interessante essa experimentação do diretor.

Então, o filme tecnicamente entrega muito do que está por vir logo no começo, e foi uma boa decisão, porque com certeza muita gente poderia assistir esse filme e chegar na parte que ele abraça total a ficção científica e dizer algo do tipo: “Nossa, mas isso veio do nada”. Felizmente, isso é bem executado e quando o grande mistério é revelado, já não parece mais tão aleatório introduzir conceitos mais inesperados.

Hotel do Alpinista Morto Filme SciFi Ficção Científica

Enquanto Stalker é dirigido por Tarkovsky e se apoia mais em um debate existencialista, aqui temos a direção de Grigori Kromanov, e ele procura uma abordagem com comentários mais voltados para questões sociais e políticas. Claro que os dois filmes têm uma mistura de tudo isso, mas o diferencial do filme de Kromanov é a mescla de gêneros, experimentação na técnica e o excelente trabalho de fotografia, figurino e som.

O longa carrega muito da estética que viria a ser mais popular nos anos 80, principalmente no figurino e cenário, com cores contrastantes e aquela pegada psicodélica que deixa tudo mais bizarro, em combinação com a fotografia obscura do hotel, com muitas sombras e o uso de espelhos pra criar mais confusão nessa atmosfera misteriosa – uma técnica que vimos ser bastante utilizada em outra indicação aqui do canal, o pouco conhecido, mas bastante influente, Mundo Por um Fio.

Tão importante quanto o trabalho de direção de arte é a música. A trilha sonora de Sven Grünberg também tem bastante presença, carregada de sintetizadores que lembram algo no nível das melhores bandas de música eletrônica, sem contar um pouco das composição que bandas como a Goblin fez para os filmes do Dario Argento.

Grande parte da magia desse filme está nessa parte técnica, como a edição fragmentada de algumas sequencias que deixa uma montagem mais confusa, com a intenção de enganar o espectador e fazer você se perguntar sobre o que acabou de ver. Por isso esse é o tipo de longa que vale a pena assistir mais de uma vez, mas não só pela estética, também por todos os temas que ele levanta, principalmente considerando o período em que foi lançado, mesmo que a ambientação também seja um pequeno mistério. Através do protagonista temos muitos debates sobre as contradições da justiça e os limites da lei, com um personagem que acredita estar fazendo o certo em seguir as regras, mas não avalia suas próprias questões morais sobre os eventos bizarros do hotel.

Esse pode ser uma das poucas referências do cinema de gênero da Estônia, mas consegue ser um clássico da ficção científica, que pode ser um pouco difícil de encontrar pra assistir, mas é uma experiência que merece imersão total e uma tela grande com a direção de arte belíssima e o som estalando com a trilha do Grünberg no talo. Uma inesquecível pérola scifi que não pode ser ignorada.


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Mato Seco em Chamas | O caos iminente e a revolta necessária

“Seus corpos em chama em plena madrugada”

Por mais que alguns de seus detratores tentem limitar o cinema nacional à narrativas de drama genérico ou comédia caricata, o nosso cinema é bem mais rico do que isso, e uma das provas está no trabalho de diretores como Adirley Queirós, de obras como Branco Sai, Preto Fica e Era uma Vez Brasília, dois longas que além de serem um olhar crítico da vida periférica em Brasília em relação ao centro politico do país, também são duas obras que exploram um gênero que, infelizmente, tem sido pouco explorado no nosso cinema, a ficção científica. Em outro texto, falo melhor de Branco Sai, Preto Fica, e a importância de sua análise sobre violência, trauma e brutalidade policial, mas também a forma como mescla comentário social com elementos do gênero especulativo, incluindo na trama um viajante do tempo para investigar a sociedade que tem oprimido a população preta.

Indo para Era uma Vez Brasília, temos um olhar que pode até soar completamente pessimista na superfície, muito por conta dessa ambientação que traz uma certa ansiedade existencial por conta do tema principal que explora. O filme tem outra mescla interessante de ficção científica e drama político, contando a história de um agente intergaláctico que recebe a missão de vir para a Terra matar o presidente Juscelino Kubitschek em 1959, mas a personagem acaba se perdendo durante sua viagem temporal e cai na Ceilândia de 2016, no Distrito Federal, quando o país está prestes a presenciar o golpe de impeachment sofrido pela presidenta Dilma Rousseff.

Seria possível criar um paralelo entre esses dois filmes, que evidenciam o caos iminente a caminho de um país que se permitiu flertar com o fascismo, e o próximo longa de Queirós, Mato Seco em Chamas, que representa o país tomado pelo bolsonarismo, além de trazer um questionamento sobre as chances de um recomeço, mesmo em um sistema completamente quebrado.

Codirigido entre Joana Pimenta e Adirley Queirós, Mato Seco em Chamas é mais uma obra que representa a periferia de Ceilândia, em Brasília. Na trama, as irmãs Chitara e Léa lideram uma gangue feminina que consegue roubar petróleo de um oleoduto, refiná-lo e transformar em combustível para os motoqueiros da favela Sol Nascente.  Em um presente (ainda mais) distópico, com toques de recolher e barreiras físicas se formando entre as classes sociais, a gangue de gasolineiras cria uma fortaleza em sua refinaria improvisada e precisa se defender de possíveis ataques de qualquer um que queira acabar com sua operação.

Mato Seco em Chamas Filme Adirley Queiros Joana Pimenta

Com uma ambientação que, mais uma vez, mescla gêneros como faroeste e ficção científica, fica fácil referenciar esse filme como um “Mad Max” brasileiro, mas isso seria apenas a superfície. Mato Seco em Chamas se utiliza bastante do formato documental e cria uma linha temporal que alterna entre essa narrativa ficcional de ação e uma experimentação documental que explora as histórias das mulheres do presídio Colméia, com depoimentos das próprias ex-presidiárias, que agora interpretam as gasolineiras da ficção. Assistimos as mulheres em sua jornada de redescoberta por identidade depois do aprisionamento, lidando com um Brasil cada vez mais difícil de reconhecer.

“Procuramos mulheres que tinham uma história que trazem uma melancolia, cujos rostos e corpos são marcados por essa história de liberdade e aprisionamento. Uma geração inteira que foi encarcerada e tem o sentimento de não saber se está no presente, passado ou futuro. Você vai para a prisão e o que para você é um dia, para o resto do mundo são anos. É quase coisa de ficção-científica. O tempo é relativo” (Joana Pimenta)

É uma combinação docu-ficção que poderia ser confusa ou artificial na mão de outro diretor sem a mesma sensibilidade, mas Pimenta e Queirós constroem uma narrativa poderosa que faz com que o real e o ficcional passem a ser um só, não só por conta da vivência das atrizes, mas a liberdade criativa em cima do roteiro, aberto ao improviso, o que faz com que as suas protagonistas tragam a realidade em diálogos e atuações autênticas, seja em momentos de descontração, falando de comida ou sexo, mas também – e principalmente – quando retrata a revolta das mulheres contra forças opressoras. Na ficção, elas têm o poder, comandam a distribuição de combustível e tem grande influência no local, embora ainda enfrentem a ascensão da extrema direita durante manifestações de apoio a um verdadeiro criminoso e os milicianos, aqui representados por um grupo de fanáticos controlando drones, de tocaia em um camburão cheio de monitores, luzes e discursos de um “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Realmente, ficção e realidade ficam cada vez mais difíceis de distinguir.

Mato Seco em Chamas Filme Adirley Queiros Joana Pimenta

Em complemento a forte atuação das mulheres, principalmente a dinâmica entre Joana Darc Furtado, Léa Alves da Silva e Andreia Vieira, o filme se aproveita de uma câmera estática e um excelente tratamento de cores para representar a favela como um território rico em cultura, mas também a eterna tensão com a possibilidade de uma invasão da força miliciana. A música também tem um papel importante, tanto que o título vêm de uma canção da Banda Muleka 100 Calcinha (ninguém tem mais criatividade que grupos de Forró e Tecnobrega na hora de criar esses nomes), e o longa alterna entre a diversão e extravagância dos bailes de rua com os hinos da igreja, outra figura essencial para deixar clara essa transição pelo qual as personagens passam.

Mato Seco em Chamas traz debates que tem sido essenciais para compreender o Brasil de hoje, desde críticas ao sistema carcerário até a ascensão do fascismo, e cada elemento fortalece a narrativa geral, que mesmo tendo a ficção científica em segundo ou terceiro plano, conta a história dessas mulheres com vidas que viajam entre passado e futuro. Com atuações impressionantes, um enredo orgânico construído em cima de uma crítica política pesada, o longa ficará marcado para sempre na cabeça de muitos por conta dos depoimentos das personagens e o retrato assustador do que foi e continua sendo o pior lado do conservadorismo no país. Na superfície, o sentimento é de tristeza, mas também a possibilidade de mudança, muito disso representado na poderosa cena final do longa. Talvez tão iminente quanto foi o bolsonarismo, é a revolta que nos obriga a derrubá-lo.

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MEN: Faces do Medo | Não é fácil escapar de relacionamentos abusivos

Alex Garland é um diretor que tenho seguido o trabalho há muito tempo, desde que ele escrevia roteiros para os filmes de Danny Boyle, com os ótimos Extermínio (2002) e Sunshine – Alerta Solar (2007). Depois, também foi responsável por uma das adaptações mais fiéis dos quadrinhos, quando fez o texto para Dredd: O Juíz do Apocalipse (2012), e fez sua estréia como diretor em 2014, com Ex_Machina, um filme de pequena escala e orçamento modesto, mas com grandes atuações e roteiro de Garland, um escritor que sabe explorar os elementos de ficção científica dentro da narrativa como poucos – sem contar que o longa tem a cena do Oscar Isaac dançando ao som de Oliver Cheatham, o que automaticamente faz com que qualquer filme seja um pouco melhor.

Por ter trabalhado quase sempre com ficção científica, seguindo Ex_Machina com Aniquilação (2018) e a série DEVS (2020), alguns já esperavam que seu próximo filme fosse outra obra do gênero; o que até faz parte, mas de fato está mais voltado para o suspense. Men: Faces do Medo (típico subtítulo desnecessário, vai entender) está mais voltado para o thriller psicológico, um estudo de personagem com temas sobre masculinidade tóxica e violência, mas principalmente é uma narrativa sobre relacionamentos abusivos.

Jessie Buckley em Men Faces do Medo
Jessie Buckley

Harper (Jessie Buckley) sai do centro de Londres para se isolar em um chalé e lidar com o trauma de ter perdido seu marido. Procurando superar o luto, enfrenta emoções conflitantes por conta das memórias de uma relação violenta e tóxica, ao mesmo tempo que sente certa responsabilidade e culpa pelos eventos. Ao caminhar no campo e explorar o ambiente, Harper percebe que está sendo observada, logo surgem figuras misteriosas e o mesmo rosto passa a persegui-la. Em uma trama tensa, Men é o típico thriller psicológico da produtora A24, o que dependendo da pessoa pode ser algo bom, entretanto nem sempre é o caso.

Queridinha do público interessado em um cinema mais “cult”, a A24 é uma boa produtora, com alguns dos meus filmes favoritos, como Sob a Pele (2014) e Bom Comportamento (2017), e onde Garland trabalhou antes, mas ela também tem seus tropeços; não podemos esquecer Tusk: A Transformação. E há uma certa síndrome A24 que nem todos querem admitir, mas não dá pra negar que mais de uma vez por ano temos algum filme com premissa intrigante, bom elenco e um diretor competente, geralmente em um thriller psicológico (não vamos debater pós-horror aqui, tá proibido), mas que escondem um enredo repetitivo ou sem muito desenvolvimento em diversas camadas de metáforas e alegorias. 

Antes de tudo, deve-se levar em consideração que, obviamente, essa é uma opinião pessoal, como toda crítica é; e cada obra de arte atinge as pessoas de maneiras diferentes, essa é a graça, e por isso debatê-las é tão enriquecedor e causa emoções fortes. O segundo comentário que preciso evidenciar aqui é o fato de que narrativas com temáticas pertinentes como as de Men são sempre bem-vindas, entretanto elas são somente uma parte de um todo, e não fazem do filme algo melhor por conta exclusiva disso – apenas números de dança fazem isso.

Men Faces do Medo

De início, Men se utiliza de uma ambiguidade na trama para criar uma experiência sensorial bem construída, com a tensão e paranoia dos eventos que perturbam a protagonista, e nos faz questionar a realidade de Harper e daquele mundo. Contudo, logo vem meu maior problema com o filme, a forma como ele tenta objetivar vários aspectos da história, explicando pontos que seriam melhor deixados em dúvida, tanto que logo quando a proposta do longa fica clara, e isso acontece mais cedo do que você imagina, ele perde grande parte do seu apelo, que antes se apresentava com um tom e atmosfera sustentada por essa incerteza na trama.

Esse é o típico filme com um debate promissor e vários temas que podem render um estudo de personagem complexo e significativo, explorando violência doméstica, perpetuação da masculinidade tóxica, abuso psicológico e outros assuntos que em um roteiro melhor trabalhado seriam examinados com cuidado e seriedade. Infelizmente, Garland parece estar interessado em falar de tudo isso, mas não consegue se aprofundar em nenhum desses temas com propriedade por conta de sua responsabilidade maior com viradas na trama, principalmente todo o terceiro ato, que se debruça em horror corporal acreditando que sua crítica é suficiente para sustentar um enredo pouco desenvolvido, tanto que o filme tem ao seu dispor dois atores excelentes, Jessie Buckley e Rory Kinnear, mas nenhum arco dramático ou “evolução” parece existir nas personagens, tendo o talento dos atores como a única coisa que sustenta a maior parte da obra.

Jessie Buckley e Rory Kinnear em Men Faces do Medo
Jessie Buckley e Rory Kinnear

Men tem seu auge na ambientação, trabalho de som, direção de arte, atmosfera tensa com segmentos oníricos e atuações de Jessie Buckley e Rory Kinnear. Esses elementos fazem com que o longa tenha um começo forte, mas logo muito disso se perde por conta de um enredo sem foco, o que é uma pena vindo de alguém como Alex Garland. Ainda assim, continuo ansioso por qualquer um de seus próximos projetos.

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O Homem Ideal (Ich bin dein Mensch, 2021) | A complexa relação entre mulher e máquina

Se fosse realizado por algum grande estúdio de Hollywood, talvez O Homem Ideal tivesse uma sensibilidade completamente diferente da que temos na adaptação de Maria Schrader, baseada no conto de Emma Braslavsky. Há uma mistura estranha de drama, ficção científica e comédia que funciona bem, muito disso por conta do excelente roteiro de Jan Schomburg e a própria Schrader, e as atuações de Maren Eggert e Dan Stevens. O espectador também pode encontrar similaridades na premissa com filmes como Ex Machina, de Alex Garland, ou o episódio Be Right Back, da segunda temporada de Black Mirror (quando ainda era criativa e a Netflix não forçava temporadas com mais episódios).

A proposta de O Homem Ideal é tão simples quanto a execução, e é por conta disso que o resultado soa tão genuíno. Alma (Maren Eggert), é uma arqueóloga que precisa de recursos para finalizar sua pesquisa, então aceita participar de um experimento no qual passa a conviver com o robô humanoide, Tom (Dan Stevens), programado com a principal função de fazer Alma feliz. Quase uma comédia romântica na superfície, o filme surpreende com a maneira que explora cada aspecto da vida de Alma, e os diversos debates levantados por conta da sua relação com Tom.

Felizmente, esse é um dos raros casos onde souberam aproveitar o talento de Dan Stevens, um ator que fez papéis memoráveis, como na série Legion, ou o filme O Hóspede, mas muitas vezes é escalado para personagens que ficariam ótimos se ele tivesse mais liberdade para explorá-los, e é aqui que Maria Schrader mostra sua força como diretora, construindo um enredo inteligente em volta de atuações mais complexas do que a premissa parece indicar.

Maren Eggert e Dan Stevens no filme O Homem Ideal

Tom começa como um companheiro perfeito para Alma, citando poetas como Rilke, respondendo toda pergunta com um elogio e dançando rumba com a precisão que apenas uma máquina como ele poderia ter, embora o charme de Dan Stevens dê uma dimensão maior para a personagem. Isso faz com que cenas como a tentativa do robô em comprar um café seja uma das mais engraçadas do filme, mas também há momentos mais dramáticos, como quanto precisa lidar com o comportamento avesso de Alma, que não está confortável lidando com uma mudança tão drástica do seu cotidiano, bem mais agitado, de apartamento bagunçado e uma rotina de trabalho pouco saudável, sem contar que, por baixo de toda a frustração de Alma, há um trauma que o roteiro lida com bastante cuidado, e fortalece o drama de um jeito orgânico, sem atrapalhar o humor e o romance que foram estabelecidos anteriormente.

Como mencionei, no começo as interações entre Tom e Alma parece algo saído de uma comédia romântica previsível (algumas são ótimas, mas convenhamos que outras são muito fracas), e realmente não há muitas surpresas na forma como a trama se desenrola, mas cada novo diálogo e cena revela uma enorme evolução na dinâmica entre eles, e por conta da habilidade do robô em evoluir através de experiências frustradas, assim como uma inteligência artificial, o filme passa a apresentar debates mais existenciais, questionando as limitações fundamentais de Tom, as implicações morais e éticas de sua relação com Alma e a dificuldade cada vez maior de definir a humanidade.

O Homem Ideal escapa da possibilidade de sofrer por conta de sua mistura de ficção científica, romance e comédia, e encontra uma maneira de consolidar personagens, enredo e temas com sucesso. Um dos destaques do ano, e muito disso por conta do excelente trabalho de direção de Maria Schrader e sua sensibilidade para explorar tantos elementos de uma forma simples, mas emocionante.

Dan Stevens no filme O Homem Ideal