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After Blue (Paradis Sale), Dogma 95 e o Manifesto da Incoerência

“Ser incoerente significa ter fé no cinema, ter uma abordagem mais romântica, sem moldes, livre, perturbadora e onírica, uma narração épica. Incoerência que evidencia uma falta de cinismo, mas não de ironia, abraçando o gênero sem penetrá-lo”.

Sempre estou à procura de todo tipo de ficção científica possível, principalmente quando tem uma proposta tão criativa e experimental quanto a de After Blue, uma jornada de faroeste psicodélico com um enredo sem muito brilho, mas um ótimo chamariz visual e bastante charme. A premissa é bizarra, mas fácil de entender. Distante da Terra, provavelmente depois de sua destruição, temos um planeta alienígena distópico que serve de colônia apenas para os humanos “dotados de ovários” (quem não possuir um, morre logo após o parto). É nesse cenário que conhecemos a criminosa Katarzyna Buzowska (Agata Buzek), mais conhecida como Kate Bush (sem relação direta com a cantora), enterrada em um deserto rosa pela polícia espacial, até que um dia é libertada pela jovem e confusa Roxy (Paula Luna). Como punição, Roxy e sua mãe, Zora (Elina Löwensohn), recebem a ordem para caçar e exterminar Bush, para evitar que a criminosa cause ainda mais destruição no planeta After Blue.

O filme foi distribuído na mesma semana que a música Running Up That Hill estourou por conta da quarta temporada de Stranger Things, e talvez por conta disso ele tenha recebido certa atenção de algumas pessoas; sem contar que o diretor do longa, o francês Bertrand Mandico, não é um estreante. Seu primeiro longa, Os Garotos Selvagens, esteve no topo da lista de favoritos da revista Cahiers du Cinema em 2018. After Blue é mais um exemplo do seu cinema experimental, principalmente um apelo estético que se destaca pela forma como reproduz o visual de obras independentes (até trash) de ficção científica entre as décadas de 1970 e 80, com cenários claramente artificiais, atuações mais caricatas e efeitos de câmera com filtro carregado.

Paula Luna no filme After Blue

Essas são algumas das características propostas pelo Manifesto da Incoerência (Incoherence Manifesto), idealizado por Mandico, ao lado da diretora e produtora Katrín Ólafsdóttir. Quando você dá uma olhada nas regras, fica fácil lembrar do conhecido Dogma 95, estabelecido por Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, mas a ideia de Mandico-Ólafsdóttir traz alguns conceitos bem interessantes que os diferencia da dupla dinamarquesa, mesmo que algumas categorias realmente sejam um comentário em cima do Dogma 95. Há mudanças no roteiro, efeitos, geografia, direção de arte e até atuação. 

Para o Manifesto da Incoerência deve-se ignorar qualquer convenção cinematográfica de roteiro, os efeitos precisam ser práticos, as gravações devem ser feitas em película que “passou da validade” (elas ainda funcionam normalmente, mas trazem um resultado diferente) e a maior parte do trabalho de som é feito apenas na pós-produção. Se por um lado o Dogma 95 propõe que as obras não devem se encaixar em qualquer gênero específico, o Manifesto da Incoerência dita que todo filme deve ser um híbrido entre, pelo menos, dois gêneros (After Blue mescla ficção científica, fantasia e faroeste). Quanto à autoria, Dogma afirma que o diretor não deve ser creditado, enquanto Incoerência determina que o diretor é o autor máximo, comandando câmera e direção de arte.

Paula Luna e Elina Löwensohn no filme After Blue

After Blue procura se manter fiel à proposta, pelo menos em sua maior parte, e acredito que o filme fique mais envolvente se o espectador for assisti-lo tendo antes em mente todo o conceito do manifesto de Mandico-Ólafsdóttir, o que cria uma conexão maior com a obra e faz de tudo uma experiência mais completa. Contudo, isso também atua contra o longa, que não parece oferecer algo além de uma ideia muito bem elaborada, mas de execução frágil. Enquanto o mundo de After Blue é rico em elementos visuais peculiares e nos transporte com facilidade à um planeta cheio de fauna e flora surreal, figurinos, cenário e explosão de cores e saturação que fortalecem a ambientação onírica, ao mesmo tempo eles não compensam uma narrativa repetitiva, com personagens sem muita carisma e um enredo previsível.

É claro que muito disso pode tentar ser justificado no argumento de que “o diretor propõe acabar com qualquer convenção de roteiro”, como eu mesmo disse nesse texto, mas se o resultado para uma tentativa de quebrar com as regras for uma história tediosa, que consegue explorar todos os seus temas na primeira hora e depois segue se arrastando desnecessariamente para mais uma hora, então talvez seja melhor se “manter ao roteiro”.

Não faltam temas fascinantes para explorar no mundo misterioso e erótico de Mandico, mas com tudo que o filme poderia ter dito, chega um ponto em que o enredo repetitivo afeta o ritmo e faz com que até o visual torne-se repetitivo, e assistimos a protagonista vagar em mais um deserto, floresta ou caverna, dizendo nada de novo. After Blue é original e se apresenta muito bem, sendo facilmente um dos destaques do ano, mas fica difícil não pensar em como ele teve mais sucesso na promessa do que na execução.

Agata Buzek como Kate Bush no filme After Blue